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O Oeste catarinense representado pelo saber colonial
Foto: Divulgação
Escrito por Alana de Bairros e Deise Agnoletto
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O Oeste catarinense, lugar de gente acolhedora e de bonitas paisagens, já foi território paulista e paranaense, até tornar-se região de Santa Catarina depois da Guerra do Contestado, em 1916. A mesorregião é a maior do estado, composta por 118 municípios e localizada no canto superior do mapa, oposto as ilhas e à capital.
O local tem sua economia baseada na agropecuária e é conhecido por contemplar os maiores grupos agroindustriais de carnes de aves e suínos do Brasil. De outro lado, a agricultura familiar contribui para dar valor à imagem da região, que não é apenas terra onde se produz alimentos em massa, mas também produtos de qualidade diferenciada. A partir da década de 1990, intensificou-se a produção colonial no local, e os produtos que antes restringiam-se ao consumo familiar, passaram a ter
espaço no mercado regional, mostrando o potencial da agricultura familiar para o desenvolvimento socioeconômico da região.
Os produtos coloniais são os alimentos feitos pelos próprios “colonos”, termo que por muito tempo carregou o estigma de “gente de baixa renda e escolaridade”. Era comum ouvir a expressão “seu colono!” usada para ofender alguém. Graças a importantes mudanças no Brasil, desde as leis até o entendimento sobre o campo, a diversidade étnica e cultural começou a ser vista como uma riqueza, e os agricultores passaram a reconhecer e reafirmar sua importância.
Em alguns casos, a produção é feita para complementar a renda, mas especialmente para levar sabor e saúde à mesa. O queijo e o salame são os produtos coloniais de maior destaque, mas a diversidade é ampla: chimias, também chamadas de geleias, cana-de-açúcar, torresmo, queijo de porco, codeguim, morcilha, méis, vinhos, cachaça, além da ampla variedade de hortaliças, frutas e verduras em conservas.
Os alimentos coloniais carregam, em sua essência, qualidades que atravessam a história. Para alguns, representam os alimentos feitos com carinho. A outros, remetem boas lembranças do interior. Tem aqueles que caracterizam o colonial como saudável, e ainda os que reforçam que é nele que se encontra os sabores e riquezas que vem do campo.
Apesar de estar enraizada na tradição do Oeste, a agricultura familiar vive um tempo de evasão, e isso é percebido nas pesquisas do IBGE. Em 1995, os derivados de carne suína eram produzidos em 20.398 estabelecimentos rurais. Os dados apontaram que este percentual reduziu-se para 1.590 em 2006. Referente aos derivados do leite, o índice, que era de 59.741, caiu para 5.838 produtores. Reflexo de saberes ficando para trás e da falta de preservação dos significados e valores sociais que a produção colonial representa.
Os produtos coloniais, em grande parte, são vendidos na informalidade, para familiares, vizinhos e conhecidos. A comercialização formal, feita em mercados, feiras ou diretamente com o consumidor, requer uma série de adequações no processo de produção. A inspeção industrial e sanitária dos alimentos de origem animal, como o queijo, mel, ovos, carnes e seus derivados, compete às secretarias da agricultura, quando o produtor opta pelo comércio apenas dentro do município.
Entre os 601.504 habitantes da região Oeste registrados nos dados do IBGE de 2010, mais de 160 mil moram na zona rural.
A Companhia Integrada de Desenvolvimento Agrícola de Santa Catarina (Cidasc) é o órgão que fiscaliza a comercialização entre os municípios e o Serviço de Inspeção Federal (SIF), do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, é o responsável por inspecionar os produtos comercializados entre os estados e internacionalmente.
Duas décadas de sabor e saúde
Neri Vaccari, de 56 anos e cabelos levemente grisalhos, nasceu em Águas de Chapecó, onde morou até os 18 anos, quando mudou- -se para o Mato Grosso do Sul. Há 25 anos, a decisão de voltar para o Oeste catarinense falou mais alto, e o destino foi Chapecó. Atualmente, mora na linha Simonetto, com sua esposa e um dos filhos.
A agricultura já era algo presente nas raízes da família de seu Neri, o que o incentivou a fazer o curso profissionalizante de Técnico Agrícola, onde aprofundou o conhecimento no ramo. Em sua propriedade, a produção está ativa desde 1998 e o investimento inicial foi na área de horticultura. Com o passar do tempo, expandiu para a olericultura e fruticultura. A partir da grande produção, viu a oportunidade de criar uma indústria rural, que estampa seu sobrenome. Passou a produzir compotas de pêssego, pepino e vagem, sucos naturais de laranja e uva, além das geleias de amora, laranja, morango, uva e figo.
Pela diversidade de produtos e pela demanda de trabalho, o produtor opta em potencializar a produção de alguns, enquanto outros têm em menor quantidade. “O carro chefe na produção são os sucos”, conta. Seu Neri destaca que a procura e preferência pelos seus produtos coloniais
Foto: Nome do fotógrafo
se dá, principalmente, porque produz de forma orgânica, sem agrotóxicos e conservantes. “Ainda são poucos os produtores que se dedicam nesse campo”, explica.
A pureza e naturalidade são os principais diferenciais em seus produtos, coloniais e orgânicos. “O segredo para manter a boa qualidade dos produtos é usar recipientes de vidro, em particular nas conservas e nas geleias”, ressalta. Apesar da rotina intensa, com três pontos de feiras, alguns mercados, além da cooperativa Cooper Familiar, cultivar tomates, amoras, pêssegos, entre outras especiarias da olericultura é o que mais agrada seu Neri. O agricultor, de voz rouca e calmaria na fala, comenta sobre a força que a profissão exige. As mãos calejadas são reflexo da jornada de trabalho, de 15 a 18 horas diárias. A exaustão, exigências, falta de tempo para si e a impossibilidade de folga são apontadas como as principais dificuldades que encontra na atividade.
Quando pensa no futuro da atividade, vê queda na produção natural em um futuro não tão distante, porque a agricultura tem ido para o lado do agronegócio. De acordo com ele, “somente grandes produtores e propriedades têm permanecido, e a nova geração não tem interesse nesse campo pois requer mais mão de obra e trabalho duro”.
O produtor ainda reforça que o caminho para gerar interesse na população, a fim de que as futuras gerações deem continuidade a essa atividade, é difundir o conhecimento sobre a produção agrícola, em escolas e universidades, para os adolescentes terem contato e entenderem a importância da produção natural. Conforme seu Neri, a maior satisfação de trabalhar com isso é disponibilizar o melhor ao próximo e propiciar a qualidade de vida.
O que eu quero para mim, ofereço ao outro.
Doce companhia
Gaúcho, agrônomo e apicultor, Gilson Marcos Bogus, de 48 anos, nasceu em Erechim e passou parte da infância em Três Arroios, no Rio Grande do Sul. Há 41 anos vive em Chapecó, no bairro Industrial, onde mora com sua irmã e seu sobrinho.
A paixão pela apicultura veio de família, foi herança de seu pai, e a graduação em Agronomia na Unochapecó potencializou o desejo de trabalhar com isso. Quando aposentou-se, seu pai deu início ao sonho que era de ambos. Depois do falecimento, Gilson deu continuidade ao legado que passou de uma geração para outra.
Atualmente, o mel é a principal produção em que se dedica, com média de 3.500kg por temporada, que são duas ao ano. Além disso, também produz própolis, um produto natural que pode auxiliar no combate de vírus, bactérias e fungos. Gilson faz a venda em três lugares diferentes, e quando não está comercializando, está no campo, em seus apiários. A vida gira sempre em torno de sua colmeia e das milhões de abelhas. O apicultor possui 123 caixas, com cerca de 80 a 100 mil operárias cada uma. Para analisar com periodicidade a qualidade do mel, faz parte da Associação de Apicultores e Meliponicultores de Quilombo (AAMQ).
O produtor, com a expressão preocupada, atenta para turbulência vivenciada no setor da apicultura. Mesmo com grande mortandade de abelhas nos últimos anos, o valor do mel tem decaído. Em 2019, o mel de Santa Catarina foi eleito pela quinta vez o melhor do mundo, mas esse resultado não tem gerado benefícios e recompensas aos apicultores catarinenses. A alternativa que Gilson adotou para se manter firme e não ser afetado com a desvalorização é a venda direta com o consumidor.
O apicultor também ressalta a maior diferenciação entre o mel vendido em mercado e o das feiras: a escolha de floradas. Na região, são duas as floradas predominantes, da uva japão e do eucalipto. Cada florada faz o mel ter sabor, textura e coloração diferentes e na feira, podem ser provados antes da
O preço tem baixado cada vez mais, mas o amor pelo trabalho nunca me deixou pensar em desistir.
compra. Além disso, explica que em mercados, normalmente se encontra o mel Blend, que tem diferentes floradas misturadas, para manterem padronização no sabor e na cor.
Conforme o apicultor, a comercialização é o maior desafio da atividade. Na profissão, Gilson conta que a técnica tem sido deixada de lado e a forma antiga de apicultura ainda está muito presente, o que não é favorável para os resultados dos apiários. “Para melhor aproveitamento e produção de mel, falta a tecnificação dos companheiros de carreira”, ressalta.
Infelizmente, o agrônomo enfatiza a falta de interesse dos jovens em dar seguimento e futuro para a profissão, mesmo com o grande potencial que a região possui. Apesar de todos os percalços e dos criadores de outros animais serem mais valorizados, Gilson afirma, com a simpatia que faz parte de sua personalidade: “sou realizado em trabalhar com as abelhas”.
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Três gerações de saber
Quem ouve um ronco diferente de motor pelas estradas de chão da Linha Roncador, em Coronel Freitas, já sabe: é a dona Glória em seu quadriciclo, indo visitar os vizinhos ou a destino da bodega no centro da comunidade. Aos 78 anos, Glória Zatti Grapiglia conserva o espírito jovem e as raízes italianas.
Dona Glória tem orgulho de dizer, que durante toda sua vida, sempre morou no interior. “Aqui é um lugar bom de viver, de noite a gente vai dormir sem escutar barulheira, só os cachorros”, e ainda completa que o agito da cidade não lhe agrada. Natural de terras gaúchas, foi em Constantina onde nasceu, conheceu seu marido, hoje falecido, e teve os três primeiros filhos. Há mais de 54 anos mudaram-se para o interior de um município pequeno e que recentemente havia sido emancipado no Oeste catarinense, Coronel Freitas. Lá, a família cresceu e foram criados os sete filhos: Ivete, Idene, Amauri, Ivania, Adilson, Adailton e André.
A produção colonial sempre fez parte da vida de Glória. Desde a infância, aprendeu com os pais a produzir os alimentos que vão à mesa, e conserva esse saber até hoje. Além disso, todos os filhos foram ensinados a fazer e valorizar essa produção. O legado passou de geração para geração e atualmente, o filho Adailton dá continuidade aos saberes e valores aprendidos com os pais. A nora Merediana e os netos Jhonatan e Alana também auxiliam na condução da propriedade de Glória. A atividade principal no local é a criação de perus, mas também há porcos, galinhas e gado de leite e de corte.
Para consumo, a família faz questão de escolher os produtos coloniais. “O que é feito em casa é mais bom, porque tu sabe o que tu ponha dentro, sabe que carne que é”, ressalta dona Glória. O porão da casa é espaço onde são feitos os derivados de porco. Para a produção do tradicional salame, quem é experiente no assunto explica: 1kg de sal para cada 35kg de carne, alho e às vezes um pouco de pimenta.
Lá, o codeguim também ganha forma, e com a carne da cabeça é feito o queijo de porco. “Vai a cabeça, língua, nariz e orelha. Só tira as vista”, lembra dona Glória. Outro alimento tradicional é o torresmo, feito com a carne e o toucinho. Conforme dona Glória, o segredo é deixar ele bem torradinho, depois prensa e coloca um pouco de sal. Nada se perde ou se desperdiça no processo. A banha do porco é usada para temperar os alimentos no dia a dia e o sebo é destinado para a produção de sabão. Com uma terra farta onde se produz a própria carne, temperos, hortaliças, verduras e frutas, dona Glória destaca o valor que tem o interior e os saberes coloniais.
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Nunca quis e não quero sair daqui, da minha tranquilidade.
De volta à tranquilidade
Natural de solos paranaenses, Sandra Regina Casanatto Vanzin já rodou bastante pelos interiores e fazendas. Morou em Toledo, no Paraná, Amambaí e Nioaque, no Mato Grosso do Sul, até casar-se e ir para Quilombo, em Santa Catarina, há 20 anos. A produção colonial é um saber que veio de berço, e quando criança já se interessava em aprender.
Sempre vi minha mãe fazer e ela ia ensinando.
Hoje, com 41 anos, os produtos coloniais voltaram a ser uma das suas atividades. Mas antes disso, traçou outros rumos, juntamente com seu marido, Roque. Em 2004, mudaram- -se para Porto Belo, na região metropolitana catarinense, e experimentaram a vida urbana. No início, trabalharam como empregados por oito meses até conseguirem ter o próprio empreendimento: um restaurante.
Depois de 12 anos trabalhando sem horários fixos e finais de semana, a decisão de voltar para Quilombo foi em busca de qualidade de vida e tranquilidade para a família. Além disso, Sandra precisava diminuir o ritmo de trabalho para recuperar-se de um câncer. De volta às terras quilombenses, retornaram com a criação de animais e produção colonial. Hoje, na propriedade Vanzin são criados porcos, galinhas, patos e gado de leite e corte.
A rotina de trabalho começa cedo, com o canto das galinhas, e já de manhã Sandra faz o produto colonial que mais gosta: o queijo. “Coloco o leite amornar, adiciono o coalho e deixo descansar por 40 minutos. Depois mexo para dividir a massa do queijo e o soro, e coloco na
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forma”. Assim, Sandra faz dois tipos: o queijo apenas com sal ou com orégano. Com o soro que se separa da massa do queijo é feita a puína, chamada também de ricota. “Coloco o soro ferver e quando começa a levantar as bolhas adiciono um copo de água fria com sal”, conta.
Para cada quilo de queijo, é preciso 10 litros de leite. Sandra explica que o produto colonial requer mais cuidado na conservação, diferente do que é comercializado segundo as normas da vigilância sanitária, que contém grande quantidade de conservantes. “Geralmente nem as moscas sentam em cima por causa dos industrializados que são colocados no queijo do mercado”, ressalta.
A produção é diária, pois além de ser para o consumo da família, também é vendido para vizinhos e conhecidos. “Tem uma dona de laticínio que as vezes vem pegar queijo comigo, pois as pessoas passaram a valorizar mais o colonial”, acrescenta. Os filhos, Daniel, de 17 anos, e Victoria de 6, veem o trabalho duro dos pais todos os dias, mas não têm muito interesse em trabalhar com isso. “Aqui se trabalha muito e ganha pouco, mas esse pouco vale a pena”, destaca Sandra. “Eu acredito que no futuro essa atividade terá mais valor do que hoje, pois as pessoas estão tendo consciência de que quanto mais natural melhor para saúde, então quem ficar nessa área vai ser valorizado”, conclui.