Consciência e Liberdade n.º 17 (2005)

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CONSCIÊNCIA E LIBERDADE

Nº 17 – 2005

DOSSIER

Novas perspectivas para a liberdade religiosa na América Latina Estudo ......................................................

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Dossier ...................................................... 15 A liberdade religiosa no México .............. 17 A liberdade religiosa no Chile .................. 39 A liberdade de consciência e de religião na Reforma Constitucional peruana ......... 83

Criança peruana da região de Cuzco Foto M.-A. Bouvier



ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL PARA A DEFESA DA LIBERDADE RELIGIOSA Dotada de estatuto consultivo junto das Nações Unidas e do Conselho da Europa

Sede Internacional: Schosshaldenstrasse 17, CH 3006 Berne, Tel. +41 031 359 1527 E-mail 102555,1274@compuserve.com - Fax +41 031 359 1566 Secretário-Geral: Maurice VERFAILLIE Conselho de honra: Presidente: Mary ROBINSON, antiga alto-comissário para os direitos humanos das Nações Unidas e antigo presidente da República Iralndesa, Estados Unidos Membros: Abdelfattah AMOR, presidente do Comité dos Direitos do Homem nas Nações Unidas, Tunísia Jean BAUBÉROT, presidente de honra da Escola prática de altos estudos na Sorbonne, titular da cadeira de História e sociologia do laicado na EPHE, Paris, França Beverly B. BEACH, antigo Secretário Geral Emérito da International Religious Liberty Association, Estados Unidos. François BELLANGER, professor universitário, Suiça Ilivier CLÉMANT, professor universitátio, escritor, França Alberto DE LA HERA, professor universitário, director geral dos Assuntos Religiosos, do Ministério da Justiça, Espanha. Silvio FERRARI, professor universitário, Itália Alain GARAY, advogado do Supremo Tribunal de Paris e professor universitário, França Humberto LAGOS, Professor universitário, escritor. Chile Adam LOPATKA, antigo presidente do Supremo Trubunal, Polónia Francesco MARGIOTTA BROGLIO, departamento de Estudos do Estado, professor universitário, presidente da Comissão italiana para a liberdade religiosa, representante da Itália na UNESCO Rosa Maria MARTINEZ DE CODES, professora universitária, Espanha Jorge MIRANDA, professor universitário, Portugal V. Norskov OLSEN, antigo reitor da Universidade de Loma Linda, Estados Unidos Raghunandan Swarup PATHAK, antigo presidente do Supremo Tribunal, Índia e antigo juiz do Tribunal Internacional de Justiça Émile POULAT, professor universitário, director de investigação no CNRS, França Jacques ROBERT, professor universitário, membro do Conselho Constitucional, França Jean ROCHE, do Instituto, França Joaquin RUIZ-GIMENEZ, professor universitário, antigo ministro, presidente da UNICEF Espanha Antoinette SPAAK, ministra de Estado, Bélgica Mohamed TALBI, professor universitário, Tunísia Rik TORFS, professor Universitário, Bélgica Gheorghe, VLADUTESCU, professor universitário, vice-presidente da Academia romena, antigo secretário de Estado para os assuntos religiosos, Roménia ANTIGOS PRESIDENTES DO CONSELHO Srª Franklin ROOSEVELT, 1946 a 1962 Dr. Albert SCHEWEITZER, 1962 a 1965 Paul Henri SPAAK, 1966 a 1972 René CASSIN, 1972 a 1976 Edgar FAURE, 1976 a 1988 Léopold Sédar SENGHOR, 1988 a 2001


Consciência e Liberdade Nº 17 - Ano 2005

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Conscienza e libertà Lungotevere Michelangelo, 7-00192 Roma (Itália) Consciencia y libertad Cuevas 23, 28039 Madrid (Espanha) Savjest i sloboda (croata e sérvio) Krajiska 14, Zagreb (Croácia) Conscience and Liberty 119, St. Peter’s Street, St. Albans, Herts., ALI, 3EY (Inglaterra) Política editorial: As opiniões emitidas nos ensaios, os artigos, os comentários, os documentos, as críticas aos livros e as informações são apenas da responsabilidade dos autores. Não representam necessariamente a opinião da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa de que esta Revista é o órgão oficial. Os artigos recebidos pelo secretariado da Revista são submetidos à apreciação do Conselho redactorial.


Sumário Número 17

Estudo

Homenagem a Pierre Lanarès . . . . . . . . . . . . . . . . . 4

M. Verfaillie Liberdade religiosa e laicidade do Estado – Uma perspectiva global . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6 Dossier Novas perspectivas para a liberdade religiosa na América Latina . . . . . . . . . . . . . . . . 14 J. M. Barragán A liberdade religiosa no México . . . . . . . . . . . . . . 17 C. S. Araneda A liberdade religiosa no Chile . . . . . . . . . . . . . . . 39 O. D. Muñoz A liberdade de consciência e a religião na Reforma Constitucional do Perú . . . . . . . . . . . . . . 83


Homenagem a Pierre Lanarès (1912-2004) “Entre os elementos essenciais que constituem o fundamento da dignidade humana figura a liberdade religiosa […]. Toda a existência de um homem é condicionada pelas suas convicções filosóficas ou religiosas. Atentar contra esta liberdade de expressão é recusar ao indivíduo o direito a uma existência verdadeira”. Esta reflexão, redigida por Pierre Lanarès no seu editorial da revista Conscience et Liberté na Primavera de 1971, resume bem o seu pensamento, que alimentou as acções da sua vida, bem antes de ter sido eleito Secretário Geral da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa (AIDLR) em 1966. Preparado para entrar na Escola Colonial para seguir o exemplo do pai, antigo administrador das colónias francesas, Pierre Lanarès descobriria, em 1937, a sua vocação pastoral, no decurso dos seus estudos universitários na Faculdade de Direito. Em 1964, a sua tese de doutoramento, “A Liberdade religiosa nas convenções internacionais”, revela, ainda melhor, se fosse necessário, o seu interesse de sempre, pela promoção e a defesa desta liberdade. Os dezasseis anos durante os quais ocupará a função de Secretário Geral da AIDLR (1966-1982) vê-lo-ão ir ao encontro dos chefes de Estado de vários países da Europa Ocidental, dos papas Paulo VI a João Paulo II, do patriarca ortodoxo Athenágoras e ligar-se com o presidente Léopold Sedar Senghor, que se tornaria, mais tarde, o presidente honorário desta Associação Internacional (1988-2001). Em 1970, Pierre Lanarès relança a edição da revista Conscience et Liberté na mesma linha redactorial que lhe tinha dado o seu fundador, o Dr. Jean Nussbaum, em 1948. Foi sob a sua direcção, como redactor, que esta revista tomou um novo alento e se tornou numa revista de dimensão internacional. Conservando-se sempre fiel ao pensamento do criador desta publicação, Pierre Lanarés fez dela um verdadeiro instrumento de estudo e informação académicas sobre a liberdade de religião ou de convicção, recebido e utiliza4


do hoje, por numerosos universitários mas suas pesquisas e ensino. É lida no mundo por autoridades políticas, civis e religiosas que fazem saber do seu apreço. No plano das relações com as organizações internacionais, a Associação muito deve a Pierre Lanarès. Foi ele, efectivamente, que a fez dotar do seu primeiro estatuto de Organização Não Governamental Consultiva (ONG) junto das Nações Unidas em 1978. Abriu uma via importante para o bem da causa que defendia. Seguindo o seu exemplo, os seus sucessores, têm, por sua vez, agido em colaboração com os objectivos da UNESCO e do Conselho da Europa, em Estrasburgo. A AIDLR que obteve em 1985 o estatuto de OING (Organização Internacional não Governamental) junto do Conselho da Europa, foi recebida, em Novembro de 2003, como “Organização Internacional Não Governamental Participativa”, um estatuto totalmente novo justo desta organização europeia que alarga, ainda mais, os seus meios de acção. Pierre Lanarès descansou no seu 92º aniversário, na noite de 2 de Fevereiro de 2004. Dificilmente se poderão avaliar os frutos de uma vida que se desenrolou sem celebridade, longe dos projectores da actualizada mediatizada, mas cuja influência discreta contribuiu, certamente, para fazer recuar as fronteiras da intolerância e da violência em nome da religião.

Maurice Verfaillie

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Estudo A liberdade religiosa e a laicidade do Estado – Uma perspectiva global* Maurice Verfaillie** Uma reflexão sobre a situação actual da liberdade religiosa num Estado deveria passar, sempre, pela história do caminho seguido por esse liberdade no passado e sobre as condições do seu êxito no país. Plano que as dimensões de um artigo como este não permite. Limitar-nos-emos, portanto, a aflorar a questão, situando a nossa observação no quadro da história do Ocidente europeu. Ressalta, então, da análise dos princípios e das características fundamentais desta liberdade, vista à luz da experiência histórica, que, logo que ela é bem compreendida, contribui efectivamente para a compreensão e para o diálogo, como um dos factores favoráveis à paz entre os homens. A razão para isso é, sem dúvida, porque o campo da liberdade religiosa toca em questões que se enraízam nas realidades humanas sensíveis, ao mesmo tempo individuais, como o respeito pela dignidade de cada indivíduo, o reconhecimento da sua pessoa e da sua consciência, e colectivas, como o valor da vida em sociedade e a importância que há que reconhecer da igualdade dos homens entre si no exercício da sua liberdade. Porém, a mesma história movimentada, assim como a nossa actualidade, salientam ao mesmo tempo que os problemas ligados à prática desta liberdade têm sido, e são ainda, a sorte de todos os Estados da Europa. Estas duas constatações levam-nos a ir além da observação de situações particulares ou da sucessão dos acontecimentos, para tentar, muito mais, esboçar a questão da liberdade religiosa, em relação com a laicidade do Estado, um quadro geral, global e distanciado. 1. Uma perspectiva global Evitaremos, portanto, entregarmo-nos a uma classificação das situações da liberdade de religião e de convicção Estado a Estado. A nossa reflexão começará por uma exposição geral e em traços gerais, de problemas e desafios que balizam o seu percurso. A questão da liberdade religiosa refere-se, com efeito, a um fenómeno em constante movimento que não pode ser ignorado quando se aborda a sua análise. 6


Estudo

Depois disto, juntaremos uma hipótese, a de que as relações entre os Estados e as religiões poderão servir de indicadores sobre a situação do Direito para com esta liberdade, dito doutra forma, como é que os tipos de relações institucionais favorecem ou não a sua realização. 2. Um quadro em traços gerais Parece necessário, antes de mais, recordar que na história da Europa, a prática do direito à liberdade de consciência e de religião, nunca existiu de uma forma absoluta, nem de uma forma constante e uniforme. Os factores que interferem na sua interpretação e na sua aplicação são complexos. Deveríamos compará-la a uma passagem, a uma marcha com os seus avanços, os seus recuos e as suas paragens, em direcção a um ideal desta liberdade, mais do que um “estado de liberdade”, mesmo em matéria de Direito. Émile Polat, sociólogo e historiador, defende esta análise: “A liberdade religiosa não tem apenas uma história: tem também uma estrutura. Por outras palavras, não é uma afirmação ou um valor isolado, que se deixa defender em si ou por si; não é senão um elemento destacado, ao qual se pode dedicar atenção, por si mesmo, sem preocupação com e resto. Pertence a um conjunto, cultura e civilizações. Direito e costumes; faz parte de um sistema, o sistema das liberdades, das nossas liberdades, que diferem segundo os tempos e o país. Não se define de uma vez por todas: participa da história das sociedades humanas1.” Na Europa, esta liberdade constitui um dos mais antigos Direitos jurídicos internacionais, reconhecidos. Já em 1648-1649, as clausulas religiosas inscritas nos tratados de Westfália, que puseram fim à complexa guerra dos Trinta Anos, consagravam a decisão da Contra Reforma católica na Alemanha e confirmavam a paz de Augsburgo de 1555, excepção feita àqueles que obrigavam, por todo o lado, as pessoas de adoptarem a religião do seu príncipe. “…É a vitória da liberdade de consciência – o cujos regio, ejus religio era abolido2”, escreveu a este propósito Émile Léonard. De facto, a tolerância, que não teve, verdadeiramente, a sua aplicação senão depois de século XVI, criou, no entanto, o reconhecimento da fractura da sociedade religiosa na Europa. Depois desses trinta anos de guerra, a conservação dos Estados parecia sempre desejável, quaisquer que fossem as divisões confessionais. A associação de um príncipio religioso aderente e de uma organização de Estado tinha conduzido, em 1555, ao princípio cujos regio, ejus religio. Este princípio já não se aplicava daí em diante senão em unidades territoriais restritas, enquanto que, nas unidades mais vastas onde as duas teologias, católica e protestante, eram rivais, era necessário abandoná-lo para colocar no seu lugar um princípio de coexistência. Progressivamente, durante o período que se entende do século XVIII ao século XX – mas sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial, com a cor7


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rente do controlo da constitucionalidade das leis que se instalou no Ocidente, depois noutros lugares, – a liberdade de pensamento, de consciência e de religião foi dotada de um número, sempre crescente, de instrumentos jurídicosídicos3. Um dos efeitos deste entusiasmo geral foi o de colocar a liberdade religiosa no centro do interesse do Direito Público. A aplicação destes textos ultrapassa, no entanto, o quadro dos meios confessionais saídos ao cristianismo. Depois de 1989 e o afundamento da hegemonia do comunismo nos países da Europa Oriental, um renovado interesse por esta liberdade também se fez sentir no Estados desta região e se estendeu por outras partes do mundo. Curiosamente, no entanto, durante o mesmo período e num outro plano, a realidade prática obriga a pequenas variantes das conclusões demasiado optimistas que somos tentados a tirar desta evolução. Durante a segunda metade do século XX, a Europa, a primeira, rapidamente se “laicisou”. Em larga medida, por todo o lado, muitas sociedades no mundo seguiram um caminho semelhante sob a influência da modernidade. Decorrente da Segunda Guerra Mundial, esta corrente de “laicisação”, ganhando os Estados do Velho Continente, tinha também arrastado um desinteresse evidente das opiniões públicas pelas questões religiosas. Os debates nas Assembleias Nacionais e nas organizações internacionais reflectiam esta orientação que se afirmou até às décadas de 1980-1990. A atenção centrava-se, antes de mais, sobre as outras violações dos direitos do homem, cuja realidade era evidente. Também é necessário sublinhar aqui, que o cuidado no tocante às violações dos direitos ligados à liberdade religiosa ainda hoje permanece dependente dos interesses políticos do momento, como já aconteceu no passado. Mesmo na Europa, o assunto é avaliado pelas manipulações político-religiosas dos grandes grupos religiosos – como no conflito que devastou, num passado recente, a zona da Sérvia, da Bósnia e do Kosovo e onde o interesse das autoridades públicas se volta para os ortodoxos ou para os muçulmanos, segundo o apoio que podem aí encontrar para os campos adversos que representam. Também na cena mundial, os acontecimentos que tocam a actualidade religiosa relembram, constantemente, uma realidade que se situa em oposição aos grandes discursos sobre os direitos do homem. Trazem a lume forças antagónicas que, uma vez manifestas, produzem efeitos semelhantes ao das ondas na superfície da água, que se afastam do centro em círculos concêntricos. O facto de pertencer a uma religião é com muita frequência instrumentalizada por interesses políticos, étnicos, ideológicos ou nacionalistas. A intolerância e a descriminação ressurgem como verdadeiras ondas de choque. Atingem, 8


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mesmo, regiões que a opinião pública assimilava, geralmente, a zonas de tolerância religiosa, onde a coabitação entre os Estados e as comunidades religiosas, e entre estas últimas, parecia desenrolar-se harmoniosamente, como na Índia ou em zonas de implantação budista. O Ocidente tem a sua quota-parte de factos dolorosos. Conhecem-se, por exemplo, as lutas religiosas, frequentemente sangrentas, que já têm uma longa história na Irlanda no Norte desde o século XVII. William Crawley, apresentador de uma emissão de rádio, na BBC, sobre as questões religiosas, apresentou a sua análise: “Este é um conflito eminentemente político e cultural que inclui uma dimensão religiosa. Por um lado, os nacionalistas, maioritariamente católicos, querem que a província se una à Irlanda; por outro lado, os unionistas, de maioria protestante, querem permanecer no seio do Reino Unido4.” Do lado dos países da Europa Central e Oriental, desde o fim do comunismo, assiste-se a crescendo em força de manipulações do pessoal político pelas igrejas maioritárias que procuram encontrar as suas posições de predominância nos Estados logo após a queda dos regimes. Na Federação Russa, apesar da nova Constituição e da lei sobre a liberdade religiosa, a Igreja Ortodoxa alimenta, no espírito dos russos a ideia-força da indissolubilidade entre a sua posição como cidadãos da nação e a sua pertença à religião ortodoxa. Interessante pelo distanciamento que lhe dá a sua posição de Relator especial das Nações Unidas sobre a liberdade de religião e de convicção, Abdelfattah Amor estabeleceu uma síntese da situação da liberdade religiosa no mundo, no relatório apresentado em 1999 à Comissão dos Direitos do Homem. Como conclusão, declarou: “Estas categorias põem a problemática das relações entre a política e a religião, da sua instrumentalização, na sua ocorrência fonte de intolerância e de descriminação e cujo paroxismo é o extremismo religioso5.” Fenómeno recente, a mundialização afecta hoje, não apenas a política, a economia ou o social, mas também o domínio do religioso. Assim, Oliver Roy fala da deterritorialização da Islão, em geral, como “o contornar (hoje), sob formas muito variadas, da questão do Estado para um movimento de reislamização e de reconstrução identitária que se faz a partir do indivíduo e visa recriar uma comunidade que não pode ser encarnada num determinado território, mas sim sob uma forma virtual e fantástica6”. Hoje, os problemas que afectam um grupo religioso num Estado são mais fortemente sentidos pelos seus correligionários no mundo, do que no passado. A actualidade recente em França oferece-nos uma ilustração deste facto. Os debates parlamentares que precederam a votação da Lei sobre a laicidade, de Março de 2003, com a questão do uso de símbolos religiosos nos estabelecimentos de Educação nacional, provocaram, nos países muçulmanos, reivindicações apaixonadas e manifestações públicas orquestradas pelos meios integristas. 9


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Estes aspectos da história e da evolução das situações da liberdade religiosa não podem ser ignorados, na análise dos jogos da liberdade religiosa, quando se aborda a questão de forma a gerir as relações dos Estados com as religiões. 3. As relações entre os Estados e as religiões na Europa podem servir de indicadores da situação da liberdade religiosa Hoje, a protecção desta liberdade varia significativamente de um país para outro. A estabilidade do regime, a história das relações tradicionais entre os Estados e as religiões, entendimento do pluralismo religioso ao nível local, a natureza e tipo das religiões, o conteúdo das suas teologias, a natureza do seu próprio envolvimento em favor desta liberdade, do seu papel dominante ou não no seio do Estado, etc., constituem, igualmente, factores que condicionam a sua realização. Na verdade, através das culturas passadas e actuais, podem-se reconhecer convergências na orientação dos direitos reconhecidos por esta liberdade. No entanto, como já atrás sublinhámos, se há formulações que tendem a reencontrar-se, existe hoje, em numerosos países, diferenças substanciais sobre a maneira como os Estados têm institucionalizado as suas relações com as religiões ou estão a ponto de o fazer; sobretudo sobre a forma como concebem a aplicação do princípio da liberdade religiosa. Seria, sem dúvida, estabelecer uma síntese das configurações possíveis desta liberdade partindo da hipótese, por um lado, quais são as estratégias de penetração empregues pelas religiões que querem conformar, radicalmente, o mundo com as suas concepções que dão origem a tensões e a conflitos, muitas vezes violentos, e, por outro lado, porque uma certa vontade se manifesta também no seio das religiões para promover o respeito e a dignidade humana, o respeito pelas consciências e pelos valores fundamentais necessários à vida em sociedade. Esta última atitude contribui para atenuar o efeito das divergências inerentes ao atrair para a sua fé e a unir os homens numa concepção do verdadeiro diálogo com respeito pelo outro. Nesta óptica, a fé desempenha, então, um papel em favor da liberdade religiosa e da paz na sociedade. Era a “revolução” para a qual, dentro de certos limites, o filósofo inglês, John Locke já apelava no século XVII. Falaremos aqui de uma outra hipótese: que tipo de relações entre os Estados e as religiões constituem também um indicador interessante sobre a situação da liberdade religiosa num determinado país. Notemos, no entanto, que antes de ser uma questão de instituições do Direito e da administração, a liberdade religiosa depende do estado de espírito daqueles que são chamados a agir nos serviços públicos. A história e a experiência o demonstra. É importante salientar aqui três formas de conceber as coisas que podem orientar as atitudes pessoais ou colectivas, em direcção a uma melhor realização desta liberdade no seio da sociedade. 10


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Primeiramente: o reconhecimento pela opinião pública e pelos dirigentes do país, de que pode existir um pluralismo religioso que respeite a sociedade A existência de diferentes opiniões, com os seus comportamentos, no seio de um grupo organizado como é uma sociedade, pode parecer um obstáculo maior para promover uma forte homogeneidade social e política. No entanto, desde que as divergências não se radicalizem num comunitarismo excessivo, com o constrangimento, a descriminação e o uso da violência, o pluralismo religioso não levanta nenhum problema para a prática da liberdade religiosa. Por outro lado, logo que uma sociedade civil tende a afirmar uma homogeneidade e uma identificação por pressões muito pesadas sobre os seus membros, tende também a marginalizar, ou a rejeitar aqueles não aderem, ou o fazem apenas parcialmente, ao seu “pensamento único”. A questão da liberdade de consciência, de religião, ou de convicção coloca-se logo que ela considera que todas as outras formas de pensamento são incompatíveis com os seus objectivos políticos considerados como as únicas vias para o bem­ ‑estar dos seus membros e que a responsabilidade de a realizar incumbe aos seus responsáveis. Segundo: a vontade política de legitimar, para todos, a liberdade de consciência, de religião e de convicção. É por fraqueza que um poder político pode ser tentado a utilizar a religião dominante para se apoiar nas suas posições. O grau de legitimidade da liberdade de consciência, de religião e de convicção na igualdade e para todos que ele se esforça por apoiar, reflecte a sua força ou a sua fraqueza. Terceiro: a vontade, no seio dos grupos religiosos, de reconhecer esta liberdade como inalienável e de a promover no seio das suas próprias comunidades É evidente que numa relação, há, pelo menos, duas partes. Face ao Estado, os grupos religiosos também devem reconhecer a sua parte na responsabilidade no grau de liberdade religiosa que este último será ou não levado a estabelecer. Ora, hoje, com toda a evidência, muitos dentre eles deveriam aceitar “varrer diante da sua própria porta” mais do que esperar que seja, apenas o Estado, a resolver os seus problemas. Com efeito, torna-se difícil promover, amplamente, a liberdade de consciência, de religião e de convicção numa sociedade no seio da qual um ou mais grupos religiosos influentes, não só recusam respeitar as crenças dos outros, o direito à liberdade de consciência dos seus adeptos de mudarem de religião, ou se fecham numa recusa categórica de viver em boa harmonia com os outros membros desta sociedade. Este estado de espírito conduz, frequentemente, a atitudes que põem em perigo a sua liberdade religiosa e daqueles que os envolvem. Concluiremos a nossa reflexão propondo uma ilustração muito simples, a partir da qual nos parece possível uma leitura das situações descritas a cima. O grau da prática da liberdade religiosa num país poderia, com efeito, desenhar-se sob a forma de uma linha horizontal entre dois pólos opostos. 11


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Num deles situam-se os Estados que “reconhecem” (com ou sem registo) a cada culto o pleno direito de se gerirem a si mesmos, de professar e de promover a propagação das suas crenças e de praticar os seus ritos no quadro jurídico definido pelos grandes textos internacionais. No pólo oposto situam-se os Estados que se identificam com uma religião dominante, controlando todas as suas actividades, eclesiásticas, sociais, etc.; ou até mesmo, submetendo a sua política às opções desta religião dominante. Esta correlação desenha-se da forma seguinte: Liberdade religiosa (+)_____________________________________(-) Liberdade religiosa completa ausência de liberdade religiosa (+)_____________________________________ (-) separação completa entre identificação completa o Estado e a religião entre o Estado e a religião É claro que esta figuração simplifica, ao máximo, a realidade. Dificilmente se pode quantificar, mesmo em percentagem, as taxas de variação que medem o grau dos laços de identificação entre o Estado e a religião. Contudo, a correlação com o grau de prática da liberdade religiosa parece evidente. Um estudo detalhado e aprofundado revelaria melhor o facto de que, do pólo (+) ao pólo (-), se passa de uma situação de liberdade religiosa total, para uma tolerância religiosa, ao centro, até à negação da liberdade religiosa. Conclusão A história e a actualidade religiosa no mundo testemunha que não existem senão poucos locais e tempo onde a liberdade religiosa total, como a identificação total perdurem. Temos de admitir, no entanto, que as restrições impostas a esta liberdade têm sido tanto mais importante, quanto a aproximação entre o Estado e a religião se realizam, como no caso da aproximação entre o Estado e um regime político se eleva ao nível da ideologia. As distinções entre situações de identificação total ou de identificação parcial nem sempre são fáceis de estabelecer. O facto de nenhuma religião ser legalmente reconhecida como dominante, não implica, necessariamente, que um verdadeiro regime de liberdade religiosa exista, ou que não haja relações privilegiadas entre o Estado e uma religião dominante. Como conclusão geral, podemos, portanto, pensar que, não se pode traçar, com precisão, os contornos do tipo de relações entre Estado e religião que garanta o mesmo exercício da liberdade religiosa, a laicidade do Estado, como estado de espírito de separação neutral entre Estado e religião – o que não significa indiferença – permanece o regime que melhor responde às necessidades do exercício deste direito. É necessário, ainda, compreender que a noção de laicidade é uma noção complexa e que a laicidade também se poderia ser transformada, pelos seus 12


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defensores, num mito que se aproximaria mais de uma ideologia de que a uma relação de compreensão. Neste último modelo, a prática ideal da liberdade religiosa deixaria, também, muito a desejar. * Texto escrito em homenagem a Abdelfattah Amor, por ocasião da sua reforma do ensino universitário **Secretário Geral da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa Notas: 1. Émile Poulat , Liberdade, Laicidade. A guerra das duas Francas e o princípio da modernidade, Le Seuil-Cujas, Paris, 1988, p. 19. 2. Émile Léonard, História geral do protestantismo. O établissement, Presses Universitaires, Paris, 1961, t. II, p. 172 3. O Centro Internacional dos Direito do Homem da Universidade de Colúmbia, nos Estados Unidos, recenseou, de 1948 a 1995, quarenta documentos de base imanados das organizações internacionais, ou regionais, de Estados ou de grandes regiões e que têm autoridade em matéria de direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião. Ver, Tad Stahne e J. Paul Martin, ed., Religion and Human Rights: Basic documents Universidade da Colúmbia, Nova Iorque, 1998. 4. Philippe Jacqué, “Irlanda do Norte, O recurso aos extremos”, in Le Monde des Religions, Paris, Janeiro-Fevereiro, 2004, p. 13. 5. Ver Documentos das Nações Unidas: Conselho económico e social. Comissão dos direitos do homem. Quinquagésima quinta sessão. E/CN.4/1999/58, § 115, p. 31. Sublinhado nosso. 6. Olivier Roy, O Islão mundializado, Edições du Seuil, Colecção Ensaios nº 521, Paris, 2002. 7. Ver John Locke, Ensaio sobre a tolerância, 1667; Sobre a diferença entre poder eclesiástico e poder civil, 1674; Carta sobre a tolerância, 1686.

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Dossier Novas perspectivas para a liberdade religiosa na América latina O fenómeno religioso aparece hoje como um revelador privilegiado para compreender numerosos factos e movimentos sociais do mundo contemporâneo. Não se trata, por conseguinte, de um tema que diga respeito a questões exclusivamente espirituais e/ou doutrinárias. Além disso, a religião é um fenómeno social intimamente ligado a aspectos tão fundamentais e transcendentes como a liberdade, os direitos do homem, a paz, o desenvolvimento, a justiça social e a que respeita, igualmente, assuntos de interesse imediato para as diferentes confissões e para o Estado como, por exemplo, a sua regulamentação, por meio de diferentes sistemas de relação. No início do novo milénio, a bancarrota do antigo carácter monorreligioso da América latina é uma novidade neste domínio. O panorama religioso americano mudou consideravelmente no espaço de alguns decénios. Não se apenas da passagem de um Estado confessional para um Estado aconfessional, ou da regulamentação do direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião, mas também de mudanças profundas que se têm observado na sociologia religiosa do continente americano. Esta diversidade que, há apenas cinquenta anos, ainda se exprimia em raras ocasiões através de alguns grupos ligados ao protestantismo histórico, de pequenas comunidades judaicas e alguns restos de religiões autóctones, ultrapassa hoje todos estes quadros e exprime-se através de experiências religiosas múltiplas e muito espalhadas. O pluralismo religioso que a América latina hoje demonstra é uma das razões que levaram o conselho de redacção da Consciência e Liberdade a consagrar um número monográfico ao conhecimento e ao exame de uma situação nova, que deve ser analisada ao mesmo tempo que outros processos inovadores no contexto jurídico das repúblicas americanas. Desejo falar das transformações que estão prestes a dar-se 14


Novas perspeciivas sobre a liberdade religiosa na América Latina

no quadro das relações Estado-confissões religiosas em alguns países do Novo Continente. Estas transformações colocaram na ordem do dia, a competência que recai sobre o Estado de reger a dimensão social do factor religioso nos países de grande diversidade étnica, linguística e de crenças. Actualmente, na maior parte das disposições jurídicas americanas, o princípio director em matéria religiosa é o da liberdade religiosa. Esta liberdade supõe um avanço apreciável em relação ao tratamento que o legislador, no meio do século XX dava àquilo que então se chamava liberdade de culto. Convém lembrar que a maior parte das disposições jurídicas americanas se baseiam nas noções de “religião oficial do Estado”, a protecção do Estado para com uma confissão determinada e naquilo que se chama a “Protecção Nacional” do Estado para com a Igreja Católica. Esta última fórmula, herança do pensamento que reinava antes e depois da independência, estabelecia que as novas Repúblicas deviam assumir os direitos exercidos durante mais de trezentos anos pela monarquia hispânica em matéria de apresentação à Sé apostólica das dignidades eclesiásticas, da demarcação das dioceses, da comunicação com a Santa Sé, etc. As mudanças ocorridas na concepção do Estado no decurso do século XX, com as modificações consecutivas dos textos constitucionais respectivos na América latina e em Espanha, convidam a reflectir sobre os novos sistemas de relações que os legisladores americanos sancionaram para garantir a não discriminação na aplicação das leis por razões ideológicas ou religiosas, o princípio da liberdade ideológica e religiosa e o princípio do respeito para com as crenças ideológicas ou religiosas individuais. O exemplo espanhol da não-confessionalidade do Estado e da obrigação, para os poderes públicos, de cooperar com as Igrejas e as confissões religiosas, tem servido de referência para outros sistemas jurídicos, como os do Peru, da Colômbia e do Chile. Estes países, nas suas últimas reformas constitucionais e nas suas normas de desenvolvimento, deram prova de uma grande sensibilidade em relação aos direitos relativos à liberdade religiosa e de um princípio de reconhecimento de outras confissões para além da Igreja Católica. 15


Novas perspeciivas sobre a liberdade religiosa na América Latina

Por outro lado, os casos da Argentina e do México ilustram até que ponto as heranças histórico-jurídicas respectivas – através do sobrevivência do Proteccionismo na Constituição argentina até que em 1994, o princípio da “separação da Igreja e do Estado” e a condição laica do Estado no México – têm condicionado as importantes reformas que têm tido lugar nestes dois países em matéria de associações religiosas e de culto público no decurso dos últimos decénios do século XX. O leque de análises e de avaliações sobre as reformas constitucionais já realizadas, ou em realização, para adaptar os respectivos quadros jurídicos às novas exigências de sistema internacional de protecção dos direitos do homem e, em particular, do direito fundamental da liberdade de religião, ou de convicção, serve como pano de fundo para os autores deste volume. Os leitores têm nas suas mãos estudos que expõem – sob o ângulo político, jurídico ou histórico do especialista de cada país analisado – as novidades, quanto mais não seja, de conjuntos normativos estatais, com uma orientação eminentemente prática, analisando as duas faces do progresso de seus sistemas jurídicos respectivos em matéria de liberdades, respeito da dignidade da pessoa e da tolerância para com as crenças, convicções e direitos do outro. O conselho de redacção da Consciência e Liberdade deseja agradecer aos autores deste volume pela sua generosa disponibilidade e pela sua colaboração para a obra que tenho a honra de apresentar. Rosa Maria Martinez de Codes Coordenadora, professora titular De História da América Universidade Complutense, Madrid, Espanha

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A Liberdade Religiosa no México *

Javier Mactezuma Barragán **

em matéria religiosa constituíam o Direito Positivo, mas careciam de aplicação efectiva, tendo como consequência a violação sistemática de preceitos constitucionais e secundários. – A falta de corresponsabilidade do nosso regime interno em matéria religiosa em relação às disposições previstas nos instrumentos internacionais, tornava-se insustentável. – Além disso, era prioritário, para o México, reforçar o seu prestígio internacional como nação democrática. Era necessário, portanto, acelerar o processo de modernização e pôr em ordem o Estado Mexicano. Actualizar o sistema jurídico e político do país era – e continua a ser – uma prioridade nacional.

Apresentação Para apresentar um balanço objectivo e equilibrado da influência exercida pela reforma constitucional em matéria religiosa e pela lei sobre as associações religiosas e o culto público em vigor desde 1992, sobre a sociedade mexicana, é necessário desde já referir as condições sociais e políticas que prevaleciam nos últimos anos da aplicação de antigo quadro que regulava a questão religiosa no nosso país. Entre estas condições, podemos apontar os seguintes elementos: – O fenómeno da globalização económica afectava vigorosamente o nosso país. – As disposições constitucionais provenientes da Carta de Querétaro, de 1917, e as suas leis de aplicação 17


A Liberdade religiosa no México

Uma vez que o domínio religioso reveste uma grande importância na nossa história constitucional, não poderíamos remeter para mais tarde a adequação no nosso quadro jurídico nesta matéria tendo em vista um México dinâmico e evolutivo. Em virtude da importância e da profundidade histórica da questão religiosa para os mexicanos, a iniciativa de reforma constitucional de 1991 em matéria religiosa obteve uma larga aprovação no Congresso da União e nas instâncias legislativas dos organismos federativos, o que resultou na aprovação definitiva pelo Poder constitutivo permanente. Esta reforma consistiu na adaptação aos novos tempos das disposições contidas nos artigos 3, 5, 24, 27, e 130 da nossa Constituição, que tinham permanecido, praticamente inalterados desde 1917. Estas normas trataram da situação jurídica das Igrejas, dos grupos religiosos e da dos seus ministros do culto, assim como da manifestação exterior do culto, entre outros aspectos. Desde 29 de Janeiro de 1992, estas novas disposições constitucionais estão em vigor em todo o território nacional. A etapa seguinte era precisamente elaborar a lei da aplicação correspondente, o que é um grande desafio para os nossos legisladores.

Grande desafio, com efeito, porque era necessário ter em conta aspectos complexos de ordem política, social e cultural, e, sobretudo, de ordem jurídica, para constituir uma expressão legal adequada das normas e princípios constitucionais na matéria, de criação recente, naquela época. Era, também, necessário elaborar um instrumento que, por um lado, respondesse ao espírito e ao sentido dos preceitos constitucionais e que, por outro lado, regulasse as manifestações da religiosidade e protegesse os direitos e liberdades de todos os indivíduos neste domínio, através do princípio da igualdade; mas, ao mesmo tempo, este instrumento devia permitir a coexistência harmoniosa entre as associações religiosas entre si e entre estas e os organismos do Estado. Diferentes partidos representados na Câmara dos Deputados do Congresso da União submeteram as suas respectivas propostas de lei. Estas foram reenviadas, para análise e emendas a uma comissão composta por membros de todos os partidos políticos. A proposta desta comissão foi largamente debatida na instância legislativa; no entanto, na maior parte dos casos, a troca de opiniões e de apreciações caracterizaram-se pelo consenso, a convergência e as linhas orientadoras comuns. 18


A Liberdade religiosa no México

Os debates legislativos suscitados inspiraram-se nos princípios seguintes: o respeito absoluto pela liberdade de convicção; a separação da Igreja e do Estado; um Estado laico e único responsável pela regulamentação política da via pública; uma demarcação clara entre os assuntos civis e eclesiásticos; a igualdade jurídica das Igrejas e outros grupos religiosos; a recusa da acumulação de riquezas por parte dos organismos religiosos. Esta análise conseguiu um acordo entre os diferentes partidos que permitiu a aprovação da lei sob as associações religiosas e o culto público, publicada no Jornal Oficial da Federação em 15 de Julho de 1992. Em virtude deste acordo pluripartidário – tão pouco vulgar nos procedimentos legislativos e de que o nosso país tanto necessita hoje – esta lei goza da legitimidade e de um autêntico carácter democrático, devido à sua completa aceitação por parte das organizações religiosas e da sociedade no seu conjunto. De uma forma geral, poderíamos resumir em três aspectos principais os méritos do nosso quadro jurídico, em vigor desde 1992: 1. O reconhecimento dos direitos e das liberdades no domínio religioso e, como consequência, o reconhecimento das suas expressões sociais correspondentes que tinham sido restringidas depois de

1917. Trata-se, portanto, de uma lei contendo um sentido democrático, regulando as liberdades e não de uma lei de submissão como no passado. 2. O ultrapassar das argumentações, válidas ou não, que deram origem ao conflito político e social entre o Estado e a Igreja – logo desde a formação do Estado nacional – pode abrir diálogos com as Igrejas e grupos religiosos, deixando antever um reconhecimento da sua personalidade jurídica e da sua igualdade perante a lei. 3. A configuração da expressão normativa de um direito inalienável do seu humano, como a liberdade religiosa, preenchendo por isso um vazio jurídico sobre um assunto tão sensível para os mexicanos. Este novo quadro jurídico coloca os fundamentos de um novo ramo do nosso Direito Positivo, parte da ciência jurídica: o Direito eclesiástico do Estado mexicano, uma ramificação do Direito Constitucional que não faz senão responder às exigências e aos anseios da nossa população, para que as questões religiosas deixem de ser um factor de afrontamentos ou de divisões entre os mexicanos. As novas normas constitucionais e secundárias em matéria religiosa pressupõem avanços muito importantes para o quadro conceptual e formal do nosso sistema jurídico. 19


A Liberdade religiosa no México

Nas linhas que se seguem, evocaremos as normas, anteriores e posteriores ao novo quadro jurídico na matéria, salientando as contribuições para eliminar anacronismos e preconceitos contrários à dignidade dos indivíduos e que pretendiam justificar, a qualquer preço, a separação da Igreja e do Estado. A título de exemplo, podemos mencionar os seguintes factos: - Conseguiu-se chegar, finalmente, ao reconhecimento da personalidade jurídica das Igrejas e dos grupos religiosos, durante tanto tempo recusado. - Anteriormente, a prática do culto era apenas circunscrita às igrejas e aos templos. Actualmente podem celebrar-se cerimónias de culto público fora dos templos, igrejas ou outros locais consagradas para este efeito. - Um outro exemplo é a feliz supressão do poder que a autoridade federal tinha de autorizar a abertura de igrejas e de templos. Actualmente, esses lugares de culto são unicamente regidos pelas disposições de carácter local no domínio da construção, da ocupação dos solos e dos planos de desenvolvimento urbano, entre outros. - Anteriormente, as Câmaras legislativas locais determinavam o número de ministros do culto em cada Estado. Actualmente, a esfera de acção das autoridades 20

governamentais e a das associações religiosas são claramente definidas; estas últimas são autónomas para se organizarem e o Estado não intervém nos seus assuntos internos. - Os estrangeiros não tinham o direito de exercer um ministério no domínio religioso, essas actividades eram reservadas apenas para os nacionais; além disso não podiam pronunciar votos religiosos. Actualmente, tal como os nacionais, os estrangeiros podem exercer um ministério religioso. - No passado, os cidadãos mexicanos que exerciam um ministério religioso não tinham o direito de votar. Hoje, esses cidadãos podem participar em todas as eleições. A interdição feita aos ministros aos ministros do culto de criticarem as autoridades ou o governo foi eliminada. Terminou também a limitação de comentar os assuntos públicos nacionais nas publicações confessionais, assim como a informação sobre as acções das autoridades do país, ou de particulares, directamente ligadas ao funcionamento das instituições públicas. Actualmente, a lei sobre as associações religiosas e o culto público estipula, a este respeito, no seu artigo 8, que as associações religiosas deverão submeter-se à Constituição e às leis que dela emanam e respeitar as instituições do país. - Eliminaram-se as restrições que impediam as corporações


A Liberdade religiosa no México

e praticar, individual, ou colectivamente, os actos de culto ou os ritos de acordo com a sua preferência. - Não professar convicções religiosas, abster-se de praticar actos e ritos religiosos, não pertencer a uma associação religiosa. - Não ser objecto de descriminação, de coação ou de hostilidade por causa das suas convicções religiosas, não ser obrigado a depor sobre elas; nem sequer os documentos oficiais de identidade não conterão nenhuma menção sobre as convicções religiosas do indivíduo. - Não se podem alegar motivos religiosos para impedir quem quer que seja para impedir alguém de exercer qualquer trabalho ou actividade, salvo nos casos previstos pelas leis. - Não pode ser obrigado a prestar serviços pessoais, a colaborar financeiramente ou em espécie, para apoio de uma associação religiosa, Igreja, ou qualquer outro grupo religioso, a participar ou a contribuir da mesma forma nos ritos, cerimónias, festividades, serviços ou actos de um culto religioso. - Não ser objecto de nenhum inquérito judicial, ou administrativo, por ter expresso ideias religiosas; poder associar-se ou reunir-se com um fim religioso. De igual modo, a lei sobre as associações religiosas e o culto público prevê de forma categóri-

religiosas ou os ministros do culto de abrir ou de dirigir escolas de ensino primário; quando às escolas privadas, não tinham o direito de ter capelas nem de estabelecer comunicações com as Igrejas. Em contrapartida, hoje, as associações religiosas podem exercer acções jurídicas ou participar em actividades humanitárias, educativas ou sanitárias. Como se poderá constatar, o antigo regime jurídico nesta matéria, caracterizava-se por uma quantidade de restrições e de interdições diversas e variadas, o que motivou um grave atraso na aplicação do direito à liberdade religiosa no nosso país. Hoje, a nossa Constituição reconhece e assegura, como garantia individual, a liberdade de convicções e de culto consagradas no artigo 24 que dispõe: “Todo o homem é livre de professar a convicção religiosa da sua escolha e de praticar as cerimónias, devoções, ou actos do seu culto, com a condição de que isso não constitua um delito ou uma falta condenada pela lei.” Paralelamente, a lei sobre as associações religiosas e o culto público, no seu artigo 2, amplia esta garantia em favor de todo o indivíduo, compreendendo os seguintes direitos e liberdades: - Professar ou adoptar as convicções religiosas da sua escolha, 21


A Liberdade religiosa no México

ca, no seu artigo 3, como únicos limites nesta matéria, tanto para os administrados, como para o Estado, a obediência às leis, a manutenção da ordem e da moral públicas e a protecção do direito de terceiros. A lei sobre as associações religiosas e o culto público trouxe firmeza e transparência à regulamentação dos assuntos religiosos do nosso país; permitiu substituir o sistema jurídico rígido proveniente da Assembleia Constituinte de 1917 e a velha política do modus vivendi, instaurada desde 1929. Acrescentemos que, para qualificar o aspecto formal do nosso regime interno em matéria religiosa, podemos estabelecer uma comparação com o que está previsto na codificação internacional com carácter imperativo. Por exemplo, o artigo 12 da Convenção Americana dos Direitos do Homem, conhecida sob o nome “Pacto de S. José”, de 22 de Novembro de 1969, ratificada pelo governo mexicano desde 1981, consagra o que é relativo à liberdade de consciência e de religião da seguinte forma: “Toda a pessoa tem direito à liberdade de consciência e de religião. Este direito implica a liberdade de conservar a sua religião ou as suas convicções, ou de mudar de religião ou de convicção, assim como a liberdade de professar e de divulgar a sua religião ou as suas

convicções, individual ou colectivamente, tanto em público como em privado.” “Ninguém pode ser objecto de medidas restritivas que possam atentar contra a liberdade de conservar a sua religião ou as suas convicções ou de mudar de religião ou de convicções.” “A liberdade de manifestar a sua própria religião e as suas próprias convicções é submetida apenas às limitações prescritas pela lei e necessárias para proteger a segurança, a ordem, a saúde e a moral públicas, assim como os direitos ou liberdades doutrem.” Podemos constatar que existe uma grande semelhança entre as duas legislações, isto é, entre as normas internas do nosso país e as que têm um carácter internacional. Isso traduz-se através de uma avançada eficácia no reconhecimento e na protecção da liberdade religiosa no México. Assim, o poder reformador da Constituição fez o seu trabalho dotando os mexicanos de um regime jurídico moderno – que estabelece bases sólidas para o novo Direito Eclesiástico do Estado mexicano – de acordo com as novas realidades sociais. No entanto, devemos reconhecer que nem a reforma constitucional na matéria, nem a lei sobre as associações religiosas e o culto 22


A Liberdade religiosa no México

aplicar o antigo regime normativo na matéria. Foi em Novembro de 1992 que foi criada a Direcção Geral dos assuntos religiosos encarregado de aplicar o novo quadro regulador em matéria religiosa. Além disso, em 1995 foi criado um novo subsecretariado que coordenava o funcionamento do funcionamento do domínio dos assuntos jurídicos e o dos assuntos religiosos. Em 1998, os assuntos religiosos passaram para a responsabilidade do subsecretariado, e o que se relacionava com as associações religiosas, para o da Direcção Geral. Em 2001, por orcem do executivo, fundiram-se numa só unidade o Subsecretariado para a População e os Serviços de Emigração, com o Subsecretariado dos Assuntos Religiosos, o que significa a criação do Subsecretariado para a População, a Emigração e os Assuntos Religiosos, que tenho a honra de dirigir. Durante estes anos, a diversidade de estilos pessoais, critérios e sensibilidades por parte daqueles que nos precederam contribuiu para o reforço deste domínio de governação. Devemos reconhecer que estes dez anos representaram uma intensa aprendizagem para todos. Desde o mês de Novembro de 1992, as autoridades têm desenvolvido numerosos esforços para dar a

público asseguram por si mesmas, a sua aplicação geral, a fim de garantir os direitos e as liberdades que protegem. Actualmente, cabe à autoridade administrativa, fazer face à sua responsabilidade e fazer aplicar o novo sistema normativo no domínio religioso. Há necessidade de dar um verdadeiro sentido às disposições estabelecidas pelo Direito positivo e de assegurar a sua colocação em prática, mas sem nunca perder de vista a nossa história, a fim de fazer face às grandes tarefas nacionais, no contexto de uma sociedade aberta e plural. Neste caso, o artigo 25 da lei sobre as associações religiosas e o culto público dispõe que a sua aplicação cabe ao executivo federal, através do secretariado do Interior. Mas a mesma legislação implica, também, os dois outros quadros do governo: o das entidades federativas e o das municipalidades e das delegações no caso do distrito federal. Para começar, a estrutura orgânica do secretariado do Interior teve de se adaptar às novas condições sociais do país. O departamento dos Cultos religiosos unido à subdirecção dos Cultos religiosos, Armas de fogo e Explosivos, era a unidade administrativa à qual cabia a tarefa de fazer 23


A Liberdade religiosa no México

conhecer, através de todo o território nacional, o novo quadro jurídico em matéria religiosa, estabelecer diálogos com ao actores religiosos e criar esquemas de acolhimento das Igrejas e grupos religiosos que se inscreveram como associações religiosas. É preciso não esquecer que, ainda em 1991, a política do modus vivendi, em vigor desde 1929, prevalecia ainda em graus diversos. Na época do modus vivendi, por um lado, os assuntos públicos na matéria reduziam-se, na maior parte dos casos, à abertura de locais de culto público; por outro lado, a maioria da população considerava o edifício dos cultos, como o único espaço onde as Igrejas, os grupos religiosos e os seus ministros deviam exercer a sua acção; a comunicação efectuava-se entre alguns membros da hierarquia eclesiástica e as altas esferas políticas do país, frequentemente por intermédio dos seus porta-vozes. Na implantação da nova cultura dos direitos e das obrigações das associações religiosas, a participação dos dirigentes religiosos é digna de ser sublinhada; pode mesmo dizer-se que as suas contribuições têm contribuído, de forma positiva, para definir os critérios administrativos na matéria. Neste sentido na actual p+residência federal, temos consci-

ência de ter de fazer face a importantes desafios para garantir, plenamente, o exercício da liberdade de consciência e de culto. Eis porque, nos primeiros meses do exercício do actual governo, convidámos dirigentes religiosos do país, importantes e muito representativos, que participaram com grande proveito nos trabalhos de elaboração e de preparação do Plano Nacional de Desenvolvimento 2001-2006. Académicos de renome e especialistas do fenómeno religioso também participaram desses trabalhos. O resultado foi a definição de linhas estratégicas gerais que ditam a conduta da acção governamental do executivo federal em matéria religiosa. Assim, a Secretariado do Interior, encarregue de aplicar a lei sobre as associações religiosas e o culto público, exerce as suas atribuições e as suas responsabilidades legais numa nova óptica de espírito de serviço tendo, como prioridade, consolidar uma verdadeira gestão democrática no nosso país. Tudo isto foi feito na base de normas e princípios afirmados nas disposições constitucionais em matéria religiosa e na lei sobre as associações religiosas e o culto público, em vigor desde 1992. Na aplicação deste quadro jurídico, sociedade e governo encon24


traram mais instrumentos úteis do que obstáculos técnicos, o que contribui, invariavelmente, para reforçar a nossa vida democrática. Podemos revelar, no domínio da política pública e do seu impacto na sociedade, os seguintes elementos: - O diálogo permanente com os actores religiosos contribuiu para o estabelecimento de uma relação de respeito mútuo, madura e transparente, regida pela lei e submetida ao exame público. Além disso, o que prevalece agora, é a participação activa dos agentes religiosos sobre os assuntos de interesse nacional, sem interferência nas actividades políticas partidárias, assim como a constante participação dos lideres de opinião nos aspectos mais variados da análise da análise da religiosidade nos seus aspectos sociológico, antropológico e jurídico. - Assegurámo-nos, por ocasião do processo de registo das associações religiosas, de que as candidaturas pertenciam precisamente às organizações que tinha objectivos, eminentemente religiosos, porque são estas últimas as que se enquadram na lei sobre as associações religiosas e o culto público. - A implementação de um programa permanente de modernização dos procedimentos administrativos, tem permitido responder, em grande parte, à necessidade de ter um

dia a generalidade do registo das associações religiosas, que compreendem tudo o que diz respeito à organização interna e ao património destinado a fins religiosos. - A abertura, em matéria de autorização, para a retransmissão de cerimónias religiosas, através dos meios audiovisuais, traduz-se pela presença, legitimamente aceite pela sociedade, das associações religiosas nos programas de rádio e de televisão. - A abertura em matéria de opinião sobre a entrada e a permanência no país de ministros de culto e de associados religiosos de nacionalidade estrangeira, pode ver-se na participação activa e positiva de estrangeiros nas actividades do ministério. - A ligação ao princípio da separação e ao carácter laico do Estado reflecte-se na actividade permanente e louvável das associações religiosas no espaço social, como expressões colectivas, e no desenvolvimento completo destas como pessoas jurídicas. - A sinergia de diversos departamentos das três esferas do poder resultou nas frutuosas acções de coordenação ou de colaboração, em particular no combate contra a intolerância religiosa, assim como o desenvolvimento de acções sobre assuntos importantes de interesse geral, em relação com o domínio religioso.


Sobre este ponto, devo reconhecer o trabalho assíduo e perseverante doutros departamentos da esfera social, assim como de certos responsáveis dos organismos federativos e dos governos locais. Exprimimos assim o nosso reconhecimento ao Mediador Nacional de Cidadão e ao Instituto Nacional Indígena pelo seu envolvimento em diversas actividades comuns que realizámos em favor da tolerância religiosa em diferentes regiões do país, principalmente entre grupos e comunidades indígenas.

- A acção quotidiana do Secretariado do Interior em matéria de assuntos religiosos consegue atingir um clima de coexistência harmoniosa entre indivíduos e grupos de convicções religiosas diferentes. Isto encontra-se reflectido pela existência de mais de seis mil associações religiosas registadas e pelos resultados do último censo, que demonstra que a religiosidade é um assunto essencial no México. - O respeito pelo exercício da garantia constitucional da liberdade de convicções e de culto para todos, incluindo os servidores do Estado, tornou caduco, todo o sentimento que se identifique que se identifique com o integrismo antirreligioso. Sobre este ponto, quero sublinhar que no passado prevalecia uma prática difundida entre numerosos membros da classe política, que limitava a sua presença em cerimónias de culto. Actualmente, o nosso sistema jurídico tem em conta esta hipótese e prevê que os funcionários públicos não assistam a este género de cerimónias a título oficial; e para além disso, os servidores do Estado estão capacitados para exercerem a sua garantia constitucional de liberdade de convicções e de culto, porque o legislador considerou que a simples presença de um responsável, na qualidade de cidadão e numa

- Face a alguns conflitos que surgiram neste domínio, o diálogo e a negociação são instrumentos chave que temos privilegiado, e que têm permitido grande sucesso na manutenção da paz social.

Assim, o Secretariado do Interior está ao serviço dos cidadãos como um factor de compreensão dos interesses gerais, num espaço de conciliação de diferendos e numa instância imparcial de resolução de controvérsias.

- A realização de acontecimentos como este Fórum Internacional permite a difusão de uma cultura de promoção da liberdade de convicções e de culto, assim como que uma cultura de tolerância religiosa e de respeito pela diversidade de credos, sob o prévio conceito da coexistência interreligiosa.

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cerimónia particular, não pode ser atentatória da separação e da laicidade do Estado. Por todas estas razões, podemos afirmar que a garantia constitucional de liberdade de convicção e de culto beneficia, de uma maneira eficaz, da protecção do Estado. Este último tem a responsabilidade de ser o principal promotor e protector das liberdades públicas comportando-se com imparcialidade e numa estrita ligação às leis, a fim de procurar o bem público. Isto é possível graças ao princípio da separação da Igreja e do Estado e ao carácter laico deste último, dois princípios próprios da democracia mexicana. Neste caso, é oportuno apresentar sem rodeios o alcance destes dois princípios fundamentais, que pertencem à mais pura tradição do nosso país. O espírito do princípio da separação reside na necessidade de demarcar a esfera política, da esfera eclesiástica para que os assuntos civis e eclesiásticos não se confundam de forma alguma, fazendo prevalecer, sempre, em toda a actividade governamental o bem colectivo, sem que esta actividade possa estar subordinada a razões de ordem religiosa. Por outro lado, o carácter laico do Estado assegura o espaço social e a imparcialidade das instituições

públicas para que prevaleça a pluralidade e o respeito pela diversidade das expressões religiosas, filosóficas e ideológicas, assim como as práticas culturais. O Estado laico representa a garantia do respeito, da tolerância e da igualdade das convicções de todas as pessoas. Por fim, estas actividades desenvolvidas pelo governo federal, conforme o quadro jurídico em vigor nesta matéria, são essenciais e próprias de toda a democracia. Até aqui, temos visto alguns aspectos que se demonstram indispensáveis para avaliar, na sua real importância, os progressos realizados em matéria religiosa. Tendo isso em conta, considero que estes dez anos de quadro jurídico na matéria têm trazido numerosos benefícios à sociedade no seu conjunto. Por outro lado, devemos reconhecer que no domínio dos assuntos religiosos, algumas acções permanecem em suspenso, por diversas razões. É por isso que vamos agora abordar os assuntos sobre os quais ainda temos objectivos a atingir e onde a nossa transição democrática nos dó novas luzes para avançar neste sentido. Nós, Mexicanos, podemos fazer mais em matéria de liberdade religiosa e em favor do interesse geral. Um primeiro aspecto importante a considerar, é a ausência 27


A Liberdade religiosa no México

de formulação dos decretos da aplicação da lei. Como já foi dito, anteriormente, a publicação da lei sobre as associações religiosas e o culto público suscitou uma grande expectativa quanto ao papel que o executivo federal desempenharia nesta matéria, no que concerne ao desenvolvimento administrativo mas, sobretudo, nos decretos de aplicação da lei. Este carácter normativo que, é sabido, permite dotar melhor o que está disposto pela legislação na esfera administrativa, foi deixada de lado por uma razão, ou por outra; trabalhou-se sobre vários ante-projectos de aplicação da lei, mas nenhum pode ser proposto de maneira formal. Da nossa parte, examinámos estes ante-projectos, retendo aquilo que nos pareceu mais positivo, e dedicámo-nos a fazer um levantamento de uma lista de temas cujo objectivo é dar lugar a uma reflexão sobre a oportunidade de preparar um projecto de aplicação com novas formulações, a fim de enriquecer o quadro jurídico na matéria e de favorecer a transparência nas acções das autoridades. O projecto de aplicação da lei sobre as associações religiosas e o culto público deveria ter, como principais objectivos, oferecer uma segurança jurídica aos administrados, reduzindo a faculdade discricionária das autoridades, e precisar

certos conceitos e desregulamentar, na medida do possível, as diversos procedimentos administrativos de forma a ultrapassar certas imprecisões da lei. Nesse sentido dever-se-á fixar as ideias, estabelecer modalidades e procedimentos, aplicáveis a cada caso e, ao mesmo tempo, clarificar certos aspectos da lei, que, na nossa opinião, o exigem. Eis alguns dos novos aspectos que se poderiam examinar: - Enraizamento notório. Precisar em que consiste “o enraizamento notório”, porque se trata de uma condição sine qua non para a autorização do registo constitutivo como associação religiosa. - Princípios gerais dos estatutos. Estabelecer princípios gerais sobre as exigências mínimas que os ditos estatutos devem conter, sendo dado que, em muitos casos, os estatutos das associações religiosas omitindo certas precisões que acabam por gerar conflitos no seu interior. - Organismos e departamentos internos das associações religiosas. Clarificar a situação jurídica dos organismos e dos departamentos internos das associações religiosas. - Nomeação de adjuntos, de ministros do culto e de representantes das associações religiosas. Estabelecer que é necessário obter 28


A Liberdade religiosa no México

de cerimónias, ou da simples presença, a título pessoal, segundo o artigo 24 da Constituição e diversos tratados internacionais assinados pelo governo mexicano. - Comportamentos de intolerância religiosa. Mencionar os comportamentos que, perante a regulamentação, constituirão actos de intolerância religiosa, e privilegiar a via do diálogo para encontrar uma solução. - O organismo sancionador. Indicar quais são as autoridades que fazem parte da comissão de sanção prevista pela lei. - Resolução de conflitos. Precisar as modalidades de conciliação e de arbitragem e as disposições legais aplicáveis à solução dos conflitos entre associações religiosas. - Recurso em revisão. Clarificar aquilo que respeita à aplicação da lei federal de procedimento administrativo, na instrução do procedimento deste recurso contra as acções empreendidas nesta matéria pelo Secretariado do Interior. A nossa ambição é apresentar à mesa da discussão as questões que acabámos de mencionar, para que os actores envolvidos participem, seja com as suas contribuições seja com as suas críticas, para colocar um ponto final aos termos da aplicação da lei sobre as associações religiosas e o culto público.

acordo das pessoas que se designam como ministros do culto, para lhes dar uma validade jurídica e evitar, assim, que se lhes confira esse carácter sem o seu consentimento expresso. - Definição da cerimónia de culto. Definir o que se entende por cerimónia de culto religioso, a fim de precisar em que condições se deve solicitar a autorização para a retransmissão desse género de cerimónias pelos media audiovisuais. - Pedido para a celebração de cerimónias religiosas de culto públicas fora das igrejas. Apoiando-se nos artigos 21 e 27 da lei, estabelecer que estes pedidos serão submetidos, exclusivamente, às autoridades municipais ou às delegações correspondentes, para simplificar e descentralizar, por este meio, os trâmites ad hoc em benefício dos interessados. - O direito de entrar nas igrejas abertas ao culto público. Precisar o direito estabelecido pela lei, para que todas as pessoas possam entrar nas igrejas abertas ao culto público, tendo, como única restrição, respeitar as normas internas da cada associação religiosa. - Presença, com carácter oficial, das autoridades nos actos religiosos do culto público. Fixar o alcance da directiva legal correspondente, precisando as hipóteses “de presença oficial” neste género 29


A Liberdade religiosa no México

Na elaboração final do projecto estamos certos de contar com o concurso das associações religiosas e dos especialistas nesta matéria. Dada a importância do assunto que se trata de gerir, a proposta que trazemos hoje ao vosso conhecimento deverá implicar um minucioso processo de maturação a fim de responder às expectativas acumuladas há vários anos. Mas, todos os esforços que possamos fazer, conjuntamente, para elaborar uma aplicação tem como limites o que é previsto nas disposições da lei sobre as associações religiosas e o culto público. Eis porque queria abordar um outro assunto, que trata das próprias normas da lei sobre as associações religiosas e o culto público, que, por outro lado, prosseguem o seu processo de consolidação. Tudo o que a lei compreende enraíza-se na sociedade e traz novos elementos normativos de valor para todos os indivíduos e grupos sociais. Também consideramos que depois de dez anos de existência da lei sobre as associações religiosas e o culto público, apresentou-se uma magnífica ocasião, não só para sublinhar os seus aspectos positivos, mas também de pôr em dia os assuntos que a legislação deixou na sombra em 1991. É isto que temos estado a fazer desde o mês de Abril

de 2002, realizando um ciclo de conferências no quadro das actividades destinadas a celebrar o décimo aniversário da lei, por ocasião de um esforço comum entre o Instituto de Pesquisas Jurídicas da Universidade Nacional Autónoma da México, a Conferência Episcopal mexicana e o Secretariado do Interior. Esta lei, como qualquer disposição legal, é susceptível de modificação, sobretudo se o nosso objectivo é o seu alcance e, por consequência, os benefícios para a sociedade em geral, como já o demonstrou. É necessário que qualquer mudança feita nas disposições legais em matéria de assuntos religiosos deverá apoiar-se sobre os princípios da pertinência e da responsabilidade e deverá ter em conta, entre outras, as seguintes premissas: - Respeitar a esfera das liberdades públicas. - Ter em consideração a nossa história, mas, sobretudo, os imperativos culturais do nosso presente. - Eliminar os aspectos de controlo ou carácter discricionário, hoje ultrapassados, ou que podem ser evitados. - Alargar, tornando mais acessível, as disposições legais.

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A Liberdade religiosa no México

Reconhecimento da objecção de consciência no sistema jurídico mexicano Dirigentes religiosos de diferentes confissões e especialistas em Direito Eclesiástico mexicano têm defendido com veemência que este tema deve ser abordado. É necessário não perder de vista que no México, um dos princípios constitucionais é a igualdade jurídica. O legislador deu a preeminência a este princípio sobre o direito à objecção religiosa, como podemos julgar pelo parágrafo 2 do artigo primeiro da lei sobre as associações religiosas e o culto público, que declara: “As convicções religiosas não dispensam, em caso algum, a obediência às leis do país. Ninguém poderá invocar motivos religiosos para escapar às responsabilidades e obrigações prescritas nas leis.” Isto responde ao pressuposto de que o homem não é apenas cons­ ciência e vida individual, como titular e beneficiário de direitos, mas que pertence também a uma sociedade, com a responsabilidade de respeitar as obrigações regidas pela lei. O direito à objecção de consciência tem como finalidade encontrar uma solução pertinente para os conflitos entre a consciência e a lei, através de um ponto de convergência entre as duas ordens, para

Os temas propostos desde o mês de Abril último são: 1. Reconhecimento da objecção de consciência no sistema jurídico mexicano. 2. Ajuda espiritual nos centros de saúde, de readaptação social e de assistência do sector público. 3. Abertura, em favor das associações religiosas, para que elas possam possuir medias audiovisuais. 4. Derrogação da obrigação de obter autorização para a retransmissão de cerimónias religiosas através da rádio e da televisão. 5. Simplificação administrativa para a entrada e durante a permanência no México de estrangeiros na qualidade de ministros de culto ou adjuntos das associações religiosas. 6. Desregulamentação administrativa na esfera da aplicação da lei sobre as associações religiosas e o culto público. 7. Supressão da disposição legal que limita a presença das autoridades por ocasião das cerimónias religiosas do culto público. Os assuntos que constituem esta lista não são exaustivos. Por motivo do tempo que me é concedido neste fórum, abordarei apenas alguns aspectos fundamentais destes assuntos. 31


A Liberdade religiosa no México

que a norma jurídica estabeleça uma regra de excepção em favor do indivíduo a quem ela concede a objecção, perante as suas profundas convicções de consciência. Felizmente, podemos apoiar-nos na grande experiência doutros países que nos auxiliam neste assunto. Em alguns dentre eles, a objecção de consciência ao serviço militar, ao aborto, aos tratamentos médicos, entre outros, é contemplado pela própria Constituição, ou em leis secundárias. No México, é necessário começar por rever, em detalhe, o princípio constitucional da igualdade jurídica e a disposição, já citada, da lei sobre as associações religiosas e o culto público. A importância e a profundidade do assunto levam-nos a uma discussão vasta e metódica. Certamente que os resultados deste fórum serão substanciais neste sentido. Ajuda espiritual nos centros de saúde, de readaptação social e de assistência do sector público Historicamente, no nosso país, há um acesso limitado dos ministros do culto de diferentes confissões às instalações dos centros de saúde, de readaptação social e de assistência com o objectivo de prestar ajuda espiritual aos doentes; a este respeito têm-se aplicado critérios discriminatórios para permitir, ou não, o acesso a esses locais.

Sobre este ponto, existe uma convergência entre os pedidos dos dirigentes religiosos de diferentes confissões e o interesse constitucional. Se é verdade que o artigo 2 da Lei sobre as associações religiosas e o culto público estabelece a garantia de um indivíduo de ter, ou adoptar, convicções e praticá-las de forma individual ou colectiva, o direito de receber uma ajuda espiritual nas instituições em questão, não é, propriamente, garantida. No domínio internacional, este direito é reconhecido por alguns Estados. Nos primeiros meses do actual governo, o Secretariado do Interior, tiveram em atenção uma das promessas da campanha de Vicente Fox, hoje presidente, de pedir, através de uma circular administrativa, o apoio de diferentes departamentos e organismos que estão responsáveis por centros de saúde, de readaptação social e de assistência, para que permitam, aos interessados, receberem ajuda espiritual segundo as suas convicções religiosas. E sob seu pedido expresso. Esta medida provocou resistências por parte de alguns sectores da sociedade. No entanto, a grande maioria da população considerou favoravelmente a aplicação desta medida. No entanto, convém encarar outras alternativas neste domínio a fim de assegurar o exercício deste 32


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direito em todo o território nacional alargando o regime actualmente em vigor. Parece necessário aplicar a reforma legal correspondente, mas isso exige, bem entendido, a participação e a decisão do Congresso da União, é fundamental reconhecer, pela lei, este aspecto intrínseco da liberdade religiosa. Simplificação administrativa para a entrada e permanência no México de estrangeiros na qualidade de ministros de culto e adjuntos das associações religiosas Alguns dirigentes religiosos têm expresso as suas preocupações sobre o assunto do direito das autoridades quanto à regulamentação de emigração para a entrada e permanência no nosso país, de ministros de culto e de adjuntos religiosos de nacionalidade estrangeira. Existe aqui uma grande convergência com o interesse institucional, uma vez que as associações religiosas, têm manifestado a sua boa vontade para aceitarem as condições que a norma jurídica estabelece neste domínio. Para avançar neste tema, convém explorar a possibilidade de modificar de modificar o conceito de acordo das autoridades para passar a ideia de “autorização” para a de simples “aviso”. Isso implica, por um lado, amputar a autoridade administrati-

va de algumas das suas prerrogativas e, por outro lado, oferecer mais amplas facilidades às associações religiosas para constituírem o seu corpo ministerial ou de adjuntos religiosos, sem que seja necessário modificar o que a alínea c) do artigo 130 da Constituição prevê, que dispõe: “… eles deverão satisfazer (os estrangeiros) as exigências requeridas pela lei”. Neste caso. As exigências consistiriam, simplesmente, em avisar as autoridades. Bem entendido, aplicar-se-iam as sanções previstas para quem quer que infringisse as disposições que a lei geral prevê para a população e a sua aplicação. Abertura em favor das associações religiosas para que elas possam possuir medias audiovisuais Por disposição legal, as associações religiosas e os ministros de culto não estão autorizados a adquirir, a administrar ou a possuir medias audiovisuais (art. 16 LARCP)1. Sobre este ponto também existe uma grande convergência entre os dirigentes religiosos de diferentes confissões e o interesse institucional, cujo objectivo é alargar a análise e o estudo tendo em vista uma provável abertura do Estado em favor das associações religiosas em matéria de administração, de posse ou de propriedade de media audiovisuais. 33


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religiosas através da rádio e da televisão A lei sobre as associações religiosas e o culto público dispõe que apenas as associações religiosas têm o direito de retransmitir cerimónias religiosas através dos meios audiovisuais, depois de autorização do Secretariado do Interior (art. 21 LARCP)2. Esta disposição suscitou algumas observações por parte dos dirigentes religiosos de diferentes confissões. Pedir às autoridades a autorização para retransmitir estas cerimónias, e unicamente a título excepcional, pela rádio ou pela televisão, é, segundo eles, um entrave aos seus direitos. Aqui, também existe uma grande convergência com o interesse institucional. No que diz respeito à administração actual, temos concedido autorização a, praticamente, a todas as associações religiosas que nos têm dirigido os seus pedidos em boa e divida forma. Assim, um pouco mais de 21 000 cerimónias religiosas foram transmitidas pela rádio e pela televisão. Poder-se-á igualmente avançar sobre este ponto, derrogando a parte da lei sobre as associações religiosas e o culto público que a isto se refere, a fim de suprimir a exigência de uma autorização do Secretariado do Interior para as retransmissões, quer tenham uma carácter excepcional, ou não.

Sobre este ponto, temos o sentimento de ter chegado, no México, a um nível de apreciável maturidade que permite assegurar melhor o reconhecimento e a orientação desta dimensão de liberdade religiosa. No entanto, alguns sectores da população têm manifestado alguma oposição, fazendo notar que, por este meio, corre-se o risco de ver as associações religiosas perderem a sua natureza eminentemente religiosa por uma outra de carácter económico; eis porque, neste caso, é necessário instaurar as limitações indispensáveis. A experiência de outros países, sobre o assunto, dar-nos-á, sem dúvida, importantes referências para regulamentar, com transparência, a participação das associações nesta matéria. Será necessário ter em conta, muito especialmente, a natureza das associações religiosas, cujos objectivos são estranhos aos que implicam, principalmente, o lucro, e a decisão da Assembleia Constituinte permanente para que as associações religiosas adquiram, possuam, ou administrem os bens indispensáveis para o seu funcionamento. Derrogação da obrigação de obter uma autorização para a retransmissão de cerimónias 34


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de celeridade no serviço público, a fim de responder às novas realidades que dizem respeito às 6 010 associações religiosas registadas actualmente. Neste caso, a desregulamentação administrativa teria um grande efeito sobre as negociações relativas - À nomeação, à recondução ou à demissão de representantes, adjuntos ou ministros de culto. - À aquisição de bens imobiliários e ao respectivo registo, possuídos, ou administrados a qualquer título que fosse. Estas negociações são as mais frequentes na Direcção Geral das Associações Religiosas. Além disso, este novo mecanismo inclui a responsabilidade, para as associações religiosas, de constituírem arquivos internos com os documentos que acreditem o conteúdo das negociações efectuadas junto da Direcção Geral. Assim, as associações religiosas envolvem-se em produzir esta documentação perante as autoridades, a pedido destas, segundo a fórmula de apresentação autêntica.

No caso em que uma desregulamentação completa não parece admissível, poder-se-ia evoluir do conceito de “autorização” para o de “aviso”, o que simplificaria o processo. Isto implicaria um avanço substancial em matéria de regulamentação e, sobretudo, permitiria às associações religiosas darem a conhecer, mais facilmente, os seus princípios e as suas actividades através dos medias audiovisuais. Desregulamentação administrativa na esfera da aplicação da lei das associações religiosas e o culto público O peso histórico das relações do Estado com as Igrejas é um factor que determinou o estabelecimento de exigências para que as associações religiosas exerçam os seus direitos e cumpram as suas obrigações. Algumas destas exigências são sentidas, actualmente, como uma regulamentação um pouco excessiva. A etapa actual da relação IgrejaEstado abre novas perspectivas para avançar para um ultrapassar deste excesso de regulamentação. O nosso desejo é instituir um mecanismo moderno de negociações nos domínios regidos pela lei sobre as associações religiosas e o culto público, orientado por critérios de corresponsabilidade e

Presença com carácter oficial das autoridades nas cerimónias de culto público De acordo com o parágrafo 3 do artigo 25 da lei sobre as associações religiosas e o culto público 35


A Liberdade religiosa no México

Hoje, não se pode ir contra uma liberdade fundamental protegida pelo Estado como garantia constitucional e reconhecida como um direito anielável do homem, pela legislação internacional. Pelas razões expostas anteriormente, considero que esta interdição feita aos servidores do Estado, fonte de inúmeras interpretações, quantas vezes contraditórias, afasta-se, uim pouco, do artigo 24 da Constituição e do que está previsto na alínea 2 da lei sobre as associações religiosas. É bem evidente que não chegámos ao fundo da nossa argumentação sobre estes assuntos; apenas quisemos expor, de forma racional e serena, alguns elementos de reflexão política e jurídica, sobra as implicações destas questões que, sem dúvida, são de grande interesse. Sem memória não há futuro; mas sem reflexão, o nosso presente perderia todo o significado. A nossa intenção é a de promover, no nosso país, o início de uma nova etapa no domínio da liberdade religiosa. O debate sobre estes temas deverá ser organizado tomando tempo suficiente para poder enriquecer as idéias que exposemos na melhor das intenções e que devem muito às preciosas opiniões vindas da sociedade. Em todo o caso, os actores envolvidos deverão participar nele,

3 as autoridades governamentais proibiram que se assistisse, a “título oficial”, à celebração de cerimónias de culto público. Alguns dirigentes religiosos e especialistas na matéria. assim como servidores do Estado, declararam que convém anular esta disposição. O argumento é que arestrição é uma imposição com a garantia constitucional e a liberdade de convicções e de culto, consagradas pelo artigo 24 da Constituição, para toda a pessoa, sem nenhuma distinção. Esta liberdade constitui um direito fundamental do homem. O preceito constitucional dispõe que o exercício desta garantia é perfeitamente válido tanto mais que não constitui um delito ou uma falta punido pela lei. A restrição que nos ocupa, em relação com as autoridades, é hoje ultrapassada pelo facto de que assistem a este tipo de cerimónias não a título oficial, mas a título pessoal. Perante estas considerações, podemos dizer que o facto de uma autoridade assistir a uma cerimónio da culto público não é atentatória do princípio da separação da Igreja e do Estado, nem do carácter laico das instituições públicas. Em tal caso, a respreição em questão a+enas representa uma reminiscência do regime jurídico anterios, que limitava as liberdades públicas em matéria religiosa. 36


A Liberdade religiosa no México

num espírito de abertura e de diálogo, apresentando argumentos e alegações, para reaproximar as diferentes posições, sem perder de vista os aspectos essenciais destes assuntos. De acordo com o nosso sistema jurídico, os nossos legisladores terão aqui um papel preponderante para examir e debater, no quadro legislativo do Congresso da União, daquilo que tem sido apresentado sobre uma eventual reforma em matéria religiosa. O diálogo esclarece e a busca de acordos são as ferramentas próprias a toda a democracia que, seguramente, trarão novas vantagens em matéria de liberdade religiosa, para o bem da sociedade e para o bem do México.

sobre este direito do homem neste início de um novo milénio. Estou convencido de que manifestações como esta nos oferecem bases para definir a natureza e a dimensão dos caminhos que nós, Mexicanos, podemos percorrer tendo em conta as verdadeiras necessidades da população, neste domínio. As experiências de outros sistemas e sociedades deverão enriquecer as nossas perspectivas. A mudança pertinente é um dos sinais determinantes na hora actual; favorece a nossa vida democrática e revigora o projecto de nação ao qual todos aspiramos. Avançar no reconhecimento de todas as dimensões da liberdade religiosa é uma necessidade e uma exigência da dignidade humana. Envolver-nos-emos em respeitá-la e em fazê-la respeitar.

As questões religiosas ver-se-ão sempre enriquecidas se enfrentarmos a nossa realidade com uma visão analítica, histórica, objectiva, ponderada e optimista, ponde lado os triunfalismos abstractos, o pessimismo inflexível e o espírito limitado. É disso que este Fórum trata, que reúne tanto especialistas de renome internacional como investigadores reconhecidos no nosso país, cujo rigor intelectual e a capacidade de análise asseguram uma discussão rica sobre a liberdade religiosa nas sociedades contemporâneas, e propõem importantes esclarecimentos

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A Liberdade religiosa no México

* Intervenção feita por ocasião do Forum internacional sobre a liberdade religiosa, realizado no Méxivo em Outubro de 2002. ** Sub-Secretário para a População, a Emigração e os Assuntos Religiosos do México. Notas: 1. “Art. 16… As associações religiosas e os ministros do culto não poderão possuir ou administrar, directamente ou através de terceiros, concessões para exploração de estações de rádio, televisão ou qualquer outro tipo de telecomunicação, nem adquirir, possuir ou administrar qualquer tipo de medias…” 2. “Art.21… As associações religiosas apenas poderão, de forma extraordinária, retransmitir ou difundir cerimónias de culto religioso através dos medias audiovisuais após autorização da Secretariado do Interior.” 3. “Art. 25… As autoridades federais, quer do Estados, quer das municipalidades, não intervirão nos assuntos internos das associações religiosas. (…) As autoridades, acima citadas, não poderão assistir, a título oficial, a nenhuma cerimónia religiosa de culto público, nem a nenhuma actividade que tenha como objectivos e fins similares.”

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A Liberdade Religiosa no Chile

Carlos Salinas Araneda*

I. Antecedentes gerais Enquanto o Chile fez parte da monarquia espanhola, a religião católica era a única aceite oficialmente. Existia uma estreita união entre a Coroa e a Igreja, representada juridicamente pela instituição do Patronato. Mais ainda, pelo facto da Coroa ter assumido, como política do Estado, a evangelização dos territórios das Índias ocidentais – e, consequentemente, a dos do domínio chileno – pôde-se qualificar o Estado das Índias de Estado missionário1. Este Estado missionário existiu durante todo o período colonial e terminou não por causa do esgotamento ou do fracasso, mais sim porque atingiu o seu objectivo, antes de ser substituído no século XIX pelo Estado confessional. Uma vez obtida a independência, a situação não se alterou substancialmente no que concerne às relações entre a Igreja e o Estado pois que se é verdade que as autoridades chilenas pediram com insistência o Patronato2 à Santa Sé, esta nunca o concedeu, o que não impediu as autoridades chilenas de o terem assumido de facto, introduzindo-o na sua estrutura constitucional, ao mesmo tempo que declaravam a religião católica a confissão oficial do Estado3. Assim, durante todo o século XIX e o primeiro quarto do século XX, as relações entre o Estado do Chile e a Igreja católica foram estreitas, pelo menos do ponto de vista jurídico; a confissão oficial do Estado era a confissão católica e existia um Patronato unilateralmente declarado pelo Estado, aceite pela Igreja, mas com uma consciência crescente que ele representava um abuso4. O carácter confessional católico do Estado não significa no entanto uma rejeição das outras confissões, pois, desde o início, o Estado do Chile 39


A Liberdade Religiosa no Chile

teve para com elas uma atitude de tolerância que manteve enquanto durou a Constituição de 1833. Isso manifestou-se, por exemplo, durante os primeiros anos da Independência, nos tratados assinados com os Estados Unidos da América do Norte (1834), a França (1846, 1852), ou o Reino Unido da Grã Bretanha (1855), atitude de tolerância que foi mesmo consagrada constitucionalmente, quando em 1844 foi promulgada uma lei interpretativa da Constituição5 segundo a qual era autorizado o culto privado das confissões não católicas no território da república, o que, de facto, se praticava já anteriormente. Isso teve como consequência, entre outras, permitir a diversas confissões começarem a solicitar a personalidade jurídica que o Estado lhes outorgou na modalidade de personalidade jurídica de direito privado, o que lhes permitiu agirem sem qualquer dificuldade no tecido jurídico chileno. A primeira a obtêla foi a Igreja episcopal anglicana de Valparaíso6. Seguiram-se, e até 1925, ou seja, enquanto esteve em vigor a Constituição de 1833, vinte e seis organizações religiosas que obtiveram a sua personalidade jurídica de direito privado7. A Igreja católica, durante esse tempo, conservava a sua qualidade jurídica de direito público, reconhecida expressamente no Código Civil (1855)8. Este estado de coisas, que remontava à Independência (1881), foi alterado de modo substancial em 1925 quando se promulgou uma nova Constituição política. Ela consagrou pela primeira vez no Chile a separação entre a Igreja e o Estado, assim como a liberdade dos cultos9. A separação efectuou-se amigavelmente, por meio de um acordo informal entre o Presidente da República da época e a Santa Sé10. Contudo, esta nova situação não representou uma mudança maior em relação ao passado no domínio da personalidade jurídica dos organismos religiosos. Se é verdade que alguns discutiram o facto de a Igreja católica continuar a gozar de uma personalidade jurídica de direito público11, tanto a doutrina maioritária12 como a jurisprudência judiciária13 e administrativa14 reconheceram que a sua situação jurídica não tinha mudado. Foi mais ou menos a mesma coisa com as outras confissões religiosas; estas, qualquer que fosse a denominação, quando desejavam obter uma personalidade jurídica, não podiam aspirar senão à de direito privado. Só a título excepcional é que a arquidiocese católica apostólica ortodoxa do Chile obteve, através de uma lei da República, a personalidade jurídica de direito público em 197215. A Constituição de 1925 continuou em vigor até 1980, ano em que foi substituída pela actual. Com esta última a situação permaneceu inalterada, mas no seio da Assembleia Constituinte produziu-se um 40


A Liberdade Religiosa no Chile

facto interessante: alguns dos seus membros, ao discutirem o tema da consagração constitucional da liberdade religiosa, entenderam que os organismos religiosos não católicos gozavam também de uma personalidade jurídica de direito público aos olhos do Estado16. Contudo, a promulgação desta Constituição não alterou a situação existente até aí, porque a nova norma que consagrava a liberdade religiosa se inspirou de muito perto na norma constitucional precedente, os constituintes não querendo alterar substancialmente a sua redacção, excepto para aí incluírem reformas secundárias, mais de estilo17. Assim, a personalidade jurídica dos organismos religiosos não conheceu qualquer alteração até 1999. Em Outubro de 1999 foi publicada a lei18 que, pela primeira vez no Chile, regulamentou a concessão de personalidade jurídica de direito público às confissões não católicas19. Se tal é a ideia principal formulada pela lei, esta mesma lei compreende também alguns artigos onde se desenvolvem os conteúdos do direito à liberdade religiosa, consagrados constitucionalmente. É a primeira vez que a lei chilena fala claramente de liberdade religiosa, pois que, até então, o termo empregue era o de liberdade de culto. A elaboração desta lei foi longa e árdua20, o que, na minha opinião, releva do seguinte facto. Ao longo do século XX desenvolveramse no Chile diversas organizações religiosas que nasciam e cresciam nos Estados Unidos da América do Norte, ou seja num Estado que compreendia a liberdade religiosa de uma maneira diferente da que tinha progredido no Chile sob a influência da tradição francesa na matéria22. Ou seja, elas tinham vivido sob o regime jurídico onde o Estado se abstinha completamente de toda a acção que lhes fosse favorável ou desfavorável, contentando-se em garantir a cada uma delas o poder de se desenvolverem livremente, numa submissão ao direito comum que, é preciso reconhecêlo, lhes oferecia numerosas possibilidades para encontrar as normas mais apropriadas às suas necessidades, sem que algumas sejam dotadas de um tratamento jurídico especial. Trata-se portanto de organizações religiosas que chegam ao Chile com uma maneira diferente de entender a liberdade religiosa, o que, em todo o caso, não as impediu de se adaptarem às condições da legalidade chilena à qual elas se submeteram durante longos anos, mais particularmente, no que concerne à obtenção da personalidade jurídica. Se é verdade que as origens dessas confissões não as incomodaram de modo algum para regularem a sua actividade de acordo com o direito 41


A Liberdade Religiosa no Chile

comum chileno, elas não coincidiam, contudo, com um estado de coisas no qual certas organizações religiosas tinham um estatuto jurídico diferente: a Igreja Católica, posteriormente, a Igreja Ortodoxa eram personalidades jurídicas de direito público, enquanto que as outras eram personalidades jurídicas de direito privado. Isto advinha, como já o dissemos, da compreensão diferente da liberdade religiosa que se tinha consolidado no Chile após uma longa história de relações Igreja/Estado e desde a época colonial, com a inegável influência francesa posterior. Na minha opinião é esta maneira diferente de entender a liberdade religiosa que explica em grande parte o difícil processo de elaboração da lei sobre as organizações religiosas23. Apesar de tudo, esta última lei teve o mérito, como indiquei, de introduzir virtualmente na linguagem jurídica oficial do Chile a expressão “liberdade religiosa” e de desenvolver os seus conteúdos essenciais. II. A liberdade religiosa enquanto direito A expressão “liberdade religiosa” é estranha à linguagem constitucional chilena, pois que nem a Constituição de 1925, nem a de 1980 a empregaram. Os comentadores das duas Constituições, numa exegese, na minha opinião ligada à letra da disposição, também não a empregam, mesmo pondo em evidência a liberdade que, em matéria religiosa, está consagrada nos dois textos constitucionais, pois um e outro garantem “o exercício de todos os cultos que não se oponham à moral, aos bons costumes ou à ordem pública”. Este vazio foi colmatado pela lei n.º 19 638 à qual eu fiz referência e que, doravante, citarei frequentemente. Ela emprega precisamente a expressão “liberdade religiosa” relaciona-a explicitamente com a liberdade de culto. Estas duas expressões designam um mesmo conteúdo, a saber: o direito que tem por objecto a fé, enquanto acto, e a fé como conteúdo desse acto, assim como a prática da religião em todas as suas manifestações – individualmente, em comum ou de uma forma institucional, tanto em público como em privado, pelo ensino, a pregação, o culto, a observância dos ritos – ou a sua mudança. De acordo com isto, a Constituição consagra de maneira expressa não apenas a liberdade religiosa, quando ela garante o livre exercício de todos os cultos, mas acrescenta a liberdade de consciência. No entanto, na minha opinião, não convém entender na Constituição chilena a liberdade religiosa como uma espécie de liberdade de consciência, pois cada uma é diferente no que protege e garante. 42


A Liberdade Religiosa no Chile

A. Liberdade religiosa, liberdade de consciência e liberdade de pensamento A doutrina destes últimos anos definiu estes três conceitos de maneira a fornecer uma clara distinção entre eles, distinção que, na verdade, não está inteiramente clara nas legislações nacionais nem nos documentos internacionais. Estes três direitos encontram o seu denominador comum no facto de que os três implicam “o reconhecimento da natureza e da dignidade do ser pessoal de cada cidadão na sua dimensão mais profunda e específica, a saber, aquela em que a pessoa se encontra e onde age o carácter inato, inviolável, inatingível e imprescritível da sua racionalidade e da sua consciência, graças à procura e ao estabelecimento por si mesma, e sem nenhuma espécie de coerção ou de substituição, da sua própria relação com a verdade, o bem, a beleza de Deus24”. Contudo, se tudo o que precede é verdade, e se é igualmente verdade que a religião, na maioria dos casos, se faz acompanhar de uma concepção global do homem, do mundo e da verdade, e, também de todo um sistema ético ou moral, também é verdade que a fé, enquanto acto pessoal e, sobretudo enquanto religião, é em si mesma mais que a ética ou a concepção antropológica e cosmológica que dela se depreende. Em conformidade com isto, uma ética derivada de uma fé religiosa é protegida não pela liberdade religiosa, mas sim pela liberdade de consciência. E a visão antropológica ou cosmológica que acompanha uma religião não é também ela mais protegida pela liberdade religiosa, mas sim pela liberdade de pensamento, da mesma maneira que as cosmovisões, que não se inspiram num credo religioso em particular, são protegidas por esta liberdade. É por isto que “a fé religiosa, enquanto tal, ou seja, considerada independentemente da antropologia, da cosmologia e da moral que ela poderia inspirar, constitui uma realidade própria, original e inédita, um objecto que não se pode confundir com os que são reconhecidos no direito relativo à liberdade de pensamento e de consciência, e, em certo sentido, um campo real e próprio da racionalidade e da consciência da pessoa humana que configura a matéria específica do direito à liberdade religiosa25”. A liberdade de consciência é mencionada expressamente pelo legislador chileno, e é a primeira das liberdades garantidas pelo artigo 19.º, n.º 6. Trata-se, no entanto, de uma liberdade diferente da liberdade religiosa, pois compreende o julgamento moral e o comportamento de acordo com esse julgamento; no Chile ela protege a liberdade fundamental de toda a pessoa 43


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a procurar o bem, a possuir o seu próprio julgamento moral como acto pessoal de consciência, a adaptar os seus comportamentos e a realizar a sua vida segundo o seu julgamento moral pessoal. Os nossos legisladores, na lei sobre as organizações religiosas evocada mais acima, entenderam claramente que se trata de uma lei distinta da da liberdade religiosa, visto que, nos artigos que desenvolvem os conteúdos da liberdade religiosa, ela não menciona em lado algum a liberdade de consciência, enquanto fala sempre de “liberdade religiosa e de culto”. Deste modo parece-me que o direito chileno actual distingue claramente a liberdade de consciência da liberdade religiosa. Se considerarmos como adquirido que a Constituição chilena reconhece e garante o direito à liberdade de consciência, o que toca à moral e aos actos relativos a esse direito, e se o “livre exercício do todos os cultos” exprime, de maneira inábil, mas compreensiva, a liberdade religiosa, parece-me que não nos resta mais que interpretar o termo “convicções” utilizado pela Constituição senão como o factor integrador do que se chama mais comummente o direito à liberdade de pensamento. Consequentemente, garantindo --- a manifestação de todas as convicções”, os constituintes chilenos garantiram a cada um, de maneira sem dúvida muito equívoca, o direito de possuir, no Chile, a sua concepção das diferentes realidades do mundo e da vida, mais precisamente a sua concepção das coisas, do homem e da sociedade – nos domínios filosófico, cultural, político, artístico, etc. Desta maneira, a “manifestação de todas as convicções” – ou seja a liberdade de pensamento – atinge no nosso texto uma plena autonomia em relação à liberdade de consciência e à liberdade religiosa. À margem de outros argumentos que reforçam esta conclusão, a Constituição, no seu artigo 5.º, sub-alínea 2, afirma que “o exercício da soberania reconhece como limitação o respeito pelos direitos essenciais que emanam da natureza humana. É dever dos órgãos do Estado respeitar e encorajar esses direitos, garantidos por esta Constituição, assim como pelos tratados internacionais ratificados pelo Chile e que estão em vigor.” A Constituição faz explicitamente referência aos tratados internacionais dos quais alguns fazem aparecer esta tripla distinção com uma indubitável claridade, como o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos26 ou a Convenção sobre os Direitos da Criança27. Reconheço que é um tema que nem sempre beneficiou da claridade necessária28 nos documentos internacionais, mas reconheço também que, nestes últimos anos, a terminologia se afirmou mais claramente, como o mostram os dois tratados que acabo de mencionar. 44


A Liberdade Religiosa no Chile

B. Conteúdo do direito à liberdade religiosa Sublinhei que a Constituição de 1925 não tinha empregue a expressão “liberdade religiosa”. Ela consagrou a separação entre Igreja e Estado, e consagrou-se na norma constitucional os efeitos que esta separação teria no futuro para as “confissões respectivas”, sem nada dizer dos efeitos que esta norma significava para cada pessoa em particular, razão pela qual os seus autores se limitaram, quando muito a indicar que “o primeiro dever do homem é aquele que ele tem para com Deus – trata-se, portanto, de um dever religioso. Consequentemente, ele tem o direito de exigir que lhe permitam o cumprimento29”. Assim, a exegese que a doutrina fez desta norma não progrediu sensivelmente, pois que, em quase todos os casos, ela se limitou a uma exegese literária do n.º 2 do artigo 1.º 30 sem que o tema, aparentemente, preocupe muito, ao ponto que alguns autores lhe consagram a custo alguns parágrafos31.” Mais, nos primeiros comentários considera-se o tema como “mais teológico que prático, visto que só a Igreja Católica tem um culto público32”. Esta situação não mudou com a Constituição de 1980, pois os delegados decidiram conservar, com alguns aperfeiçoamentos, a norma de 1925. Assim, os comentários exegéticos redigidos posteriormente não acrescentaram nada no que concerne aos conteúdos individuais da liberdade religiosa; contentaram-se em comentar os conteúdos colectivos que a disposição constitucional reconhecia às confissões religiosas e as suas limitaçõs33. A situação mudou profundamente nestes últimos tempos graças à lei n.º 19 638 sobre as organizações religiosas, tão frequentemente citada, e que, em dois dos seus artigos, explicitou as liberdades individuais contidas no direito à liberdade religiosa (art.º 6.º) e os direitos colectivos que comporta o mesmo direito (art.º 7.º). I. Liberdades individuais a) Uma hipótese fundamental: autonomia e imunidade de coerção. O enunciado do artigo 6.º da lei sobre as organizações religiosas começa por afirmar que a liberdade religiosa e de culto supõe “a autonomia e imunidade de coerção” correspondente para todas as pessoas34. Disse­‑se35 que a liberdade religiosa é a primeira das liberdades, pois que, para além do facto dela conter indirectamente as relativas ao pensamento e à consciência, encontramos aí também o acto mais radical do homem, o acto de fé, e isso independentemente do sinal positivo, negativo ou agnóstico 45


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que cada homem pode adoptar exercendo-o. É por isso que a liberdade religiosa é a “liberdade das liberdades”; ela faz, com efeito, referência ao acto mais radical do homem enquanto ser racional, a saber o acto de fé. A primeira atitude de um Estado democrático, indispensável para que o seja, é portanto reconhecer a liberdade religiosa dos seus cidadãos, reconhecendo igualmente e garantindo juridicamente a plena imunidade à coerção em matéria religiosa em favor dos cidadãos e das confissões religiosas face a outros e ao próprio Estado. “Por conseguinte, o poder supremo do Estado não deve, conforme ao direito natural e cristão, exercer-se de modo a impedir ou limitar esta liberdade de pensamento e de convicção religiosa: o Estado não deve empregar a força coerciva que lhe pertence, nem as inúmeras formas de pressão psicológica e moral que estão à sua disposição, para forçar uma adesão ou para interditar que se adopte ou que se mantenha a ideia do divino ancorada nas profundezas da pessoa humana36.” Mas esta autonomia e imunidade de coerção não é uma simples formulação de programa ou um ideal; ela deve ser a atitude concreta que deve assumir o Estado e terceiros para que cada pessoa, fazendo uso do seu direito à liberdade religiosa, possa praticar os direitos que a lei, sem limitações no caso do Chile, lhe reconhece. b) Faculdades Estas páginas não podem ser suficientes para se fazer uma análise detalhada das diversas faculdades que o direito chileno define como inerentes ao direito à liberdade religiosa; limitar-me-ei portanto a enunciar, adicionando alguns breves comentários que me parecem úteis. I) “Professar a convicção religiosa que se escolheu livremente ou não professar nenhuma; manifestá-la livremente ou abster-se de o fazer; mudar ou abandonar a que se professa” (art. 6.º, alínea a). Visto que a liberdade religiosa garante o acto de fé, qualquer que seja o conteúdo desta – crente, agnóstico ou ateu -, a faculdade de professar uma convicção religiosa ou de não professar nenhuma está protegida precisamente por esta norma, sob o direito à liberdade religiosa. No entanto, isto não está garantido a não ser para as pessoas individuais, visto que o direito chileno, a justo título, não o reconhece aos grupos colectivos. Isto não significa que a profissão colectiva do agnosticismo ou do ateísmo, mesmo o militante, não seja protegida no direito chileno; ele está simplesmente protegido, por outros direitos, como o relativo à liberdade de opinião. 46


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II) “Praticar em público ou em privado, individual ou colectivamente, actos de oração ou de culto; comemorar as suas festas; celebrar os seus ritos: observar o seu dia de repouso semanal; receber na morte uma sepultura digna, sem discriminação por motivos religiosos; não ser coagido a praticar actos de culto e a receber uma assistência religiosa contrária às suas convicções pessoais e não ser entravado no exercício dos seus direitos” (art.º 6.º, alínea b). Retomam-se uma série de faculdades que correspondem ao segundo aspecto da liberdade religiosa, ou seja, a prática da religião à qual dá lugar o acto de fé prévio. A faculdade de “celebrar os seus ritos” pode ser interessante na perspectiva do casamento. No Chile, o casamento canónico foi o único a ser reconhecido pelo Estado até 1884, ano em que foi promulgada a lei sobre o casamento civil. Desde essa data, o único casamento válido aos olhos do Estado é o que é celebrado perante um oficial do registo civil com as formalidades que a mesma lei estabelece, o que não impede a mesma lei sobre o casamento civil de indicar que “os contraentes são livres de se submeterem ou não às exigências e formalidades que prescreve a religião à qual pertencem” (art.º 1.º, sub-alínea 1). Apesar disto, a lei sobre o estado civil estabelece que “se se procede a um casamento religioso sem que ele tenha sido previamente celebrado diante de um oficial do registo civil, os esposos deverão contrair este último antes da expiração de um prazo de oito dias após a celebração do primeiro casamento, excepto em caso de proibição ou de impedimentos legais” (art.º 43.º, sub-alínea 1). A inobservância do que precede é sancionada por uma multa (sub-alínea 2), obriga à celebração do casamento civil e, se este não se realizar, o que se opôs à sua realização é punido com diversas penas de prisão (sub-alínea 4). Como se reconhece agora a faculdade de celebrar os ritos “com a autonomia correspondente e a imunidade de coerção”, podemo-nos interrogar se estas disposições, que sancionam a lei sobre o registo civil, continuam em vigor. Por um lado, para os católicos, “não pode existir contrato matrimonial válido se não for ao mesmo tempo um sacramento” CIC 83, canon 1055 § 2) e as regras canónicas são formalmente reconhecidas pela lei sobre as organizações religiosas no seu artigo 20.º 37; podemo-nos, portanto, interrogar se, reconhecendo o direito de “celebrar os seus ritos ... e não ser entravado no exercício desses direitos” não se abre o caminho conducente ao reconhecimento por parte do Estado do casamento canónico. No entanto, é necessário ter em conta que uma coisa é a possibilidade aparecer agora como realizável e outra bem diferente é optar por essa possibilidade. No actual estado das coisas, a minha opinião é contrária a 47


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uma tal mudança; parece-me mais apropriado manter a situação que existe no Chile desde há mais de cem anos e que, actualmente, é largamente aceite. III) “Receber a assistência religiosa da sua própria confissão onde quer que se encontre. As formas e condições de acesso dos pastores e dos ministros do culto, para prestarem uma assistência religiosa aos centros hospitalares, às prisões e aos locais de detenção, aos estabelecimentos das forças armadas, às forças da ordem e de segurança serão regidas por regulamentos que ditará o Presidente da República, através dos ministérios respectivamente da Saúde, da Justiça e da Defesa Nacional” (art.º 6.º, alínea c). O tema da assistência religiosa da Igreja Católica às forças armadas é regido pela lei n.º 2 46338 que criou o serviço religioso na armada e na marinha, instituído primeiramente como vicariato militar39 e actualmente como episcopado militar40, cujos estatutos foram aprovados pela Santa Sé em 199741. Trata-se de uma lei concordatária42 cuja implementação prática requer o entendimento entre as duas partes interessadas. O Estado do Chile e a Santa Sé, que devem nomear de comum acordo o bispo militar. Em conformidade com isto, o Estado Chileno não pode proceder unilateralmente a nenhuma modificação dos seus elementos fundamentais. A regulamentação anunciada ainda não foi promulgada, mas não me parece possível que a solução passe pela integração pura e simples dos capelães das outras confissões ao serviço religioso actual das forças armadas, sem falar da dificuldade prática que isso implicaria. Em contrapartida, já se promulgou o regulamento sobre a assistência religiosa nos centros hospitalares43. IV) “Receber e dispensar um ensino ou uma informação religiosa por qualquer meio que seja; escolher por si – os pais para os menores não emancipados e os tutores para as pessoas incapacitadas de tomarem conta de si próprias e colocadas sob a sua guarda – a educação religiosa e moral que esteja de acordo com as suas próprias convicções” (art.º 6.º, alínea d). É uma das outras manifestações do segundo aspecto da liberdade religiosa, subentendendo-se que o primeiro é a liberdade relativa ao acto de fé. Reconhece-se, assim, a faculdade de ensinar livremente a religião que se professa e de receber esse ensino, de acordo com o direito à educação reconhecido pela Constituição no artigo 19.º, n.º 10, e com a liberdade de ensinar sancionada no artigo 19.º, n.º 11. É justo reconhecer que esta norma só veio explicitar um direito que se exerce desde há muito no Chile, 48


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pois que as diversas confissões religiosas puderam construir (colégios onde se educam os alunos na sua fé respectiva. Mais, além do facto que as classes de religião estão, desde há alguns anos, regulamentadas em geral nos colégios44, os programas de religião foram aprovados pelas diversas confissões religiosas, além da católica45: a metodista46, a judaica47, a luterana48, a baptista49, a evangélica50, a anglicana51 e a baha’ie52. Neste ponto, reconhece-se a faculdade de escolher “a educação religiosa e moral de acordo com as suas próprias convicções”. Pareceme, no entanto, que a referência à educação moral é um erro nesta lei, de acordo com o que disse anteriormente. Se, como eu o entendo, é possível distinguir a liberdade de consciência, a de pensamento e a liberdade religiosa, e que o objecto da liberdade de consciência é o acto moral, no entanto o da liberdade religiosa é o acto de fé, torna-se claro que a educação moral é estranha à liberdade religiosa. É verdade que geralmente uma religião conduz a uma concepção moral definida, mas uma e outra pertencem a esferas diferentes, permanecendo a educação moral protegida pela lei de consciência. Se uma moral pode encontrar a sua origem numa fé religiosa, é igualmente verdade que ela pode encontrar a sua origem numa problemática que não seja religiosa, caso em que se vê claramente que estes conceitos morais não podem ser protegidos pela liberdade religiosa. V) “reunir-se ou manifestar publicamente com objectivo religioso e associar-se para desenvolver comunitariamente as suas actividades religiosas, em conformidade com a regulamentação geral e com esta lei” (art.º 6.º, alínea c). Projecta-se sobre o factor religiosos o direito de reunião garantido na Constituição (art.º 19.º, n.º 13), de modo que o exercício desse direito se encontra limitado à forma prescrita pela Constituição nesta última norma: as reuniões serão pacíficas, não necessitarão de autorização prévia e deverão desenrolar-se sem armas, e quando se trate de reuniões em praças, nas ruas ou noutros lugares de uso público, elas serão regidas pelas disposições gerais de polícia. De igual modo, projecta-se no religioso o direito de associação, também ele garantido constitucionalmente (art.º 19.º, n.º 15); em virtude deste, ninguém poderá ser obrigado a pertencer a uma associação, e as associações religiosas que se criarão não poderão ser contrárias à moral, à ordem pública e à segurança do Estado. Esta faculdade de se associar para desenvolver comunitáriamente actividades religiosas pode realizar-se, seja seguindo o direito comum, seja segundo a lei própria às organizações religiosas, que considera diversas possibilidades53. 49


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Esta faculdade de se associar pode dar nascimento, no seio das confissões já existentes, a associações de facto ou tendo uma personalidade jurídica, erigidas como meio para atingir os seus próprios fins religiosos. Nada impede, contudo, ‘certo número de fiéis criem uma associação para exercer o seu direito à liberdade religiosa de modo autónomo e independente em relação à própria confissão religiosa. Mais, devido a que esse direito se pode exercer não apenas em conformidade com a legislação comum, mas também em conformidade com a lei sobre as organizações religiosas, em virtude desse direito, um grupo de pessoas pode criar uma nova confissão religiosa e obter a personalidade jurídica de direito público que a mesma lei prevê para esse caso, após ter satisfeito as exigências legais. 2. Faculdades colectivas a) Plena autonomia As faculdades colectivas, ou seja, as que são reconhecidas não pelos homens e as mulheres, a título individual, mas sim por organizações religiosas, são consideradas no artigo 7.º da lei das organizações religiosas. Esse artigo começa com uma afirmação decisiva: “Em virtude da liberdade religiosa e de culto, reconhece-se às organizações religiosas uma plena autonomia para o desenvolvimento dos seus próprios fins.” Quando virmos mais à frente a liberdade religiosa como um princípio director do direito eclesiástico chileno, descobriremos que em virtude deste último, o Estado do Chile se declara incompetente face ao acto de fé, de modo que a fé não releva do Estado. No entanto, isso não significa uma passividade face ao facto religioso, pois que compete ao Estado retirar os obstáculos e promover as condições para que a liberdade religiosa dos cidadãos e dos grupos religiosos seja real e efectiva, sendo o facto religioso um factor social que o Estado deve reconhecer e proteger. E, precisamente, porque o Estado se declara incompetente em matéria religiosa e considera o facto religioso como um factor social, entre outros, ele deve garantir às confissões a mais ampla autonomia para o desenvolvimento dos seus objectivos, sem intervir nas questões internas de cada uma delas, à excepção das limitações estabelecidas pela própria Constituição. A autonomia dos organismos religiosos, em todo o caso, não existe apenas em relação ao Estado, mas também em relação a outras pessoas e grupos. Mas esta autonomia existe em relação aos objectivos que lhes são próprios, ou seja, os que definem a sua originalidade. O que quer dizer 50


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que quando o organismo religioso assume outros objectivos que não lhe são próprios, mas que ele partilha com outros organismos que não são religiosos, como a educação ou a beneficência, cessa a posse de uma autonomia e deve manter-se sujeito, em tudo, às normas que o Estado estabeleceu para o desenvolvimento da educação ou da assistência social. Esta “plena autonomia para desenvolver os seus próprios fins” outorga aos organismos religiosos uma série de faculdades, das quais algumas são enunciadas pela lei, sem vontade limitativa, pois ela indica expressamente que essas faculdades, “entre outras” lhes pertencem. Ora segundo a artigo 5.º da lei, “cada vez que esta lei emprega o termo “organismo religioso”, deve-se entender que ela se refere às Igrejas, confissões e instituições religiosas de qualquer culto”. Para além disso, segundo o artigo 4.º da lei sobre o mesmo assunto, “entende-se por Igrejas, confissões ou instituições religiosas, os organismos compostos por pessoas que professam uma certa fé”. A lei não exige que se tenha uma personalidade jurídica para se ser considerado como um organismo religioso. É, portanto, possível a um grupo professando uma certa fé constituir-se em organismo religioso capaz de exercer os direitos que nós examinaremos sem tardar. Em alguns casos, contudo, para agir no quadro jurídico chileno – por exemplo, para fundar ou manter locais de culto -, as pessoas desse grupo deverão todas agir conjuntamente ou por meio de um mandatário que as representará a todas. b) Faculdades I) O direito de “exercer livremente o seu próprio ministério, praticar o culto, celebrar reuniões de carácter religioso, fundar e manter locais com essa finalidade” (art.º 7.º, alínea a). Visto que o culto e as reuniões religiosas não têm habitualmente lugar ao ar livre, reconhece-se-lhes a faculdade de fundar e manter locais com esse fim. A expressão “locais destinados a essa finalidade”, utilizada pela lei, é mais ampla que a utilizada pela Constituição, “templos e suas dependências”, o que parece evidente pois se as cerimónias do culto têm lugar habitualmente nos templos, as reuniões de carácter religioso podem ter lugar nos locais que não sejam templos nem suas dependência. Apesar de tudo, a isenção fiscal instituída na Constituição para os templos e suas dependências54 não cobre esses outros “locais” fundados e mantidos pelas organizações religiosas para aí se realizarem reuniões de carácter religioso. É claro que, no que se refere à construção e à manutenção de templos e de edifícios, eles permanecem submetidos em todos o pontos à legislação comum. 51


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II) O direito de estabelecer a sua própria organização interna e a sua hierarquia, habilitar, nomear, eleger e designar para os cargos e responsabilidades as pessoas competentes e determinar as suas denominações” (art.º 7.º, alínea b). Nenhuma disputa interna por motivos religiosos releva do Estado, a menos que ela implique delitos, caso em que a intervenção do Estado se revela necessária, não em razão da disputa religiosa enquanto tal, mas em razão do delito cometido. III) O direito de “enunciar, de comunicar e de difundir, pela palavra, por escrito ou por qualquer outro meio o seu próprio credo e manifestar a sua doutrina” (art.º 7.º, alínea c). Este direito encontra-se inteiramente submetido à legislação comum, nesse sentido podem-se criar os meios de comunicação social próprios e que parecerão oportunos. Quando se trata de meios de comunicação que não são os próprios, estes estarão submetidos à livre decisão daqueles que os dirigem para aceitar ou recusar a difusão dessas doutrinas, sem que se possa exigir a sua difusão por meio desses media. IV) O direito de “criar pessoas jurídicas conforme à legislação em vigor. Particularmente (...) fundar, manter e dirigir de modo autónomo instituições de formação e de estudos teológicos ou doutrinais, instituições educativas, de beneficência ou humanitárias” (art. 8.º, alínea a). Não se trata de uma das faculdades enunciadas a título de exemplo no artigo 7.º, mas de um outro direito reconhecido aos organismos religiosos e que se adiciona às faculdades do artigo 7.º. É claro que no caso de instituições educativas, humanitárias ou de beneficência, os organismos religiosos continuam submetidos ao direito comum, não apenas no que respeita à obtenção da personalidade jurídica das pessoas jurídicas de direito privado, mas também no que toca às exigências estabelecidas para promover cada uma dessas esferas de acção. V) O direito de “criar pessoas jurídicas de acordo com a legislação em vigor. Particularmente (...) criar, patrocinar e encorajar associações, corporações e fundações às quais elas podem participar, para a realização dos seus fins” (art.º 8.º, alínea b). Este direito também não figura no catálogo das faculdades indicado no art.º 7.º, mas é claro que se trata de um direito que se lhe reconhece. Trata-se de associações, de corporações e de fundações submetidas ao direito comum e, por isso mesmo, de pessoas jurídicas de direito privado, que elas podem não apenas criar, mas nas quais podem participar, podem patrocinar e encorajar. 52


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C. Limites ao direito à liberdade religiosa A Constituição do Chile garante, no seu artigo 19.º, n.º 6, o “livre exercício de todos os cultos que não se oponham à moral, aos bons costumes ou à ordem pública”. Assim, em princípio, as limitações que os constituintes impõem a este direito são em número de três. 1. A moral É nos mesmos termos que a Constituição de 1925 estabelecia os limites à liberdade de culto, consagrada pela primeira vez no texto legal. Comentando esta Constituição e referindo-se à moral, Silva Bascuñan55 escrevia que “a moral é a adequação dos actos do homem à finalidade que lhe é própria, segundo o que lhe revela a sua razão, com mais certeza quando ele é iluminada pela fé sobrenatural; será portanto imortal tudo o que ilumine a natureza racional do objectivo para o qual ela foi criada. No interior do bem comum dos seus componentes, cuja obtenção é o objecto da sociedade política, esta não pode aceitar manifestações que, num aspecto tão importante como o dos cultos que se rendem à Divindade, se oponha à moral.” E. Evans de la Cuadro, comentando a Constituição de 1980, exprime-se em termos similares56, quando diz que “a moral é a conformidade do que faz o ser humano com os imperativos que derivam da sua natureza racional”. Estes conceitos visam sobretudo a moral considerada do ponto de vista do indivíduo. A. Vodanovic57, pelo contrário, refere-se a isso num sentido mais social quando diz que nós devemos entender por moral “o conjunto de noções e de sentimentos que tem um povo num dado momento histórico, em relação com a ordem moral. É a maneira que tem um povo, num determinado momento histórico, de ressentir e de distinguir o bem do mal, o que é honesto do que é desonesto, o que é justo do que é injusto.” 2. Os bons costumes Comentando a Constituição de 1925, Silva Bascuñan entendia que “os hábitos colectivos que favorecem a realização dos actos virtuosos são os bons costumes; a sua manutenção interessa poderosamente à sociedade política, o que justifica que ela não admita o exercício de cultos que, em vez de os encorajar, dão lugar a vícios individuais ou colectivos.”. E. Evans de la Cuadro59, por seu lado, no seu comentário à Constituição de 1980 declara que os bons costumes se relacionam “com as práticas sociais 53


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geralmente aceites como admissíveis no plano da ética”, razão pela qual os bons costumes “não são senão uma expressão específica da atitude moral”. Tal teria sido a razão pela qual a Assembleia Constituinte de 1980 teria preferido referir-se apenas à moral, julgando inútil incluir o conceito dos bons costumes. A expressão, contudo, subsistiu no ante-projecto60, afim de não inovar em matéria de liberdade de cultos, respeitando, no essencial, a norma de 1925 e o modo específico que tinha presidido à sua concepção. Os dois conceitos têm a virtude da generalidade, que é igualmente retomada por R.Quijada61 quando define, em geral, os bons costumes como “os que são considerados como correctos pela moral social em vigor num tempo e numa sociedade determinada. Trata-se de um conceito sem precisão jurídica, mesmo se é adoptado por numerosas legislações, no que concerne ao carácter ilícito dos actos jurídicos.” O conceito de “bons costumes” é também utilizado no direito penal, se bem que circunscrito à esfera sexual62. Todavia, os bons costumes em direito penal são uma coisa, e os bons costumes como limitação à liberdade religiosa são algo muito diferente. Não é pois possível, em boa técnica interpretativa, de extrapolar o conceito penal, válido para este ramo do direito, a toda a regulamentação jurídica, pois poderão existir confissões que atentem aos bons costumes sem que os actos em questão respeitem aos delitos sexuais ou simplesmente à sexualidade. 3. A ordem pública Trata-se de uma noção clássica, mas que comporta um conceito complexo que Silva Bascuñan63 definiu como “a tranquilidade exterior que resulta do respeito da organização colectiva, em razão do exercício correcto da autoridade na sua esfera e da fiel execução pelos administrados das normas e das ordens que ela acorda”. E. Evans de la Cuadro64 entende que a ordem pública “é a concordância entre o comportamento dos administrados e a ordem institucional que, legitimamente regula a coexistência colectiva”. Os tribunais de justiça tiveram a oportunidade de se pronunciar65 sobre isto, compreendendo que “mesmo quando o conceito jurídico de ordem pública não aparece precisado na nossa legislação que, contudo, para aí remete tão frequentemente, não há dúvida que através da casuística do seu alcance legal e dos comentários dos diferentes autores, é possível deduzir que, por tal conceito, se deve entender a situação de normalidade e de harmonia existente entre todos os elementos de um Estado, obtido graças ao respeito exacto da sua legislação e, em particular, 54


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dos direitos essenciais dos cidadãos, situação de onde se elimina toda a perturbação das normas morais, económicas e sociais em vigor e que se conforma com os princípios filosóficos que norteiam o dito Estado”. Parece claro que existe uma relação directa entre a ordem pública e a tutela dos direitos fundamentais, na medida em que a ordem pública tem um sentido positivo, de protecção jurídica de um espaço de direitos e de liberdades. Todavia, parece-me que o conceito de ordem pública é mais vasto que esta tutela, mesmo se ele a inclui. 4. A segurança do Estado Os limites que vimos concernem expressamente, na Constituição, as liberdades de consciência, de pensamento e de religião. Esta última, contudo, além de uma dimensão individual, comporta, à diferença de outras liberdades, uma evidente dimensão colectiva e social, manifestada nas confissões religiosas que, como a pessoa jurídica considerada individualmente, estão sujeitas à liberdade religiosa. Assim, é necessário incluir entre as limitações à liberdade religiosa, segundo o texto constitucional, as que restringem o direito de associação garantido no n.º 15 do artigo 19.º, segundo o qual estão interditas “as associações contrárias à moral, à ordem pública e à segurança do Estado”. O termo “segurança” possui um conteúdo substancial que se tornou tradicional: “Se o contrário da segurança é a insegurança, o essencial da primeira é a ideia de estabilidade e de continuidade. É aí, precisamente, o que o direito postula para o Estado como entidade e para a sua organização institucional66.” Daí que se tenha definido a segurança do Estado67 como a condição da ordem e da autoridade que garante a paz, a estabilidade, a independência e a soberania do Estado, assim como a actividade tranquila e livre dos seus representantes, funcionários e empregados no exercício das suas funções”. Distingue-se a segurança interior da segurança exterior, e o Código Penal considera actos ilícitos que têm por objectivo a sua protecção: no primeiro caso, protege-se “o ser” e no segundo a “maneira de ser” do Estado68. Diferentemente do que se produz com os conceitos limitativos que vimos anteriormente, as expressões “segurança exterior” e “segurança interior do Estado” têm um alcance preciso, que advém dos próprios tipos que consagra o direito positivo. Em todo o caso, “as palavras “exterior” 55


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e “interior” não se referem em nada ao local de onde provêm os ataques contra os bens do Estado. Eles remetem apenas a duas projecções estaduais, assim que os poderes e os direitos que ela implica, sem que se possa sustentar que se trata de conceitos opostos, como transparece claramente no exame dos antecedentes históricos desta terminologia.” É por isso que os dois casos de figura podem produzir-se indistintamente no interior ou no exterior do país, com ou sem a intervenção de agentes exteriores69. 5. Outras limitações Até agora vimos as limitações do direito à liberdade religiosa que a Constituição chilena considera expressamente. Mas o texto constitucional também estabelece que “o exercício da soberania reconhece como uma limitação o respeito dos direitos essenciais que emanam da natureza humana. É dever dos organismos do Estado respeitar e promover tais direitos, garantidos por essa Constituição, assim como pelos tratados internacionais ratificados pelo Chile e que estão em vigor” (art.º 5.º, sub-alínea 2). Alguns desses tratados internacionais em vigor no Chile70 consideram como limitações possíveis à liberdade religiosa as que já mencionámos, mas acrescentam outras como as liberdades e direitos fundamentais de outros, assim como a saúde pública. É uma afirmação indiscutível que a tutela dos direitos fundamentais de terceiros limite legitimamente o exercício da liberdade religiosa. Em todo o caso, na minha opinião, convém lembrar que essa tutela, mesmo se entendida no conceito da ordem pública, não lhe esgota o sentido. A limitação em relação à saúde aparece como mais complexa, na medida em que, aqui, entram em jogo problemas tão actuais como as transfusões sanguíneas, as greves de fome ou os abusos contra a saúde cometidos por certas seitas. A única questão que foi apresentada perante os tribunais chilenos é a das transfusões sanguíneas, tema que abordei expressamente noutro lado71, ao analisar as sentenças proferidas sobre este tema no Chile. O critério unanime dos tribunais, até hoje, foi o de prevalecer o direito à vida sobre o direito à liberdade religiosa, ordenando aos centros hospitalares que pratiquem as transfusões, se bem que, num caso, o doente tivesse estado suficientemente consciente para se realizar o que pedia, ou seja, não receber a transfusão. 56


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6. Uma reflexão final sobre o tema das limitações Os conceitos que examinámos e considerámos, limitando o direito à liberdade religiosa, são conceitos genéricos, se bem que se possam delimitar nos casos concretos onde eles entram em jogo. Esta noção geral representa um risco evidente, pois a história não é avara em exemplos onde, em virtude da ordem pública, se justificaram violações abertas da liberdade religiosa. “Para que essas limitações não possam em caso algum ser aplicadas de modo arbitrário, ou seja, para evitar o recurso injustificado a pretensas razões de ordem pública, etc. é importante que a legislação do Estado ofereça garantias suficientes para controlar toda a eventual decisão que limite os direitos fundamentais, graças a medidas de carácter constitucional e jurídico72.” No Chile, o “recurso de protecção” é o meio mais apropriado para reduzir os riscos de abuso aos quais o emprego dessas limitações poderia dar lugar no exercício do direito à liberdade religiosa. D. Protecção penal da liberdade religiosa Quando o Estado professa e reconhece como autêntico um determinado credo religioso, a ofensa feita à Divindade ou ao seu culto é um atentado contra o próprio Estado e merece castigo. Esta concepção, todavia, evoluiu de modo que, mesmo quando uma religião oficial do Estado é reconhecida, ao sancionar esses delitos, protege-se na realidade o sentimento religioso dos cidadãos, qualquer que seja a religião professada, do mesmo modo que quando o Estado reconhece a liberdade religiosa. O Código Penal do Chile (1875) especifica de modo expresso alguns delitos “relativos ao exercício dos cultos permitidos na República” (art.os 138.º-140.º). Esses delitos foram especificados numa época em que o Chile, regido pela Constituição de 1833, reconhecia como religião oficial do Estado a religião católica apostólica romana, mesmo existindo uma atitude constante de tolerância por parte das autoridades para com as outras confissões religiosas; era autorizado de modo expresso, conforme o indicado previamente, por meio de uma lei interpretativa da Constituição, o exercício privado dos outros cultos, essa lei não fazia senão ratificar uma atitude que, de facto, era observada pelas autoridades. Por isso, apesar do carácter confessional da época, os delitos foram especificados de modo genérico e não exclusivamente em relação ao culto católico. Desse modo, os codificadores inspiraram-se no Código Penal belga com, todavia, sensíveis alterações. Os crimes e os simples delitos relativos ao exercício dos cultos permitidos na República são, no Código Penal, os seguintes: 1) o 57


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impedimento violento; 2) a perturbação tumultuosa; 3) o ultraje aos objectos de culto; 4) o ultraje ao ministro do culto. Podemos dividir estas quatro figuras em dois grupos de delitos, segundo atinjam a dimensão colectiva da liberdade religiosa, por um lado, ou os sentimentos religiosos, por outro. 1. Delitos atentatórios à dimensão colectiva ou individual da liberdade religiosa a) O impedimento violento: “ Quem, por violência ou ameaça, tiver impedido um ou vários indivíduos de praticar um culto permitido na República, será punido com reclusão menor no seu grau mínimo73” (art.º 138.º). Pode-se “impedir” o exercício de um culto tornando impossível a celebração de uma cerimónia ou de uma reunião religiosa pelos meios indicados. Mas o caso é também tomado em conta quando se interdita a uma pessoa em particular de assistir ou de participar. Contudo, não se pune a situação contrária, a saber, aquela que consiste em obrigar um cidadão a tomar parte num acto de culto, mesmo se essa conduta era especificada no Código Penal belga, tomado como modelo. Além dos casos indicados, o exercício de um culto pode ser impedido por um funcionário público, por meio de um acto de autoridade abusivo nesse sentido. b) A perturbação tumultuosa: “Sofrerão pena de reclusão menor no seu grau mínimo74e uma multa de seis a dez unidades tributárias mensais75 aqueles que, por meio de tumulto ou de desordem, tiverem impedido, atrasado ou interrompido o exercício de um culto que era praticado no local a ele destinado ou que sirva habitualmente para o celebrar, ou nas cerimónias públicas desse mesmo culto” (art.º 139.º, n.º1). “Impedir”, no seu sentido mais lato, significa tornar impossível ou extremamente difícil ou perigoso o exercício de um culto. “Retardá-lo” é provocar um começo posterior ao dia e à hora indicados para o seu início. “Interrompê-lo” é provocar a suspensão de uma cerimónia já começada, que esta possa recomeçar depois ou não. Neste caso, o meio utilizado é o “tumulto” ou a “desordem”, que podem consistir em algazarra, gritos, cânticos, gestos, movimentos bruscos ou outros comportamentos que impeçam, atrasem ou interrompam o desenrolar normal de um culto. A norma não exige necessariamente a presença de várias pessoas que tenham este comportamento, mas não é fácil imaginar um tumulto ou uma desordem provocadas por um único indivíduo. Se, pelo contrário, como é normal, várias pessoas intervierem, a responsabilidade de cada uma deverá ser 58


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determinada em separado e de acordo com as regras gerais. O culto impedido, retardado, ou interrompido pode ser uma actividade colectiva onde intervém uma pluralidade de fiéis, ou uma actividade individual onde intervém uma só pessoa, por exemplo a eucaristia celebrada em privado por um padre católico. 2. Delitos atentatórios dos sentimentos religiosos a) O ultraje aos objectos do culto: “Sofrerão a pena de reclusão menor no seu grau mínimo76 e uma multa de seis a dez unidades tributárias mensais77, os que, por acções, por palavras ou por ameaças, ultrajarem os objectos de um culto, seja nos locais a este destinados ou que sirvam habitualmente para o seu exercício, seja aquando das cerimónias públicas desse mesmo culto” (art.º 139.º, n.º 2). Esta lei tende a proteger o sentimento religioso como um valor subjectivo, sem tentar pronunciar juízos objectivos em matéria religiosa. De facto, na comissão de redacção, rejeitou-se uma proposta visando adicionar uma alínea relativa à profanação de objectos ou de locais destinados ao “culto público”, dito de outro modo, o culto católico que, na época, era a religião oficial do Estado. Assim, por “objecto de culto” devem entender-se “as coisas corporais que, no interior de um determinado ritual religioso, têm um valor simbólico ou cerimonial para além da simples materialidade78”. O verbo director neste caso é “ultrajar” que, em princípio, representa uma ofensa injuriosa realizada por meio de gestos ou de atitudes; a lei, no caso que analisamos, estendeu os meios de execução às acções – que compreendem os gestos -, palavras e ameaças. Assim, o ultraje consistirá em manifestar por esses meios, desprezo, zombaria ou grave falta de respeito para com as pessoas que se servem dos objectos destinados ao culto. Apesar de tudo, o ultraje não pode produzir-se senão nos locais e nas ocasiões às quais a lei se restringe: a) locais destinados ao culto; b) locais que servem habitualmente ao exercício de um culto; c) cerimónias públicas de um culto. Trata-se de locais e de ocasiões onde sem equívoco os objectos servem à manifestação das convicções. b) O ultraje ao ministro de um culto: “Sofrerão a pena de reclusão menor no seu grau mínimo 79 e uma multa de seis a dez unidades tributárias mensais80, os que por acções, palavras ou ameaças, ultrajam o ministro do culto no exercício do seu ministério” (art.º 139.º, n.º3). O artigo 140.º prossegue graduando a pena segundo os atentados dos quais possa eventualmente ser vítima a pessoa do ministro. Este caso, à semelhança do precedente, protege o sentimento religioso, pois que a protecção não é oferecida ao ministro como simples pessoa, mas enquanto ministro do 59


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culto, estando entendido que este delito não é cometido a não ser quando o ministro age “no exercício do seu ministério”. É ministro de um culto a pessoa que é consagrada ao serviço deste e que, nas cerimónias públicas ou nas reuniões dos fiéis, dirige estes últimos e os representa perante a Divindade ou representa a Divindade perante os fiéis. Em conformidade com a lei n.º 19 638 sobre os organismos religiosos, “os ministros do culto de uma Igreja, confissão ou instituição religiosa acreditarão a sua qualidade de ministros por meio de um certificado emitido pelo seu organismo religioso através da pessoa jurídica respectiva” (art.º 13.º). O verbo director neste caso é o mesmo que no caso precedente, a saber, o ultraje por meio de acções, de palavras ou de ameaças. Mais, o ultraje pode fazer-se “por via de facto, exercendo violências físicas sobre a pessoa do ministro chegando a vias de facto”; esta expressão compreende os golpes desferidos com as mãos, os pés ou com armas. A pena incorrida pelo simples facto de “chegar a vias de facto” é suficientemente pesada mesmo se a violência não tem consequências qualificáveis de ferimentos e sim de “ofensas” – palavra utilizada no artigo 140.º, sub-alínea 1 - implica feridas ligeiras. A agravação aumenta segundo se trate de ferimentos ligeiros, graves, muito graves81 ou a morte do ministro do culto. Se os ferimentos são ligeiros não se aplica a clausula agravante do artigo 401.º, que sanciona com uma pena mais pesada os ferimentos menos graves infligidos, entre outros, aos padres, pois esta clausula é considerada como agravante apenas nos delitos de ferimentos, e não no delito de ultraje ao ministro de um culto agravado por ferimentos. Segundo A. Etcheberri82, a análise da subjectividade desta última hipótese merece uma atenção especial, porque ela apresenta problemas particulares, na medida em que a punição prescrita para violências que impliquem ferimentos ou a morte é superior à que corresponde a esses mesmos delitos cometidos intencionalmente. Depreende-se daí que esta infracção é sempre considerada como um delito contra o livre exercício dos cultos, justificando-se a mais forte punição pelo duplo bem jurídico posto em causa: a pessoa do ministro e o sentimento religioso. O delito, por consequência, conserva a sua estrutura fundamental: deve tratar-se de um ultraje ao ministro de um culto enquanto tal, ou seja, de uma manifestação de desprezo ou de ódio em relação ao culto através da pessoa do ministro. De modo que se a agressão teve lugar sob esta forma, aplicar-se-ão as penas do artigo 140.º nos respectivos casos, a menos que em relação aos resultados, o facto tenha ocorrido em situação de intencionalidade – directa ou eventual – de falta – consciente ou inconsciente – ou, mesmo, 60


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de circunstância fortuita, caso em que se trataria de um delito qualificado pelo resultado. Pelo contrário, se a agressão se exerceu contra o ministro de um culto enquanto pessoa, sem considerar a sua qualidade de ministro, a agravação pelos resultados dependerá das características do dolo ou da falta das lesões e será considerada como um concurso ideal ou material de meio para atingir os fins. 3. Actividades delituosas cometidas por membros de seitas Eu abordei expressamente este tema numa outra obra83, de onde extraio alguns elementos que me parecem mais úteis para esta rubrica. a) Delitos e sanções O quadro penal deve ser o último recurso da sociedade na luta contra as seitas. A acção do Estado neste sentido deve ser precedida de medidas de controle e de vigilância, que, protegendo os cidadãos, impeçam as seitas ou os seus adeptos de violarem os direitos que o próprio Estado deve proteger. Na doutrina penal, é corrente indicar-se que uma das características do direito penal dos Estados democráticos modernos é o princípio da intervenção mínima “ultima ratio” na defesa dos direitos e das liberdades das pessoas. Fora desta solução que fornece o direito penal, ficam toda uma série de controles administrativos ou judiciários para as acções eventualmente prejudiciais a esses grupos.84. Se, apesar de tudo, a violação teve lugar, a resposta do Estado deve ser vigorosa. Pela sua própria natureza, os novos movimentos religiosos evoluem num meio específico, o meio religioso. Contudo, a maioria dos delitos de que os acusam transgridem valores estranhos ao meio religioso. Como se trata de delitos que qualquer pessoa pode cometer, quer seja ou não membro de um movimento religioso, o castigo incorrido por esses delitos será idêntico ao que atinge qualquer cidadão, ou seja, far-se-á abstracção da sua filiação religiosa. Os delitos comuns imputados às seitas encontram-se todos definidos no nosso Código Penal ou em leis penais particulares: coacção, ameaças (art.os 296.º e 297.º), atentados à liberdade e à segurança das pessoas (art.os 141.º - 147.º), rapto (art.os 358 - 360.º), homicídio (art.os 390.º - 393.º), ferimentos corporais (art.os 395.º - 403.º), calúnia (art.os 412.º - 415.º), burla (art.os 467.º - 473.º), tráfico de drogas (lei n.º 19366, decreto n.º 565, de 26 de Janeiro de 1996, do Ministério da Justiça), fuga de divisas, delitos do trabalho relacionados com os horários de trabalho, os salários, os pagamentos provisionais, etc. Assim, a sanção dos delitos comuns cometidos por prosélitos das seitas far-se-á segundo a legislação comum. Existem, no entanto, certos delitos que, ao contrário dos precedentes, 61


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atingem mais especialmente o valor da religião e da liberdade religiosa. Com efeito, uma das acusações que, em direito comparado, é lançada contra certas seitas concerne o proselitismo destas, ou seja, os métodos de captação dos seus membros: “Fala-se da utilização de pressão psicológica que anula a vontade do indivíduo aquando da tomada de decisão de integrar a seita ou de controle mental uma vez que pertence a ela. Conta-se até um tipo de conduta comum a essas seitas, que, combinando o isolamento da vítima, a informação massiça, um regime alimentar particular e a privação de sono, acabam por reduzir as suas faculdades afim de controlar e manipular o indivíduo85. Entre os autores espanhóis afirma-se – o que nos parece válido em geral – que, tratando-se dos meios de captação, deve-se respeitar todos os que são empregues, à condição que eles se situem nos limites da liberdade religiosa, caracterizada pelos direitos e liberdades dos outros e pela salvaguarda da saúde, da segurança e da moral pública. Caso contrário, desde o momento em que o proselitismo pressupõe pressões, coacções ou ameaças e, bem entendido, quando aparece sob a forma mais subtil da “lavagem cerebral”, deve ser considerado como ilícito. A novidade dos métodos e das técnicas que atentam contra a liberdade da pessoa deveria fazer-se acompanhar de meios de defesa e de sanção equivalentes no sistema jurídico do Estado. O Código Penal do Chile, como acabámos de ver, sanciona os delitos relativos ao exercício dos cultos permitidos na República (art.os 138.º e 140.º), mas não existem normas que rejam o proselitismo ilegal, como é o caso no direito comparado. Se o principal problema dos novos movimentos religiosos não é tanto a sua existência – facto que não é historicamente novo – mas sim os métodos que eles empregam na difusão das suas doutrinas e na incorporação dos seus adeptos, parece útil determinar esta conduta quando ela assume características delituosas, ou seja, quando ela atenta contra a liberdade ou a segurança das pessoas, delito que não existe actualmente no Chile. b) Entrada em vigor da lei das seitas O artigo 292.º do Código penal do Chile estabelece que toda a associação constituída no sentido de atentar contra a ordem social, os bons costumes, as pessoas ou as propriedades “implica um delito que existe pelo simples facto de se organizar”, o que implica a punição dos chefes, dos que aí exerceram o comando, dos que suscitaram essa associação (art.º 293.º) e de todo o indivíduo que aí tenha participado, assim como daqueles que, ciente e voluntariamente, lhe tenham fornecido os meios e os instrumentos para cometer crimes ou simples delitos, um alojamento, um esconderijo ou um local de reunião (art.º 294.º). É igualmente sancionado 62


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o que, tendo tido informações verosímeis dos planos ou das actividades desenvolvidas por um ou diversos membros de uma associação ilícita, não os leve oportunamente até ao conhecimento das autoridades (art.º 295.º bis). As normas anteriores, que introduzem a sanção dos dirigentes da associação, são completadas pelas que comportam a anulação da sua personalidade jurídica, o que é agora regido pela lei dos organismos religiosos relativa às confissões que obtêm a personalidade jurídica de direito público que esta lei institui. Segundo ela, a dissolução de uma pessoa jurídica constituída em conformidade com esta lei pode ser efectuada em conformidade com os seus próprios estatutos “ou em aplicação de uma sentença judiciária firme, oriunda de uma acção empreendida a pedido do Conselho de Defesa do Estado, o qual poderá agir de ofício ou a pedido das partes, nos casos correspondentes” (art.º 19.º, sub-alínea 1). Uma vez dissolvida a pessoa jurídica proceder-se-á à sua eliminação no registo público (art.º 19.º, sub-alínea 2). O organismo religioso que não solicite ou não obtenha este registo e, consequentemente, a personalidade jurídica de direito público, e que possua anteriormente ou tenha adquirido posteriormente a personalidade jurídica de direito privado em virtude da liberdade de associação, pode ver anulada a sua personalidade jurídica por um decreto do Presidente da República “desde o instante em que ele o considere contrário às leis ou aos bons costumes, ou devido a inobservância dos objectivos para os quais tenha sido constituído, ou porque cometeu infracções graves contra os seus estatutos”. O próprio Ministério da Justiça poderá proceder à realização do inquérito correspondente para verificar os factos que justifiquem a anulação ou fazê-lo através de outros órgãos do Estado (art.º 25.º, regulamento respeitante à pessoa jurídica)86. Será esta medida efectiva? Infelizmente, a resposta não é muito positiva. A regra jurídica existe, mas, aparentemente, falta a vontade de a pôr em prática. Apesar de tudo, alguns exemplos recentes provam que ela pode ser praticada87. III. A liberdade religiosa como princípio Um dos temas centrais do direito eclesiástico do Estado é o que se relaciona com os princípios que o norteiam, ou seja, “os valores superiores ou as ideias fundamentais que inspiram a regulamentação do factor religioso nos estatutos jurídicos88.”. O tema é muito importante como o mostra o facto de que ele é abordado expressamente por quase 63


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todos os tratados89 e manuais90 de direito eclesiástico que foram escritos em Espanha. Partindo do princípio que é possível falar actualmente de um direito eclesiástico do Estado do Chile, parece-me igualmente possível abordar a liberdade religiosa não mais enquanto um direito, mas como princípio orientando a actividade do Estado Chileno em matéria religiosa. O primeiro a ter abordado este assunto de modo exaustivo e, na minha opinião, ainda inigualado, foi Pedro Juan Viladrich, com o primeiro tratado de direito eclesiástico do Estado publicado na esfera universitária espanhola91; os outros autores que escreveram sobre este tema seguiramno, de uma maneira geral92. Não é aqui o lugar para teorizar sobre o tema dos princípios directores, matéria para a qual remeto à excelência de Pedro Juan Viladrich. Considerando, portanto, como adquiridas as noções gerais sobre estes últimos, dirigirei brevemente a minha atenção para a liberdade religiosa como princípio no aparelho jurídico chileno. A. Uma clarificação conceptual Quando nos referimos à liberdade religiosa como direito fundamental, como fizemos no parágrafo precedente, a nossa atenção debruça-se sobre um direito concreto, natural, inviolável, imprescritível e inerente à pessoa humana, e que, ao mesmo tempo que outros direitos, constitui o património jurídico de base, radical, face à sociedade e ao Estado. Nesta perspectiva, a liberdade religiosa enquanto direito fundamental contém uma ideia ou uma definição da pessoa. Pelo contrário, quando nos referimos à liberdade religiosa como princípio director, a nossa atenção dirige-se para uma característica do direito eclesiástico e do próprio Estado, os quais se encontram estruturados de um modo bem preciso em resposta às exigências que nascem do princípio. Nesta perspectiva, a liberdade religiosa contém uma ideia ou uma definição de Estado93. A Constituição de 1925 foi decretada num momento em que o direito religioso ainda não figurava entre as declarações universais e regionais dos direitos, que só apareceram mais tarde. É por isso, e mesmo que a liberdade religiosa ocupasse o seu lugar nas declarações dos direitos do fim do século XVIII, a Constituição de 1925 limitou-se a consagrar a separação da Igreja e do Estado. Pelo contrário, a Constituição de 1980 foi decretada quando o direito à liberdade religiosa já estava universalmente consagrado, não apenas no direito constitucional comparado, mas também em documentos internacionais sobre os direitos do homem subscritos oficialmente pelo Chile. Assim, mesmo que o conteúdo do 64


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artigo respectivo da Constituição de 1925 tenha sido conservado quase literalmente na de 1980, esta última Constituição consagra entre outros, o direito à liberdade religiosa. É por isso que a lei n.º 19 638 sobre os organismos religiosos (1999) pôde afirmar, no seu artigo primeiro, que “o Estado garante a liberdade religiosa e de culto nos termos da Constituição política da República”, e, sobre as suas bases, desenvolver nos seus artigos 6.º e 7.º os conteúdos da liberdade religiosa, conforme vimos anteriormente. B. O princípio da liberdade religiosa no direito eclesiástico do Estado Chileno Convém ver se é possível encontrar o princípio da liberdade religiosa, entendido como o faz a doutrina eclesiástica, enquanto princípio fundador dos actos do Estado do Chile face ao religioso na sua dimensão social. Nós partimos do princípio de que o direito fundamental à liberdade religiosa se encontra reconhecido e garantido na nossa Constituição. Mas será possível salientar nesta ou, em geral na nossa legislação, os elementos que nos permitem afirmar a existência, no direito chileno, desse princípio da liberdade religiosa? A minha resposta a esta questão é afirmativa, não apenas porque a Constituição em vigor reiterou a rejeição do Estado do Chile ao carácter confessional do Estado, mas também porque a acção do Estado Chileno e a legislação publicada ultimamente mostram até que ponto o Estado Chileno se deixa nortear na sua acção em matéria religiosa, pelo princípio da liberdade religiosa. Refiro-me à lei n.º 19 638, que estabelece normas sobre a constituição jurídica das Igrejas e das organizações religiosas. Esta lei contém dois grupos de normas regulando dois temas diferentes, se bem que inteiramente ligados: por um lado ela explicita o conteúdo do direito fundamental à liberdade religiosa garantido na Constituição (art.º 6.º e 7.º) e, por outro lado, ela regulamente as diversas modalidades da personalidade jurídica que podem ter os organismos religiosos (art.os 8.º - 20.º). Na minha opinião, e deixando de lado as imperfeições técnicas da lei, o princípio que anima este segundo bloco de normas reguladoras da personalidade jurídica consiste, precisamente, em afirmar com firmeza que o Estado do Chile é absolutamente incompetente em matéria religiosa; incompetente, ao ponto de não se poder considerar em condições de qualificar os conteúdos religiosos das doutrinas sustentadas pelos organismos que solicitam a sua inscrição como confissões religiosas e, até, estabelecer a estrutura de organização que cada uma delas desejará 65


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possuir, o que elas fazem hoje de modo totalmente autónimo94. Ao enfrentar esse tema tão importante da dimensão social da religiosidade dos cidadãos, esta lei, na minha opinião, teve o efeito de fazer agir o Estado Chileno unicamente enquanto Estado, assumindo a tarefa de promover o religioso, mas sem assumir uma qualquer atitude religiosa. Decorre claramente da sua legislação que o Estado Chileno não coage os seus cidadãos em matéria religiosa, como também não toma o seu lugar nem coopera com eles, contentando-se em desempenhar o papel que lhe incumbe enquanto Estado. Nesta perspectiva, a lei das organizações religiosas constitui um marco importante na nossa legislação eclesiástica, pois ela esclarece até que ponto o princípio da liberdade religiosa é o que anima e determina a atitude do Estado Chileno face ao fenómeno religioso. Desde a Constituição de 1925, a liberdade religiosa foi compreendida no Chile como um direito director. No meu ponto de vista, a lei das organizações religiosas representou um avanço de singular importância, visto que, conservando o reconhecimento da liberdade religiosa como garantia constitucional de um direito fundamental, ela introduziu a liberdade religiosa como princípio fundamental do direito eclesiástico chileno. Graças a isso, a nossa legislação seguiu de perto os progressos que foram realizados em matéria de liberdade religiosa nas últimas décadas, o que é motivo para nos felicitarmos. É verdade que a lei apresenta deficiências técnicas, explicáveis em grande parte pelo desenvolvimento recente do direito eclesiástico no nosso país, mas isso prova também de modo explícito que o princípio da liberdade religiosa está a orientar o Estado nessas matérias. E é importante que se tome consciência disso, pois, precisamente, os problemas que suscita a própria lei – tais como o difícil equilíbrio entre o exercício do direito fundamental à liberdade religiosa em matéria de personalidade jurídica e os abusos que se podem cometer apoiando-se nela - deverão ser resolvidos pelas autoridades tendo em conta esse princípio, que, definindo a atitude fundamental do Estado do Chile em matéria religiosa, realça os restantes princípios que deverão ser estudados noutras circunstâncias. O que precede permite-me de compreender, consequentemente, que a Constituição de 1980, mesmo conservando em matéria religiosa o texto da Constituição de 1925, excepção feita a algumas alterações menores, escolheu enquanto função de primeiro princípio director definindo o Estado do Chile em matéria religiosa o da liberdade religiosa, o que me parece conduzir às seguintes consequências imediatas: 66


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1. Ela quebra a ideia tradicional que consiste em conceber o carácter confessional ou a laicidade do Estado como os extremos opostos de uma mesma linha, como as alternativas pendulares e contraditórias da atitude do Estado face ao religioso. A Constituição de 1980 rompe o binómio contraditório confessional-laico e propõe uma nova alternativa: o primeiro princípio que define o Estado em matéria religiosa é o princípio da liberdade religiosa, substituindo o da confissão do Estado que impregnou as nossas Constituições durante todo o século XIX e os primeiros anos do século XX95. 2. A Constituição aceita também o princípio da laicidade, mas ela concebe-o com um conteúdo e uma função muito diferentes em relação aos que são habituais, no sentido próprio ao século XIX, de “laicidade do Estado”. Deste modo, é o princípio da liberdade religiosa que define a atitude do Estado do Chile, como entidade, face à fé religiosa, e não o da laicidade, princípio que, submetido ao da liberdade religiosa, vem a significar a natureza e os limites da responsabilidade do Estado na garantia e na promoção do factor religioso como fazendo parte do bem comum da sociedade. 3. Aceitando como princípio primário o da liberdade religiosa, a Constituição resolve desde logo, de modo mais ou menos profundo e mais sólido, o fundamento, as garantias e os limites do direito fundamental à liberdade religiosa, o que não aconteceria se ela tivesse optado, como princípio fundamental primário, por ser não confessional. Isto merece uma explicação. Num regime confessional, tal como existia no Chile até 1925, o princípio confessional impede, por definição, que o primeiro princípio definindo o Estado em matéria religiosa seja o de liberdade religiosa. “Os dois princípios, entendidos como critérios de organização cívica e de definição do Estado, são incompatíveis entre eles. Não se passa o mesmo com o direito à liberdade religiosa. Em teoria e na prática, existe lugar para a coexistência de um Estado confessional que reconheça o direito fundamental à liberdade religiosa96. É por isso que “nos sistemas confessionais, na própria medida em que o ser confessional se constitui em princípio primário da definição do Estado, o direito civil à liberdade religiosa é limitado pelo facto de ser confessional, cuja protecção prevalece (...) sobre a do direito97”. Dito de outra forma, a esfera do direito à liberdade religiosa tende sempre a ser fixada pelo princípio primário – qualquer que seja – que define o Estado face ao religioso. Contudo, isso não acontece apenas nos sistemas confessionais, pois também aparece com nuanças próprias, nos 67


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Estados que se declaram laicos com a mesma solenidade com que outros se declaram confessionais, atribuindo à laicidade o papel de primeiro princípio definindo a atitude do Estado em relação ao factor religioso. IV. Algumas reflexões finais Nas páginas precedentes concentrei a minha atenção na liberdade religiosa na sua dupla dimensão de direito e de princípio. É evidente que a atenção que o Estado Chileno presta ao fenómeno religioso, na sua dimensão social, vai para além do que eu indiquei nas páginas precedentes, mas uma visão mais completa e detalhada faria o objecto de um tratamento mais desenvolvido da parte do direito eclesiástico do Estado, o que ultrapassa o propósito deste trabalho. Apesar de tudo, a liberdade religiosa nos termos estudados, entendida como direito e como princípio, é o quadro jurídico que delimita todo o tratamento que o direito do Estado do Chile faz da religiosidade dos seus cidadãos enquanto factor social. A partir desse quadro podem-se fazer algumas reflexões finais: 1. Desde a sua independência (1818) e até 1925, ou seja durante mais de um século, o Chile foi um país confessional católico. Todavia, este carácter confessional não o impediu de reconhecer, primeiro de facto, mas depois de jure, outras confissões a quem permitiu a acção no país, com um reconhecimento jurídico, se bem que com um regime manifestamente diferente do da religião oficial. Esta situação prolongou-se até 1925, ano em que, com uma nova Constituição, foram estabelecidas a liberdade dos cultos e, de um modo amigável, a separação entre a Igreja e o Estado. A Constituição de 1925 não falou de liberdade religiosa e, se é verdade que de jure a liberdade dos cultos era reconhecida, a presença e a importância da religião católica permanecia incontornável, pois que o que se chamava outrora “dissidentes” constituía uma minoria da população; entre essas confissões, as mais numerosas eram os evangélicos e os protestantes que, sociologicamente, se situavam entre os grupos com menos recursos. Esta situação prolongou-se até aos anos sessenta do último século, quando começou a produzir-se, por um lado, o desenvolvimento no Chile de grupos religiosos estrangeiros não católicos que empreenderam um vigoroso trabalho de proselitismo e de captação de adeptos entre as classes médias da sociedade, como os mormons ou as testemunhas de Jeová. Por outro lado, é preciso contar com o desenvolvimento de grupos evangélicos e protestantes, que começaram a ultrapassar a sua esfera habitual para se espalharem pelas classes médias; esta situação foi 68


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favorizada pelo desenvolvimento geral que o país conheceu na segunda metade do século. Tudo isto levou a uma tomada de consciência crescente – particularmente entre os evangélicos e os protestantes – da situação juridicamente diferenciada que era a sua em relação à Igreja católica e, consequentemente, o desejo de alcançarem a igualdade jurídica. O centro da discussão religiosa desses últimos anos no Chile andou em torno da personalidade jurídica das confissões evangélicas, discussão que elas indiscutivelmente inspiraram. Tornou-se evidente que a Igreja católica – e mais tarde a Igreja ortodoxa – tinha uma personalidade jurídica de direito público, enquanto que as restantes confissões tinham uma personalidade jurídica de direito privado. Mas também se evidenciou que, entre umas e outras, não existia nenhuma diferença quanto à sua capacidade de agir no sistema jurídico chileno. Noutros termos, a discussão não visava a obtenção de novos espaços ou capacidades de acção, mais sobretudo a de uma qualidade – pessoa jurídica de direito público – que não ia trazer-lhes vantagens substanciais98. O desejo era somente de ter um estatuto jurídico similar ao da Igreja católica. É por isso que alguns dos projectos apresentados a partir de 1990, depois da instalação do Congresso Chileno, tendiam a satisfazer esta pretensão do mundo evangélico e protestante, a saber outorgar-se-lhes – e apenas a eles – uma personalidade jurídica de direito privado99. Finalmente, o projecto foi mais abrangente, pois aspirava a estabelecer “normas sobre a constituição jurídica e o funcionamento das Igrejas e organizações religiosas” em geral100. Mas o militantismo que os grupos evangélicos tinham tido até esse momento era retomado de modo expresso no projecto101. Este último projecto esteve na origem da lei n.º 19 368, à qual já me referi neste trabalho numerosas vezes102. Trata-se de uma lei geral que não menciona os evangélicos nem os protestantes, mas que, sem dúvida, se aplica a eles. No entanto, esta lei não se aplica à Igreja católica103, nem à Igreja Ortodoxa, para o que diz respeito à obtenção da personalidade jurídica de direito público, pois ambas a conservam, gozando já dela, o que é reconhecido na mesma lei (art.º 201.º104). Todavia, o resultado não foi uma equivalência completa – aos olhos do direito chileno – entre as Igrejas e as confissões, porque esta lei, mesmo se ela outorga às confissões religiosas a personalidade jurídica de direito público, introduziu na regulamentação jurídica chilena uma nova modalidade de pessoa jurídica de direito público – unicamente aplicável 69


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às confissões religiosas regidas por ela – que, mesmo se ela se aproxima da anterior, não a torna equivalente. Na prática, isso significa que a igualdade, à qual aspiravam tão fortemente as confissões evangélicas, não foi atingida, se bem que tenha havido uma aproximação notável105. Por exemplo, a Igreja católica conserva a possibilidade de concluir acordos com o Estado do Chile pela via tradicional das concordatas ou através das novas modalidades surgidas nesse tipo de relacionamento, o que não podem fazer as outras confissões religiosas, porque a lei não prevê essa possibilidade. Por outro lado, a anulação da personalidade jurídica da Igreja católica exige, pelo menos, uma lei da República106, o que não é o caso das outras confissões, pois que basta a sentença de um juiz numa instrução aberta pelo Conselho de Defesa do Estado. Isto não representa uma entorse à igualdade proclamada pela Constituição (art.º 19.º, n.º 2), porque mesmo que “no Chile não existissem pessoa ou grupo privilegiados (...) e que nem a lei nem nenhuma autoridade pudessem estabelecer diferenças arbitrárias”, a própria Constituição reconhece que podem existir diferenças, à condição que elas não sejam arbitrárias. E é o que acontece neste caso. 2. A lei dos organismos religiosos, finalmente aprovada, ultrapassou, como se pode observar, as motivações que estavam na origem da sua promulgação. Ela teve a virtude de introduzir o conceito de liberdade religiosa nas disposições jurídicas e desenvolveu os conteúdos mais elementares destas, seguindo de perto os tratados internacionais sobre os temas que estão em vigor no Chile. Na minha opinião, o seu principal mérito, contudo, é de ter feito da liberdade religiosa o princípio director mais importante da acção do Estado em relação ao religioso como factor social. Assim, a liberdade religiosa não é apenas mais um conceito que foi introduzido no património jurídico chileno, não é apenas um direito protegido pela Constituição e pela lei, mas, o que também é importante, é o princípio que deve orientar no futuro a acção do Estado em matéria religiosa. Tudo isto representou um avanço importante no que concerne à liberdade religiosa no Chile. Contudo, subsistem problemas que merecem um maior interesse. Alguns tiverem origem na própria lei de que falámos. O primeiro deles é o próprio conceito de confissão religiosa que figura na lei. Em geral, o direito mostrou-se muito prudente quando se trata de formular um conceito de “religião” ou de “confissão religiosa” nos textos legais, por causa da própria dificuldade que supõe esse conceito107. 70


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Esta lei, contudo, forneceu um conceito legal, entendendo “por Igrejas, confissões ou instituições religiosas os organismos compostos de pessoas que professam uma certa fé” (art.º 4.º), conceito completado pelo artigo seguinte, segundo o qual “cada vez que esta lei emprega o termo “organismos religiosos” entende que ela faz referência às Igrejas, confissões e instituições religiosas de qualquer culto” (art.º 5.º). A amplitude do conceito salta aos olhos, pois a lei deixa a cada confissão religiosa o cuidado de se auto-definir enquanto tal, cingindo-se o Estado a registar as que se auto-qualificam “de organismos religiosos”, sem que a lei lhe forneça meios mais amplos para rejeitar, por aspectos de fundo, uma inscrição religiosa. A coisa complica-se ainda mais pelo facto de que, durante a elaboração da lei, eliminaram-se os artigos que, seguindo o modelo espanhol, excluíam da aplicação desta os grupos que se consagravam a práticas psíquicas, parapsicológicas, mágicas ou satânicas108. Reside aí um dos aspectos da lei que foi mais criticado. Por este meio, a porta está aberta às seitas mais destrutivas que, habitualmente se auto­‑qualificam de “religiosas”, podendo assim adquirir no Chile a qualidade de pessoas jurídicas de direito público e obter não apenas as garantias económicas e fiscais que a lei reconhece aos organismos religiosos, mas, pior ainda, o apoio do estado concernente à sua qualidade religiosa, o que facilita o seu trabalho de engano junto do público. Um outro problema colocado pela lei é o reconhecimento pelo Estado Chileno – de acordo com o artigo 9.º desta lei109 – de pessoas jurídicas constituídas no interior de uma confissão religiosa quando “as suas normas jurídicas próprias” permitirem essa constituição. Trata-se de um artigo redigido em relação com o direito canónico, mas que, de facto, não se aplica à Igreja católica. Eu sou de opinião que é preciso revogar este artigo ou entendê-lo como aplicando-se às confissões religiosas que têm uma regulamentação jurídica semelhante ao direito canónico, tais como o direito anglicano ou ortodoxo110. Não o entender assim abre a porta a abusos insuspeitos por parte de grupos sectários, além do facto de que ele introduz uma desigualdade arbitrária entre essas pessoas jurídicas constituídas no interior de uma confissão religiosa e as que estão constituídas pelo Estado Chileno, pois as primeiras seriam isentadas dos controlos estritos aos quais estas últimas devem sujeitar-se junto das autoridades administrativas para obter a dita personalidade111. 3. A publicação da lei dos organismos religiosos mostrou que os organismos que obtiveram a sua personalidade jurídica de direito público 71


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são já numerosas112. Uma olhadela geral aos estatutos aprovados pelos organismos religiosos113 mostra desde logo a aplicação parcial que é feita da norma que permite a esses organismos religiosos de definirem a estrutura e a hierarquia que pareçam as mais apropriadas aos seus fins. Se existe algo de comum entre um bom número delas, é a falta de originalidade dos seus estatutos, tendo-se a impressão que eles se contentaram em recopiar os estatutos que tinham quando eram pessoas jurídicas de direito privado ou, se não o eram, que seguiram o modelo desses estatutos. Em numerosos casos, a profissão de fé é a única coisa que permite observar diferenças entre esses organismos religiosos de direito público e qualquer outra associação de direito privado. Todavia, alguns há que fazem prova de uma maior originalidade nos seus estatutos e na sua configuração como, por exemplo, os organismos pentecostais. Parece-me que é necessário procurar a explicação deste fenómeno, pelo menos em parte, na fraca tradição e na criação recente de um grande número desses novos organismos. A maioria deles apareceram e desenvolveram-se durante o século XX, a coberto das normas do direito chileno que, anteriormente à lei dos organismos religiosos, lhes permitia de se constituírem em pessoas jurídicas de direito privado, adoptando a configuração que a lei fixava, o que, aparentemente, não os incomoda; é por isso que eles não sentem a necessidade de produzirem uma estrutura diversa e original. Pelo contrário, os que têm uma história mais antiga apresentam uma organização mais original e mais adaptada às suas próprias especificidades. O apego excessivo de algumas confissões ao aspecto económico chama igualmente a atenção. A um ponto que em algumas delas, o membro que tem três meses de atraso no pagamento das suas cotizações – frequentemente sob a forma de dízimo – se encontra suspenso de todos os seus direitos, ou mesmo expulso da comunidade, se o atraso é de dez meses consecutivos. Se as confissões religiosas têm por finalidade ver os seus fiéis a viverem intensamente a sua fé, face a tais preocupações pecuniárias e a tais sanções, podemo-nos legitimamente questionar se o verdadeiro objectivo de certos organismos religiosos é espiritual ou se se trata apenas de uma desculpa para atingir objectivos menos louváveis. 4. A legislação chilena reguladora do factor religioso na sua dimensão social não está limitada. Ela foi abundante durante os anos em que foi confessional e que se estenderam até 1925. Durante os anos seguintes e até hoje, continuou-se a legislar nestas matérias, e as normas oficiais chilenas em vigor no domínio são numerosas. 72


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Algumas delas hoje em vigor foram editadas durante o período precedente, ou seja, durante os anos em que foi confessional. Se, como eu penso, é possível actualmente afirmar que no direito chileno o princípio director em matéria religiosa é o da liberdade religiosa, parece que essas normas, ou pelo menos algumas delas, deveriam ser revistas e adaptadas à nova realidade que conhece o país. Para dar um único exemplo, penso no artigo 965.º do Código Civil114. Segundo este: “por testamento feito por ocasião da fase terminal de uma doença, não pode receber nenhuma herança ou legado, nem mesmo enquanto executor testamentário encarregado de um fideicomisso, o eclesiástico que tenha confessado o defunto durante essa doença, ou habitualmente no decurso dos dois anos anteriores ao testamento; nem a ordem, o convento ou a confraria do qual seja membro o eclesiástico; nem os seus parentes por consanguinidade ou por aliança até ao terceiro grau inclusive”. A simples leitura desta norma exclui, desde logo, toda a aplicação possível fora da esfera católica. Mas o abuso que se pretende evitar por esta norma não é um abuso que também pode existir noutras denominações religiosas onde, mesmo que não se possa falar de confissão propriamente dita, há assistência espiritual ao doente e ao moribundo? Não existe aqui um perigo real se nós nos lembrarmos das preocupações pecuniárias e patrimoniais de alguns desses grupos, interesses económicos que aparecessem manifestamente nas suas normas e que eu acabo de evocar? Não existe aqui uma evidente discriminação? Mais, não se trata de uma norma inconstitucional? Poder-se-ão multiplicar exemplos como o precedente. Temos assim, sob os nossos olhos, uma quantidade de normas que poderiam aparecer como suspeitas de inconstitucionalidade para terem sido decretadas em épocas em que o regime instituído era um regime confessional. Contudo, é preciso salvaguardarmo-nos da tentação de os qualificar como inconstitucionais. É por isso que, no futuro, será importante reexaminar essas normas à luz dos novos princípios constitucionais, pois que não será bom continuar a aplicar essas normas como se nada se tivesse passado no plano constitucional115. 5. O direito eclesiástico do Estado constituí um ramo do direito que, contrariamente ao que se produziu na Europa, não conheceu um grande desenvolvimento na América latina, em geral, nem no Chile, em particular. Os progressos que o direito eclesiástico conheceu nalguns países europeus, particularmente na segunda metade do século XIX116, não tiveram grandes repercussões no Chile até datas muito recentes. Produziu-se a mesma situação noutros países latino-americanos, onde 73


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se constatou também um novo interesse por esta disciplina. Uma das razões do fraco eco que produziram no Chile as reflexões europeias sobre o direito do Estado em matéria religiosa foi que a questão religiosa durante o século passado foi uma questão sobretudo pacífica, pelo menos na perspectiva do seu tratamento jurídico; só recentemente é que ela suscitou um interesse crescente e uma discussão, em particular como consequência da promulgação da lei que estabelece regras para a concessão da personalidade jurídica aos organismos religiosos e que colocou em primeiro plano, durante algum tempo, o regresso ao Estado da competência de regulamentar na sua dimensão social o factor religioso dos seus cidadãos. Este fraco desenvolvimento do direito no Chile não impediu que aparecesse no país uma interessante bibliografia que aborda os aspectos específicos da regulamentação, feita pelo Estado Chileno, do factor religioso nas suas diversas manifestações de interesse jurídico. Todavia, trata-se de uma literatura dispersa, que trata de temas pontuais, por vezes polémicos na sua doutrina, e sem grandes pretensões de elaborar um sistema orgânico a partir das diversas normas jurídicas chilenas em matéria religiosa. À luz do que acaba de ser exposto e do progresso esperado, no plano do direito positivo, da lei dos organismos religiosos, parece-me que o momento é chegado de poder começar a desenvolver-se um direito “eclesiástico do Estado do Chile117. Trata-se de um trabalho de longa duração que deverá ocupar os próximos anos, mas a realidade da liberdade religiosa que existe hoje no Chile exige, não apenas o esforço intelectual de sistematizar, num novo ramo do direito, na legislação em vigor, mas também, o que é ainda mais importante, os princípios que deverão caracterizar a actividade do Estado Chileno face ao religioso. O primeiro desses princípios é, precisamente, o da liberdade religiosa. Abreviaturas: ADEE: Anuario de Derecho Eclesiástico del Estado (Madrid). BACH: Boletín de la Academia Chilena de Historia. BL: Boletin de Leyes y Decretos del Gobierno. CIC 83: Código de Derecho Canónico de 1983. DE: Il Diritto Eclesiástico (Milano). DO: Diario Oficial de la República de Chile. RDJ: Revista de Derecho y Jurisprudencia. RDV: Revista de Derecho de la Universidad Católica de Valparaíso, Chile. REDC: Revista Española de Derecho Canónico (Salamanca, España). 74


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Professor de direito histórico, Universidade católica de Valparaíso, Chile. Notas: 1. B. Bravo Lira “El Estado misional, una institución propia del derecho indiano”, in AA. VV, Estudios en honor de Alamiro de Ávila Martel, Anales de la Universidad de Chili, 5ª série, n.° 20, 1989, pp. 249-268; Idem, “La epopeya misionera en América y Filipinas: contribución del poder temporal a la evangelización”, in Pontificia Commissio Pro America Latina, Historia de la evangelización de América, Simposio Internacional, Actas, Librería Editrice Vaticana, Cité du Vatican, 1992, pp. 65-75. 2. J. González Echenique, “Esquema de las relaciones entre la Iglesia y el Estado 15411925”, in Diplomacia, 39,1987, pp. 18-30; C. Oviedo Cavada, “Un siglo de relaciones entre la Santa Sede y Chile” 1822-1925, in Diplomacia 39, Op. cit.; Idem, “Negociaciones chilenas sobre convenios con la Santa Sede”, in Finis Terrae 19, 1958, pp. 37-53; Idem, “La misión Irarrázabal”, in Roma, 1847-1850, Santiago, 1962. 3. O carácter confessional do Estado foi reconhecido desde os primeiros ensaios constitucionais e consagrado expressamente no artigo 5.º da Constituição de 1883 – em vigor até 1925 – onde para mais o Patronato foi expressamente reconhecido por diversas disposições constitucionais. 4. As relações políticas entre a Igreja católica e o Estado Chileno conheceram uma tensão crescente, sobretudo na segunda metade do século XIX, mas não se chegou à liberdade dos cultos, como alguns desejavam, por decisão do próprio governo que temia um aumento do poder da Igreja sem contrapartidas a nível do controle que permitisse o Patronato. 5. Lei de 6 de Setembro de 1844, in BL, 1844, pp. 229-233. 6. Decreto-lei de Justiça, Culto e Instrução Pública de 9 de Dezembro de 1875, in BL 1875, pp. 631. 7. C. Salinas Araneda, “Materiales para el estudio del Derecho Eclesiástico del Estado de Chile (II). Entidades religiosas diversas de la Iglesia católica con personalidad jurídica bajo la vigencia de la Constitución de 1833”, in Revista Chilena de Historia del Derecho, 2002, no prelo. 8. Código Civil, art.º 547.º, sub-alínea 2: “As disposições desse tipo [nas quais se legisla sobre as pessoas jurídicas de direito privado] também não se estendem às corporações ou fundações de direito público, como a nação, o fisco, os municípios, as Igrejas, as comunidades religiosas, e os estabelecimentos financeiros pelos dinheiros públicos: estas corporações e fundações são regidas por leis e regulamentos especiais” (Sublinhado nosso). 9. Constituição de 1925, art.º 10.º; “A Constituição assegura a todos os habitantes da República: n.º 2: [sub-alínea 1] A manifestação de todas as convicções, a liberdade de consciência e o livre exercício de todos os cultos que não se oponham à moral, aos bons costumes ou à ordem pública; consequentemente, as confissões religiosas respectivas poderão construir e conservar templos e suas dependências em condições de segurança e de higiene fixadas pelas leis e ordenanças. [Sub-alínea 2] As Igrejas, as confissões e as instituições religiosas de todo o culto terão os direitos que outorgam e reconhecem no que concerne aos bens, as leis actualmente em vigor; mas elas ficarão, sujeitas, no quadro das garantias desta Constituição, ao direito comum para o exercício do domínio dos seus bens futuros. [Sub-alínea 3] Os templos e as suas dependências, destinados ao serviço de um culto, estarão isentos de contribuições.” 10. Como o explica Carlos Oviedo, “A Santa Sé apresentou cinco condições para aceitar a separação. Em primeiro lugar, o Chile não deveria tornar-se um Estado ateu e, para isso, a nova Constituição deveria ser promulgada invocando o nome de Deus. A segunda condição tinha a ver com a liberdade de ensino, para deixar um lugar à educação privada e conseguir que, em certos tipos de ensino, o seu caracter obrigatório fosse indicado sem aí adicionar a

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A Liberdade Religiosa no Chile palavra “laico”. A terceira condição era a derrogação expressa de todos os abusos regalengos da Constituição de 1833, tais como o Patronato, o salvo-conduto, etc. A quarta, que nos pactos internacionais, era necessário fazer menção expressa das concordatas, a saber, o termo próprio aos tratados da Santa Sé. Mais, era pedido inoportunamente que se fizesse uma concordata; e, a última condição era exigir uma compensação económica do Estado depois da supressão do subvenção do culto.” Entretanto, o Chile passava, em 1925, por uma situação política delicada, o que levou o Presidente da República a pedir à Santa Sé de agir com prontidão na aprovação da separação, sem esperar um acordo escrito formal ou uma concordata, que viria depois. Todas as outras condições foram preenchidas e consignadas no texto constitucional. C. Oviedo Cavada, La jerarquía eclesiástica y la separación de la Iglesia y el Estado en 1925”, in BACH 89, l975-1978, pp. 28. 11. A. Alessandri Rodriguez, “Derecho civil. Primer año” (Versões mecanográficas dos seus cursos compiladas par Onías León Gaete), 3a ed., Zamorano y Caperán, Santiago, 1934, p. 237; C. Balmaceda Lazcano, El estatuto de las personas jurídicas, Nascimento, Santiago, 1943, pp. 129, 130; A. Vodanovic, Curso de Derecho Civil 1-2, Nascimento, Santiago, 1962, p. 283. 12. L. Vergara, “Algunas consideraciones sobre el n° 2 del artículo 10 de la Constitución reformada de 1925 en relación con la personalidad jurídica de la Iglesia católica”, in RDJ 38, 1941, sec. Derecho, pp. 71-86; G. Barriga Errázuriz, “La personalidad jurídica de la Iglesia ante la reforma constitucional del año 1925”, in RDJ 39, 1942, sec. Derecho, pp. 142-160; J. H. Campillo, Opúsculo sobre la condición jurídica, de la Iglesia católica en general y especialmente en Chile después de separada del Estado, Santiago, 1932; L. Claro Solar, Explicaciones de Derecho Civil chileno y comparado 5. De las personas, Santiago, 1927, p. 453; I. Larraín Eyzaguirre, La parroquia ante el derecho chileno o estatuto jurídico de la parroquia, Santiago, 1956, p. 146. 13. Por exp. Supremo Tribunal, 7 de Novembro de 1931, in RDJ 29, II, secção I, p. 119; Supremo Tribunal, 3 de Janeiro de 1945, in RDJ 42, II, secção 1, p. 499; Supremo Tribunal, 25 de Agosto de 1965, in RDJ 62, II, secção 1, p. 291; Tribunal da Relação de Santiago, 30 de Dezembro de 1931, in RDJ 51, II, secção 2, p. 26. 14. Por exp. Tribunal de Contas da República, Decisão n.º 22 014 de 26 de Abril de 1957. 15. Lei n.º 17 725 publicada no DO de 25 de Setembro de1972. 16. Actos oficiais da Assembleia Constituinte, sessão n.º 132 de 23 de Junho de 1975. 17. Constituição de 1980, art.º 19.º: “A Constituição assegura a todas as pessoas, n.º 6: [subalínea 11] a liberdade de consciência, a manifestação de todas as convicções e o livre exercício de todos os cultos que não se oponham à moral, aos bons costumes e à ordem pública. [subalínea 2] As confissões religiosas poderão construir e conservar templos e suas dependências em condições de segurança e de higiene fixadas pelas leis e disposições. [Sub-alínea 3] As Igrejas, as confissões e instituições religiosas de todo culto terão os direitos que outorgam e reconhecem, no que concerne aos bens, as leis actualmente em vigor. Os templos e as suas dependências, destinados exclusivamente ao serviço de um culto, estarão isentos de todo o tipo de contribuições.” 18. Lei n.º 19 638 publicada in DO a 14 de Outubro de 1999. 19. Ver a bibliografia sobre esta lei in C. Salinas Araneda, “Avance para una bibliografia de Derecho Eclesiástico del Estado de Chile”, in RDV 21, 2000, pp. 154, 155. 20. A. K. Segovia Iraira, “Historia parlamentaria de la ley n° 19 638 que establece normas para la concesión de personalidad jurídica de las iglesias y confesiones religiosas”, Memoria Escuela de Derecho, Universidad Católica de Valparaíso, Valparaíso, 2002. 21. Sobre a presença no Chile de confissões não católicas, ver C. Salinas Araneda, Op. cit., pp. 142, 143. 22. Sobre a liberdade religiosa na democracia norte-americana e na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, e sobre o constitutionalismo europeu, ver P. Lambardia, “ Síntesis 76


A Liberdade Religiosa no Chile histórica ”, in J. M. Gonzalez del Valle e coll., Derecho eclesiástico del Estado Español, Eunsa, Pampelune, 1980, pp. 74-90. 23. Isto, bem entendido, sem prejuízo da incidência de outros factos tais como atitude beligerante por parte de alguns dos grupos evangélicos e protestantes mais fundamentalistas. 24. P.T. Viladrich, “Los principios informadores del Derecho Eclesiástico español”, in J. M. González del Valle et coll., Derecho Eclesiástico del Estado Español, Eunsa, Pampelune, 1980, p. 268. 25. Idem, p. 269. 26. Art.º 18.º, n.º 1; “Toda e qualquer pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião [...]” O tratado foi promulgado pelo decreto-lei dos Negócios Estrangeiros n.º 778 de 30 de Novembro de 1976 e publicado no DO de 29 de Abril de 1989. 27. Art.º 14.º, n.º 1: “Os Estados signatários respeitarão o direito da criança à liberdade de pensamento, de consciência e de religião.” Publicado no DO de 27 de Setembro de 1990. 28. Por exemplo o Pacto de San José de Costa Rica. 29. C. Estévez Gazmuri, Elementos de Derecho Constitucional chileno, Jurídica, Santiago, 1949, p. 101. 30. Ver a nota 7. 31. Por exemplo, M. Bernaschina González, Constitución Politica y leyes complementarias, 2ª ed., Jurídica, Santiago, 1958, pp. 334, 336; J. M. Quinzio Figueiredo, Manual de Derecho Constitucional, Jurídica, Santiago, 1969, pp. 271-274. 32. C. Estévez Gazmuri, Op. cit., p. 102. 33. Por exemplo, E. Pfeffer Urquiaga, Manual de Derecho Constitucional, fondamentado em explicações dos professores L. Bulnes Aldunate et M. Verdugo Marinkovic, Conosur, Santiago, 1985, pp. 258-260; M. Verdugo Marinkovic, E. Pfeffer Urquiaga, H. Nogueira Alcalá, Derecho Constitucional 1, Jurídica, Santiago, 1994, pp. 258-260; G. Urzúa Valenzuela, Manual de Derecho Constitucional, 2ª ed., Jurídica, Santiago, 1996, pp. 165-167. 34. Lei n.º 19 638, art.º 6.º; “A liberdade religiosa e de culto, com a autonomia correspondente e a imunidade de coerção, significa para todas as pessoas as faculdades de […]” (Sublinhado nosso). 35. A. C. Jemolo, I problemi pratici della libertà, Milan, 1961, p. 131. A mesma ideia foi desenvolvida por João-Paulo II no seu abundante magistério sobre a liberdade religiosa. Cf. A Colombo (a cura di), La Libertà religiosa negli insegnamenti di Giovanni Paolo II, 1978-1998, Université catholique du Sacré Coeur. Centro de pesquisa para o estudo da doutrina social da Igreja, Milan, 2000. 36. A. Silvia Bascuñan, Tratado de Derecho Constitucional 2. La Constitución de 1925, vol. 1, Jurídica, Santiago, 1963, p. 223. 37. Lei n.º 19 638, art.º 20.º: “O Estado reconhece as regras, a personalidade jurídica, quer seja de direito público ou de direito privado, e a plena capacidade de gozo e de exercício das Igrejas, confissões e instituições religiosas que dela disponham à data de publicação desta lei; essas organizações conservarão o regime jurídico que lhes é próprio, sem que isso implique um tratamento desigual entre elas e aquelas que se constituírem em conformidade com esta lei.” 38. Lei de l de Fevereiro de 1911, publicada no DO de 23 de Março de 1911. 39. J. I. González Errázuriz, El Vicariato castrense de Chile. Génesis histórica y canónica, de su establecimiento. De La independencia al conflicto de Tacna (1810-1915). Estudio documental, Universidad de Los Andes, Colección Jurídica 3, Santiago, 1996. 40. J. I. González Errázuriz, Iglesia y Fuerzas Armadas. Estudio canónico y jurídico sobre la asistencia espiritual a las Fuerzas Armadas en Chile, Universidad de los Andes, Colección Jurídica 2, Santiago, 1994. Autres titres chez Salinas, Avance n° 20, pp. 161, 162. 41. Idem, pp. 304-306. Pelo decreto-lei da Defesa Nacional n.º 99, de 24 de Setembro de 1986, publicado no DO de 29 de Outubro de 1986, substitui-se a designação “Vicariato militar” por 77


A Liberdade Religiosa no Chile “Episcopado militar do Chile”. 42. C. Salinas Araneda, “Las fuentes del Derecho Eclesiástico del Estado de Chile”, in RDV 21, 2000, pp. 187-192. 43. Decreto-lei da Saúde n.º 351 de 12 de Maio de 2000, publicado no DO de 28 de Outubro de 2000. 44. Decreto-lei da Educação n.º 924, de 12 de Setembro de 1983, publicado no DO de 7 de Janeiro de 1984. 45. Por exp., o decreto regulamentar da Educação n.º 158 de 12 de Agosto de 1983, publicado no DO de 26 de Agosto de 1983, aprova programas de religião católica para a educação média humanístico-científica. 46. Decreto regulamentar da Educação n.º 80 de 28 de Maio de 1984, publicado no DO de 8 de Junho de 1984. 47. Decreto regulamentar da Educação n.º 78 de 18 de Maio de 1984, publicado no DO de 11 de Julho de 1984. 48. Decreto regulamentar da Educação n.º 106 de 17 de Julho de 1984, publicado no DO de 18 de Agosto de 1984. 49. Decreto regulamentar da Educação n.º 141 de 6 de Setembro de 1984, publicado no DO de 17 de Outubro de 1984. 50. Decreto regulamentar da Educação n.º 143 de 13 de Setembro de 1984, publicado no DO de 6 de Novembro de 1984. 51. Decreto regulamentar de Educação n.º 75 de 6 de Maio de 1985, publicado no DO de 28 de Maio de 1985. 52. Decreto regulamentar de Educação n.º 98 de 12 de Maio de 1989, publicado no DO de 20 de Junho de 1989. 53. A lei das organizações religiosas oferece três possibilidades: 1) as confissões constituídas como pessoas jurídicas de direito público, em conformidade com o procedimento que a própria lei estabelece (art.os 10.º-12.º, n.º 3) essas entidades religiosas poderão criar pessoas jurídicas de direito privado constituídas “em conformidade com a legislação em vigor” e, mais particularmente elas poderão “a) fundar, manter e dirigir de modo autónomo institutos de formação e de estudos teológicos ou doutrinais, instituições educativas, de beneficência ou humanitárias et b) criar, patronar e encorajar associações, corporações e fundações para a realização dos seus objectivos e neles participar” (art.º 8.º, n.º 3) “As associações, corporações, fundações e outros organismos criados por uma Igreja, confissão ou instituição religiosa, que, em conformidade com as suas próprias normas jurídicas, gozem de personalidade jurídica religiosa, são reconhecidas como tal. A sua existência será garantida pela autoridade religiosa que as tenha criado ou instituído” (art.º 9.º). 54. Segundo a sub-alínea 3 do n.° 6 do art.º 19.º da Constituição, “os templos e suas dependências, destinados exclusivemente ao serviço de um culto, estarão isentos todo tipo de contribuições. 55. Silva Bascuñan, Tratado [...], Op. cit. (nota 36). 56. E. Evans de la Cuadro, Los derechos constitucionales 1, Jurídica, Santiago, 1986, p. 209. 57. A. Alessandri, M. Somarriva, A. Vodanovic, Tratado de Derecho Civil. Partes preliminar y general I, Jurídica, Santiago, 1998, p. 60. 58. Silva Bascuñan, Op. cit., p. 225. 59. E. Evans de la Cuadro, Op. cit., p. 209. 60. Ante-projecto de Constituição de 1980, artigo 5.º, sub-alínea 1: “A liberdade de consciência, a manifestação de todas as crenças e o livre exercício de todos os cultos que não se opõem à moral, aos bons costumes ou à ordem pública.” 61. R. Quejada, Diccionario jurídico, Conosur, Santiago, 1994, pp. 71,72 à “buenas costumbres”. fi2. L. Rodríguez Collao, Delitos sexuales, Jurídica, Santiago, 2000, p. 59. 78


A Liberdade Religiosa no Chile 63. Silva Bascuñan, Op. cit., p. 225. 64. E. Evans de la Cuadro, Op. cit., p. 209. 65. RDJ 51,1954, II, 4ª sec., p. 123. 66. T Solari Peralta et L. Rodríguez Collao, “Reflexiones en torno al concepto de seguridad del Estado”, in RDV 12, 1988, pp. 213, 214. 67. R. Quijada, Op. cit., (nota 61), pp. 585-586, à “Seguridad del Estado”. 68. T. Solari Peralta et L. Rodríguez Collao, Op. cit., (nota 66), p. 214, que citam J. M. Rodríguez Devesa, Derecho penal español, 5ª ed., Madrid, 1973, p. 526. 69. Idem, pp. 215, 216. 70. Diario Oficial de La República de Chile, Tratados internacionales vigentes en Chile en materia de derechos humanos, Santiago, 1999, 2 vol. 71. C. Salinas Araneda, Sectas y Derecho. La respuesta jurídica al problema de los nuevos movimientos religiosos, Ediciones Universitarias de Valparaíso de la Universidad Católica de Valparaíso, Valparaíso, 2001, pp. 205-269. 72. J Mantecón, “La libertad religiosa como derecho humano” in AA. VV, Tratado de Derecho Eclesiástico, Eunsa, Pampelune, 1994, p. 129. 73. Reclusão menor no seu grau mínimo: de 61 a 540 dias. A reclusão, ao contrário da prisão para forçados, não implica a obrigação de trabalhar. 74. Ver a nota precedente. 75. Cerca de 250 a 420 euros. 76. Ver a nota 73. 77. Ver a nota 75. 78. A. Etcheberri, Derecho penal. Parte especial, 3ª ed., vol. 3, Jurídica, Santiago, 1998, p. 229. 79. Ver a nota 73. 80. Ver a nota 75. 81. A gravidade dos ferimentos é avaliada em relação com a importância do prejuízo que sofre a vítima. Os ferimentos muito graves: impotência, incapacidade, demência, incapacidade de trabalhar, privação de um membro importante, enfermidade notável são punidos com prisão maior no seu grau mínimo, com prestação de trabalho, seja de __ anos e um dia a 10 anos (art.º 397.º, n.° 1); como se trata de uma pena de prisão para forçados, ela implica a obrigação de trabalhar. São considerados como ferimentos simplesmente graves as que provocam uma doença cujo estabelecimento é de pelo menos 30 dias; elas são punidas com prisão menor no seu grau médio com prestação de trabalho, ou seja de 541 dias a 3 anos (art.º 397.º, n.° 2). Os outros são considerados como ferimentos menos graves; eles são punidos com relegação ou com prisão menor, no seu grau mínimo, com prestação de trabalho, ou seja de 61 a 540 dias, ou com uma multa de 11 a 20 unidades tributárias mensais, ou seja de 460 a 840 euros (art.º 399.º). 82. A. Etcheberri, Op. cit. (nota 79), pp. 230, 231. 83. C. Salinas Araneda, Op. cit. (nota 71), pp. 333-345. 84. A. Motilla de la Calle, “Reflexiones sobre el tratamiento jurídico-penal de las sectas religiosas en España”, in J. Goti Ordeñada, Aspectos socio-jurídicos de las sectas desde una perspectiva comparada, Onati Proceedings 5, Vitoria, 1991, pp. 305, 306. 85. A. Motilla, Sectas y Derecho en España. Un estudio en torno da la posición de los nuevos movimientos religiosos en el ordenamiento jurídico, Madrid, 1990, p. 179; Idem, “Reflexiones sobre el tratamiento jurídico-penal de las sectas religiosas en España”, in Goti Ordeñada, Op. cit., (nota 84), p. 313, que menciona, entre outros, Gascard, Le nuove religioni giovanile. Tra anelito e patologia, Balsamo, 1986, p. 46. 86. A mesma norma estabelece que “esta medida poderá ficar sem efeito caso se prove nos três meses que se seguem à data de publicação do decreto de anulação, que se produziu um 79


A Liberdade Religiosa no Chile erro de facto.”. 87. Por exp. no decreto-lei n.º 89 da Justiça de 26 de Janeiro de 2001, publicado no DO de 3 de Abril de 2001, que declarou dissolvida e anulou a personalidade jurídica do “Centro de estudos tibetanos CET” de Valparaíso. Num dos seus considerandos lê-se: “que, segundo as informações da polícia de investigação [...], o objectivo escondido do Centro de estudos tibetanos era recrutar jovens menores, que eram persuadidos a submeterem-se voluntariamente aos avanços amorosos do seu guru; que os seus ensinos continham uma forte distorção da vida familiar e sexual das pessoas, das diferentes religiões, qualificando Deus como o Deus da Besta, o catolicismo como uma grande máfia e os polícias como seres amorfos, mentalmente retardados o que é contrário à moral, à ordem pública e aos bons costumes e que não corresponde ao objectivo da associação, motivo suficiente para anular a sua personalidade jurídica”. 88. D. García Hervás et coll., Manual de Derecho Eclesiástico del Estado, Madrid, 1997, pp. 129. 89. P J. Viladrich, Op. cit. (nota 24), pp. 211-317; P J. Viladrich, J. Ferrer Ortiz, “Los principios informadores del Derecho Eclesiástico español”, in Derecho Eclesiástico del Estado español, R. Navarro Valls (coord.), Eunsa, Pamplona, 1993, pp. 165-226; J. Calvo-Álvarez, “La presencia de los principios informadores del Derecho Eclesiástico español en las sentencias del Tribunal Constitucional” in Tratado de Derecho Eclesiástico, Instituto Martín de Azpilcueta, Facultad de Derecho Canónico, Universidad de Navarra, Eunsa, Pampelune, 1994, pp. 243-320. 90. García Hervás, Op. cit., (nota 88), pp. 129-142; P. M. Garín, Temas de Derecho Eclesiástico del Estado. La “Religión” en la comunidad política desde la libertad, Universidad de Deusto Bilbao, 2000, pp. 161-168; J. M. González del Valle, Derecho Eclesiástico Español, 4ª ed., Servicio de Publicaciones, Universidad de Oviedo, 1997, pp. 119-174; I. C. Ibán, L. Prieto Sanchis, A. Motilla, Curso de Derecho Eclesiástico, Servicio de Publicaciones, Facultad de Derecho, Universidad Complutense, Madrid, 1991, pp. 173-215; D. Llamazares Fernández, Derecho Eclesiástico del Estado. Derecho de la libertad de conciencia, 2ª ed., Servicio de Publicaciones, Facultad de Derecho, Universidad Complutense, Madrid, 1991, pp. 37ss; A. Martínez Blanco, Derecho Eclesiástico del Estado, Tecnos, Madrid, 1993, pp. 72ss; V. Reina Bernáldez, A. Reina Bernáldez, Lecciones de Derecho Eclesiástico Español, PPU, Barcelona, 1983, pp. 293ss; R. M. Satorras Fioretti, Lecciones del Derecho Eclesiástico del Estado, Bosch, Barcelona, 2000, pp. 61-97; J. A Souto Paz, Derecho Eclesiástico del Estado, El derecho de la Libertad de ideas y creencias, Marcial Pons, Madrid, 1992, pp. 63ss. 91. P. J. Viladrich, Op. cit. (nota 24). 92. Para um relance geral do tema, ver J. Calvo-Álvarrez, “Los principios informadores del Derecho Eclesiástico español en la doctrina”, in ADEE 14, 1998, pp. 187-233. 93. P J. Viladrich, Op. cit. (nota 24), pp. 251, 252. 94. A situação era diferente no regime precedente: era o Estado Chileno que definia a estrutura jurídica e de organização à qual deveriam conformar-se as confissões religiosas, se elas desejassem obter a personalidade jurídica de direito privado. 95. Que seja assim, torna-se evidente quando se estudam os detalhes que conduziram ao reconhecimento constitucional da liberdade de culto na Constituição de 1925 e a sua projecção, sem modificações substanciais, na Constituição de 1980. 96. P. J Viladrich, Op. cit. (nota 24), p. 254. Podem-se multiplicar os exemplos: a Dinamarca, a Finlândia, a Islândia, a Noruega, a Suécia são de confissão evangélico-luterana e os seus sistemas jurídicos respectivos reconhecem amplamente o direito à liberdade religiosa. É também o caso da Inglaterra, cuja confissão é anglicana. A literatura sobre este tema é abundante. Ver, entre outros, G. Robbers (ed.), Estado e Iglesia en la Unión Europea, BadenBaden 1996. 80


A Liberdade Religiosa no Chile 97. Idem. 98. A única diferença reside em que a dissolução de uma pessoa jurídica de direito público requer uma lei da República, enquanto que a dissolução de uma pessoa jurídica de direito privado requer um decreto do Presidente da República. Na prática, esta atribuição foi utilizada em raras ocasiões. 99. Por exemplo, “Moção do honorável senador Arturo M. Frei, pela qual ele introduz um projecto de lei que reconhece às Igrejas evangélicas o direito de gozarem da personalidade jurídica de direito público” in Diario de Sesiones del Senado, sessão n.º 43-1992, pp. 43474350. Também há a “Moção dos honoráveis senadores, Sra. P. Soto et Sr. Arturo Frei, Papi et Ríos pela qual eles introduzem um projecto de lei que regulamenta a constituição e o funcionamento das Igrejas e organizações evangélicas cristãs”, in Diario de Sesiones del Senado, sessão n.º 24-1993, pp. 4190-4198. 100. Câmara dos Deputados, sessão n.º 11, 2 de Novembro de 1993, pp. 1078-1084. 101. O artigo primeiro do projecto, na sua sub-alínea primeira dizia: “Para efeitos desta lei entende-se por Igreja ou organização religiosa, o organismo constituído por pessoas que professem uma fé determinada, a pratiquem, a ensinem e a difundam. Por esta denominação, entendem-se especialmente as Igrejas cristãs evangélicas que, no exercício das liberdades de consciência e de culto, se organizam com uma personalidade jurídica para o cumprimento dos objectivos que lhes são próprios.” (Sublinhado nosso.) 102. C. Salinas Araneda, “Una primera lectura de la ley chilena que establece normas sobre la constitución jurídica de las iglesias y organizaciones religiosas” in REDC 57, 2000, 149, pp. 625-676; com alguns desenvolvimentos in RDV 20, 1999, pp. 299-341; Idem, “La reciente ley chilena que establece normas sobre la constitución jurídica de las iglesias y organizaciones religiosas”, in DE 111, 2000, pp. 435-496. 103. A Igreja católica não se opôs a estas pretensões dos evangélicos e dos protestantes; pelo contrário, a Igreja católica não apenas não se opõe, como apoia fraternalmente a legítima aspiração das Igrejas evangélicas e outras confissões propriamente religiosas, no que respeita obtenção da condição jurídica de que carecem para exercerem a sua missão no nosso país”. “Informe para dar a conocer la posición de la Iglesia católica”, in Iglesia de Santiago 75, Julho de 1998. Opúsculo. 104. Lei n.º 19 638, artigo 20.º: “O Estado reconhece a organização, a personalidade jurídica, quer seja de direito público ou de direito privado, e a plena capacidade de gozo e de exercício das Igrejas, confissões e instituições religiosas que os possuíam à data da publicação desta lei; os organismos conservarão o regime jurídico que lhes é próprio, sem que isso seja a causa: de um tratamento desigual entre os ditos organismos e os que se venham a constituir em conformidade com esta lei.” 105. C. Salinas Araneda, “La personalidad jurídica de las entidades religiosas en el derecho chileno”, in Libertad Religiosa. Actas del Congreso Latinoamericano de libertad religiosa, Lima, Pérou, septembre 2000, pp. 95-126. 106. Alguns pensam que uma lei não seria suficiente, mas que, para anular a sua personalidade jurídica, uma reforma constitucional seria necessária. Ver, entre outros, H. Corral Talciani, “Iglesia católica y Estado en el ordenamiento jurídico chileno”, in Ius Publicum 1, Santiago, 1998, pp. 61-79. 107. C. Salinas Araneda, “Confesión religiosa: los intentos hacia un concepto jurídico”, in Libertà religiosa e ordinamenti democratici, número monográfico de Religioni e Sette nel mondo 22, Bologne, 2001-2002, pp. 75-129. 108. Projecto de lei aprovado pela Câmara dos Deputados, artigo 8.º: “[Sub-alínea 2] Ficam fora do campo da aplicação desta lei os organismos e as actividades relacionadas com o estudo e a experimentação de fenómenos psíquicos ou parapsicológicos, de práticas mágicas, supersticiosas, espíritas ou outras estranhas ao conhecimento e ao culto religioso. [Sub-alínea 81


A Liberdade Religiosa no Chile 3]. Está interdita a existência a organismos em que se desenvolvam actividades destinadas ao satanismo.” 109. Lei n.º 19 638, artigo 9.º: “[Sub-alínea 1] As associações, corporações, fundações e outros organismos criados por uma Igreja, confissão ou instituição religiosa que, em conformidade com as suas próprias normas jurídicas gozem de personalidade jurídica religiosa, são reconhecidas como tal. A autoridade religiosa que as tenha criado ou instituído garantirá a sua existência.” 110. C. Salinas Araneda, “La personalidad [... ]”, Op. cit. (nota 105), pp. 122-124. 111. Dêmos um exemplo extremo: um líder iluminado decide fundar uma nova Igreja com trinta pessoas que constituem todos os seus fiéis – a lei não estabelece um número mínimo para fundar uma confissão religiosa – e nos seus estatutos, ele estabelece que a que a nova confissão poderá constituir, em conformidade com as suas próprias normas estatutárias, quantas pessoas jurídicas lhe pareça oportuno, ficando a constituição destas sujeita à decisão pessoal e discricionária do líder. Isto é suficiente para que o Estado do Chile deva reconhecer, de um modo necessário, como pessoas jurídicas no quadro jurídico chileno, as pessoas jurídicas constituídas pelo guru? Parece-me que não. 112. A 17 de Maio de 2002, 148 organismos religiosos tinham-se constituído em pessoas jurídicas de direito público, ou seja, em 148 Igrejas autónomas; a imensa maioria delas provindo do mondo evangélico e protestante. 113. C. Salinas Araneda, “La primera aplicación de la ley 19 638 que establece normas sobre la constitución jurídica de las iglesias y organizaciones religiosas”, in Actas del Coloquio de Derecho Eclesiástico del Estado (Argentine, Chili, Pérou), Valparaíso, Chili, 29-30 de Agosto de 2002, Valparaíso, 2003, no prelo. 114. J. Olivero Aliaga, Antecedentes históricos de la incapacidad de los eclesiásticos para recibir herencia o legado según el artículo 965 del Código Civil, Tese, Universidade católica de Valparaíso, Valparaíso, 2002 115. C. Salinas Araneda, “Las fuentes [...]”, Op. cit., (nota 42), p. 172. 116. Um panorama recente sobre este tema em J. Martínez-Torrón, Religión, derecho y sociedad. Antiguos y nuevos planteamientos en el Derecho eclesiástico del Estado, Grenade, 1999. 117. C. Salinas Araneda, “El derecho chileno frente al factor religioso: la posibilidad de un Derecho Eclesiástico del Estado de Chile”, in Derecho y cambios culturales, volume monográfico de Anuario de Filosofía Jurídica. y Social 18, Santiago, 2000, pp. 551-582.

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A liberdade de consciência e de religião na reforma constitucional peruana Oscar Diaz Munoz *

A Constituição de 1979, facto sem precedente na nossa história constitucional, começa, no seu artigo 2, por uma ampla Declaração de direitos fundamentais exaltando a pessoa humana, pois que “todos os homens, iguais em dignidade, tês direitos dum alcance universal anteriores e superiores ao Estado”, como ela é proclamada no seu preâmbulo. Nesta Declaração de direitos, a liberdade religiosa é consagrada muito cedo (art. 2.3), imediatamente após o direito à vida e à igualdade1, o que mostra bem a importância que a regra fundamental lhe reconhece. Assim fazendo, a nossa Constituição seguiu os instrumentos internacionais dos direitos do homem que, a começai pela Declaração universal dos direitos do homem que, a começar pela Declaração universal dos direitos dp homem de 1948 (art.18), reconheceram este direito como fundamental2. O projecto de reforma da Constituição de 1993, presente neste momento no relatório de Julho de 2002 da Comissão de Constituição do Congresso da República – desde agora, o Projecto -, conduz-nos a examinar a regulamentação que contém neste documento sobre o direito fundamental à liberdade religiosa, antes de chegar aos nossos comentários a às nossas sugestões. O art. 2.3 do Projecto confirma que todas as pessoas têm direito: «Â liberdade de consciência, de opinião e de religião, de modo individual ou colectivo. Nenhuma ideia ou convicção será causa de perseguição. Não haverá também delito de opinião. “O exercício de todas as confissões e convicções é livre, sob a condição de não atentar contra a dignidade da pessoa, os direitos fundamentais e a ordem pública.” Esta não é a única regra do Projecto que protege a liberdade religiosa. Há também o art. 2.2, que garante a igualdade religiosa, o art. 2.19, que 83


A Liberdade de Consciência e de religião na reforma Constitucional peruana

reconhece o direito de guardar reserva sobre as suas próprias convicções e que incorpora à nossa legislação a objecção de consciência, e o art. 71, que consagra os princípios de laicidade e de cooperação entre o Estado e as confissões religiosas. Começaremos pela análise da regra de protecção geral do direito à liberdade religiosa do primeiro parágrafo do artigo 2.3 do Projecto. A regra consagra o direito à “liberdade de consciência, de opinião e de religião”. Em comparação com o que estipula a Constituição actual, incorporou-se aí o preceito da liberdade de opinião. O reconhecimento da liberdade religiosa associada à liberdade de consciência é uma tradição no nosso sistema constitucional, ela prevalece desde a Constituição de 1979. Esta aproximação revela a influência da Convenção americana dos direitos do homem, dado que o art. 12.1 deste instrumento internacional reconhece o direito de todas as pessoas à “liberdade de consciência e de religião”. Como anteriormente referimos, o Projecto associa à liberdade de consciência e de religião a “liberdade de opinião”. Em nosso parecer, uma tala associação é incorrecta, porque a liberdade de opinião é um direito distinto, associado à liberdade de expressão. O Projecto lembra-nos a Declaração dos direitos do homem e do cidadão de 1789, onde se lhe introduziu uma relação inadequada entre religião e opinião. Segundo o art. 10 desta Declaração: Ninguém deve ser importunado por suas opiniões, mesmo religiosas, desde que a sua manifestação não perturbe a ordem pública estabelecida pela lei”. Entretanto, mais próximo de osso tempo, após a Declaração dos direitos do homem de 1948, os textos sobre os direitos do homem souberam distinguir a liberdade religiosa da liberdade de opinião, conferindo um lugar a esta última, ao lado da liberdade de expressão. É assim que a Declaração universal consagra o seu art. 18 à liberdade religiosa, enquanto que a liberdade de opinião se encontra no art. 10, no mesmo lugar que a liberdade de expressão. O artigo 19 da Declaração estipula: “Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão.” O Pacto internacional relativo aos direitos civis e políticos consagra também a liberdade de opinião num preceito diferente do da liberdade religiosa e associando-a à liberdade de expressão. Assim, enquanto que o art. 18 indica que todas as pessoas têm direito “à liberdade de pensamento, de consciência e de religião”, o art. 19 declara: 84


A Liberdade de Consciência e de religião na reforma Constitucional peruana

“1. Ninguém poderá ser inquietado por causa das sua opiniões. 2. Todas as pessoas têm direito à liberdade de expressão (…).”Além disso, a distinção entre liberdade religiosa e liberdade de opinião tinha sido igualmente estabelecida nos precedentes do Projecto, sejam as Constituições de 1879 e de 1993, que reconheceram o direito de opinião assim como a liberdade de expressão num artigo diferente do da liberdade religiosa, ao assinalar que todas as pessoas têm direito “às liberdades de informação, de opinião, de expressão e de difusão do pensamento” (art.24 das duas Constituições), (o sublinhado é nosso). Por consequência o reconhecimento da liberdade de opinião do art. 2.3 do Projecto deveria ser transferido para a alínea seguinte (art. 2.4), que consagra a liberdade de expressão, como era o caso na Constituição de 1979 e na actual lei fundamental. Além desta mudança, seria necessário também transferir a proscrição do delito de opinião. Por outro lado, é importante que, seguindo nisto a Constituição de 1979, o Projecto interdite a “perseguição por causa de ideias ou de convicções” – mesmo se ele reconheceu anteriormente a liberdade religiosa –, porque assim seriam também incluídas as ideias e as convicções não religiosas, protegidas pela liberdade de pensamento. Fazendo isto, a nossa Constituição juntaria num mesmo preceito a “liberdade de pensamento, de consciência e de religião” como é o caso nos instrumentos internacionais dos direitos do homem, depois a Declaração universal de 1948 (art.18) 3. 2 Os limites do direito à liberdade religiosa O Projecto menciona os limites da liberdade religiosa no segundo parágrafo do art. 2.3: “O exercício de todas as confissões e convicções é livre, na condição de não atentar contra a dignidade das pessoas, os direitos fundamentais e as regras da ordem pública.” A ordem pública é um limite à liberdade religiosa dada desde o artigo 10, já citado, da Declaração dos direitos do homem e do cidadão de 1789. Como sabemos, trata-se dum conceito jurídico indeterminado, razão pela qual a sua determinação, em última instância, é remetida ao juiz4. No art. 16.15 da Constituição espanhola de 1978,a ordem pública é também o limite da liberdade religiosa. Durante os trabalhos parlamentares este texto, emendas foram apresentadas a fim de precisar o alcance da ordem pública, e foi proposto substituir por “o respeito dos direitos 85


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fundamentais reconhecidos na Constituição. Ainda que as em emendas não tenham sido aceites e que se tenha finalmente optado pelo não “ordem pública”, sobressaem claramente argumentos utilizados nas discussões parlamentares, como o sublinha Combalia, que o significado que se dá à ordem pública não é outro senão o dos valores e direitos constitucionais6. É também a opinião de Carlos Alvarez, para quem o único limite ao exercício da liberdade religiosa “é o respeito dos direitos do outro, pois este respeito acompanha inalteravelmente o sentido autêntico da ordem pública7”. Beneyto Pérez participa também desta opinião. Ele afirma que é necessário fazer concordar a “manutenção da ordem pública protegida pela lei” do art. 16.1 da Constituição espanhola com a fórmula “o respeito da lei e dos direitos do semelhante” do art. 10.1 do mesmo texto constitucional8. Em Espanha, a lei orgânica 7/1980, de 5 de Julho, sobre a liberdade religiosa, desenvolve o conceito de ordem pública, mencionando o respeito dos direitos fundamentais dos outros, o artigo 3.1 desta lei estipula: “O exercício dos direitos que emanam da liberdade religiosa e de culto tem por único limite a protecção do direito dos outros ao exercício de sus liberdades públicas e de seus direitos fundamentais, assim como a salvaguarda da segurança, da saúde e da moralidade públicas, elementos constitutivos da ordem pública protegida pela lei no quadro duma sociedade democrática.” A partir daqui, é claro que, numa sociedade democrática que tem como ponto de partida o respeito pela dignidade da pessoa humana, a manutenção da ordem pública tem por finalidade a protecção dos direitos do homem, seria pois suficiente fixar como limite à liberdade religiosa o respeito pela ordem pública. Entretanto, o nosso legislador tentou ser mais explícito, pensando talvez na imprecisão do conceito de ordem pública, ou esforçando-se por ser mais concreto, por isso ele prescreve também o atentado aos direitos fundamentais. Mas é mais importante que o texto precise que ele se refere aos direitos fundamentais “do outro”. É o que faz o Pacto internacional relativo aos direitos civis e políticos (art.18.3): “A liberdade de manifestar a sua própria religião ou as suas próprias convicções será sujeita unicamente às limitações prescritas pela lei e necessárias para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral públicas, ou as liberdades e direitos fundamentais do outro.” (O sublinhado é nosso) O artigo 12.3 da Convenção americana dos direitos do homem emprega os termos similares; 86


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“A liberdade de manifestar a sua própria religião ou as suas próprias convicções será sujeito unicamente às limitações prescritas pela lei e necessárias para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral públicas, ou os direitos e liberdades do outro” (O sublinhado é nosso) A precisão que nós propomos não é inútil. Para começar, notemos que nestes dois textos internacionais não se fala somente dos direitos do outro, mas também da segurança, da ordem, da saúde ou da moral “públicos”, seja de terceiras pessoas. A razão está em que o exercício da liberdade religiosa pode ser limitada quando ela prejudica os direitos ou interesses do outro, porque se ela prejudica apenas ao que a exerce, no caso em que se trate duma pessoa sã de espírito e livre nas suas decisões, o princípio geral é que esta opção merece a tutela da legislação, porque o contrário seria um desconhecimento da dignidade da pessoa humana10. Assim, por exemplo, tratando-se da saúde como limite ao exercício da liberdade religiosa, faz-se notar que esta limitação diz respeito à protecção da saúde “pública”, tal como isto aparece nos textes internacionais que acabamos de citar. Um comportamento, fruto da liberdade religiosa individual, pode por em perigo a súde pública – por exemplo, uma pessoa que recusa, por razões de consciência, uma vacinação, quando o risco de duma epidemia existe, pode-se assim evocar a tutela da saúde pública para recusar o exercício da liberdade religiosa colectiva, alegando que a propagação dum credo representa um perigo para a saúde dos que o aceitam11. Em casos semelhantes, a tarefa do juiz consistirá em verificar que existe um risco para a saúde pública, caso a ordem pública entre em jogo, e que o risco não pode ser evitado senão for imposta a medida que se opões às convicções do indivíduo. Então, porque a livre escolha que põe em risco a saúde releva da tutela jurídica, é necessário que diga respeito à própria saúde duma pessoa e não da do outro. É assim impossível aplicar a tutela da liberdade religiosa a uma pessoa de saúde precária na incapacidade de se assumir ela própria ou a menor colocado sob a autoridade de seu pai por exemplo, logo que este, testemunha de Jeová, recusa que o seu filho receba uma transfusão de sangue. Neste último caso, em virtude da ordem pública e da protecção dos direitos do outro, os poderes públicos deveriam suplantar a autoridade paterna e adoptar as medidas necessárias para a protecção da vida ou da saúde ameaçadas. Assim, nos Estados Unidos – país onde a recusa dos tratamentos médicos por motivo de consciência recebeu a maior protecção -, nas decisões do Tribunal supremo que se referem aos tratamentos de 87


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menores contra a vontade dos seus pais, repete-se incansavelmente o argumento seguinte, como o sublinha Palomino; “Os pais são livres de fazer de seu filhos mártires antes que estes atinjam a idade do discernimento, em que eles próprios poderiam efectuar esta escolha12. O Projecto sublinha também que a “dignidade da pessoa” é um limite no exercício da liberdade religiosa. Esta menção parece muito singular. Pode-se notar, por exemplo, que os instrumentos internacionais dos direitos do homem, que já citámos, não a mencionam enquanto restrição deste direito fundamental. Falando de dignidade, fazemos referência ao que constitui em todo o ser humano a sua conduta inelutável, renunciar a ela, vê-la lesada ou menosprezada reduz a sua própria estima a um nível incompatível com a sua verdadeira natureza. A dignidade é inerente à natureza do homem. Não se trata dum direito do homem, mas do próprio fundamento dos direitos do homem. Estes direitos não vêm pela sua origem da atribuição jurídica da personalidade, mas da sua dignidade14. A dignidade, como fundamento dos direitos do homem, explica que o artigo primeiro da Constituição em vigor declara, antes da enumeração dos direitos fundamentais, que “a defesa da pessoa humana e o respeito pela sua dignidade são o objectivo supremo dos direitos fundamentais, que a defesa da pessoa humana e o respeito da sua dignidade são o objectivo supremo da sociedade e do Estado”, e que o artigo 10.1 da Constituição espanhola prescreve, no início da sua declaração de direitos, que a dignidade da pessoa e os direitos invioláveis que lhe são inerentes são, com o livre desenvolvimento da personalidade, o respeito da lei e dos direitos do outro, “o fundamento da ordem pública e da paz social”, O Projecto tem um conceito similar da dignidade, visto que ele fala da igual dignidade de todos os homens como presunção dos direitos e liberdades que lhes são inerentes (Preâmbulo), dignidade que é intangível (art. Primeiro do seu Título preliminar). Todo o direito que daí derivará será protegido pela Constituição para além dos que são enumerados nesta ou nos instrumentos internacionais sobre os direitos do homem (art.53. Está fora de dúvida que qualquer limitação dum direito fundamental não poderá atentar contra a dignidade. Em conformidade com o que declarou o Tribunal constitucional espanhol, a dignidade deve ficar inalterável qualquer que seja a situação em que a pessoa se encontre (…), constituindo, em consequência, um mínimo invulnerável que qualquer estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, quaisquer que sejam as limitações que se imponham no gozo de direitos individuais, eles não são acompanhados pelo desprezo pela estima que merece a pessoa, na qualidade de ser humano15”. 88


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Mas a “dignidade” do segundo parágrafo, art. 2.3 do Projecto, não é mencionado como este “mínimo invulnerável” face a possíveis restrições do direito à liberdade religiosa, mas como uma protecção de outras pessoas diante dum exercício abusivo deste direito. Assim, , parece-nos que esta condição será coberta pela “protecção dos direitos fundamentais do outro”, como temos sugerido mais acima, razão pela qual propomos que se elimine a menção dignidade da pessoa”. Terminamos o nosso comentário sobre a regulamentação dos limites da liberdade religiosa sugerindo que seja mudada a expressão “normas de ordem pública” simplesmente por “ a ordem pública”, porque, como o escreveu Rubio Correa – a propósito do art. V do Título preliminar do Código civil que fala de “leis que interessam a ordem pública” -, “a referência à ordem pública não visa particularmente as leis ou as normas legislativas, mas o conjunto de elementos que compõem os aspectos jurídicos da ordem pública […]. Por conseguinte, é mais apropriado utilizar a expressão “ordem pública” que outras tais como “leis que interessam a ordem pública” que têm sentidos mais restritos16”. A justo título, a Constituição actual fala de “a ordem pública” como limite à liberdade religiosa (art.2.3). 3. As objecções de consciência No segundo parágrafo do seu art. 2.19, o Projecto encara a objecção de consciência, regida pela lei. A objecção de consciência na recusa do indivíduo, por motivos de consciência, de se submeter a uma conduta que, em princípio, seria juridicamente exigível, quer ela provenha da obrigação duma norma legal, dum contrato, dum mandamento judicial ou duma resolução administrativa. E, ainda mais alargadamente, poder-se-ia afirmar que o conceito de objecção religiosa inclui toda a pretensão contrária à lei motivada por razões axiológicas não simplesmente psicológicas – de conteúdo primordialmente religioso ou ideológico, que tenha por objectivo a escolha menos prejudicial para a consciência pessoal, entre as alternativas previstas na norma, de iludir o comportamento contido no imperativo legal ou a sanção prevista pela sua inobservância, ou mesmo, aceitando o mecanismo repressivo, de obter a alteração da lei que é contrária ao imperativo ético pessoal17. A objecção de consciência pode ser invocada nos diversos domínios, principalmente aquando do serviço militar obrigatório, tratamentos médicos, face a práticas sanitárias que se impõem para preservar a saúde ou 89


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a vida, em caso de aborto, na recusa, geralmente do pessoal sanitário, de participar de modo directo ou indirecto em práticas abortivas, no domínio fiscal, recusando pagar a parte dos impostos cuja aplicação final fixada pelas autoridades repugna a consciência do contribuinte, no quadro do trabalho, logo que um trabalhador recusa, por razões de consciência, cumprir uma obrigação decorrente da sua relação de trabalho18. Em definitivo, a objecção aos tratamentos médicos é a mais polémica e a que exigiu constantes reflexões em matéria de doutrina e de jurisprudência, porque ela põe muitas vezes em jogo bens tão preciosos como a saúde ou a vida. Aqui, a objecção de consciência mais frequente diz respeito à prática de transfusões sanguíneas que as testemunhas de Jeová consideram como interdita por Deus, em consequência duma certa interpretação de certas passagens da Bíblia. A objecção de consciência é um dos fenómenos mais notáveis que o direito moderno conhece. Há somente alguns decénios antes, era pouco frequente e reduzia-se a alguns casos. Hoje, pelo contrário, há uma tal multiplicação de situações e de modalidades, de soluções possíveis, de pressupostos ideológicos, filosóficos, psicológicos e religiosos, que não se fala mais de objecções de consciência no singular, mas de objecções de consciência. As causas desta espécie de eclosão da objecção de consciência são variadas. Por um lado há a crise do positivismo legalista, que parte da hipótese que as determinações jurídicas contidas nas leis esgotam praticamente o conteúdo ideal da justiça. Por outro lado, o valor das motivações subjacentes aos comportamentos da objecção à lei, diferentes das que conduzem à pura e simples transgressão da norma, fundado apenas no egoísmo. Logo que uma pessoa faz objecção à lei, ela o faz, como se disse, por um mecanismo axiológico – um dever porá com a sua consciência – diferente da motivação puramente psicológica da pessoa que transgride a norma para satisfazer um capricho ou um vil interesse. É sem dúvida a razão pela qual o primeiro comportamento provoca uma certa reacção de respeito, traduzindo-se por uma espécie de perplexidade nos mecanismos repressivos da sociedade, o que contrasta com a rejeição frontal dos segundos comportamentos. Enfim, podemos mencionar como causa desta proliferação a metamorfose progressiva da própria regulamentação que, após ter estado na origem dum mecanismo de defesa da consciência religiosa face à intolerância do poder, chegou a reger também conteúdos éticos de consciência, não forçosamente ligados a crenças religiosas. 90


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Ao lado duma exaltação social generalizada de comportamentos em matéria de objecção de consciência e da revindicação sobre o plano jurídico que daí decorre, também se elevam vozes para alertar do perigo de totalitarismo da consciência. Uma certa denominação de ambivalência do princípio da liberdade de consciência, que poderia também ser o factor duma coexistência social mais livre do que um elemento de desagregação e de degradação das instituições da vida colectiva. Entretanto, convém lembrar que o recurso à objecção de consciência confirma a vitalidade da democracia garantindo um dos elementos políticos que fundam o sistema democrático do respeito pelas minorias19. Um dos debates que suscita a objecção é a sua cobertura jurídica. Habitualmente, as constituições não citam directamente a objecção de consciência como podendo ser alegada erga omnes nas suas manifestações muito diversas. Algumas somente se limitam no máximo a mencionar algumas das sua modalidades, particularmente a objecção ao serviço militar. Perante isto, alguns compreendem que a objecção de consciência é operante em todas as situações – como sendo a expressão do reconhecimento da liberdade de consciência e de religião – isto é, mesmo quando a forma concreta de objecção de consciência do qual se trata não é mencionada expressamente no texto constitucional – sem prejuízo, naturalmente, dos seus limites por razões de ordem pública ou de protecção dos direitos de terceiros. Isto é o que se denomina a objecção contra legen e que é considerada como a objecção de consciência por aceitável somente logo que o legislador a terá aceite expressamente, após uma avaliação dos interesses em jogo noutros termos, assim que ele terá tido uma interpositio legislatoris anteriormente. Nestas condições, nós pensamos que a questão não está tanto em admitir ou não admitir um direito geral e teórico à objecção de consciência como em precisar os seus limites. Trabalho de precisão que o legislador não será sempre em condições de fazer, nem por vezes deverá fazer, precisamente por causa desta faceta inédita e instável que o exercício do direito à liberdade de consciência e de religião apresenta. O velho problema da tensão entre a liberdade de consciência e de religião duma parte e a autoridade política da outra, mesmo se ele admite a proposta de alguns princípios abstractos, deve sobretudo ser resolvido pelo exame das condições práticas que podem ser propostas. No caso contrário, corre-se o risco de criar um aparelho lógico-jurídico que não poderá ser aplicado senão duma 91


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maneira forçada à experiência muitas vezes conflitual que o exercício do direito à liberdade de consciência e de religião propicia20. Esta é a razão pela qual, resolver com justiça os conflitos de objecção de consciência supões, em último recurso, um processo de equilíbrio de interesses – a que a jurisprudência da América do Norte chama um balancing process – que determina quando deve prevalecer a opção assumida em consciência e quando devem primar outros interesses sociais afectados nesta situação concreta. É talvez por isso que a objecção de consciência é pouco susceptível d e receber uma regulamentação maioritariamente legislativa, porque, a este nível, as respostas definitivas que se lhe podem dar são pouco numerosas, também a jurisprudência, chamada a resolver as controvérsias singulares que o exercício dos direitos provoca, tem um papel especial a jogar. Isto não significa que devíamos mudar um totalitarismo normativo por um outro jurisprudencial, que dispense de críticas as decisões judiciais adoptadas sobre a questão. Isto quer dizer simplesmente que em princípio, desta maneira, a jurisprudência está à altura de apreciar – melhor que a rigidez da norma – a plasticidade das situações vitais21. Para voltar ao Projecto, parece assaz estranho que se faça disso um exame geral da objecção de consciência, ainda que, a seguir, se reenvie a sua regulamentação à lei. Entretanto, por razões já expostas, pensamos que a lei terá dificuldade a dar uma resposta eficaz a todas a possibilidades de objecções de consciência. A realidade poderá acabar por transbordar e, no exercício do direito fundamental à liberdade de consciência e de religião, objecções de consciência contra legen poderiam aparecer. Isto porque, em nossa opinião, a jurisprudência é a mais apropriada para trazer soluções aos conflitos e para estabelecer critérios sobre limites de objecção de consciência. Por sua parte, a lei poderia encarregar-se das questões de actuação nos casos onde isto seria necessário22. 4. As relações entre o Estado e as confissões religiosas O artigo 71 do Projecto declara: “No interior dum regime de independência e de autonomia, o Estado reconhece a Igreja católica como elemento importante na formação histórica, cultural e moral do Peru e dá-lhe a sua colaboração. O Estado reconhece e respeita outras confissões e estabelece com elas modos de colaboração.” 92


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Este preceito, salvo a menção ao segundo parágrafo do reconhecimento de confissões diferentes do catolicismo, está presente tanto na Constituição de 1993 (art.50) como na de 1979 (art.86)23. O primeiro parágrafo, indicando o carácter de independência e de autonomia do qual beneficiam as relações entre o Estado e a Igreja católica, fixa com clareza o princípio de laicidade do Estado – que alguns chamam aconfessionalidade24. A laicidade valoriza o factor religioso, ela não se confunde com o laicismo, o que qualifica um estado que, por oposição com os Estado confessional, adopta uma posição de indiferença, a ver uma certa hostilidade, contra o religioso. O mesmo art.71 contém também o pricípio de cooperação (“colaboração”, do Projecto) do Estado com a Igreja católica e de outras confissões, estas são a demonstração da dimensão colectiva do direito à liberdade religiosa inerente à pessoa humana. São instituições independentes e autónomas em relação ao Estado, presentes na sociedade civil. Decorre daqui que o Estado laico, tal como ele é concebido em nosso tempo, para tornar efectivo o direito à liberdade religiosa, não pode, contrariamente ao que acontece com os direitos paralelos no domínio da educação, da beneficência, dos hospitais, etc., oferecer um serviço público do Estado, ele pode somente cooperar com as confissões religiosas para que estas tomem conta das necessidades religiosas dos cidadãos25. Como o disse Espin, esta obrigação constitucional para o Estado de cooperar com as confissões religiosas presentes na sociedade supõe que a norma suprema considera a satisfação das necessidades religiosas como sendo de interesse geral. Por conseguinte, o princípio constitucional de colaboração com as diversas confissões interdita uma política, não somente de hostilidade, mas mesmo de indiferença contra os sentimentos religiosos existindo na sociedade. A Constituição obriga a ter conta destes sentimentos, o que torna constitucionalmente obrigatória uma política de cooperação com as confissões religiosas26.Para Mantecón Sancho, pela consagração do princípio de cooperação com as confissões, reconhece-se ao mais alto nível – o nível constitucional – que o religioso constitui um dos elementos naturais da sociedade, e que este elemento, para além disso, é um factor social positivo. De outro modo, a cooperação do Estado com as confissões não teria fundamento razoável. Está aí um exemplo tangível das possibilidades de relação dum Estado aconfessional com as confissões. Assim, ultrapassa-se, com felicidade, a dinâmica confessionalidade­ ‑separação da Igreja e do Estado, que desembocou tão frequentemente no 93


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passado num laicismo aos repelões anti-religiosos, assim que triunfava a separação da Igreja e do Estado, ou o confessionalismo mais excluidor27. O preceito que comentamos menciona expressamente a Igreja católica, Esta menção, que reconhece a sua importância sociológica e a sua situação maioritária no nosso país, longe de supor um atentado à laicidade e à igualdade religiosa, serve precisamente para garantir um amplo reconhecimento da liberdade religiosa de todas as confissões onde o conteúdo da liberdade reconhecida à Igreja católica e às outras confissões é substancialmente o mesmo. Segundo a opinião de Ferrer Ortiz, acerca do artigo 16.3 da Constituição espanhola que pode muito bem ser aplicado ao preceito que comentamos, a inclusão da Igreja católica “volta a constitui-la em “paradigma extensivo de todo o tratamento específico do factor religiosos” (Viladrich) ou em “modelo de relação de cooperação” (Amorós)29. Como já o sublinhámos, o Projecto, a propósito do texto que figura na Constituição de 1979 e na que etá em vigor actualmente, anexa ao segundo parágrafo do art.71.1: O Estado ‘reconhece’ confissões diferentes da confissão católica. O verbo que se deseja introduzir tem um sentido muito preciso no domínio das relações entre o Estado e as confissões religiosas: com o reconhecimento do Estado, uma confissão adquire uma personalidade jurídica. Nos países como a Espanha, as confissões são reconhecidas pelo Estado pelo meio da sua inscrição no registo dos organismos religiosos. Graças a isto, elas adquirem uma personalidade jurídica e consequentemente, beneficiam de todos os direitos, faculdades, obrigações e encargos que correspondem às pessoas jurídicas civis – elas poderão então efectuar todas as espécies de empreendimentos jurídicos, comparecer e introduzir acções diante dos tribunais, etc. Entre as confissões inscritas, aquelas que, por sua importância e pelo número dos seus fiéis, terão atingido um enraizamento notório em Espanha, estarão habilitadas a passar acordos com o Estado, os quais poderão conter vantagens fiscais nos limites previstos para os organismos sem objectivo lucrativo e outros organismos de beneficiencia31. A transcendência do reconhecimento duma confissão, da qual pode terse dúvidas, faz com que este reconhecimento não possa ser automático para as confissões minoritárias, porque seria absurdo que um organismo desprovido duma finalidade e duma actividade religiosa ou dum certo 94


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grau de organização e dum certo número de fiéis, receba uma personalidade jurídica, com tudo o que isso supõe, e obtenha a cooperação do Estado32. É por isso que, como é o caso em Espanha, seria necessário que sejam os poderes executivos, sob controlo judiciário, que aprecie se a confissão que faz o pedido de reconhecimento reúna os elementos que acabámos de mencionar33. Bem entendido, as confissões são realidades que se constroem em conformidade com as suas próprias normas e independentemente do Estado, de modo que elas já existem quando o Estado as reconhece. De facto as confissões não reconhecidas não têm a protecção genérica do direito à liberdade religiosa – consagrado no art.2.3 do Projecto, como o temos visto, elas não beneficiam da personalidade jurídica e da possibilidade de receber a cooperação do Estado. Como o diz López Alarcón: “O reconhecimento civil, personificando o organismo religioso, não o cria na ordem confessional onde ele tinha já uma existência, mas dá-lhe vida nessa qualidade na organização do Estado como pessoa jurídica civil, isto é que o reconhecimento e a natureza constitutiva na ordem civil34.” Segundo este mesmo autor, trata-se então de três patamares diferentes de garantia da liberdade religiosa: Um primeiro patamar para as confissões não inscritas, um segundo, para aquelas que o estão, e o terceiro pra as confissões que têm acordo de cooperação35. Como se pode notar, com o reconhecimento geral das confissões que se propõe o Estado fazer, no segundo parágrafo do art. 71 do projecto, ele concederia a personalidade jurídica e a sua cooperação àquela que se autodefiniria como tal, sem levar em linha de conta se se trata duma entidade com actividades e fins religiosos, e se tem um mínimo de membros e de organização Talvez que dizendo que o Estado “reconhece” outras confissões, se diga que ele tenta dar força ao seu objectivo de as respeitar. Mas, para isso, a consagração da liberdade religiosa que ele estipula no seu art.2.3 é suficiente. A expressão escolhida (“O Estado reconhece …”) não traduz esta intenção, porque, como já o vimos, o reconhecimento, pelo Estado, duma confissão envolve um conteúdo e consequências muito precisas. Por isso sugerimos que se elimine a referencia ao reconhecimento no segundo parágrafo do ert.71 do Projecto. Bem entendido, uma lei sobre a liberdade religiosa, que o Peru ainda não possui, deverá regulamentar o reconhecimento das confissões, com as suas atribuições respectivas de personalidade jurídica e outros efeitos, 95


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assim que a assinatura de acordo de cooperação com o Estado, no caso de confissões que fazem prova dum enraizamento notório no nosso país e do conteúdo desses acordos. 5. Direito dos pais ao ensino religioso e moral dos seus filhos em acordo com as suas próprias convicções O Projecto não menciona a educação religiosa como parte integrante no respeito da liberdade de consciência, tal como consta no art.14 da actual Constituição. Será assim porque o art. 9 do Projecto prescreve o carácter obrigatório da formação ética e moral nas instituições educativas a todos os níveis? Nestas condições, propomos que a futura Constituição emendada garanta aos pais que os filhos receberão o ensino religioso e moral que esteja de acordo com as suas próprias convicções, direito que pode ser incluído num segundo parágrafo do art. 10 de Projecto, que fala dos direitos e deveres dos pais no domínio educativo36. O direito que sugerimos que seja introduzido visa tornar real e efectivo, no quadro da educação institucionalizada, o direito fundamental à liberdade religiosa tanto dos filhos como dos pais, porque cabe aos progenitores o dirigir o ensino religioso dos seus filhos menores37. Depois da Declaração universal dos direitos do homem de 1948, este direito encontra-se reconhecido como aquele pelo qual os pais dispõem dum direito preferencial para escolher o tipo de educação que será necessário dar a seus filhos (art.26.3). Comentando este artigo da Declaração, Verdoodt declarou: “Os pais [...] têm, em prioridade em relação a todas as outras pessoas e instituições, entre as quais o Estado, o direito de escolher o género de educação que deve ser dada a seus filhos, sendo entendido que não se trata de filhos maiores e que, na prática, o seu objectivo não é o de limitar a liberdade dos menores, mas de permitir a escolha duma escola cujo sistema de educação corresponda às convicções dos pais.” E aí está alguma coisa de primário e de fundamental que não poderá nunca ser ignorado nem violado: o direito a ser educado em liberdade. Uma projecção desta liberdade fundamental é precisamente o direito dos pais de se assegurarem que a educação religiosa e moral de seus filhos menores seja feita segundo as suas convicções”. Na mesma direcção que a Declaração universal dos direitos do homem, o Pacto internacional relativo aos direitos económicos, sociais e culturais obriga os Estados a garantir a liberdade dos pai em escolher para seus filhos 96


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escolas diferentes das criadas pelas autoridades públicas, na condição que elas satisfaçam as normas mínimas que o Estado prescreve em matéria de ensino, e de fazer que seus filhos recebam a educação religiosa e moral que esteja em acordo com as convicções de seus pais (art.18.4)40. O direito que estudamos está também presente na Convenção americana dos direitos do homem, que declara: “Os pais, ou eventualmente os tutores, tên direito a que seus filhos ou pupilos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com as suas próprias convicções”. (art.12.4)41. Como é este direito garantido? Pelo reconhecimento do direito a criar centros de ensino e a dotá-los dum modelo educativo, o que permite a escolha entre estabelecimentos de orientações ideológicas diferentes, oferecendo aos pais a possibilidade de escolher aquele que corresponde às convicções que eles desejam transmitir a seus filhos. E nos estabelecimentos públicos, com a garantia de neutralidade ideológica e propondo um ensino religioso facultativo para os alunos, porque, como o disse o Tribunal constitucional espanhol, esta neutralidade [...] não impede de organizar, nas escolas públicas, ensinos facultativos que tornem possível o direito dos pais em escolher para os seus filhos a formação religiosa e moral que esteja em acordo com as suas próprias convicções42”. Assim, o direito que examinamos – que temos observado até ao momento nas normas internacionais citadas, mas que, precisamente por esta razão, está em vigor nos nossos regulamentos 43, exige que o Estado ofereça nos estabelecimentos públicos um ensino religiosos em favor dos pais que o desejem voluntariamente para os seus filhos, pois deste modo estes pais verão garantir a formação religiosa de seus filhos segundo as suas próprias convicções. Chegou-se a dizer que a existência dum ensino religioso nas escolas públicas é uma exigência do conteúdo essencial deste direito 44. O ensino da religião não se justifica exclusivamente em virtude da fé de alguns cidadãos, mas também por causa da importância que tem para a formação integral da pessoa, finalidade da educação institucionalizada, como o proclama o Projecto no seu art. 7 45. O Estado, consciente do serviço que ele presta aos cidadãos, reconhece esta importância assim como o valor que as crenças religiosas têm para estes últimos, e dispõe-se, a partir do seu aconfessionalismo, a propor também, nos próprios estabelecimentos públicos, o ensino religioso que estes cidadãos desejam para os seus filhos 46. 97


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Consciente da importância do ensino da religião nos estabelecimentos de ensino, o Conselho da Europa emitiu a recomendação 1202 (1993) pela qual a Assembleia parlamentar convidou os governos a velar a que os cursos de religião e de moral figurem nos programas escolares (n. III), porque o conhecimento da sua própria religião ou dos seus próprios princípios éticos é uma condição que precede toda a verdadeira tolerância e pode assim servir de protecção contra a indiferença ou as presunções (n. IV) 47. Do mesmo modo, a recomendação 1396 (1999) declara que a democracia e a religião não são incompatíveis, antes pelo contrário. A democracia fornece o melhor quadro à liberdade de consciência, ao exercício da fé e aoo pluralismo religioso. Por sua parte, a religião, pelo seu compromisso moral e ético, pelos valores que defende, pelo seu senso crítico e pela sua expressão cultural, pode ser complemento precioso da sociedade democrática 48.” 6. Proposta de disposição constitucional Ao terminar, queremos propor as recomendações seguintes que representam as sugestões formuladas no decurso deste trabalho. Em todo o caso, salvo pelo art. 10 do Projecto onde ajuntamos um parágrafo que consagra o direito dos pais ao ensino religiosos e moral dos seus filhos, de acordo com as suas convicções, nós propomos ajustes ao texto já existente. Art. 2.3 (Toda a pessoa tem direito) À liberdade de consciência e de religião, de maneira individual ou colectiva. Ninguém sofrerá preseguição por causa das suas ideias ou convicções. O exercício de todas as confissões e crenças é livre, na condição que não atente contra os direitos fundamentais do outro e não altere a ordem pública 49. Art. 10. Os pais têm o dever de educar os seus filhos e o direito de escolher os centros e as modalidades de educação, assim como o participar na gestão do processo educativo, nos termos estabelecidos pela lei. O Estado garante o direito dos pais a que os seus filhos recebam o ensino religioso e moral que esteja em acordo com as suas próprias convicções. Art. 71. Num regime de independência e de autonomia, o Estado reconhece a Igreja católica como um elemento importante na formação histórica, cultural e moral do Projecto e dá-lhe a sua colaboração. 98


A Liberdade de Consciência e de religião na reforma Constitucional peruana

O Estado respeita as outras confissões e pode estabelecer formas de colaboração com elas. * Professor de direito constitucional, Universidade católica pontifical do Peru. Notas: 1. É também isto o que fará a Constituição de 1993 (art: 2.3). 2. É verdade que a Declaração Universal não seja o primeiro texto que fala dos direitos do homem. Isso é o que jáa nateriormente, a Declaração dos direitos do bom povo da Virgínia de 1776 (secção 16: «todos os homenes têm o direito igual ao livre exercício da sua religião»); em 1791, a primeira emenda à Constituição dos Estados Unidos («O Congresso não aprovará nenhuma lei pela qual se adoptará uma religião oficial do Estado ou se interditará de a praticar livremente»); a Declaração dos direitos do homem e do cidadão de 1798 (art. 10 «Ninguém deve ser inquietado por causa das suas opiniões, mesmo religiosas, desde que a sua manifestação não perutrbe a ordem pública estabelecida pela lei»). E a Carta das Nações Unidas de 1945 declara no seu art. 1.3, que um dos objectivos deste organismo é desenvolver e estimular o respeito pelos direitos do homem, sem fazer distinção de motivos, entre outros, de religião. Ver também art. 13 e 55) 3. Fala-se de «liberdade de pensamento, de consciência e de religião», por exemplo, no Pacto Internacional relativop aos Direitos Civis e Políticos (art.18), na Declaração sobre a Eliminação de todas as formas de intolerância e de descriminação fundadas sobre a religião ou as convicções, de 1981 (art. 1º) e na Convenção dos Direitos da Criança de 1989 (art. 14.1). 4. J. Ma. Beneyto Pérez, «Artícgo 16. Libertad ideológica y religiosa», in Comentarios a la Constituición española de 1978, O. Alzaga Villaamil (Dir.), II, Madrid, 1997, p. 324. 5. «Art. 16.1. É Garantida a liberdade ideológica, religiosa, e de culto dos indivíduos e das comunidades sem outros limites, nas manifestações, a não ser as que são necessárias para a manutenção da ordem pública proteguida pela lei» 6. Z. Combalía, «La salud como límite al derecho de libertad religiosa», in Persona y Derecho. Suplemento Humana Iura de Derechos Humanos 3,1993, p. 60, 61. 7. J. Calvo Álvarez, Orden público y factor religioso en la Constitución española, Pampelune, 1983, p. 250, 251. 8. J. Ma Beneyto Pérez, Article 16, cit., p. 324. 9. No quadro da ONU, seguindo o texto do Pacto, fala-se também de protecção dos direitos fundamentais «de outrem»: ver a Déclaração sobre todas as formas de intolerância e de descriminação fundadas na religião ou nas convicções (art. 1.3), e a Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989, (art. 14.1), referindo-se aos limites da liberdade religiosa do menos, 10. Z. Combalía, «La salud como límite...», op. cit., p. 78. 11. Um exemplo deste último caso é o que ocorreu em Espanha, onde a Durecção Geral dos Assuntos Religiosos recusou a inscrição no registo das organizações religiosas de Igreja da Cientologia, argumentando, entre outros motivos, que as práricas e actividades desta última afectavam negativamente a saúde pública, porque impedia os seus membros de receberem assistência médica competente e induzia-os a terapias que não são científicas e que são realizadas por pessoas incompetentes. (C. Combalía, op. cit., p. 72). 12. R. Palomino, Las objeciones de conciencia, Madrid, 1994, p. 311. 13. J. J. Solazábal Echevarría, «Dignidad de la persona», in Temas Básicos de Derecho Constitucional, III, M. Aragón Reyes (Coord.), Madrid, 2001, p. 114. 14. A. Aparisi Miralles, «Alacance de los derechos del hombre a la luz del pensamiento 99


A Liberdade de Consciência e de religião na reforma Constitucional peruana cristiano» in Anuario Fidelium Iura 9 (1999), p. 145. Eis porque o Pacto Internacional relativo aos Direitos Civis e Políticos começa por reconhecer que os direitos do homem «são parte da dignidade inerente à pessoa humana». 15. Sentence n° 120/1990, du 28 juin. Fondement juridique n° 4, 16. M. Rubio Correa, Nulidad y anutabilidad. La invalidez del acto jurídico, Lima, 1989, p. 134 17. R. Naarro-Valls et d. Martínez-Torrón, Las objeciones de con Conciencia en el derecho español y comparado, Madrid, 1997, p. 14. 18. Cf. sur tout ceci, R. Palomino, op. cit. 19. Cf. A. Ollero Tassara, Derechos Humanos y metodotogia jurídica, Madrid, 1989, cité par R. Navarro-Valls et J. Martínez-Torrón, op. cit., p. 8. 20. R. Navarro-Valls et J. Martínez-Torrón, Las objeciones de conciencia, op. cit., p. 25. 21. No quadro da jurisprudência, a tutela da objecção de consciência poderá ser informada por princípios de orientação que marcam as linhas de força canalisando esta protecção; estes princípos poderiam ser construídos pela própria jurisprudência. Poderão encontrar-se alguns destes princípios em R. Navarro-Valls et J. Martínez-Torrón, op. cit., p. 29-33. 22. Por questões de procedimento, entendemos as que são necessárias à aplicação da objecção de consciência. Por exemplo: em Espanha, por objecção de consciência ao serviço militar, a lei indica que o organismo era encarregado de reconhecer a situação de objector de consciência; que consistia a prestação de serviço social de substituição onde o pudesse ser efectuado; os direitos e deveres dos objectores de consciência, etc. (ver lei 22/1998, de 6 Julho, regulamentando a objecção de consciência e a prestação de serviço social de substituição). No mesmo sentido, a lei pode: estabelecer tipos de consciência neste caso, por exemplo: objecção de consciência ao aborto, como acontece nos Estados Unidos onde, na legislação sobre o aborto interditando, com sanções civis e mesmo penais, o tomar medidas descriminatórias contra todo o médico que se recusa, por motivos de consciência, a participar em acções abortivas (ver R. Navarro-Valls, « La objeción de conciencia al aborto en la legislación y jurisprudencia norteamericanas», in VV AA., Aspectos juridicos de lo religioso en una sociedad pluralista. Estudios en honor del Dr. Lamberto de Echevarria, Salamanca, 1988, p. 423-440). 23. Pode encontrar-se a génese e a discussão deste preceito na Constituição de 1979 em I,. A. Carpio Sardón, La Libertad reLigiosa en eL Pertí. Derecho Eclesiástico deL Estado, Piura, 1999, la. 113-131. 24. Num estudo sobre a Constituição espanhola, que poderia aplicar-se a outras legislações, a teoria distinguiu os seguintes princípios nas relações entre o Estado e as confissões religiosas: liberdade religiosa, laicidade do Estado, Igualdade religiosa e cooperação com as confissões (ver P J. Viladrich et J. Ferrer Ortiz, « Los principios informadores del Derecho eclesiástico español », in Derecho eclesiástico del Estado español, J. Ferrer Ortiz (Coord.), Pampelune, 1996, p. 115-152). Estes princípios também se encontram na nossa Constituição: liberdade religiosa (art. 2.3),igualdade religiosa (art. 2.2), laicidade do Estado e cooperação com as confissões (art. 50). 25. J. Ferrer Ortíz, « Los principios constitucionales de Derecho Eclesiástico como sistema», in Las relaciones entre La Iglesia y el Estado. Estudios en memoria del profesor Pedra Lombardia, Madrid, 1989, p. 319. 26. E. Espín, « Los derechos de la esfera personal », in Derecho Constitucional, I, L. López Guerra et coll., Valencia, 2000, p. 219. 27. J. Mantecón Sancho, «El reconocimiento civil de las confesiones minoritarias en España», in Libertad religiosa. Actas del Congreso Latinoamericano de Libertad Religiosa, Instituto de Derecho Eclesiástico, Lima, 2001, p. 144. 28. J. Ferrer Ortiz, op. cit., p. 320. 100


A Liberdade de Consciência e de religião na reforma Constitucional peruana 29. Idem, «Laicidad del Estado y cooperación con las Confesiones», in Anuario de Derecho Eclesiástico del Estado, III, 1987, pp. 244, 245. O artigo 16.3 da Constituição espanholae declara: « Nenhuma confissão terá uma carácter estático. Os poderes públicos terão em conta as crenças religiosas da sociedade espenhola e estabelecerão as relações de cooperação que se infere com a Igreja católica e as outras confissões.» 30. De acordo com o art. 5.1 da lei orgânica 7/1980, de 5 de Julho, sobre a liberdade religiosa, «As Igrejas, confissões, comunidades religiosas e as suas federações gozarão de personalidade jurídica uma vez inscritas no registo público correspondente, que é criado para esse fim no Ministério da Justiça ». 31. Art. 7 da lei orgânica 7/1980, sobre a liberdade religiosa. Em 1992, o Estado espanhol subscreveu acordos de cooperação com a Federação dos organismos religiosos evangélicos de Espanha, com a Federação das comunidades israelitas de Espanha e com a Comissão islâmica de Espanha. Esses acordos regulam aspectos importantes, tais como a definição e o estatuto legal dos ministros e dos locais de culto, o ensino religioso nos centros de ensino públicos ou sob contrato (centros privados sustentados por fundos públicos), a assitência religiosa nas forças armadas, os hospitais públicos e os estabelecimentos prisionais, os efeitos civis do casamento realizado religiosamente, as isenções fiscais, etc. 32. No caso contrário, nada impedirá o reconhecimento de uma entidade compasta, por exemplo, de um casal ou de um pequeno grupo de amigos.O enraizamento social é um elemento que é necessário ter em conta e que deve ser apreciado de maneira razoável no momento de avaliar um pedido de inscrição. Assim, em Espanha, de acordo com o professor Mantecón Sancho, «a maior parte das Igrejas evangélicas que pedem a sua inscrição não têm mais de 40 ou 50 fiéis. Fixar um número superios seria, por conseguinte, tendenciosamente injusto» (J. Mantecón Sancho, op. cit., p. 149). 33. Segundo os dados de Mantecón Sancho no ano 2000, havia em Espanha 1043 entidades inscritas, das quais 821 se definiam a si mesmas como evangélias ou p+rotestantes (551 destas últimas fazem parte da Federação de organismos evangélicos de Espnha), 156 são comunidades islâmicas (126 aderiram a uma das Federações islâmicas espanholas, que pertencem por sua vez à Comissão Islâmica de Espanha), 14 communides judaicas (das quais 13 formam a Federação dos comunidades israelitas de Espanha), 5 Igrejas ortodoxas, 3 comunidades de origem indú, 9 comunidades budistas e algumas outras comunidades menos conhecidas (J. Mantecón Sancho, op. cit., p. 157). 34. M. López Alarcón, «Confesiones y entidades religiosas», in Derecho eclesiástico del Estado español, J. Ferrer Ortiz (Coord.), Pampelune, 1996, p, 246. 35. Ibid., p. 225. 36. O art. 10 do Projecto estipula: «Os pais têm o dever de educar os seus filhos e o direito de escolher os estabelecimentos e as modalidades de educação, assim como participar na gestão do processo educativo, nos limites estabelecidos pela lei.» 37. A diferença do que se passa no nosso país, em algumas legislações, o criança, a aprtir de uma certa idade, pode exercer, ela mesma, o seu direito à liberdade religiosa. Para nos limitarmos a dois exemplos, na Itália, segundo o art. 1º da lei de 18 de Junho de 1986, nº 281, o menor, em geral de 14 anos, tem o direito de escolher se assiste ou não ao ensino de religião na escola secundária superior. na Alemanha, a lei sobre a educação dos crianças, de 15 de Julho de 1921 (Gesetz über die religiöse Kindererziehung), indica que a partir dos 14 anos, toda a pessoa tem o direito de escolher, livremente, a sua religião, e num considerando prévio a esta capacidade, atingindo a idade de 12 anos, a criança não pode ser obrigada a receber um ensino religioso deferente daquele que receu até então. 38. A. Verdoodt, Declaración Universal de los Derechos del Hombre. Nacimiento y significación, Bilbao, 1970, p. 246. 39. J. L. Martínez López-Muñiz, «El derecho a la educación en los instrumentos 101


A Liberdade de Consciência e de religião na reforma Constitucional peruana internacionales» in Hacia una cultura de dos derechos humanos. Un manual alternativo de los derechos fundamentales y del derecho a la educación, A. Fernandez (Ed,), Genève, 2000, p. 180. 40. Outros instrumentos da ONU que reconnecem o direito que estudámos são a Convenção Internacional sobre o estatuto dos refugiados (art. 4), a Convenção sobre o estatuto dos apátridas (art. 4), a Convenção Internacional sobre a protecção dos direitos dos trabalhadores emigrados e as suas famílias (art. 12.4) e a Convenção relativa à luta contra as discriminações na esfere do ensino (art. 2.b et 5.1.b). 41. De um outro lado, no quadro europeu, o art. 2 do Primeiro Protocolo adicional à Convenção Europeia dos direitos do homem ordena aos Estados para respeitarem «as convicções religiosas e filosóficas» dos pais na educação dos seus filhos. De igual forma, muitas Constituições europeias reconhecem esse direito, como a Constituição espanhola (art. 27.3 : «Os poderes públicos garantem o direito que assiste aos pais para que os seus filhos recebam a formação religiosa e moral que esteja de acorco com as suas próprias convicções), a lei fundamental da Répública Federal da Alemanha (art. 7), l Constituição irlandesa (art. 42), a Constituição italiana (art. 30) ou a Constituição belga (art. 24.3). 42. Sentence n° 5/1981 du 13 février. Fondement juridique n. 9. 43. Cf. art. 3, art. 55 et quarta disposição final da Constituição actual. 44. A. Martínez Blanco, «La enseñanza de la religión en el derecho español. Antecedentes, régimen y problemas actuales», in Anuario de Derecho Eclesiástico del Estado, IX, 1990, p. 173. 45. J. Fornés, «La libertad religiosa y la enseñanza de la religión en los centros educativos», in Libertad religiosa. Actas del Congreso Latinoamericano de Libertad Religiosa. Instituto de Derecho Eclesiástico, Lima, 2001, p. 242. Cf. aussi Auto del Tribunal Constitucional español, n. 40/1999, du 22 février. Fondement juridique n° 2. 46. C. De Diego Lora, «La garantía constitucional del artículo 27,3 de la Constitución española en los centros públicos de enseñanza», in VV AA., Las relaciones entre La Iglesia y el Estado. Estudios en memoria del profesor Pedro Lombardía, Madrid, 1989, p. 662. 47. Conselho da Europa – Assembleia parlementar, recomendação 1202 (1993) relativa à tolerância religiosa numa sociedade democratica, adoptada a 2 de Fevereiro de 1993. 48. Conselho da Europa – Assembleia parlamentar, recomendação 1396 (1999), Religião e democracia, adoptada a 27 de Janeiro de 1999. 49. Posteriormenta a este trabalho, o Congresso da República aprovou, a 3 de Outubeo de 2002, o preceito que contém o reconhecimento da liberdade religiosa, nos seguintes termos(art. 2.3) : «[Toda a pessoa tem o direito] à liberdade de consciência e de religião, de maneira individual ou colectiva. Nenhuma ideia ou convicção será objecto de perseguição. O exercício público de todasas confissões é livre, com a condição de não ofender a moral ou de não alterar a ordem pública.» O texto é o mesmo que o do art. 2.3 da Constituição en vigor, salvo suprimir a proscriçãp do delito de opinião por incluir, com todo o direito, no art. 2.4 que consaga as liberdades de informação, de opinião e de expressão. Modificámos as alíneas 1 e 2 do presente documento em vista desta aprovação, porque pensamos que eles permitem reconhecer os trabalhos parlamentares do art, 2.3 e porque o texto aprovado não difere substancialmente da nossa posição (lembramos que a leitura democrática da ordem pública visa a protecção dos direitos fundamentais); por conseguinte, na nossa opinião, os argumentos contidos nestes pontos continuam a ser pertinentes.

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Declaração de princípios Acreditamos que o direito a liberdade religiosa foi dado por Deus e afirmamos que ela se pode exercer nas melhores condições, quando há separação entre as organizações religiosas e o Estado. Acreditamos que toda a legislação, ou qualquer outro acto gover­namental, que una as organizações religiosas e o Estado, se opõem aos interesses dessas duas instituições e podem causar prejuízo aos direitos do homem. Acreditamos que os governos foram instituídos por Deus para manter e proteger os homens no gozo dos seus direitos naturais e para regulamentar os assuntos civis; e que neste domínio tem o direito a obediência respeitosa e voluntária da cada individuo. Acreditamos no direito natural inalienável do indivíduo a liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de ter ou de adoptar uma religião ou uma convicção da sua escolha e de mudar segundo a sua consciência; assim como a liberdade de manifestar a sua religião ou a sua convicção, individualmente ou em comum, tanto em publico como em privado, através do culto e da realização dos ritos, das práticas e dos ensinos, devendo, cada um, no exercício desse direito, respeitar os mesmos direitos nos outros. Acreditamos que a liberdade religiosa comporta, igualmente, a liberdade de fundar e de manter instituições de caridade e educativas, de solicitar e de receber contribuições financeiras voluntárias, de observar os dias de repouso e de celebrar as festas de acordo com os preceitos da sua religião, e de manter relações com crentes e comunidades religiosas tanto ao nível nacional, como internacional. Acreditamos que a liberdade religiosa e a eliminação da intolerância e da descriminação fundadas sobre a religião ou a convicção, são essen­ciais para promover a compreensão, a paz e a amizade entre os povos. Acreditamos que os cidadãos deveriam utilizar todos os meios legais e honestos, para impedir toda a acção contrária a estes princípios, a fim de que todos possam gozar das inestimáveis bênçãos da liberdade religiosa. Acreditamos que o espírito desta verdadeira liberdade religiosa está resumido na regra áurea: Tudo o que quereis que os homens vos façam, fazei-o a eles.

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