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B.B.Beach Liberdade religiosa ou fundamentalismo religioso?
Liberdade Religiosa ou Fundamentalismo Religioso?
Bert B. Beach *
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No título do tema que me foi pedido que apresentasse, a palavra “ou” deixa claramente aparecer que os conceitos de liberdade religiosa e de fundamentalismo religioso são antagónicos e até mesmo que se excluem mutuamente.
Contudo, originalmente, o adjectivo “fundamental” tem uma conotação positiva e nobre. Numa situação, uma política, ou mesmo uma religião, quando se fala do que é fundamental – o essencial – faz-se referência à sua natureza intrínseca ou ethos, o que caracteriza um conceito ou uma opinião e lhe dá o sentido, sem o que não existe fundamento sólido sobre o qual estabelecer e construir o que quer que seja, incluindo a liberdade.
Porém, desde há alguns anos o sentido da palavra “fundamentalismo” desviou-se de uma forma inquietante, passando da ideia de criatividade à de algo ideologicamente altamente limitativo – para não dizer, paralisante. E quando se trata de religião, o espartilho intelectual fundamentalista torna-se ainda mais apertado!
Este termo foi usado pela primeira vez nos Estados Unidos nos anos 1920. Nessa época referia-se a um movimento tradicionalista que se opunha à “religião liberal”, e, em particular à “crítica radical” onde o Evangelho tinha uma forte vocação socio-política, e evolucionista.
Desde então, é evidente que a palavra fundamentalismo evoluiu consideravelmente. Hoje, o fundamentalismo insinuou-se em todas as grandes religiões – o exemplo mais evidente era o Islão – e tornou-se num fenómeno perigoso à escala mundial. Trata-se, essencialmente, de uma reacção, às vezes violenta, de rejeição de tudo quanto é “moderno”, (incluindo a democracia) e de uma recusa à secularização.
A maioria das sociedades actuais é geralmente favorável a mudança e ao pluralismo. O fundamentalista, de uma forma geral, opõe-se à mudança, e mais particularmente, ao pluralismo das representações do mundo. Ele quer que apenas uma só e única visão – a sua – seja válida e, em consequência disso, ter o domínio do mundo. A sua concepção do mundo ou da religião, opõe-se, por vezes com raiva ou violência, às mudanças radicais que já perturbaram algumas sociedades ou ameaçaram fazê-lo. O fundamentalismo, como um sistema ideológico de pensamento orienta-
dor, exprime o seu ressentimento contra a secularização de sociedade e os seus corolários: moral permissiva, mundialização e materialismo consumistas e amorais.
O Século da Luzes, as revoluções americana, francesa e russa assim como a revolução científica dos dois últimos séculos, tiveram como consequências directas – ou mais frequentemente, indirectas – o haver menos interesse pela moral e por assuntos fundamentais como o pecado, e salvação e vida após a morte, em particular nas sociedades industriais do Ocidente. Dedicam-se cada vez mais a usar as oportunidades materiais concretas, para retirar o máximo. A tendência, pelo menos teoricamente, é para a liberdade e a tolerância – “viver e deixar viver” – o que favorece uma certa flexibilidade nos domínios cultural e socio-políticos.
Penso que o fundamentalismo religioso não repousa sobre uma questão doutrinária, mas mais sobre uma forma de julgar o mundo actual e insurge-se contra as sociedades permissivas. Esta reprovação transforma-se frequentemente numa oposição veemente, inflexível, impiedosa para com qualquer coisa nova, e pisa todos os direitos humanos dos defensores de opiniões diferentes e progressistas. O fundamentalismo exprime-se, não só nos media, mas também no sangue vertido, cada dia desde fanáticos cegos que em nome de Jesus, fazem explodir bombas em clínicas onde se praticam abortos até aos integristas doutrinários cujos engenhos explosivos matam cidadãos tranquilos em nome de Alá.
Apesar de todas as diferenças entre todas as correntes, podem ser observados certos pontos comuns inerentes ao tecido fundamentalista: a procura da pureza e da perfeição, de uma certeza, de uma tradição e de uma autenticidade absolutas, e a predilecção por uma visão do radical e global que controla – ou pelo menos influencia – todos os aspectos de vida. A importância dada ao passado, e à tradição, testemunham, muitas vezes, uma tentativa de “restaurar” alguma coisa que historicamente nunca existiu. Este sonho impossível caracteriza muitas expressões de fundamentalismo. Não é bom idealizar o passado, como se a vida num passado distante fosse maravilhosa, como se todo o mundo tivesse boa saúde, fosse bem alimentado, sóbrio, moralmente irrepreensível, feliz, e em paz.
O paradoxo do mundo moderno é que enquanto padrões científicos estão a ficar cada vez mais precisos e que se exige sempre mais exactidão nos discursos, os padrões morais torna-se mais vagos, cada vez mais imprecisos e dependem do contexto. Os fundamentalistas têm portanto, alguma razão para se insurgirem contra certos males das nossas sociedades como a queda da moralidade tradicional e as suas consequências: o aumento do laxismo e da exploração económica e cultural dos países do terceiro mundo e de certas categorias da sociedade ocidental.
Uma das razões chave que explica o crescimento do fundamentalismo
contemporâneo é a marginalização. Isto acontece quando um grupo – por razões raciais, étnicas, linguistas, religiosas ou económicas – se sente excluído na sociedade, impedido de participar no processo decisório. É este, cada vez mais, actualmente, o caso dos pobres. A rapidez dos transportes e das comunicações (que se tornaram praticamente instantâneas) ao nível mundial faz conviver estreitamente a miséria e a desigualdade social de que sofrem grupos inteiros das populações e quase imediata colocou, por um lado, a pobreza, a miséria, e as estruturas sociais desiguais para grupos inteiros de pessoas e, por outro lado, a riqueza e os privilégios. O fundamentalismo pode, portanto, constituir uma forma de protesto atraente, para aqueles que se sentem desesperadamente marginalizados e explorados.
O número daqueles que se sente “posto à margem” não cessa de crescer. No seio dos jovens Estados, que ganharam a independência e o título de nação, muitos cidadãos têm sede de consideração, uma consideração, que, crêem eles, deveria acompanhar a identidade nacional. Eles sentem-se humilhados pela hegemonia económica, cultural, e ocasionalmente militar exercida pelos Estados mais poderosos. O ressentimento dos marginalizados é, provavelmente o terreno mais fértil do fundamentalismo, e tende a relegar liberdade religiosa para segundo plano.
Muitos fundamentalistas religiosos, vêem, assim parece, nas nações laicisadas que estão a favor dos Direitos do Homem, um sinal, ao mesmo tempo, de perigo e de desafio. Para eles, um tal país não consegue estabelecer nos seus cidadãos a justiça social, a estabilidade familiar, a sobriedade, o respeito e a honra. O resultado – ou pelo menos a realidade que as nações laicas apresentam – traduz-se muitas vezes por taxas de criminalidade e de divórcio crescentes, a droga, a pornografia, a homossexualidade e a corrupção de governo nacional secular aparece grandemente ter aumentado o crime e taxas de divórcio, cultura de droga, pornografia, homossexualidade, e corrupção excessiva nos negócios e na vida política. Com isto em mente, os fundamentalistas são levados a considerar a liberdade religiosa e a democracia como pouco importantes, até mesmo, um luxo supérfluo.
Embora pudéssemos estar parcialmente de acordo com a crítica dos fundamentalistas, penso que o seu “remédio” é pior do que o “mal”! Como já mencionei acima, o pensamento e a solução do fundamentalismo alimenta-se de elementos da mitologia e de erros históricos. Enquanto os seus adeptos são em geral hostis à mudança, são, contudo, favoráveis a uma mudança bem específica: o regresso à “idade de ouro” da tradição e da perfeição. Este regresso às origens pode variar bastante: os muçulmanos fundamentalistas querem voltar aproximadamente mil anos atrás; para os cristãos isso vai do século XIX até àquilo que se chama o cristianismo unido da Idade Média, ao tempo dos Pais da Igreja, ou ainda
ao I século; alguns judeus fundamentalistas sonham com o período de teocracia e do antigo templo.
Os fundamentalistas procuram, cada um à sua maneira, fazer vingar a tradição, quer seja no regresso ao passado, à teologia dos pioneiros, ao heroísmo lendário dos cavaleiros teutónicos, à força moral dos Voortrekkers na África do Sul, ou à firmeza e a rectidão dos Puritanos na América do Norte.
São numerosos os que não desejam outra coisa senão uma mudança radical: colocar as suas opiniões religiosas no centro de vida familiar, no governo, nos tribunais, nos media, nas escolas e até mesmo no exército – numa palavra, em todos lugares. Os fundamentalistas religiosos de hoje têm, ao mesmo tempo, uma percepção retrógrada do mundo e da mentalidade actual. A sua tendência para a rigidez exige que todos sigam os princípios religiosos como um só homem, e infeliz daquele que se afaste do caminho correcto!
O fundamentalismo religioso parece progredir (o verbo “regredir” seria, neste caso, talvez mais apropriado) inelutavelmente para o extremismo religioso, o não respeito pelos Direitos do Homem e da liberdade religiosa, e por último, para uma aliança totalitária entre o Estado e a religião.
O fundamentalismo não está isento de complexidades e de paradoxos. Chega a evoluir em diferentes direcções e mesmo a contradizer-se. A actualidade mostra-nos, cada dia, que os fundamentalistas são capazes de agir ou de reagir de forma diferente, até mesmo de formas diametralmente opostas. Podem, muito bem, odiar outros fundamentalistas e combatêlos. Isso faz parte do quadro.
Mesmo se partilham com um grande número de crentes um “alto conceito” das Santas Escrituras, parece que os fundamentalistas religiosos tendem a fazer uma escolha selectiva dos textos que tiram da Torah, da Bíblia, ou do Corão. Usam frequentemente, para justificar a sua doutrina, textos fora do seu contexto. Muitos fundamentalistas devotos, usam passagens sem as questionar e aplicamnas de uma forma simplista, a situações actuais, sem qualquer hesitação. Alguns chegam mesmo a racionalizar interpretações extremistas das suas Escrituras para legitimar a sua luta para erradicar opiniões divergentes, caucionar o uso da violência e do terror, e prometer a “a glória aos mártires dos atentados suicidas” que matam pessoas inocentes.
Na perspectiva cristã, Deus inspira os Seus profetas, não para encorajar a intolerância e o dogmatismo rígido, implacável que conduz a perseguição, mas para dar inspiração espiritual, esperança, o amor, e uma linha de conduta razoável. A verdade que nos vem de Deus através dos mensageiros escolhidos por Ele conduz-nos à salvação, e, para retomar as palavras de Jesus, nos “tornar livres”. A humanidade está envolvida numa “guerra cósmica” onde a salvação e vida eterna estão em jogo. Mas, não se trata de um combate físico – nem conquista, nem jihad, nem cruzada,
nem envenenamento das mentes pelo ódio, nem guerra de extermínio entre crentes e infiéis – mas um combate espiritual entre a verdade e o erro. Não há nenhum lugar para recorrer a uma intransigência violenta, obstinada e impiedosa, nem a punições severas. Todos estes conflitos entre os homens não passam de falsos debates, que nos distraem da luta espiritual em favor dos corações e das mentes.
Em conclusão, a mentalidade fundamentalista é inaceitável, porque é incompatível com a dignidade humana: o ser humano é moralmente livre e tem o direito de se envolver nas suas crenças e convicções. Segundo penso, à resistência à liberdade, à razão, à educação e à criatividade está fundamentada no fundamentalismo. Onde quer que ele se encontre, o fundamentalismo demonstra beatice, fanatismo, rigidez e sectarismo, e isto, numa época em que o mundo, mais do que nunca, tem necessidade de mediadores e fomentadores da paz. O fundamentalismo tem um gosto pronunciado pelo controlo e justifica a sua recusa em dialogar e de aprender por causa da sua desconfiança para com as opiniões diferentes e as outras religiões. Devo rejeitar o fundamentalismo religioso porque ele encoraja o “ódio religioso” e reduz a nada a liberdade religiosa. Tentando preservar a verdade acerca de Deus, acaba por dar uma imagem terrivelmente deformada do carácter de Deus. O fundamentalismo religioso está em contradição com um Deus de amor e de liberdade.
*Antigo Secretário Geral emérito da IRLA e um dos actuais vice-presidentes