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R. Torfs A luta contra o ódio religioso - o método europeu
A luta contra o ódio religioso – o método europeu
Rik Torfs*
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Introdução
A questão do ódio religioso pode ser vista de um ponto de vista moral. E, nesse caso, vêem-se tensões enormes entre as altas aspirações da mensagem religiosa e os resultados práticos alcançadas pelos diferentes grupos que a reclamam. Mas pode pensar-se – e é uma opinião cada vez mais espalhada nestes últimos anos – que a luta contra o ódio religioso não é apenas um problema moral a ser negociado entre os grupos religiosos, mas também uma questão política e jurídica inevitável. A segurança, a coesão social e a co-existência pacífica vão, portanto, depender em grande parte, da forma como os líderes políticos, os juízes, os filósofos abordarem o assunto.
Neste estudo, devo analisar brevemente, três métodos diferentes utilizados actualmente na Europa para reduzir o ódio religioso. Quando se diz “A Europa de hoje” refiro-me à Europa logo a seguir ao 11 de Setembro de 2001. Com efeito vemos claramente que as primeiras reacções aos acontecimentos de 2001 já estão no passado. Mas se o choque dos atentados já passou, as consequências e a permanência das suas repercussões fazem-se sentir, mais do que nunca.
Uma primeira abordagem consiste em limitar a liberdade religiosa muito mais do que no passado, claro que sem ir além dos limites de artigo 9.2 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Uma segunda aproximação foca-se mais em proteger a religião, insistindo fortemente, no direito de exercer pacificamente essa liberdade.
Uma terceira abordagem não se prende tanto com os limites de liberdade religiosa, mas tenta controlar melhor a influência da religião sobre a sociedade. A religião pode muito bem ter uma visão da sociedade, contudo o oposto também é possível: a sociedade pode procurar um consenso mais inspirado por um código de conduta geral do que pela religião.
Descreverei estas três orientações incluindo exemplo recentes que ilustram claramente o meu objectivo. Tentarei, contudo, não recuar para além de 2003 de maneira a insistir na novidade de algumas tendências.
Rick Torfs
1. Limitar a liberdade religiosa.
Uma primeira maneira de lidar com o problema do ódio religioso, consiste em eliminar directamente todo o ódio eventual. Eis uma série de medidas possíveis. a) Introduzir a ideia do abuso do Direito, na esfera de liberdade religiosa. É uma estratégia muito arriscada o abuso do Direito vindo do Direito Privado, e mais concretamente do Direito de Propriedade. Pode-se imaginar como abusar da propriedade de outro, por exemplo construindo no seu próprio terreno um grande muro que impeça o vizinho de aproveitar a luz do dia. Este tipo de abuso não levanta nenhuma questão. Mas que dizer sobre o abuso dos Direitos do Homem? Falar sobre o abuso da liberdade religiosa, pondo de parte as cláusulas limitativas conformes com as convenções internacionais, pressupõe uma definição escondida da religião o que, em si, é incompatível com liberdade religiosa. b) A decomposição da liberdade religiosa em vários elementos, não é como tal muito difícil. A liberdade religiosa inclui a liberdade de consciência, de fé, de organização, de expressão, de manifestação… Podem-se seleccionar alguns componentes “perigosos” e abordá-los separadamente. Por exemplo, limitar a liberdade de expressão no caso em que ela conduza ao ódio religioso. Falo aqui de livre expressão das ideias por grupos religiosos. Sob este ponto de vista, a lei britânica de 2006 contra o ódio religioso, ou “Religious Hatred Act”, pode constituir um exemplo, se bem que ela se ajusta (e talvez até melhor) ao segundo grupo de medidas que eu descreverei mais adiante. Realmente, esta lei britânica foca mais os grupos religiosos que são insultados do que os religiosos que insultam outros. c) As medidas de segurança qualificadas de “neutras” são mais frequentes do que antes. Um exemplo: a proibição do uso da burka na rua pode ser definida como uma medida de segurança, mas ao mesmo tempo tem consequências claras para liberdade religiosa. Na Europa as disposições securitárias que afectam parcial ou maioritariamente os grupos religiosos são votadas sem grandes dificuldades. E nenhum caso Smith como nos EUA en 19901 era necessário para se chegar a uma interpretação semelhante da liberdade religiosa. d) Uma quarta abordagem concentra-se mais na neutralidade passiva sem que a segurança seja clara ou directamente envolvida. Aqui, a lei francesa de 2004 sobre os sinais religiosos ostensivos na escola constitui um exemplo eloquente. Os lenços usados pelas alunas não afectam em nada a segurança. Contudo, de acordo com os defensores desta lei, eles ameaçam a neutralidade ou a laicidade do Estado, implícita ou explicitamente considerados como valores de uma importância extrema para a coesão social. Por outras palavras, a segurança é criada por precaução em lugar de ser simplesmente garantida em momentos difíceis. Ela é criada através de coesão social, a qual requer que os grupos religiosos se mantenham fora da esfera pública e permaneçam invisíveis.
Muçulmanos em oração. Foto Churchphoto/Gerhard Grau
No fim de 2006 uma medida semelhante foi tomada na Bélgica, com respeito aos funcionários civis que trabalham na cidade de Anvers. No futuro, o uso dos lenços deixará de ser autorizado. Será que se trata de uma medida de segurança? No fim de contas, talvez. Na hora actual este será mais um meio de estimular a coesão social, mesmo se esta forma de agir não é nem generosa nem atraente.
2. Mais protecção para a religião.
As limitações descritas na primeira parte representam as reacções “previsíveis” das autoridades após o 11 de Setembro de 2001. No entanto, outra estratégia emerge, pouco a pouco, na Europa que consiste em demonstrar boa vontade para com os grupos religiosos esperando receber o pagamento por isso. Esta abordagem também pode ser um sinal do poder crescente dos grupos religiosos. Como frequentemente na sociedade, os poderosos são temidos e assim são mais protegidos do que controlados. Pode mesmo dizer-se que de certa forma, a falta de coragem moral é uma das características de política europeia desde a Segunda Guerra Mundial. De qualquer maneira, desejo ilustrar esta nova tendência com cinco exemplos: a) A jurisprudência do Tribunal Europeu em Direitos do Homem (CEDH) é, bem entendido, sem-
Rick Torfs pre pertinente. No que se refere a liberdade de expressão, o Tribunal tem-se mostrado sempre generoso. Já no caso Handyside v. Reino Unido de 7 de Setembro de 1976, a liberdade de expressão (art. 10 da Convenção Europeia) foi definida como um dos elementos essenciais do Estado democrático, e uma das condições primordiais do seu progresso e da sua prosperidade. Um vasto leque de ideias pode e deve ser expresso. Isso diz respeito não apenas as ideias bem aceites, ou consideradas como inofensivas e sem consequências, mas também as ideias podem magoar, chocar ou inquietar. No entanto, a liberdade tem os seus limites. O legislador pode, em cada país, impor restrições, na medida em que estas preencham três condições simultaneamente: (a) estarem consignadas numa lei, (b) ter um objectivo legítimo e (c) serem necessárias a uma sociedade democrática.
b) Desde o caso Markt Intern Verlag Gmbh e Klaus Burman v. República Federal da Alemanha de 1989, a liberdade de expressão foi explicitamente estendida à comunicação comercial. Mas, ao mesmo tempo vemos, que, neste domínio preciso, o controlo do Tribunal Europeu sobre as possíveis limitações impostas pelos Estados membros é menos pormenorizado. Noutros termos, as três condições que precisam de ser observadas para impor restrições permanecem mas a Convenção Europeia dos Direitos do Homem deixa às autoridades estatais, uma maior margem de avaliação. Porquê? Porque se a liberdade de imprensa é um assunto de alto interesse geral, a livre comunicação comercial parece ser uma causa menos nobre. Ela não constitui, contrariamente, à liberdade de imprensa, uma das pedras angulares da moderna sociedade democrática.
Em resumo, certos aspectos de liberdade de expressão, incluindo a comunicação comercial, não estão tão solidamente protegidos quanto a terminologia usada no caso Handyside pode sugerir.
Ao mesmo tempo, a liberdade religiosa está melhor protegida do que antes. Isso torna-se evidente quando se trata de um domínio em que um conflito entre a liberdade de expressão e liberdade de religião já não pode ser automaticamente excluído. Tomemos como exemplo o caso Otto Preminger Institut v/ Áustria de 20 de Setembro de 1994. Neste litígio o CEDH aceitou a interdição pelas autoridades do Tirol de um filme abertamente anti-clerical, com a motivação do direito dos fiéis praticarem a sua religião em paz.
Em todo o caso, o próprio Otto Preminger Institut descreve a religião como um dos elementos vitais que contribuem para a formação da identidade de cada um. Este princípio conduz a duas ideias, desde logo compatíveis, numa primeira abordagem e, no entanto, muito diferentes. Primeiramente, cada pessoa tem o direito para acreditar ou não acreditar, e de manifestar a sua religião sem interferência do Estado. Este aspecto da liberdade religiosa é bastante tradicional e não surpreende ninguém. Em segundo lugar, a liberdade religiosa também inclui o exercício calmo da religião e, em contrapartida,
Rick Torfs esse direito deve ser garantido pelo Estado. Nenhum problema existe contanto que o estado proíba qualquer violência, o recurso à força e à intimidação que podem importunar os crentes. Mas, o que acontece em caso de insulto ou blasfémia? Poder-se-á, com efeito, declará-los incompatíveis com o exercício calmo da religião. Mas deve dar-se esse passo? A este nível, um conflito entre liberdade de expressão e liberdade religiosa tornase, com efeito, muito plausível.
Voltando ao assunto Otto Preminger Institut, dado o estatuto jurídico muito diverso na Europa, a margem de avaliação concedida a Estados membros deve, num caso como este, ser bastante grande.
Porquê mencionar explicitamente a jurisprudência do CEDH? Primeiramente, claro, por causa da sua importância capital para o Direito europeu e para a jurisprudência em geral. Mas há uma outra razão. É que a liberdade de expressão parece estar ligeiramente menos protegida de que há algumas décadas atrás, quando a liberdade religiosa parecia gozar de uma melhor protecção. Esta evolução tem algumas consequências sobre as eventuais estratégias de luta contra o ódio religioso na Europa. Limitar a liberdade de expressão tendo em vista salvaguardar a prática tranquila da religião, incluindo o direito de não ser ferido nos seus sentimentos religiosos, não é completamente incompatível com a posição do Tribunal Europeu. O que segue, ilustra esta tese. c) Em 2006, foram aprovadas novas leis contra o ódio religioso no Reino Unido, destinadas a todo o incitamento ao ódio contra pessoas por causa da sua religião – e já não só a sua raça. Elas visam impedir, quem quer que seja, de adoptar um discurso, ou um comportamento violento com o propósito, deliberado, de suscitar o ódio contra outro por causa das suas crenças. Era necessária uma nova lei? Os sikhs e os judeus já beneficiam de uma protecção alargada porque os tribunais os consideram como raças distintas. Mas os cristãos, os muçulmanos e outros não gozam da mesma protecção porque não constituem um grupo étnico particular. A Irlanda do Norte aplica as suas próprias leis para lidar com discriminação sectária entre os protestantes e católicos.
O que acontecerá se alguém se mostra hostil a uma religião porque a considera como uma ameaça? A esta questão, o governo britânico responde que os critérios que permitem determinar o que constitui um incitamento ao ódio são suficientemente elevados para garantir, como nunca antes, o prosseguimento de debates livres e animados sobre as crenças.
A versão definitiva da lei foi modificada sob a pressão da Câmara dos Comuns. Contém garantias específicas em matéria de liberdade de expressão, segundo as quais não pode ser declarado culpado a não ser que se incite voluntariamente ao ódio. Apenas as palavras e os actos ameaçadores serão proibidos, e não os comportamentos simplesmente críticos, injuriosos ou insultuosos.
Esta distinção, foi objecto do artigo 29 J do Religious Hatred
Rick Torfs Act: “Nada nesta secção deve ser interpretado como interditando ou restringindo, a possibilidade de criticar ou de exprimir a sua antipatia ou a sua aversão, ou de utilizar o escárnio, ou a injúria contra certas religiões, ou as crenças, ou práticas dos seus membros, ou ainda, não importa contra que sistema de pensamento ou as crenças e práticas dos seus adeptos, nem como interditando o fazer proselitismo, ou de atrair os aderentes de uma outra religião, ou de outra convicção, para que deixe de praticar a sua religião ou de seguir a sua convicção”.
Este texto é compatível com o resto da Lei? O futuro o dirá. Em todo caso, o Religious Hatred Act dividiu a sociedade britânica. Uma sondagem da BBC efectuada entre 8 e 10 de Julho de 2005 mostrou que os defensores da nova Lei eram quase tão numerosos como os defensores da livre expressão. d) A questão da blasfémia voltou a estar em cena. Sobre este assunto saliento dois casos particularmente significativos.
Muitos muçulmanos consideraram que o romance de Salman Rushdie, Os Versículos Satânicos, continha blasfémias contra o Islão, e o líder espiritual Iraniano, Ayatollah Khomeini, proclamou em 1989, um fatwa reclamando a morte do escritor britânico. Na realidade esta fatwa devia-se à declarada apostasia de Rushdie, e não às blasfémias supostamente figurando no romance. Contudo, foram estes últimos que suscitaram o debate. Muçulmanos britânicos pediram que Rushdie fosse levado perante os tribunais britânicos por blasfémia, mas nenhuma condenação lhe foi aplicada, porque o sistema legal inglês apenas reconhece a blasfémia contra o cristianismo.
O caso Salman Rushdie criou toda uma polémica: alguns pediam que todas as religiões pudessem beneficiar da mesma protecção contra a blasfémia, ao passo que outros classificavam de anacrónicas as antigas leis britânicas sobre a blasfémia e reclamavam a sua abolição. Finalmente, a lei não foi emendada.
No entanto, em 2005 perante a controvérsia sobre as caricaturas do profeta Maomé publicadas na Dinamarca, muito mais pessoas se pronunciaram a favor de uma restrição da liberdade de expressão em caso de blasfémia. O escritor socialista, flamengo, Kristien Hemmerechts disse na televisão durante um debate: “Se o preço a pagar é uma pequena restrição da liberdade de expressão ficaria contente. Não deveríamos reclamar”. Outros continuam a defender a liberdade de expressão, ou a fazer uma distinção entre a liberdade de expressão jurídica e cortesia social, que leva, por vezes, a escolher não ultrapassar certos limites em sociedade. Em todo o caso, enquanto que por ocasião do caso Salman Rushdie, os europeus, de um modo geral, pareciam pouco disposto castigar a blasfémia, a situação parece muito menos clara em 2005-2006.
Muitos países europeus ainda têm legislação sobre a blasfémia, como a Áustria (artigos 188 e 189 do código
Contraste chocante entre um bairro muito frequentado de Las Vegas, nos Estados Unidos, à noite (foto chuerchphoto Sascha/Schuster) e uma simples família beduína diante da sua tenda (foto churchphoto/Gerard Garu).
Rick Torfs penal), a Finlândia (secção 10 de capítulo 17 do código penal), a Itália, e os Países Baixos (artigo 147 do código penal), a Espanha (artigo 525 do código penal) e, como já vimos, o Reino Unido. E mesmo que na hora actual, estas normas são pouco, na verdade, aplicadas, uma vez que elas existem, nada impede que coisas possam mudar. e) A protecção dos símbolos religiosos em detrimento da liberdade de expressão em França. À primeira vista, esta fórmula pode surpreender.Todavia, até mesmo no país de laicidade existe uma tendência para uma melhor proteção dos sentimentos religiosos. Esta evolução pode ser ilustrada por uma decisão do Tribunal de Segunda Instância de Paris de 8 de Março de 2005. Embora o Supremo Tribunal tenha anulado esta decisão a 14 de Novembro de 2006, o caso merece ser discutido com mais detalhe.
A sociedade Marithé François Girbaud, tinha lançado uma campanha publicitária para uma coleção de pronto-a-vestir feminino e escolheu como elemento de atracção um célebre quadro de Leonardo da Vinci intitulado A Santa Ceia. Mas, nos cartazes, em lugar das personagens, figuravam mulheres com roupas da marca e sentadas em posições similares às de Jesus e dos Seus discúpulos. O cartaz apareceu na imprensa, e também foi afixado nas ruas de Paris. A Association Croyances et Libertés levou o caso perante os tribunais defendendo que a campanha publicitária ofendia os sentimentos religiosos dos católicos de uma forma intolerável. O juiz de primeira instância compartilhou este ponto de vista, e qualificou a campanha como um “acto de intrusão agressiva e gratuita, no mais fundo das crenças íntimas2” de natureza a ferir diretamente os espectadores involuntários que se encontram na via pública.
O Tribunal de Segunda Instância de Paris confirmou esta decisão. Segundo o seu parecer, a utilização de um dos maiores símbolos do Cristianismo para fins comerciais e publicitários constituiam uma grande injúria feita aos católicos, causando assim, uma manifesta perturbação ilícita.
Esta decisão revelou uma nova tendência para restabelecer o delito de blasfémia em França? Alguns observadores responderam afirmativamente. O jornal Libération, por exemplo, publicou a 12 de Março de 2005 um artigo intitulado: “O regresso em graça da blasfémia”. Outros, como o jurista legal Alain Gautron, são mais moderados. Contudo, o título de um artigo que ele escreveu exprime bem o dilema do debate: “A exploração publicitária dos símbolos religiosos e o juízo: em busca de um equilíbrio entre a liberdade de expressão e o direito ao respeito pelas convicções íntimas”.
No seu artigo, Alan Gautron explica porque, segundo ele, neste caso, O Tribunal de Segunda Instância tinha o direito de dar prioridade à protecção das convicções íntimas dos crentes. Os criadores da publicidade tinham utilizado um símbolo religioso fun-
damental para um fim exclusivamente comercial. Neste caso concreto, encontramos os quatro elementos constitutivos de um insulto, isto é (a) uma expressão caracterizada por uma terminologia insultuosa desdenhosa; (b) visando uma pessoa determinada; (c) com más intenções; (d) o carácter público da ofensa.
Já em 1985, professor Lindon, fazendo um comentário sobre uma decisão do Tribunal de Primeira Instância em Paris datada de 1984, do caso Avé Maria, escreveu que num caso como este, uma decisão contra a ilimitada liberdade de expressão como este não deveria ser vista como a vitória de uma doutrina religiosa, mas mais como uma contribuição para o espírito de respeito recíproco que é um dos elementos de paz pública.
Esta sábia conclusão soa como justa mas podemos perguntar se o respeito recíproco deveria ser realmente dotado de um estatuto jurídico, com o risco de limitar um direito tão essencial como liberdade de expressão.
Afortunadamente, na minha opinião, no caso Girbaud o Supremo anulou a decisão da Relação a 14 de Novembro de 2006. Ele julgou que a publicidade não pretendia insultar os crentes católicos e que não se tratava portanto, de um ataque directo e dirigido contra um grupo de pessoas por causa da sua filiação religiosa. Por conseguinte, não se pode falar aqui de uma perurbação manifestamente ilícita.
Contudo, retira-se disto tudo que, mesmo em França, não se desenha uma tendência para proteger as religiões em detrimento da liberdade de expressão. f) Em 2006, o então Ministro da Justiça holandês, Piet Hein Donner fez uma declaração que causou muita controvérsia. Segundo ele, os Países Baixos deveriam acolher o Islão como um novo pilar da sociedade. E acrescentou: “E também seria verdade no caso da sharia ser adoptada. Se dois terços dos holandeses escolhe se declararem a favor da sharia, então dever-se-á aceitá-la”. Para Donner, tal é a essência da democracia: é a maioria que importa. Depois, atenuou as suas declarações. Sejamos honestos, a democracia significa mais do que a lei do maior número. Comporta também o Estado de Direito e a aplicação estrita dos direitos fundamentais inclusive a liberdade de imprensa. No entanto, a opinião de Donner simbolisa uma mudança do paradigma. Pouco depois do 11 de Setembro, as medidas restritivas para com a religião parecem o melhor meio de garantir a segurança. Mas hoje, adopta-se, cada vez mais, uma atitude de abertura – por vezes até de receio – para com os grupos religiosos.
3. O Esperanto Moral
Moreel Esperanto é o título original de um livro do autor holandês Paul Cliteur publicado em 2007. Erudito brilhante, Paul Cliteur passa por ser o representante da corrente de pensamento mais liberal (no sentido europeu do termo) neste momento.
Ponto de partida do seu raciocínio: vivemos numa época confusa.
Rick Torfs Os julgamentos morais baseados na religião entram em conflito com juízos morais não baseados na religião. Como podemos reduzir esta tensão? Paul Cliteur adopta uma atitude céptica face ao tradicional apelo ao diálogo. Para ele, este diálogo implica geralmente uma atitude menos crítica para o fenômeno religioso que acompanha muitas vezes uma autocrítica sobre a nossa arrogância ocidental. Chegando assim ao seguinte raciocínio: uma vez que os terroristas se sentem frequentemente insultados e humilhados, admitindo a nossa culpabilidade, podem abrandar a sua raiva.
Paul Cliteur rejeita tal argumento que, aos seus olhos, reforça os religiosos fanáticos na sua opinião. Se passamos o nosso tempo a desculpamo-nos, eles ficarão cada vez mais convencidos de que têm razão. Paul Cliteur propõe uma alternativa: procuremos encontrar um consenso que possa servir de base a uma sociedade multiconfessional. Mas procurê-molo numa ética de independência, sem fundamento religioso.É este esperanto moral que os crentes e os não crentes podem e devem praticar.
Paul Cliteur desenvolve a sua argumentação em três partes. Na primeira, descreve os fortes laços entre ética e religião para em seguida os rejeitar: o Bem equivale à vontade de Deus, e Deus não diz o que devemos fazer. Claramente, este não é o caminho que Cliteur quer seguir.
Na segunda parte, propõe uma alternativa a esta forma de pensar: a ética independente. Só o esperanto moral torna possível um diálogo verdadeiro. Ele ilustra o seu ponto de vista com um exemplo. Imaginemos uma sala na qual se encontram pessoas de diferentes nacionalidades. Naquela situação, as pessoas comunicam-se, geralmente, numa língua que todos compreeendam. Seria estranho que alguém reivindicasse alto e bom som, o direito de se exprimir na sua própria língua e que continuasse a falar na sua língua, embora ninguém na sala esteja capacitado para a compreender. A conclusão parece evidente: a ética independente, se bem que imperfeita, é a única solução.
Na terceira e última parte do livro Paul Cliteur aplica a ética independente à política e à sociedade. Ele luta por uma separação estrita entre religião e o Estado. Este deveria considerar as pessoas como cidadãos, não como membros de grupos religiosos. Eis porque a abordagem de paul Cliteur não é multicultural mas antes universal. Aos seus olhos, uma sociedade multicultural deveria ser regulada através de uma ética independente em relação com um Estado neutro.
O raciocínio de Paul Cliteur é emblematicamente decorrente do actual pensamento europeu. Parece muito racional, contudo pode ser criticado em três níveis diferentes.
Primeiramente, Paul Cliteur tem uma concepção muito racional da ética. Por exemplo, ele critica a ética pregada por Jesus Cristo por não ser realmente sistemática, embora disso lhe venha a sua força. Com efeito, quando a ética é elevada a sistema,
Rick Torfs a abordagem dedutiva é inevitável e o sistema é aplicado à realidade. Desnecessário é dizer que este tipo de abordagem é altamente discutível.
Em segundo lugar, a análise de Paul Cliteur denota uma compreensão superficial do fenómeno religioso. É a característica actual de um bom número de filósofos. Ele escreve: “Cada um é livre de acreditar num ou mais deuses”. Juridicamente esta declaração está absolutamente correcta. Mas poderá ela aplicar-se realmente à vida diária? É como se se dissesse: “Todo o mundo é livre de se apaixonar”. Mas como explicar isso a adolescentes cheios de sonhos, e de desejos? Apaixonar-se não é propriamente falar em escolha e certamente não uma escolha racional. O mesmo é válido para a religião e a fé.
Em terceiro lugar, o que pensar do esperanto? É um idioma inventado pelos homens mas não foi criado a partir do nada. Já existiam outros idiomas antes dele que tomaram forma ao longo do tempo e que são as mais praticadas. O esperanto permanecerá sempre uma língua artificial e os homens têm mais facilidade em falar línguas que não criaram a partir de diversas peças.
Conclusões
Das três tentativas que apresentei neste artigo, nenhum deles é totalmente convincente.
A primeira teve um certo sucesso pouco depois do 11 de Setembro de 2001. Ela tendia a privilegiar a segurança à custa da liberdade religiosa ignorando o facto de que, em muitos casos, o antagonismo entre os dois é apenas uma ilusão. Frequentemente, com efeito, a liberdade religiosa contribui para a segurança.
A segunda é mais recente. Tenta pela via da Lei e da jurisprudência, limitar os insultos ao carácter religioso e a blasfémia insistindo no direito que cada um tem de usar a liberdade religiosa pacificamente. É evidente que o respeito pelas religiões é uma atitude mais positiva; no entanto, esta segunda abordagem concentra-se demasiado no conflito entre a liberdade de expressão e a liberdade religiosa. Isto é lamentável por duas razões. – Primeiramente, liberdade de expressão reveste ainda uma importância capital; sem a crítica e a autocrítica, a Europa deixaria de ser ela mesma. – Em segundo lugar, é necessário evitar pôr em oposição a liberdade de expressão e a liberdade religiosa. As duas ocupam um lugar fundamental no seio dos Direitos do Homem.
A terceira abordagem, o esperanto moral, é talvez muito racional e, mais do que isso, muito artificial para se tornar na solução do futuro. Trata-se mais de um sistema a ser posto no lugar de uma resposta às interrogações das pessoas e da sociedade.
Qual destas abordagens deveria ser privilegiada na Europa? Eu adoptaria por uma atitude favorável à liberdade religiosa e aos grupos religiosos, mas que daria importância aos outros direitos do homem em geral e à liberdade de expressão em particular. Eis porque as medidas jurí-
dicas contra os insultos ou blasfémias representam um perigo. Mas convém fazer a distinção entre o direito de exprimir as ideias desagradáveis e o comportamento real das pessoas. Tudo o que pode ser expresso não deve necessariamente ser dito, especialmente em matéria de opiniões religiosas. Isso aplica-se também às relações humanas no quotidiano, incluindo ao seio do casal.
A Europa sob o seu melhor aspecto é uma terra de liberdade religiosa generosa indo a par de uma liberdade de expressão corajosa e com a educação e o fair-play necessários para que o uso desses dois direitos se faça no respeito devido aos crentes, às ideias e aos sentimentos dos outros.
* Professor. Membro da Comissão para o Diálogo intercultural do governo, Bélgica.
Notas: 1. Referência ao assunto Employment Div. Dept. of Human Resources of Oregon v/Smith, em que o Supremo Tribunal dos Estados Unidos, numa sentença pronunciada em 1990, afirmou a constitucionalidade da interdição feita aos Ameríndios de comsumir, para fins religiosos, uma droga chamada peyote. O julgamento provocou protestos da imensa maioria das denominações religiosas, presentes nos Estados Unidos. Ludovic HENNEBEL, “Tea-Party em Washington: O uso de drogas para fins religiosos, perante o Supremo Tribunal dos Estados Unidos”. Site Direitos Fundamentais, Arquivos nº 5, Janeiro/Dezembro de 2005, Nota de actualidade. www.droitsfondamentaux.org/article.php3?id_article=108. 2. Citação do Le Monde, edição de 12 de Março de 2005. Artigo de Xavier Ternisien, “La Cène détournée de Marithé et François Girbaud est interdite d’affichage”.