24 minute read
R.M. Martinez A resposta de Espanha à intolerância religiosa: da de Codes intolerância institucional à tolerância institucional
A Resposta de Espanha à Intolerância Religiosa: da intolerância institucional à tolerância institucional
Rosa María Martínez de Codes *
Advertisement
A história de Espanha no decurso dos últimos cinquenta anos constitui uma excelente base de análise e de reflexão sobre a transição entre a intolerância institucional e uma tolerância institucional em matéria de religião.
Nesta apresentação gostaria de introduzir vários elementos de natureza histórica, política e jurídica que explicam a importância do binómio de intolerância/tolerância religiosa no processo de consolidação do Estado democrático em Espanha1 .
Ouvimos em numerosas ocasiões dizer que sem memória não há futuro. O presente não tem nenhum sentido se não somos capazes de tirar lições do nosso passado. Também me parece útil evocar a voz e palavras daqueles que tornaram possível a transição religiosa em Espanha.
Hoje em dia, a liberdade religiosa é um direito garantido pela lei nas democracias. Disso deriva uma interacção entre a Igreja e o Estado – a religião e a sociedade – e está na base da liberdade e da igualdade perante a lei. Este processo começou há duzentos a cinquenta anos quando Thomas Jefferson, um dos pais da Declaração da Independência dos Estados Unidos introduziu novas ideias na Lei para estabelecer as liberdades religiosas na Virgínia: “Que a Assembleia Geral promulgue que nenhum homem será compelido a frequentar ou apoiar um culto ligado ao ministério religioso; que, ninguém será obrigado, aprisionado, atacado, ou ferido fisicamente ou nos seus bens, nem sofrerá de nenhuma outra maneira por causa das suas opiniões ou convicções religiosas. Pelo contrário todos serão livres de professar, e de defender as suas opiniões religiosas sem que isso retire, reduza ou afecte os seus direitos civis”.2
Muito cedo na história do pensamento e das liberdades, este homem soube como superar a intolerância religiosa para abrir o caminho para a liberdade: todos os homens e mulheres têm direitos iguais e podem exercê-los livremente. Esta é a direcção que as sociedades ocidentais seguiram desde então.
Porém, alguns países, principalmente a Espanha, levaram muito tempo para descobrir a liberdade religiosa. Quando se estuda a história europeia deveremos lembrar-nos de que as principais confissões da fé cristãs eram no passado religiões do
Estado e desfrutaram de uma posição dominante em relação às minorias que eram, na melhor das hipóteses, toleradas. Está claro que foram essas comunidades minoritárias durante muito tempo submetidas ao domínio das Igrejas do Estado cristãs, que foram as primeiras a reivindicar a igualdade. As Igrejas grandes cujo destino se confundia com o das nações, resistiriam à mudança até que tomaram consciência que se tinha virado uma nova página da história. As evoluções jurídicas reagem frequentemente tarde às mutações sociológicas.
Espanha foi sempre um Estado confessional. É necessário sublinhar que ela foi o primeiro Estado moderno na Europa, cerca do fim do 15º século. Como todos os países europeus, ela desenvolveu-se num contexto em que as unidades política e religiosa eram complementares.
A conquista de Granada em 1492 e a reconquista do país pelos “Reis Católicos” – até aí totalmente dominado pelo Islão – deram à Espanha Cristã uma dimensão política que lhe tinha faltado até então.
A unidade religiosa implicou a expulsão para fora do país dos Judeus e dos Mouros não convertidos ao catolicismo. No caso de Espanha o elemento novo não era a banimento dos dissidentes – isso já se fazia no conjunto da Igreja Católica para com o protestante – mas, acima de tudo, a institucionalização profunda da fé católica.
Ao longo da Contra-Reforma, conduzida pelos monarcas espanhóis, dos séculos XVI a XVIII, o facto de ser católico (a “catolicidade”) foi defendida como a verdadeira razão de ser do Estado, até que isto se tornou uma característica fundamental da consciência nacional.3
No século XIX e na primeira metade do século XX, o catolicismo era – explícita ou implicitamente – mencionado em todas as Constituições adoptadas, com excepção da Constituição Republicana de 1931 que permaneceram em vigor até o fim da guerra civil espanhola.4
Os dirigentes políticos da República fundada em 1931, introduziram duas alterações principais no sistema jurídico espanhol: a separação da Igreja e do Estado e o reconhecimento da liberdade de consciência.5
Porém, convém precisar que esta separação, defendida pelos representantes parlamentares nas Cortes espanholas, se identificou com a laicidade definida na lei francesa de 1905. Esta estipula que a República não reconhece nem subvenciona qualquer grupo religioso6, noutros termos que o Estado não deseja manter qualquer tipo de relação com nenhum culto e declara que os acontecimentos religiosos não têm nenhum carácter público. As convicções religiosas limitam-se, portanto, a questões de consciência individual de ordem puramente privada.
O Presidente da República espanhola, Manuel Azaña, definiu isto claramente no discurso que pronunciou perante o Congresso da Acção Republicana:
“O problema religioso é unicamente um problema de consciência individual e não um problema político, e aqui nós estamos a falar como homens políticos e legisladores, e não como crentes. Por conseguinte, o que normalmente é qualificado como um problema religioso equivale a um problema governamental, isto é, a atitude do Estado face a um certo número de cidadãos que usam longas túnicas, e de relações de Estado a Estado com um poder estrangeiro que por acaso calha ser católico romano”.7
As confissões religiosas foram portanto sujeitas a uma lei especial e muito restritiva que as impediu de adquirir e de conservar uma propriedade, com excepção dos bens para uso privado, proibindo-as de trabalhar em indústria, no comércio ou no ensino e limitando as orações em público.
Uma vez mais na história de Espanha o mito de clericalismo contra o anti-clericalismo reapareceu: duas concepções totalmente diferentes da Espanha, e absolutamente incompatíveis. Ambas definindo-se pelas suas relações que a política deveria manter com religião e com as suas instituições. Metade da população espanhola pensou que a influência excessiva dos poderes clericais impedia o seu país de progredir à velocidade das outras nações europeias. A outra metade, pelo contrário, acreditou que Catolicismo – e portanto a Igreja – constituía o seu património nacional e que a Espanha deixaria de ser a Espanha se deixasse de ser católica.
Milhões de espanhóis consideravam a Igreja Católica como a garantia do patriotismo autêntico e de vida política da época, o que servia como um freio à crítica de todos aqueles que a tinham, pelo menos em parte, como responsável dos fracassos políticos, económicos e sociais.
Desde o início, em 1936, a Guerra civil, tomou um carácter profundamente religioso na consciência da maioria dos espanhóis. A maior parte dentre eles associavam estreitamente a religião e o patriotismo. Esta fusão, particularmente entre os que se alistaram no Movimento Nacional de General Franco, levando a hierarquia católica a defender a causa da Igreja.
A “Carta Colectiva” difundida pelo episcopado espanhol em 1937 declarava que esta guerra fratricida era uma “cruzada” contra os infiéis e outros inimigos da pátria e civilização ocidental como os comunistas, os socialistas, os anarquistas e os liberais – uma ideia que, de resto, ainda circula hoje. Ela ditou a conduta da Igreja Católica unindo-a definitivamente ao regime político que iria ser instaurado depois da guerra.8
Entre os princípios que definiram o regime de Franco, é necessário citar a natureza confessional do Estado, o estabelecimento de uma legislação elaborada de comum acordo com o Vaticano e a submissão das outras denominações religiosas – não católicas – a um regime de tolerância com restrições consideráveis.9
Como consequência da confissão de fé regime franquista, a Igreja católica beneficiou de um tratamento
preferencial, como o demonstra não só a propagação da sua doutrina e o reforço da instrução religiosa que ela dispensava nas escolas, mas também o conjunto de direitos e poderes que o Estado lhe concedeu através de regulamentações sobre as quais ambos se puseram de acordo.
Gostaria de falar particularmente da Concordata assinada com o Vaticano em 1953 pela qual as duas partes concordavam em prerrogativas mútuas. A Igreja católica reconhecia ao Chefe do Estado a direito de nomear os bispos, e por seu lado ela exercia a sua autoridade sobre o casamento, a educação e censura, ao mesmo tempo que assumindo controle do clero e do culto em geral.
A posição jurídica privilegiada da Igreja Católica descrita acima apresenta um contraste impressionante com a dos outros cultos em Espanha. Com efeito, os protestantes, os evangélicos e os judeus permaneceram subordinados a um estatuto conforme o artigo 6 da “Lei comum do povo espanhol” que permitia o exercício do culto privado, mas interditava as manifestações exteriores e o proselitismo religioso: “Ninguém pode ser importunado por causa das suas convicções religiosas ou do exercício da sua fé em privado. Em contrapartida, apenas as cerimónias ou manifestações públicas da religião católica serão permitidas.”11
As autoridades ministeriais era livres de interpretar os termos”o exercício privado da oração” a seu prazer, o que não deixa de criar uma lista infinita de conflitos e sanções económicas relativamente às confissões não católicas, como o pastor protestante, Juan Luis Rodrigo Marín sublinhou:
“O Direito Comum do povo espanhol que data de cerca de 1945, garantia que ninguém pudesse ser inquietado como resultado das suas convicções religiosas. Este princípio prestava-se a confusão, na medida em que podia ser interpretado de forma diferente segundo as pessoas. O conceito “em privado” era muito elástico: tanto podia ser tomado em sentido lato, como em sentido restrito. Era assim, que em alguns lugares não era permitido acompanhar um cortejo fúnebre, de acordo com a nossa cultura e os costumes tradicionais (…) Felizmente nem todos eram tão extremistas: algumas autoridades locais demonstravam mais tolerância e indulgência, mas eram uma minoria (…) Um regulamento policial não autorizava senão um número máximo de 20 pessoas a reunirem-se no mesmo local. Para além disso, era necessário requerer uma autorização oficial que, bem entendido, não era concedida a uma religião dissidente nem a um dos seus membros.”12
Quando é que a transição religiosa começou realmente em Espanha? Duas datas são geralmente apontadas como ligadas a dois acontecimentos importantes: a Constituição de 1978 e a Lei Orgânica sobre a Liberdade Religiosa de 1980. Sem qualquer dúvida, que estes textos legais foram decisivos na configuração do Estado democrático e a erradicação da intolerância religiosa em Espanha.
Não obstante, foram as minorias religiosas que travaram a batalha
a favor da liberdade religiosa. Levantaram-se contra a discriminação de que os membros das suas Igrejas eram objecto desde a década de 1950, e denunciaram-na junto das embaixadas estrangeiras. A pressão internacional fez eco destas reclamações e denunciou a situação dos protestantes, dos evangélicos e dos judeus em Espanha, face a um princípio de tolerância totalmente insatisfatório. Para estas minorias era inconcebível reduzir a prática da sua religião apenas ao culto privado.
A pressão exercida simultaneamente no país e no estrangeiro, assim como uma nova abertura do regime franquista – desejoso de obter o apoio da comunidade internacional e a ajuda económica dos E.U.A. e da Grã Bretanha – abriram a via para o projecto do Estatuto para os não
católicos e as suas associações em
Espanha. 13
O homem que, naquele momento, se entregou à missão de defender os direitos cívicos das confissões minoritárias e que criou o debate neste domínio foi Fernando María Castiella o Ministro dos Negócios Estrangeiros. A 5 de Janeiro de 1965, o Secretário Geral da Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa, Dr. Jean Nussbaum, prestou-lhe homenagem pelo seu vigor e tenacidade de que deu prova ao longo da redacção e do voto no Parlamento daquela que se chama a primeira lei sobre a liberdade religiosa.14 Sua Excelência Senhor Castiella Ministro dos Negócios Estrangeiros Ministério dos Negócios Estrangeiros Madrid
Paris, 5 de Janeiro de 1965
Caro Senhor Ministro
Acabo de regressar de uma permanência na Suíça onde encontrei um certo número de personalidades e desejo, sem demora, após o meu regresso, dizer-lhe quanto fiquei agradavelmente impressionado pelo discurso de Natal pronunciado pela General Franco, Chefe de Estado Espanhol.
Vejo, por esse, discurso que os vossos esforços foram coroados de sucesso e felicito-vos de todo o meu coração. V. Exas. fizeram uma obra magnífica e está quase a conseguir o seu objectivo. Nas minhas orações ao Deus dos Céus peço que Ele abençoe o vosso trabalho e que vos ajude a acabá-lo completamente.
O discurso do General causou uma profunda impressão na Suiça e em França. Estou convencido de que o estatuto que prepararam terá uma influência considerável, não só no vosso país, mas na Europa e nos países de além-mar.
Em todo o lado em que se dá conta de que há em Espanha espíritos muito abertos que compreenderam que é pela paz religiosa que um povo pode encontrar o ardor de que necessita para realizar a tarefa que se lhe impõe e que é particularmente dura nos tempos que vivemos.
O Parlamento de Madrid, Espanha. Foto J. M. Weindel
Aproveito esta ocasião para lhe apresentar, caro Senhor Ministro, os meus melhores votos para o ano que acaba de entrar e para lhe dizer com que interesse seguirei todos os esforços feitos para o cumprimento definitivo da tarefa que empreenderam.
Junto a esta uma cópia da carta que enviei ao General Franco. Nada mais me resta para além de lhe exprimir todo o meu reconhecimento para obra admirável que levou a bom termo.
Queira aceitar, caro Senhor Ministro, a expressão respeitosa dos meus bem devotados sentimentos.
Dr. J. Nussbaum
Depois desta carta, o Dr. Nussbaum escreveu ao General Franco15 que o seu “discurso de Ano Novo à Nação” lhe tinha causado boa impressão e felicitava-o pelo trabalho admirável empreendido pelo seu Ministro na preparação de um estatuto para os não católicos: Ex. Sr. General Franco Chefe do Estado Espanhol Madrid
Paris, 5 de Janeiro de 1965 Sr. General,
No decurso da viagem que acabo de fazer à Suiça para me encontrar com certo número de personalidades que se interessam pela liberdade
religiosa, li, nos jornais, o discurso de Natal que vª Exª dirigiu ao povo espanhol.
Esse discurso causou uma impressão profunda nos meios suíços e particularmente genebrinos, assim como nos meios franceses.
Permita-me dizer-lhe da alegria que sinto ao lê-lo porque há mais de trinta anos sou responsável pelas relações exteriores da nossa Associação com os diversos países da Europa. Cada vez que estive no seu país recebi do seu Ministro dos Negócios Estrangeiros, Sua Exª M. Castiella, o mais cordial acolhimento. Tive, com ele e com o Director dos Assuntos Europeus do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Dr. M. Olivié, conversações muito edificantes que sempre me mostraram quão grande era o desejo de V. Exª. de ver reinar em Espanha, uma completa paz religiosa.
Muito tenho admirado a tarefa realizada pelo seu Ministro dos Negócios Estrangeiros que, laboriosamente, elaborou um estatuto para os não católicos que, tanto quanto posso saber, parece dar plena satisfação a todos aqueles que são apaixonados pela liberdade religiosa.
No decurso de uma das minhas viagens, tive também um encontro com seu Ministro da Informação, o Dr, Fraga Iribarne, em presença do embaixador da Suíça, e esse encontro de uma grande elevação de pensamento, como os que tive com o seu Ministro dos Negócios Estrangeiros, Dr. Castiella, assim como com o Dr. Oliviér, me mostraram, claramente, que souberam escolher e procurar, no país de V. Exª., homens animados de uma fé sincera e de um espírito cheio de sabedoria.
O seu discurso, sr. General, impressionou-me profundamente e é por isso que me permito dizer que seguirei a acção de V. Exª. com o maior interesse e que faço votos para consigam realizar a tarefa a que V. Exª se propôs.
Peço a Deus que abençoe o povo espanhol, o seu iminente chefe e os seus ministros, para que o país de V. Exª., encontre, na paz religiosa, as forças de que precisa para cumprir o destino para que foi chamado.
Peço-lhe sr. General, que aceite a expressão respeitosa dos meus sentimentos devotados e reconhecidos,
Dr. J. Nussbaum
Pode dizer-se que a transição religiosa em Espanha começou de facto no momento em que a liberdade religiosa começou a ser reconhecida. As novas abordagens propostas pelo Concílio Vaticano II estimularam consideravelmente, a evolução da liberdade religiosa sob o regime franquista.
A Declaração “Dignitatis Humanæ” sobre a Liberdade Religiosa, aprovada pelo Concílio Vaticano II a 7 de Dezembro de 1965 constituiu, em si mesmo, um acontecimento com consequências de longo alcance, especialmente para os países, como era o caso de Espanha, que aplicavam aos não católicos um sistema de tolerância extremamente restritivo.
Os protestantes e os judeus espanhóis acolheram esta Declaração com
uma imensa esperança, persuadidos de que o seu começo progressista levaria à adopção de novos critérios para colocar em vigor uma maior tolerância religiosa que reconheceria os direitos fundamentais às suas comunidades religiosas.16
Com efeito, a Declaração abordou o assunto de liberdade religiosa de um ponto de vista jurídico, como indica o subtítulo: “Do Direito da pessoa e das comunidades à liberdade social e civil em matéria religiosa”: o conceito de liberdade religiosa é colocado em relação com a ideia fundamental de autonomia civil e jurídica. Segundo o Concílio Vaticano II, a liberdade religiosa inscreve-se perfeitamente no contexto. Não é definida em relação a Deus mas mais em relação a uma instituição civil, o Estado. Eis porque não deve ser confundida com autonomia moral.
A chave para interpretação deste texto situa-se na afirmação de que liberdade religiosa constitui um direito real dos indivíduos, fundado sobre a própria dignidade da pessoa humana. Este direito deve ser reconhecido no seio da sociedade, como um Direito Civil. Mais precisamente, o direito à liberdade religiosa representa uma esfera de independência indispensável para fazer face aos poderes coercivos do Estado para que:
“… em assuntos religiosos ninguém seja forçado a agir contra a sua consciência, nem impedido de agir, dentro dos justos limites, segundo a sua consciência, tanto em privado, como público, só ou associado com outros”.17
O elemento prometedor para as denominações cristãs não católicas era que a Declaração não se preocupava apenas com a liberdade individual, mas também com o direito de formar associações religiosas em Espanha, o direito à liberdade de propaganda e direitos religiosos familiares. Por outro lado, ela facilitou uma aproximação satisfatória para as manifestações ecuménicas pelo Conselho Mundial de Igrejas.
Resumindo, a luta pela liberdade religiosa travada pelas minorias religiosas em Espanha, foi legitimada por esta Declaração, que deu mais peso às suas reivindicações em favor de um reconhecimento da liberdade de consciência nas mesmas condições para todos.
Os princípios contidos nesta Declaração tiveram um imenso impacto sobre o Direito espanhol. Os poderes públicos foram obrigados a adaptar a sua legislação de acordo com as directivas da Igreja católica. Para o Governo e o Episcopado espanhol este reajustamento foi complexo e delicado. Tratava-se de transferir para o conjunto da legislação civil a noção de tolerância civil para a da liberdade religiosa, mantendo o Catolicismo como a religião do Estado. Havia uma incompatibilidade total entre a definição de liberdade religiosa apresentada pelo Vaticano II e o facto de confinar o exercício do culto à esfera privada ou de interditar as manifestações e as cerimónias em público.
Por conseguinte, o artigo 6-2 da Lei comum do povo espanhol foi emendado para exprimir, claramente, que o
Estado tomava a sua cargo a protecção de liberdade religiosa, que garantia através de uma protecção legal efectiva que:
“O ensino e prática da religião católica que é a religião do Estado em Espanha, desfrutará de uma protecção oficial. O Estado assumirá a protecção de liberdade religiosa garantindo-a através de uma protecção jurídica efectiva. Esta protecção conduzirá, por sua vez, a uma salvaguarda da moralidade e da ordem pública”.
Esta reforma teve como consequência, a promulgação daquilo a que se chama a primeira Lei da Liberdade Religiosa de 28 de Junho de 1967, no espírito da que o Ministro Castiella tinha iniciado anos antes. Os peritos concordam em que esta Lei representou um grande passo em frente na direcção da protecção de liberdade das religiões não católicas e, embora imperfeita, permitiu a estes grupos a sair do anonimato e existirem aos olhos de todos.
Eu qualifico a lei de imperfeita porque na prática, o Estado conservava o seu carácter católico e de que, por isso, impunha limites e restrições às associações religiosas não católicas.
Até à Constituição de 1978, o Estado espanhol era católico, a Igreja Católica beneficiava de um tratamento privilegiado previsto pela Concordata de 1953, ainda em vigor na época.
Nestes últimos trinta anos, a Espanha evoluiu de um sistema religioso católico para uma democracia pluralista forjada pela Constituição de 1978.
Se a Constituição, actualmente em vigor, pode ser considerada como um símbolo de democracia e um exemplo de forma de reconciliar duas concepções de Espanha, do ponto de vista de uma dialéctica intolerância/tolerância, ela encarna a aplicação de um modelo de liberdade religiosa e da ultrapassagem das confrontações entre as posições anticlericais e profundamente confessional.
Esta Constituição define um Estado não confessional, mas num contexto que torna esta definição positiva: em virtude do princípio da igualdade e do tratamento igualitário, sejam quais forem as religiões, o Estado já não estabelece distinção entre crentes e não crentes; aos seus olhos, todos são iguais e igualmente livres.
O direito à igualdade e o direito à liberdade religiosa, originalmente concebida como direitos individuais para todos os cidadãos, também se aplica às religiões ou às comunidades às quais estes indivíduos pertencem. Isso permite, a essas comunidades, realizarem os seus objectivos, sem a necessidade de pedir uma autorização prévia ou de se inscrever num registo público.
Ao mesmo tempo, de acordo com a Constituição, o Estado é obrigado a manter relações de cooperação com as diferentes denominações religiosas presentes na sociedade espanhola, a fim de que o direito à liberdade religiosa seja algo de real e concreto. Isto pode ser alcançado de modos diferentes com as denominações mencionadas no Registro das Organizações Religiosas.
Após este mandato constitucional, uma nova lei sobre a Liberdade
Religiosa foi votada a 5 de Julho de 1980. Em contraste com a lei de 1967, esta nova lei é a primeira que foi votada, por unanimidade, por um Congresso democraticamente eleito, e com a participação de todos os grupos religiosos inscritos no Ministério de Justiça.
O Secretário Executivo da Comissão Espanhola para Defesa dos Cristãos Evangélica, José Cardona, afirmou:
“Eis uma Lei sobre a Liberdade Religiosa única no seus género, em harmonia com um país profundamente arraigado na democracia ocidental. O Estado deverá aplicar o direito à liberdade religiosa sem favorecer injustamente um partido ou um grupo religioso. Deverá antes, respeitar e encorajar a paz civil e confessional em Espanha, utilizando os seus direitos, de forma medida e equilibrada.”22
Na aplicação da Lei Orgânica sobre a Liberdade Religiosa, o Estado tem igualmente a possibilidade de manter relações oficiais de cooperação com as comunidades religiosas não católicas, celebrando Tratados ou Acordos de Cooperação, com a condição dessas denominações religiosas, devidamente inscritas no Registro das Organizações Religiosas, e que possam demonstrar uma notória implantação em Espanha.
Porém, estes acordos não foram assinados com as Igrejas, confissões e comunidades religiosas mas mais com as suas federações associadas em volta de uma convicção na qual elas reconheceram estar profundamente enraizadas.
Esta é justamente a peculiaridade e a novidade da situação em Espanha.
Quatro cultos concluíram, até agora, acordos de cooperação: a Igreja católica – que tem vários acordos em vigor com o Estado espanhol –; a Federação de Entidades Religiosas Evangélicas de Espanha; a Federação das Comunidades Israelitas de Espanha; e a Comissão Islâmica de Espanha.
O resultado deste esforço de integração por parte dos protestantes, dos judeus e dos muçulmanos permitiu ao Estado estender os benefícios dos Acordos de Cooperação a numerosas Igrejas e comunidades. Estas últimas, se tivessem agido sós, teriam dificuldade em demonstrar a notoriedade da sua implantação em Espanha, e, por conseguinte, a assinar, sem dificuldade, os acordos conseguidos pelos seus representantes.
De facto o Acordo é condicionado pela existência da Federação. O Estado conclui um acordo com uma Federação de Igrejas ou Comunidades que partilham uma mesma crença – e não com cada uma dessas igrejas ou comunidades. Em consequência, se uma Igreja ou uma comunidade já não é membro de uma comunidade – por escolha ou após exclusão – ela é automaticamente excluída do Acordo. Isto dá às Federações uma imensa autoridade e uma grande liberdade de acção para fazer evoluir os Acordos, na medida em que elas representam uma passagem obrigatória pelos grupos religiosos que desejam aproveitar as vantagens que lhes podem conceder.
Da mesma maneira, as organizações religiosas que desejem obter um reconhecimento legal e civil – e que decidem portanto registar-se – devem poder provar que têm objectivos religiosos; esta prova pode ser fornecida pelas organizações que estão à testa das igrejas e/ou das federações de que dependem em Espanha.
Com respeito aos conteúdos dos Acordos de 1992, o seu conteúdo é análogo. Eles regem aspectos importantes tais como: o estatuto de ministros do culto, a protecção jurídica dos lugares de culto, o ensino da religião protestante, muçulmana ou judaica em centros educativos, a fiscalidade dos activos e das actividades dessas religiões, os serviços religiosos que tenham lugar em edifícios públicos, a conservação e a valorização do património histórico e artístico islâmico ou judaico, etc.
Por outro lado, os Acordos servem também para satisfazer as exigências específicas de cada religião em função da sua identidade. Por isto certos assuntos sensíveis, como o reconhecimento dos efeitos civis e jurídicos dos casamentos celebrados religiosamente, o reconhecimento de feriados religiosos e a conformidade com as regras religiosas que presidem à preparação de certos pratos.
Gostaria de concluir com uma pergunta: Que nota se poderia atribuir ao sistema espanhol? Poderá ser considerado como um modelo de referência óptimo ou, pelo contrário, apresenta grandes dificuldades?
Obviamente, que todo sistema de Acordos é fruto de negociação entre as partes e não se atingiu o melhor consenso. Em Espanha, as partes chegaram àquilo que, até ao presente, conduziu à aplicação de uma legislação específica que permite o exercício do direito à liberdade religiosa real e muito eficaz para as organizações que nela participam.
Porém, seria judicioso considerar este sistema com um olhar crítico para mostrar as suas fraquezas. Ao nível do Estado, este sistema é institucionalizado. Uma vez que o Acordo de Cooperação foi assinado, é difícil denunciá-lo e retirar às Igrejas ou às comunidades os direitos adquiridos, mesmo que houvesse boas razões para o fazer.
Por outro lado o sistema poderia pôr em perigo o princípio da igualdade entre grupos religiosos, uma vez que apenas os grupos federados beneficiam dos Acordos.
Não obstante, a análise final é positiva. Um rápido olhar para trás, e compreendemos que estes Acordos permitiram virar a página de uma época de intolerância. Os cultos que tinham sofrido perseguição recuperaram a liberdade e a igualdade de que anteriormente estavam privados.
* Professora da Universidade Complutensa de Madrid, Espanha
Notas:
1. N. B. Cooper, Catholicism and the Franco Regime, 1875; J. Delpech, The Oppression of the Protestants in Spain, 1956: G. Helmet, Les Catholiques dans l’Espagne franquiste, 2 vol., 1981. 2. Escrito por Thomas Jefferson em 1779 e adoptada pela Assembleia Geral em 1786. 3. E. Meinecke, La idea de la Razón de Estado en la Edad Moderna, Madrid 1983; La Razón de Estado en España, siglos XVI-XVII (Antología de textos), Madrid, 1988 4. L. Sanchez Agesta, Historia del Constitucionalismo español,Madrid, 1964; J. M. Cuenca Toribio, Relaciones Iglesia-Estado en la España Contemporánea, Madrid, 1989. 5. E- De Meer, La Custión religiosa en las Cortes Constituyentes de la II República española, Pampelune, 1975. 6. J. Robert et J. Duffar, Droits de l’homme et libertés fondamentales, Paris, 1996. 7. M. Azaña, Memorias políticas y de guerra, año 1931, Madrid, 1976 8. Las Confesiones del Cardenal Turancón, Madrid, 1996 9. I. Martinez Martín, El Desarrollo de la Iglesia española y sus relaciones con el Estado, Madrid, 1961; S- Petschen, La Iglesia en la España de Franco, Madrid, 1977; J. Ruperez, Estado confesional y libertad religiosa, Madrid, 1970. 10. I Martinez Martín, Concordato español de 1935 entre España y la Santa Sede, Madrid, 1961. 11. Loi commune du peuple espagnol, artigo 6, 1945. 12. M. García Ruiz, Libertad religiosa en España. Un largo camino, Madrid, 2006, p. 18. 13. A. De Fuenmayor, Archives de la faculté d’histoire, Pampelune, 1974. 14. Fondo Castiella, Archives de la faculté d’histoire, Madrid, 15/1/2626. 15. Fondo Castiella, ob. cit. 15/1/2626. 16. M. García Ruíz, ob. cit., p. 54-59. 17. Declaração do Vaticano sobre a liberdade religiosa Dignitatis Humanæ, nº 2, de 7 de Dezembro de 1965. 18. M. Blanco, La primera ley española de libertad religiosa. Génesis de la ley de 1967. Pampelune, 1999. 19. I. Martínez Martín, Texto del Concordato entre la Santa Sede y España de 27 de agosto de 1953 y Documentos anejos, Madrid, 1961. 20. L. Prieto Sanchis, “Las Relaciones Iglesia-Estado a la luz de la nueva Constitución: problemas fundamentales”, in La Constitución española de 1978; El Echo religioso en la nueva Constitución española, Salamanca, 1979; Iglesia y Estado en España, Madrid, 1980. 21. R. M. Martínez De Codes, “The Contemporary Form of Registering Religious Entities in Spain”, in Brigham Young University Law Review, vol 1998, nº 2. p. 369-385
22. Citado em Inglês por J. M. Monroy, Protestante Digital.com (Espanha 2006) 23. Ver os acordos de cooperação com os cultos no Direito Eclesiástico espanhol, in Spanish Legislation on Religious Affairs, Ministério da Justiça, Madrid, 1998