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J. Contreras Consciência e liderança religiosa: um assunto controverso

Consciência e liderança religiosa: um assunto controverso

Jaime Contreras*

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Normalmente as atitudes de intolerância encontram o seu espaço mais propício nas estrututas sociais e políticas de natureza confessional. Trata-se de uma constante histórica, e acontece que, além disso, em tais situações as manifestações de intolerância geram-se na relação de domínio versos subordinação entre a confissão doutrinária maioritária e os restantes credos minoritários. Nessa relação à confissão primária assiste toda a força do Direito Positivo e toda a capacidade dissuasora da chamada violência legítima que os poderes constituídos detêm. Pelo contrário, os outros credos religiosos, desprovidos do apoio e da assistência da Lei, e não reconhecidos pela legalidade vigente, apenas podem esperar a oferta gratuita de uma determinada tolerância, mais ou menos concedida por circunstâncias conjunturais.

Pelo contrário, nas sociedades plurais, que se organizam politicamente por regimes de representação política universal, por uma garantia de divisão de poderes, pelo reconhecimento jurídico dos direitos humanos e, finalmente, por um regime de garantias processuais, nessas sociedades pode acontecer que a dialéctica entre tolerância e intolerância religiosa deixa de ter relevância, pelo menos, nas suas formalidades jurídico-institucionais. Pode acontecer, isso sim, que atitudes intolerantes, se exprimam, evantualmente, com dureza no interior de certas relações sociais e em situações culturais concretos, naqueles em que uma confissão religiosa, se apresente como dominante e maioritária.

Das reflexões anteriores segue-se um corolário: a tolerância, como atitude social e cultural, e a liberdade religiosa, como direito, serão mais operativos e funcionais se a estrutura dos conjuntos sociais assegura as garantias institucionais. Por isso parece evidente que numa sociedade dotada de recursos democráticos operativos as expressões tolerantes constituirão as formas ordinárias de relações interconfessionais e a liberdade religiosa, como direito garantido, será prática corrente porque, em tais circunstâncias o fenómeno religioso deixará de ser um problema político, uma vez que o seu espaço ficará reservado ao da consciência particular.

É necessário indicar que a conquista do direito da liberdade

João Calvino, reformador francês (1509-1564. Museu Internacional da Reforma em Genebra. Foto churchphoto/Matthias Mueller.

religiosa tem, obviamente, uma história complexa. Uma história que começou quando no seio da sociedade cristã confessional surgiu a questão do que era a consciência humana e se esta teria direitos1. Esta pergunta transcendental tornou-se muito importante porque quem devia, de certo modo, responder-lhe era o Estado, quer dizer, o poder secular que, já então (séc. XVI-XVIII) se via obrigado a resolver o problema dos direitos da pessoa individual e os seus deveres para com Deus e o próprio Estado. Por isso, este não teve mais remédio senão reconhecer a

evidência de que o universo religioso não era uniforme.

Acontece que, perante a variedade de credos que existiam dentro do espaço da jurisdição estatal, não havia outro remédio – para além dos níveis da confrontação – senão arbitrar regras para garantir a coexistência religiosa. Tais regras nasciam de princípios filosóficos em que a tolerância era um denominador comum.

E não se tratava de uma tolerância que nascia do comportamento, mais ou menos benevolente, do superior para com o inferior errado ou equivocado, nem tão pouco a tolerância que assentava no princípio pragmático do mal necessário. Não. Agora pensavase em aplicar uma política de tolerância porque a pertença individual a uma ou outra confissão religiosa dependia da consciência pessoal de um sujeito político que cada vez menos era súbdito e, paulatinamente mais cidadão. Estas grandes aventuras ocorreram no Ocidente entre os séculos XVII e XVIII2. Desde então a consciência ocupou o primeiro lugar no cenário da cultura e da política, e isso aconteceu porque apareceu como a razão primeira da dignidade humana e, como tal, atribuíram-se-lhe direitos inalienáveis: o de existir, o primeiro, e o de se manifestar, o segundo. A consciência apareceu, pois, como protagonista no espaço da diferença religiosa. Direito do indivíduo na diversidade interna de um conjunto social.

Porque em sociedades confessionais, sociedades religiosamente monolíticas, o indivíduo não tem outro conhecimento antropológico senão o que deriva da adesão, mais ou menos pública, ao credo religioso dominante. Tal adesão espera-se que produza, não tanto de forma passiva, mas mais por convicção de que ser crente desse credo se deve a uma dádiva da divindade. Aqui, pois, neste espaço confessional a aceitação de uma doutrina não é um assunto de consciência mas de socialização em crenças e valores3. Em sociedades confessionais não há reconhecimento público nem da consciência, nem do valor inalienável da pessoa; nelas não há, tão pouco, lugar para a diferença.

O ódio religioso que hoje se expressa em múltiplos cenários da nossa globalidade, não reconhece

nem a consciência, nem a dignidade da pessoa, nem o direito à diferen-

ça. E, portanto, a condição principal para combater esse ódio é conseguir o reconhecimento público, sancionado pelo Direito, de que o outro diferente é sujeito de consciência e de direitos.

Desta formulação e, como imperativo categórico irreversível, deve-se indicar que qualquer entidade política entenderá que todo o cidadão, como tal, pode ser crente e, por isso mesmo, pode definir uma relação determinada com o seu Deus que é preexistente ao Direito Positivo, por muito particular que tal crença seja.

Trata-se pois, de exigir o direito

de reivindicar o princípio da consciência e de outorgar prioridade à ordem moral sobre o qual se deve

cimentar o ordenamento jurídico. Num tal moralismo humanitário, assente numa concepção optimista do sujeito, reside todo o princípio de tole-

rância porque situa a consciência numa relação dialéctica com a doutrina4. Por esta razão, pode entender-se que uma defesa acrítica de um determinado credo religioso pode soltar o ódio, a intransigência e a perseguição.

Historicamente, correspondeu aos juízes e aos condutores religiosos a imposição dos códigos autoritários da doutrina sobre os espaços da consciência. Em tal sentido o duo clérigo-juiz tem sido a fonte da força e da intransigência. O uso da espada, quer dizer, da coacção em assuntos de doutrina, torna impossível que esta seja capaz de definir uma ordem moral, porque, então, o próprio juiz inabilita o exercício da justiça e o próprio clérigo obstaculiza o espírito da doutrina. É em tais posições hierárquicas de força que se constrói um princípio aprio-

rístico perverso: a defesa da honra

de Deus supostamente ultrajada. Tal é o argumento que a história repete até à saciedade. Em 1554, Calvino, por exemplo, tratando de se defender das acusações de ter levado à fogueira o médico antitrinitário Miguel Servet, escreveu o seguinte: “O próprio Deus exige que nos esqueçamos de toda a humanidade quando nos é pedido que lutemos pela Sua glória. Dissimulado com o erro e a heresia – continuava Calvino – dá-se a conhecer que se é cúmplice de crime5”. Naturalmente, o crime naquela cidade de Genebra nos meados do século XVI era a dissidência. E era crime porque para Calvino, como para outros inquisidores (juízes) anteriores e posteriores a ele, a consciência do sujeito não podia determinar nenhuma ordem moral, por si mesma. Não era o eu nem a minha consciência que iam ao encontro de um Deus por definir, mas, ao contrário, era um Deus já definido que procurava a adesão de meu eu predeterminado.

E esta enorme diferença não implica, de forma alguma, que se

identifique a consciência com a

simples subjectividade, porque isso – falsamente – que a consciência não pode errar, e o que é pior, que mesmo neste caso escapa a todo o julgamento objectivo. Tem sido, historicamente, neste ponto, e de facto o é ainda na actualidade, que os protectores dos códigos de doutrina (clérigos e juízes) confiaram mais na bondade autoritária da norma do que no espírito da mesma. E com ele assumiram e assumem a convicção da bondade da sua causa. Juízes, clérigos, inquisidores e alguns tantos líderes que estão na mente de todos, acreditaram no poder justificativo de uma consciência da autoridade que se cria objectiva pelo facto de que dominava a hierarquia, a da pretendida verdade convertida em lei e, por isso, em força.

Naturalmente, de tais princípios seguiu-se, e este é o horror moral mais espantoso, uma total ausência de culpa6. Com toda a certeza o ódio religioso e a intolerância nascem e desenvolvem-se no espaço de satisfação de uma consciência e autoritarismo isenta de erro e sem consciência de qualquer culpa. E, por isso, parece evidente que só a consciência individual objectiva, baseada na “imperiosa voz da verdade no interior do sujeito” – como escreveu J. H. Newman – é capaz de reconhecer a dialéctica do

Fernão de Magalhães (1480-1521), navegador português ao serviço do rei de Espanha. Tentou conquistar e cristianizar os países que descobriu, como se fazia na época, mas de maneira pacífica. Foto Getty Images.

bem e do mal e, por isso, de manter a capacidade de sentir a culpa, princípio

básico do equilíbrio psicológico de

todo o ser humano7 .

Destas considerações, conclui-se pela necessidade, actualmente, de afirmar o princípio objectivo da consciência, essa que, desde os seus direitos inalienáveis, se debate em permanência constante, com a verdade e que o crente situa na divindade e o não crente a assegura no compromisso moral para a descobrir, como Sócrates ensinou. Por ela a autoridade de um líder religioso não se pode entender em si mesma, na satisfação vaidosa do exercício do poder que não deseja reconhecer a responsabilidade individual dos actos. Os totalitarismos ideológicos, sejam de estrutura ou de uma nova conjuntura, não pode reconhecer a liberdade moral das acções individuais, e sem essa liberdade, não pode existir nenhum papel para a consciência. Esta respeita a autoridade que a reconhece e protege, mas recusa, com autoridade moral mais reforçada, a que lha nega porque no centro mais exacto está o ser humano. E o homem é sempre o princípio e nunca a consequência. Para ele é conveniente recordar que nem as estruturas políticas nem mesmo os sistemas sociais são causa da consciência, mas apenas o efeito da mesma. Não pode, portanto, pretender legitimidade

moral alguma toda a liderança que não reconheça a consciência, como tão pouco o pode pretender aqueles sistemas sociais e políticos que organizam as suas estratégias pela força quantitativa de maiorias ou minorias.

Se hoje existe uma crise da consciência objectiva é porque existe um

subjectivismo muito amplo a res-

peito da verdade objectiva. Porque a consciência não está liberta da verdade nem da procura da mesma. A chamada “ética da responsabilidade”, que Max Weber definiu como a que assiste ao político, se se apresenta despida de toda a objectividade de consciência, ao serviço do homem sem adjectivos, não é senão a expressão do autoritarismo, a manifestação de uma liderança que instrumentaliza, no seu interesse, o facto religioso.

Nestas condições parece impossível confiar nas intenções do poder religioso que se serve da sua posição de autoridade. Qualquer que seja a

confissão de fé, logo que as suas doutrinas não são sebtradas na consciência do homem, devem ser revistas porque

não pode haver verdade doutrinária se esta nega a ontologia primeira do indivíduo, a sua consciência.

Se a liberdade religiosa defende o princípio, segundo o qual, a relação do Homem com Deus está baseada na objectividade da consciência individual, isso implica que toda a religião

reconhecerá a diferença, defendê-la-

á e procamá-la-á. É por isso que existe em toda a doutrina religiosa importante um espaço de tolerância. É, portanto, indispensável, no momento em que se definem estratégias de luta contra o ódio religioso, que se afirme que todo o condutor religioso, deve assegurar a sua autoridade e a sua influência sobre os pilares da objectividade da consciência individual e sobre o princípio de uma verdade inscrita na própria razão, que rejeita de forma radical a razão de Estado, da ditadura e do emprego da força.

Consequentemente, não pode existir, nenhuma cultura de exclusão se se respeita o plano da consciência. É por isso, que o proselitismo empreendido pelos condutores religiosos náo deverá exercer-se contra o princípio da consciência. O famoso “ide evangelizar” do cristianismo não deve esquecer que o objectivo de ensinar não deve excluir a necessidade de aprender. É necessário que o proselitismo respeite a cultura dos povos que ele toque. Nenhum método de evangelizaão seria aceitável se destroi os sistemas de representação e os símbolos das culturas ou religiões que os acolhem8 .

Sabemos bem, que as relações entre os “missionários” e os “indígenas” provocaram, no passado situações de profundas dissimetrias. Que na fronteira de contacto se quebraram muitos princípios de consciência e que a orfandade cultural afectou milhões de pessoas. Que se pretendeu ensinar, na maior parte das vezes, de forma compulsiva sem dar tempo ao conhecimento dos outros; e que o abismo entre o missionário e o indígena não pôde ser ultrapassado pela ética do encontro, porque este foi unidireccional; e embora em muitos casos a vontade de aproximação fosse sincera, quase sempre, atrás da Palavra de Deus vinha a rapina do comerciante e a força dos canhões. É verdade que houve empréstimos, influências de um lado e do outro, mas isso não impede que reconheçamos que a agressividade cultural vinha mais do lado dos missionários9 .

E se o relato histórico nos ensina tais coisas, não parece que hoje possamos comprovar que os contactos sejam simétricos e equilibrados. É evidente que não o são. Nos nossos dias, ainda, no espaço inter-religioso, a importância dos factores culturais hé determinante. Porque é evidente que todas formas de proselitismo religioso emanam de universos culturais que não são, nem podem ser, neutros. Não há cultura neutral em si mesma. Por isso,

hoje a propaganda religiosa trata de operar a partir de posições culturais, técnicas e humanas, dominan-

tes. E parece evidente que sobre tais posições de autoridade se infiltram, sub-repticiamente doutrinas e credos de natureza religiosa e as verdades

doutrinárias ficam dissimuladas sob formas culturais destinadas a suscitar uma adesão emotiva e sentimental o que constitui uma forma de esclusão total.A propaganda religiosa repre-

senta, portanto, um aspecto suple-

mentar de dominação.Tais situações, conhecidas de todos, são inadmissíveis porque agora, como antes, significam que se impede a objectividade consciência individual de se exprimir. A dissimetria ressurge nas relações, as frustrações colectivas são enormes e o ódio alimenta-se num caldo de cultura em que se misturam o desenraizamento do indivíduo e a arbitrariedade do poder. A intolerância e o menosprezo religioso, em consequência, expressam formas de domínio cultural que, além disso, manifestam uma moral pregada como segura e paternalista.

Em resumo, reconheçamos que normalmente, o poder religioso, que está muito perto, do poder político, anatematiza frequentemente a consciência individual objectiva porque a considera inimiga da segurança da comunidade política que o líder diz representar. A História ensina-nos, muito justamente que o recurso dos lideres (políticos ou religiosos) aos argumentos da segurança constituem, desde logo, uma violação inquietante da liberdade e da tolerância. O reiterado apelo à ortodoxia e à segurança não é outra coisa senão um apelo demagógico para uma ordem conformista e dominante em que não cabe a liberdade nem a consciência. A ordem social da maioria não é senão uma falácia para desterrar, como perigosas e sectárias, as minorias. É necessário, em qualquer caso, garantir o princípio da consciência individual objectiva. Consciência primeira que expressa um domínio pleno de moralidade natural base necessária para, desde a adesão à verdade, conformar um espaço de civilidade pública sem o qual não pode ser possível o exercício da liberdade religiosa. Foi Voltaire quem, no século XVIII, proclamou o reinado dessa civilidade que repousa sobre um Deus cuja essência primeira era a moral da consciência individual objectiva. “Não é aos homens – escreveu no seu Tratado sobre a Tolerância – que me dirijo mas a Ti, Deus de todos os seres, de todos os tempos e de todos os mundos (…) Digna-Te olhar com piedade para os erros inerentes à nossa natureza. Que esses erros são causa das nossas calamidades. Tu não nos deste um coração para odiar nem mãos para nos estrangularmos. Que os que acendem as velas ao meio-dia para Te celebrar toleram os que se contentam com a luz do Teu Sol! Que os que cobrem as suas roupas com um pano branco para dizer que é preciso amar não detestem os que dizem o mesmo debaixo de um manto de lã negra”10 .

Notas:

1. H. Kamen, “Estrategia dse tolerancia y de intolerancia en la Europa Moderna” in Intolerancia e Inquisición, ed. J.A.Escudero, Madrid, 2005, p. 21-32

2. I. Mereu, “Promesse ideologiche e conseguenza instituzionali del condetto de intolleranze nella storia dell’Europa medievale e moderna”, in J:A:Escudero, ob. cit. Madrid 2005, p. 29. 3 .Roger Williams. “The bloody tenant of persecution”, Londres, 1644 in CH. Hill, El mundo trastornado. El ideario popular extremista en la Revolución Inglesa del siglo XVII, Madrid, 1989, p. 315. 4. Joseph Ratzinger, “Conscienza e verita”, in La Conscienza, conferência internacional patrocinada pelo Wethersfield Institude de Nova Iorque, Orrieto, 27-28 de Maio de 1994, sob a responsabilidade de Graciano Borganovo, Cidade do Vaticano, 1996, p. 17-39. 5. J. Calvino, Declaratio ortodoxæ fidei, Genebra, 1554. Citado por J. Leclerc in Historia de la tolerancia en el siglo de la Reforma, T. 1, Alcoy, 1969, p. 380, 381. 6. A. Gorres, “Colpa e sensi de colpa”, in Communio 77, 1984, p. 56-73. Citado por J. Ratzinger, ob. cit. p. 22. 7. Ian Ker. John Henry Newman, A biography, Oxford-Nova Iorque, 1988, p. 254-256. 8. Jacques Robert, “L’éducation à la tolérance comme antidote aux violations religieuses de la libertá de religion et de conviction...”, in Consciência e Liberdade, nº , 2004, p. 138-142. 9. Paolo Broggio, Evangelizzare il mondo. Le missioni della Compagnia di Gesu tra Europa e America (secoli XVI-XVIII), Roma, 2004, 197-224. 10. Valtaire, Essai sur les mœures et l’esprit des nations et sur les principaux faits de l’histoire de Charlemagne à Louis XIII, Garnier, Paris, cap. 22, p. 112. Citado in J. Leclerc, ob. cit. p. 314.

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