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J. Baubérot A representação da laicidade como “excepção francesa”
Estudos
A representação da laicidade como “excepção francesa”*
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Jean Baubérot**
No Outono de 1989 aparece uma fórmula que vai fazer furor: a laicidade é uma “excepção francesa”. Rapidamente é posta em evidência, até pela sua repetição constante. Assim, um jornal diário pediu-me um artigo sobre a laicidade. Intitulei-o “A Laicidade não é uma excepção francesa” e foi publicado com o título “Laicidade, a excepção francesa inscreve-se nos valores universais”, amputado de passagens, tornou-se incongruente.
O México imitador da França … ou o inverso?
A expressão “laicidade excepção francesa” é talvez menos frequentemente utilizada hoje. Não há necessidade de a repetir tanta vez porque se tornou uma representação implícita largamente dominante em França, a ponto de fazer com que pessoas que pretendem ter autoridade na matéria escrevam coisas falsas. Assim, o Haute Conseil à l’Intégration (HCI) afirma, desde 2007, no seu Projecto de Carta da laicidade nos serviços públicos, que “objecto de admiração para o mundo, a lei de separação (de 1905) suscitou émulos e faz aparecer imitações”. E dá, como exemplo o México. Ora este país estabeleceu a separação em … 1861 e reforçou-a em 1874. Longe de ter imitado a França, o México constituiu uma referência na elaboração da lei francesa da separação das Igrejas e do Estado. O relatório da Comissão Parlamentar, redigido por Aristide Briand cita, de resto, longamente a lei mexicana da separação de 1874. E conclui: “O México possui, assim, a legislação laica mais completa que até hoje foi posta em vigor; este país libertou-se há trinta anos da questão clerical e pôde dedicar-se, inteiramente, ao seu desenvolvimento económico: ele conhece, realmente, a paz religiosa.”
Esta passagem termina um capítulo consagrado às “Legislações Estrangeiras”. Neste capítulo Briand distingue, segundo uma perspectiva evolutiva, três fases: “A primeira fase, teocrática, ou quase teocrática, na qual o Estado é, senão subordinado à Igreja, pelo menos estreitamente unido a ela.” A Espanha e Portugal católicos, a Rússia e a Grécia ortodoxas, a Suécia e a Noruega protestantes parecem ilustrar este regime. A segunda fase é a da “semi-laicidade”, na qual os Estados proclamam “os princípios da liberdade de consciência e de culto, mas consideram, apesar disso, certas determinadas religiões, como instituições públicas que eles reconhecem,
protegem e subvencionam”. A França da Concordata e do regime dos cultos reconhecidos, o Benelux, a Alemanha, a Itália, o Equador incluem-se nesta categoria. “Por fim, precisa ele, em alguns países da Europa e sobretudo em diversas grandes Repúblicas americanas, aparece o terceiro termo da evolução. O Estado é, então, realmente neutro e laico; a igualdade e a independência dos cultos são reconhecidas; as Igrejas estão separadas do Estado”. E é sobretudo a legislação destes últimos países que Briand examina, em particular, no que diz respeito às Américas, o Canadá, os Estados Unidos, Cuba, o Brasil e as repúblicas da América Latina, como o México.
Ao realizar a separação em 1905, longe de ser um “objecto de admiração para o mundo”, como pretende o HCI, com uma ênfase um pouco ridícula e que cheira a nacionalismo, a França não fez mais do que “atingir este terceiro grupo em que vários países a tinham precedido”. Isto é o o posto de uma visão da laicidade como “excepção francesa”. Teria havido, portanto, matéria para um bom debate por ocasião do centenário da lei. Ora o que se passou? A Assembleia Nacional (2005) reeditou em fac-simile “O Relatório Briand”, suprimindo o capítulo sobre “as legislações estrangeiras”! Salvo erro da minha parte, fui o único a analisar este capítulo (J. Baubérot 2006, 176-179). Enferma-se, portanto, de uma visão estreitamente franco-francesa da laicidade.
As influências estrangeiras da laicidade francesa, da escola…
Com efeito, de uma forma mais geral, a construção histórica da laicidade francesa não se fez sem empréstimos, ou influências, provenientes do estrangeiro. A laicização da escola pública tem sido aplicada ao mesmo tempo que a obrigação da instrução (1882). Foi precedida de um inquérito internacional do Ministério da Instrução Pública para saber como os países que já tinham compreendido a obrigatoriedade escolar (vários países europeus, o Canadá, os Estados Unidos, a Austrália e o Japão) conciliavam essa obrigação com o respeito pela liberdade de consciência. As soluções holandesa, americana e inglesa (em que se tinha assinado uma “Common Christianity”) prenderam a atenção de Jules Ferry na sua relação de proximidade e de distância com a situação francesa.
Segundo Ferry, é o papel diferente do “laico” que criou esta distância: num país impregnado pela cultura protestante, o leigo detém uma certa legitimidade para interpretar a Bíblia. A moral ensinada pelos instrutores “laicos” pode, portanto, apoiar-se numa base cristã não confessional, com base bíblica. Em França, uma moral religiosa é forçosamente “clerical” porque o instrutor, é um “leigo” sem nenhuma legitimidade religiosa (P. Chevallier, 1981, J. Baubérot – S. Mathieu, 2002). Deve então passar-se de um ensino ministrado por um “laico” para um ensino “laico” e da neutralidade confessional para a neutralidade religiosa (B. Mely, 2004), o que, em relação aos outros países, acentua a laicização mas não cria nenhuma situação excepcional.
Esta moral laica, que estudei nos cadernos escolares (J. Baubérot, 1997), está mais impregnada do filósofo alemão Emmanuel Kant do que das Luzes francesas ou do positivismo. (J. Bonet, 2007) mesmo se estas últimas correntes exercem uma certa influência (L. Loeffel, 2000). Kant é reinterpretado por Charles Renouvier (M-.Cl. Blais, 2000). A grandeza de Kant,segundo Renouvier, consiste em ter sido “o criador da moral como ciência”, mas não soube, verdadeiramente, abordar o problema da moral aplicada. Foi aí, portanto, que os filósofos-pedagogos da III República concentraram os seus esforços. Encontramos, no entanto, frequentemente entre eles as fórmulas kantianas. Kant foi, de resto, largaJules François Ferry (1832-1893), mente ensinado nas Escolas Normais político francês. Contribuiu com de professores primários, completado todas as suas forças para o acesso por outras referências, tal a ênfase obrigatório e gratuito de todas as criposta na solidariedade social. anças à escola laica, descartando os
Jules Ferry encontra, igualmente, jesuítas de toda a influência sobre o no exemplo do budismo a possibilisistema escolar. Reorganizou a formadade de dissociar a moral (como valor ção dos professores e criou a primeira universal) e o cristianismo (como reli- escola pública feminina. gião particular): “Na moral budista, Foto Wikipédia afirma ele, espera-se caridade até nos animais e nas plantas. Isso prova que uma moral baseada na prática a mais exigente, a moral da abnegação por excelência, pode existir com dogmas que não se assemelham em nada, aos dogmas cristãos. No budismo, não há nem castigos nem recompensa.” (Citado por P. Chevallier, 1981, 438 e s.) Este elogio do budismo feito por Ferry é o aproximar da oposição que ele manifesta para com os “dogmas” da “religião civil”, segundo Jean-Jacques Rousseau, em que as injustiças aqui praticadas estão contrabalançadas com a “recompensa dos justos” e a “punição dos maus” no além. O que é necessário salientar, para além da instrumentalização do budismo, é o interesse para com esta religião, e a forma como ela permite sair das perplexidades ocidentais.
A saída da religião civil de Rousseau e dos seus “dogmas” efectua-se, igualmente, através da insistência na solidariedade, sendo Confúcio uma das suas referências. A moral laica à francesa, coloca a ênfase nos “bens” materiais e intelectuais que encontramos à nascença: casas, objectos, alimento, livros, ciências, técnicas, etc., conjunto de “riquezas” devidas a um trabalho secular. Trata-se de “benifícios dos mortos”, porque a maior parte das pes-
soas que trabalharam para obter um tal grau de civilização, estão mortos. O professor conclui, então, que devemos reconhecimento aos “antepassados” (graças aos seus “benifícios”, os mortos adquirem esse estatuto) e pode fazer uma referência explícita a Confúcio. Chega até a dizer-se que “o culto dos antepassados” é um “culto legítimo” (J. Baubérot, 1997, 251-268). Estamos portanto, perante uma espécie de “confucionismo republicano”. É uma forma de mostrar que moral e justiça não se reconciliam ao nível do indivíduo o que obriga a postular um “além”), mas ao nível da sociedade, entendida como um conjunto colectivo de indivíduos solidários. Este equilíbrio entre indivíduo e sociedade pode ser considerado como uma das particularidades da moral laica francesa.
Os partidários de uma laicidade “excepção francesa” insistem, com alguma razão, sobre a importância da escola em matéria de laicidade. Mas esquecem toda a dimensão da moral laica e pretendem que a escola, para ser verdadeiramente laica, deve ensinar o “saber puro”. Segundo eles, esta posição torna-os “laicos à antiga” assim como os seus adversários seriam partidários de uma “nova laicidade”, traição, de facto, da verdadeira laicidade.
Régis Debray defende especialmente, estas teses, no decurso no Outono de 1989 (por ocasião da primeira crise dos lenços muçulmanos), numa intervenção-manifesto significativamente intitulada “A laicidade: uma excepção francesa”. Foi aliás, uma das primeiras vezes que esta expressão foi utilizada. Debray declara que em República, contrariamente ao que se passa em democracia, a escola afirma-se “como méta-nivel […] A escola é mediação. É necessário um mestre para se passar de mestre”. Ele atribui esta última fórmula – que menciona duas vezes – ao seu “antigo professor de filosofia que era (ele mesmo) um ‘laico à antiga’, Jacques Muglioni1”. Encontramo-las tal e qual na pena de outros filósofos, antigos alunos de Muglioni ou influenciados por ele (ver o livro de homenagem: Les Préaux de la République). E isso faz duvidar um pouco da sua validade: se esses filósofos tivessem realmente chegado a “ultrapassar o mestre”, continuariam a repetir a sua fórmula?
Ora isto é historicamente falso. A laicidade “à antiga”, a de há um século, não se passou forçosamente disto mesmo. Os laicos sabem que “para se passar de mestre”, é melhor aprender desde a idade de jovem a não o ser. É o que se pode concluir da intervenção feita por Ferdinand Buisson, antigo adjunto de Ferry e director do Dictionnaire pédagogique (“catedral da escola primária”, segundo P. Nora 1984), no congresso do Partido Radical, em 1903. A questão era saber se a laicidade podia aceitar a manutenção de uma escola privada católica, muito clerical, cujo ensino era frontalmente oposto ao da escola laica.
Ferdinand Buisson refuta assim os apoiantes da “laicidade integral” (e expressão era utilizada na época), hostis ao ensino privado: “Não se faz um republicano como se faz um católico. Para fazer um católico, basta impor-lhe a verdade já feita: ela aí está, e pronto, basta engoli-la. […] Para fazer um republicano, é necessário tomar o ser humano […] e dar-lhe a ideia na
qual ele deve pensar por si mesmo, que ele não deve nem fé nem obediência a ninguém, que é ele que deve procurar a verdade e não recebê-la já feita de um mestre […] seja ela qual for, temporal ou espiritual.” Buisson defende a existência da escola privada de forma paradoxal. Com efeito declara: “Não há educação liberal onde não se coloca a inteligência perante afirmações diversas, opiniões contrárias, em presença do pró e do contra, dizendo-lhe: compara e escolhe por ti mesmo.” A conclusão da aparência lógica, deveria consistir em afirmar: é mais uma razão para conceder o monopólio da instrução à escola laica. Com Ferdinand Édouard Buisson efeito, o seu ideal é precisamente a formação (1841-1932), filósofo, pedagogo e homem de Estado francês. Desenvolveu o conceito peddo espírito crítico, embora o próprio Buisson sublinhe, de um ponto de vista laico, a escola agógico para uma escola primária católica socializada tem a passividade intelecpública e laica. Propôs à Câmara tual. Todavia, in fine, o discurso de Buisson a separação da Igreja e do Estado induz uma indispensável volta: a emancipação e empregou, pela primeira vez, para a liberdade de pensar obriga a dar lugar a palavra “laicidade”. Ocupou, durantes vários anos, o lugar de Presidente da Liga para os à liberdade-pluralista, pluralismo que engloba até mesmo “inimigos da liberdade”. O discurso Direitos do Homem de que tinha sobre a formação do espírito crítico pela escola sido um dos fundadores. em 1927, laica é, forçosamente, uma boa parte ideológipartilhou com Ludwig Quidde o ca: o professor da escola laica é um professor prémio Nobel da Paz. e só um pensamento mágico se pode persuadir Foto Serviço de História da Educação, Paris do contrário. Ele ensinará sempre mais “a verdade”, a sua verdade, do que o espírito crítico. Portanto, não deve haver “fé e obediência a ninguém”, “procurar a verdade e não a receber já feita”, o que supõe “opiniões contrárias”, “o pró e o contra”. É a interacção social dessas opiniões contrárias que permite que se forma um espírito crítico. Não existe “mestre em liberdade”, nem (aí como em todo o lado) amanhãs que cantem.
Buisson era um grande admirador da América e dos seus pedagogos. Nota-se a influência dessa admiração na estreita ligação que ele faz entre laicidade, emancipação e pluralismo. Por outro lado, ele foi vencido nesse Congresso que se pronunciou em favor do monopólio da escola pública. Mas se ele perdeu uma batalha, ganhou a guerra, uma vez que o monopólio nunca foi concretizado. Assim, pode constatar-se que muitas concepções da laicidade se têm sempre afrontado e que, de uma forma geral, é até estes últimos anos, inclusivamente, a concepção que ela importou, concepção que não receia referir-se (explicita ou implicitamente) a outros países.
…à separação das Igrejas e do Estado
Isto verifica-se, também, quando se analisa os debates parlamentares da lei de 1905. A Igreja Católica acusava o projecto de lei de ignorar a sua organização própria (“monárquica”, dizia-se na época) por pretender colocar os edifícios do culto (igrejas, templo, sinagogas) como propriedade pública, à disposição de associações, compostas, maioritariamente de “leigos”. O Artigo 4, artigo fundamental da lei, foi então modificado e a sua nova redacção precisa que esses bens serão atribuídos a associações que “se conformem com as regras gerais do culto do qual se propõem assegurar o exercício2”. Esta formulação é encontrada nas legislações dos Estados Unidos e da Escócia (M. Larkin, 1974, 175s, 275) em que é tido em conta a especificidade de cada Igreja, numa lógica em que os grupos intermédios são, legitimamente, parte integrante de uma sociedade civil, ela mesmo, legítima perante o Estado.
Mas esta contribuição anglo-saxónica encontrou vivas oposições e o debate entre leigos provocou estragos. Nessa ocasião, Buisson, como Clemenceau (e, a fortiori, os defensores da “laicidade integral”), encontrou aquilo que se afasta na verdade da lógica republicana francesa, em que a liberdade colectiva é um prolongamento da liberdade individual. Mas Aristide Briand, Jean Jaurès e Francis de Pressensé, todos socialistas, defendem a modificação que faz da liberdade colectiva uma dimensão da liberdade individual, e esta foi adoptada. O Artigo crucial da separação recusa, portanto, a universalidade abstracta resultante da Revolução Francesa.
De uma forma mais geral, o apoio global da lei da separação, o seu liberalismo político, inspira-se em John Locke. Desde logo, porque Locke é o pensador do “governo limitado” e porque a lei suprime as medidas de vigilância que o Estado francês exercia sobre a religião antes de 1905, para os trocar por uma vigilância a posteriori. Depois, porque a Carta sobre a tolerância estabeleceu, entre poder civil e autoridade religiosa, uma separação muito mais clara do que Voltaire e a tradição anticlerical francesa subsequente, que se situa mais na óptica galicana da subordinação da religião ao Estado. Por fim, porque Locke dissocia, contrariamente à “religião civil” de Rousseau, “intolerância teológica” e “intolerância civil” e que esta lei não exige às religiões senão a “tolerância civil”. As Igrejas separadas do Estado guardam, no pensamento de Locke, a possibilidade de terem “opiniões falsas ou absurdas” e de excomungar aquele que nega as leis que estabeleceram no seu seio, com a condição de que ela não esteja “a excomungar nenhuma injustiça civil”. Rousseau recusa-se a tolerar qualquer Igreja exclusiva porque, afirma ele, “não saberia viver em paz com aquele que acredita ser maldito3” (ver J. Baubérot, 2007, 22-31). Para ele, “a intolerância teológica” (só os “verdadeiros crentes” são salvos) arrasta, necessariamente, os seus adeptos para uma “intolerância civil que não poderia ser tolerada”, enquanto que, em Locke, a separação implica uma ginástica intelectual entre a atitude civil (que deve ser tolerante) e a atitude teológica (que pode ser intolerante).
É possível escrever a história filosófica da laicidade francesa a partir de três ideias tipo que são o separatismo lockeano, o anticlericalismo voltairiano
e a religião civil rousseauna. Sob a Restauração, Le Globe, a publicação dos filósofos proscritos da Universidade, situa-se no domínio lockeano. Jules Ferry, antijacobino, mostra-se desconfiado para com a religião civil. No seu pensamento encontram-se diversos graus segundo as circunstâncias, o modelo anticlerical e o modelo separatista. Émile Combes, apoia-se na princesa carmelita Jeanne Bibesco (à qual o ligava uma relação apaixonada) das suas ideias rousseaunas. A “laicidade integral”, reclamada no início do século XX pelos livres-pensadores, mistura anticlericalismo voltairiano e religião civil. Quanto aAristide Briand, acabámos de ver que se situa numa filiação lockeana.A“laicidade, excepção francesa”, por fim, retoma, logicamente, a mistura de anticlericalismo e de religião civil da “laicidade integral”, acrescentando esta insistência sob o aspecto suposto nacional da laicidade.
O conflito de duas Franças, catolicismo e laicidade
Porquê uma tal união depois de 1989? A nossa hipótese é a seguinte: sempre houve, em França, um laço entre laicização e identidade nacional, mas este laço alterou a sua natureza nos anos de 1980, e especialmente a partir de 1989.
Muitos historiadores consideram, com Émile Poulat (1987), que a laicidade é o resultado do “conflito das duas Franças”. Ora, trata-se de um conflito de “duas Franças” porque coloca em confronto duas representações da França, duas concepções da identidade nacional. Para um catolicismo militante, e especialmente o “catolicismo intransigente” (Émile Poulat, 1977), a França devia reencontrar uma identidade católica oficial, suprimida pela nefasta Revolução e não restabelecida depois4: a França é a “filha mais velha da Igreja” (católica, escusado será dizer), o catolicismo é “a alma” da França. Por outro lado, os “sem religião” eram menos de cem mil e as minorias religiosas constituem microminorias (menos de cem mil judeus, cerca de setecentos, ou oitocentos mil protestantes), o catolicismo representava não apenas a “grande maioria” mas, na realidade, a quase totalidade dos franceses.
Esta visão, no entanto, não tem em conta o facto de 97% dos católicos franceses terem uma relação muito diversificada com o catolicismo. Muitos, dentre eles, desejam beneficiar daquilo a que se chamava, na época, os “apoios da religião”, sem, no entanto, obedecerem, forçosamente, às normas morais e aderir aos dogmas religiosos do catolicismo.
Face a este catolicismo militante, existia, portanto, uma grande dependência do domínio feudal que estimava, de forma racional, ou intuitiva, que a religião é um assunto individual e não uma dimensão da identidade nacional. Para estes últimos, de forma explícita ou mais implícita, a identidade nacional moderna foi moldada pela herança da Revolução Francesa, os “valores de 1798”, valores não apenas morais mas concretizados pela venda dos bens nacionais e o acesso à pequena propriedade de uma pequena classe média campesina. Trata-se, portanto, de uma referência à Revolução, desembaraçada dos seus aspectos extremos e das escórias do Terror (que, noutra perspectiva,
fazia parte da própria natureza da Revolução). Nesta grande dependência do domínio feudal se encontrava, além da maior parte dos “sem religião” e muitos membros de minorias religiosas, numerosos católicos entre aqueles que tinham com a sua instituição religiosa relações de proximidade e de distância. Esta referência à Revolução Francesa completava-se, especialmente, entre as elites, por uma oposição entre os países do Norte, germânicos e anglo-saxónicos, de cultura protestante, entrados na modernidade, e os países do Sul, latinos, que o catolicismo empurrava para o arcaísmo.
A laicidade foi sempre considerada como uma via de acesso à modernidade. Na verdade, as manifestações de orgulho nacional não eram excluídas. A França, com as suas leis escolares, tornou-se “em suma, a sociedade mais laica da Europa”, escreveu Buisson, em 1833, no seu Dictionnaire Pédagogique. Mas permanecemos, mais ou menos, em graus, mais ou menos acentuados da laicidade e não numa laicidade “excepção francesa”. A especificidade da laicidade francesa encontra-se, então, no facto de que ela envolve claramente toda a identidade institucional católica da França laicizando a escola pública (1882-1886) e realizando a separação das Igrejas e do Estado (1905-1908). O aspecto mais “doloroso” desta separação foi, para os católicos militantes, precisamente o fim do sonho de uma França “nação católica” (como já demonstrei no meu blogue5). A Acção Francesa de Charles Maurras (ele mesmo agnóstico, mas partidário de uma ordem pública católica) continuará a alimentar a ideia de um catolicismo nacional.
De resto, a laicidade não é consensual, em França, longe disso. Concretamente, não tem sido um elemento representativo da identidade francesa (mesmo que ela se tenha institucionalizado). Ela tem constituído, em contrapartida, um elemento importante da representação de uma identidade de esquerda. Antes de mais tem sido um sinal identitário do “partido republicano”, contra os monárquicos. Depois, da aproximação de alguns católicos à República (após o pedido de Leão XIII), causou uma clivagem entre os republicanos e distingue aqueles que praticam uma política de abertura para com esses e os que a recusam. Os católicos que seguiram Leão XIII ligaram--se, com efeito, à República, mas não às leis laicas. Falava-se então de “leis intangíveis” para estabelecer a diferença. O caso Dreyfus reforçou a clivagem e a laicidade tornou-se o estandarte do governo da “Defesa republicana” (1899-1902), depois do “Bloco das Esquerdas” (1902-1904). Falava-se então (já o vimos) de “laicidade integral”, o que significava a recusa dos acordos efectuados por Jules Ferry e uma abolição da laicidade.
A busca da “laicidade integral” levou a tomar e a considerar medidas cada vez mais duras, que saíam da pura democracia. Disso dá testemunho a oposição de Buisson ao projecto de instauração de monopólio do ensino superior. Clémanceau, por seu lado, resumiu a situação declarando no Senado: “Para lutar contra a congregação, fazemos da França uma imensa congregação”. E concluiu: “Somos homens de espírito latino. A perseguição da unidade por deus, pelo rei, pelo Estado assedia-nos: não aceitamos a diversidade
na liberdade” (Novembro de 1903). Todavia, numa reviravolta bem surpreendente, a mesma maioria seguiu Briand em 1905 e votou uma lei que ao próprios Buisson e Clémanceau acharam muito condescendente para com a Igreja Católica (ver J. Baubérot, 2006, 145-194).
Do conflito das duas Franças à “laicidade excepção francesa”
Esta política de apaziguamento continuou, mas caminhava a par do endurecimento ideológico de uma ala militante: “Uma certa linguagem, ao mesmo tempo batalhadora e incantatória, está em bom andamento para fixar os seus traços. Assiste-se então ao ‘nascimento de uma vulgata’ marcada pelo uso intensivo do termo ‘clericalismo’, a ideia de que o combate a travar é ‘eterno’ e que a ‘defesa laica’ é um logro tanto que subsiste a escola privada.” (J.-P. Martin, 1992, 792-794). Esta corrente vai persistir, mesmo depois da constitucionalização da laicidade, em 1946. Oficialmente, a identidade francesa tornou-se laica. Mas, de facto, o combate das duas Franças permanece, com uma tendência para reduzir a laicidade a um problema de subvenção pública das escolas privadas (então católicas em mais de 90%) especialmente com a lei Debré (1959). Sem dúvida que a questão não é negligenciável, mas a importância, para nós, são as consequências desta situação. Desde logo, ela perpetua uma concepção da laicidade como criador de fronteiras da esquerda e não como elemento de identidade nacional. Católicos hostis à guerra da Argélia e que se tornaram socialistas tiveram bastante dificuldade em se fazerem aceitar como tal. O protestante Michel Rocard deu um interessante testemunho nas suas memórias políticas (2007). Depois, países estrangeiros – especialmente os Estados Unidos que não subvencionam as escolas privadas – eram citados como modelos de laicidade para a França.
Os anos 1980 vão baralhar os dados. Desde logo, a identidade da esquerda vai começar a desestruturar-se com a reviravolta operada em 1983 pela esquerda, chegada ao poder em 1981, e, nos anos seguintes, com o declínio do comunismo e o fim rápido da URSS. Depois, o campo laico vai sofrer uma profunda derrota com a sua tentativa de impor o SPULEN (Serviço Público Unificado e Laico da Educação Nacional), que deveria ter realizado uma reunificação laica dos sistemas escolares públicos e privados. A maioria da opinião pública já não considerava, então, a escola privada católica como ensinando uma outra França e socializante com valores divergentes dos da república laica. Ela indicou, portanto, claramente, que aos seus olhos o “conflito das duas Franças” estava acabado. Sem dúvida, em 1994, a recusa em modificar a lei Falloux mostrará que se trata de um novo equilíbrio e não de uma vingança provada. Mas, entretanto, o acordo Lang-Cloupet de 1993 tinha ido mais longe do que a lei Debré no reconhecimento público do ensino católico! Significativamente, a crise de 1984 foi rapidamente banida da memória colectiva, e os partidários da “laicidade excepção francesa” agora contam-nos uma história falsa de uma laicidade francesa consensual antes do
“lenço” e outras manifestações “muçulmanas” tivessem quebrado esta idade de ouro de felizes consensos.
Os “problemas do lenço”, a partir de 1989 marcam, portanto, uma curva e a expressão “laicidade excepção francesa” fez figura a partir desse momento. Longe de se referir a uma “laicidade à antiga”, conota uma “nova laicidade” que se tornou a marca de uma certa concepção de identidade nacional. Implicitamente, com efeito, ela opõe antigos franceses, todos laicos por definição (apesar da Concordata e do sistema de cultos reconhecidos na Alsácia-Mosela, as subvenções à escola privada, etc.) e os novos franceses, aos quais é pedido que façam prova em matéria de laicidade. Trata-se, portanto, de uma laicidade transformada em “religião civil” republicana.
Com efeito, desde o fracasso do SPULEN, a laicidade podia ser, virtualmente, um elemento de uma identidade francesa consensual. Mas esta virtualidade não se tornou efectiva senão para a construção de um novo adversário: o islão (ou pelo menos um certo islão, o das jovens que usam o lenço). Os acontecimentos políticos e sócio-económicos favoreceram o retomar do tema da “laicidade ameaçada”, que a “laicidade integral” tinha utilizado contra o catolicismo, há um século; assim como outros temas que se encontram já no século XIX (como o da “mulher submissa” de ontem). A direita disputa cada vez mais à esquerda o tema da laicidade, sobretudo, desde os atentados do 11 de Setembro de 2001.
Por outro lado, a fórmula “laicidade excepção francesa” é muitas vezes oposta a outra: o “comunitarismo anglo-saxónico”, que junta ao medo dos muçulmanos o medo da globalização e de uma supremacia anglo-saxónica. Foi igualmente em 1989, com efeito, que se começou a opor “república” e “democracia”, jogando com os dois sentidos do termo república, a res publica e a República Francesa (sentido socialmente dominante), da mesma forma que se tinha jogado com os dois sentidos da palavra “homem” (ser humano e ser masculino) para fazer como se os homens masculinos fossem os seres humanos por excelência e afirmar que o sufrágio era “universal” durante o século (cerca de 30 a 35 anos) em que só os homens têm voto.
A mesma universalização do particular realiza-se com a noção de república. Implicitamente (e mesmo por vezes quase explicitamente), a República Francesa tornou-se, por este passe de mágica, na res publica por excelência: a República (francesa) é universal, as democracias (incluídas repúblicas como os Estados Unidos) são particularizadas. E, embora universitários de numerosos países afirmem que existe em nome do mundo das laicidades de que a francesa é um exemplo que, como as outras, tem as suas próprias particularidades (J. Baubérot, 2007, 3-6), este tipo de laicidade dita “republicana” é franco-francesa por definição, portanto, forçosamente uma “excepção francesa”. O círculo é assim fechado.
Numa tal conjuntura, esta representação da laicidade como “excepção francesa”, ao arrepio de toda a evolução histórica e sociológica (já vimos: a laicidade francesa construiu-se graças a transferências culturais e existem
outras laicidades para além da laicidade francesa) arrisca-se a fazer da laicidade um bem identitário dos “Franceses de raiz” a quem os “novos Franceses” vindos da imigração deveriam prestar vassalagem para se tornarem “verdadeiros” franceses.
Obras citadas:
Assembleia Nacional, Le rapport Briand, rapport fait au nom de la Commission relative à la Séparation des Églises et de l’Etat. Avant-propos J.-L. Debré, Assembleia Nacional, Paris, 2005. Badinter E. et alii, Les Préaux de la République, Minerve, Paris, 1991. Baubérot J., La morale laïque contre l’ordre moral, Seuil, Paris, 1997. Idem, L’intégrisme républicain contre la laïcité, L’Aube, Paris, 2006. Idem, Les laïcités dans le monde, PUF, Paris, 2007. Baubérot J.-Mathieu S., Religion, modernité et culture au Royaume-Uni e France, Seuil, Paris, 2002. Blais M.-C., Au principe de la République, le cas Renouvier, Gallimard, Paris 2000. Bonnet J., Kant instituteur de la République (1795-1904), tese de doutoramento da Escola Prática dos Altos Estudos, Paris, 2007. Chevallier P., La séparation de l’Église et de l’École, Fayard, Paris, 1981. Debray R., “La laïcité, une exception française”, in Genèse et enjeux de la laïcité, Labor et Fides, Genève, 1990, p. 199-208, 214, 217-219, 223-224. Larkin M., Church and State after the Dreyfus Affair: the Separation Issue in France, Macmillan, Londres, 1974. Loeffel L., La question du fondement de la morale laïque, PUF, Paris, 2000 Martin J.-P., La Ligue de l’enseignement et la République, des origines à 1914, tese de doutoramento dos Instituto de Estudos Políticos, Paris,1992. Mély B., De la séparation des Églises et de l’École. Mise en perspective historique Allemagne, France, Grande-Bretagne, Italie, 1789-1914, Lausanne 2004, p. 2. Poulat E., Église contre bourgeoisie, Casterman, Tournai, 1977. Idem, Liberté, Laicité. La guerre des deux France et le principe de la modernité, Cerf/Cujas, Paris, 1987. Rocard M., Si la gauche savait. Entretiens avec Georges-Marc Benamou Robert Laffont, nova edição aumentada, Paris, 2007.
* Conferência apresentada no Colégio do México, em Setembro de 2007, na Universidade de Toronto, em Outubro de 2007 e na Universidade da Florida, em Novembro de 2007. ** Presidente de Honra da Escola Prática de Altos Estudos na Sorbonne, titular da cadeira de
História e Sociologia da Laicidade, na EPHE, Paris, França.
1. E, na “mesa redonda final” houve um orador que afirmou que o “Mestre” é uma “criatura impossível, abstracta”, ao que Debray respondeu: “Pessoalmente, tive um mestre-filósofo […] Esse homem ensinou-me a pensar”. Ele contou, brevemente, a vida de Muglioni, “filho de um pastor analfabeto, que veio o ser deão da Inspecção Geral de Filosofia” e concluiu: “Mestres republicanos, isso existe, já os tenho encontrado (idem 223)”. Em França, a Inspecção Geral (IG) é uma estrutura poderosa, que constrói carreiras. A IG de filosofia é, desde há vários decénios, reputada pelo seu dogmatismo e a sua recusa da “originalidade” assim como pelo corporativismo, de todos os avanços das ciências humanas e sociais (que se arrisca a curto prazo a substituir o ensino da filosofia nos anos finais do liceu). O Debray de 1989 não tinha, manifestamente, morto o pai (intelectual). Parece que mais tarde o fez. Este não é, forçosamente o caso dos outros discípulos de Muglioni. 2. Isto é, para a Igreja Católica, tem de respeitar a autoridade do Bispo e do Papa. 3. Sobre esta questão da “religião civil”, existe toda uma literatura sociológica, desde há alguns decénios. Retenhamos aqui uma das suas conclusões importantes: o conteúdo (deista ou secular) dos “dogmas” da religião civil importa menos do que a sua função: sacralizar o ser conjunto colectivo, apoiar uma sociedade republicana sobre uma transcendência que se furta ao julgamento (ver J. Baubérot, 2006, 214). 4.AConcordata, ao afirmar que o catolicismo era “a religião da grande maioria dos franceses” poderia fazer crer aos católicos neste restabelecimento, mesmo se não o tenha efectuado. A instauração de um regime pluralista em que o protestantismo e o judaísmo eram cultos reconhecidos, o aspecto inteiramente laico do Código Civil, a criação da Universidade Imperial e a Lei sobre o exercício ilegal da medicina eram medidas, que, de facto, voltavam as costas a este restabelecimento.
5. http://jeanbaubertotlaicite.glogspirit.com, Categoria: “as novas benfeitorias de após centenário.