9 minute read

A mediação familiar como instrumento singular de realização dos princípios orientadores dos processos tutelares cíveis

RESOLUÇÃO ALTERNATIVA DE LITÍGIOS A Mediação Familiar como instrumento singular de realização dos princípios orientadores dos processos tutelares cíveis

Mais de 4 anos separam-nos da entrada em vigor do Regime Geral do Processo Tutelar Cível (RGPTC), aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 8 de setembro, um diploma que não pode deixar de ser perspetivado como um marco, também do ponto de vista da Mediação Familiar.

Advertisement

O Regime Geral do Processo Tutelar Cível (RGPTC), veio consagrar um feixe de princípios que deverão reger todos os processos tutelares cíveis, entre os quais avulta o inovador princípio da consensualização, tal como consagrado na alínea b) do n.º 1 do artigo 4.º do mencionado diploma. De acordo com este princípio “os conflitos familiares são preferencialmente dirimidos por via do consenso, com recurso a audição técnica especializada e ou à mediação, e, excecionalmente, relatados por escrito”.

Por outro lado, determina-se na alínea b) do n.º 1 do artigo 21.º que o juiz, tendo em vista a fundamentação da decisão, ordena, sempre que entenda conveniente, a audição técnica especializada e ou a mediação das partes, nos termos previstos nos artigos 23.º e 24.º do referido diploma. No que à mediação familiar respeita, cumpre referir que o regime até então acolhido na Organização Tutelar de Menores se manteve intocado, assim se prevendo no artigo 24.º do RGPTC que em qualquer estado da causa e sempre que o entenda conveniente, designadamente em processo de regulação do exercício das responsabilidades parentais, oficiosamente com o consentimento dos interessados ou a requerimento destes, pode o juiz determinar a intervenção de serviços públicos ou privados de mediação. Para tais efeitos, compete ao juiz informar os interessados sobre a existência e os objetivos dos serviços de mediação familiar, sendo que caso o acordo obtido por via de mediação satisfaça o interesse da criança, o juiz homologa-o.

No que respeita à audição técnica especializada, determina o artigo 23.º do RGPTC que “o juiz pode, a todo o tempo e sempre que o considere necessário, determinar a audição técnica especializada, com vista à obtenção de consensos entre as partes”, consistindo tal intervenção, em matéria de conflito parental “na audição das partes, tendo em vista a avaliação

diagnóstica das competências parentais e a aferição da disponibilidade daquelas para um acordo, designadamente em matéria de regulação do exercício das responsabilidades parentais, que melhor salvaguarde o interesse da criança”. A audição técnica especializada inclui a prestação de informação centrada na gestão do conflito.

Por outro lado, e com relevância central, estabelece-se ainda em sede de regulação da tramitação da providência tutelar cível de regulação do exercício das responsabilidades parentais (a providência “modelo” do RGPTC) que, em sede de realização da conferência, “se ambos os pais estiverem presentes ou representados na conferência, mas não chegarem a acordo que seja homologado, o juiz decide provisoriamente sobre o pedido em função dos elementos já obtidos, suspende a conferência e remete as partes para:

a) Mediação, nos termos e com os pressupostos previstos no artigo 24.º, por um período máximo de três meses; ou b) Audição técnica especializada, nos termos previstos no artigo 23.º, por um período máximo de dois meses”.

Temos, pois, a introdução de uma nova tipologia ou modelo de intervenção – a audição técnica especializada, assumindo esta natureza obrigatória para as partes, relativamente à qual se podem identificar claramente duas dimensões que diremos, porém, incindíveis: por um lado uma dimensão instrutória, materializada desde logo na avaliação diagnóstica das competências parentais a que se alia uma dimensão “potenciadora de consensos”, pautada pela prestação de informação centrada na gestão do conflito das partes e concretizada na aferição da respetiva disponibilidade para um acordo que melhor salvaguarde o interesse da criança. Mas porque numa perfunctória análise, a finalidade “potenciadora de consensos” da audição técnica especializada de algum modo comunga dos objetivos da mediação familiar, importa determinantemente identificar, neste específico contexto onde, quando e com que efeitos derradeiramente deste outro procedimento se afasta:

Assim, a mediação familiar é conduzida por um mediador, um terceiro imparcial e independente, desprovido de poderes de imposição aos mediados, que os auxilia na tentativa de construção de uma solução mutuamente aceitável - um acordo - sobre o objeto do litígio que os opõe e que, nesta matéria, deverá privilegiar o superior interesse da criança (Cf. artigos 2.º, 6.º e 7.º da Lei n.º 29/2013, de 19 de abril), podendo a mediação ser desenvolvida no contexto do sistema publico de mediação familiar ou a título privado. Já a audição técnica especializada é desenvolvida no contexto da assessoria técnica ao tribunal, estando em causa um profissional integrado no Instituto da Segurança Social, I.P. e determinantemente orientado para aferir e transmitir ao Juiz a disponibilidade das partes para um acordo que privilegie o superior interesse da criança, (Cf. artigos 23.º, 20.º e n.º 1 do artigo 39.º do RGPTC e alínea p) do n.º 2 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 83/2012, de 10 de março);

A voluntariedade do procedimento é um pressuposto essencial, inafastável da mediação familiar (cf. artigo 4.º da Lei n.º 29/2013), ao passo que a audição técnica especializada resulta de determinação do Juiz, sendo obrigatória para as partes (Cf. artigo 23.º do RGPTC);

A confidencialidade da mediação é outra das características fundamentais deste procedimento, conhecendo as estritas exceções contempladas na lei e contemplando como corolário a proibição da valoração do conteúdo das sessões de mediação em tribunal (Cf. artigo 5.º do RGPTC). O mesmo naturalmente não sucede com a audição técnica especializada: o conteúdo e naturalmente o resultado desta intervenção, na medida em que releva da avaliação de competências parentais, bem como da aferição da disponibilidade das partes para um acordo, não estão nem poderão estar a coberto da confidencialidade, havendo que ser reportados ao Juiz e estando inclusive sujeitos a contraditório (Cf. artigos 23.º, n.º 1, 25.º e artigo 39.º do RGPTC).

O objetivo da mediação familiar é só um: a obtenção de acordo entre as partes, e nesta matéria, que naturalmente salvaguarde o superior interesse da(s) criança(s) envolvida(s). Já a avaliação diagnóstica das competências parentais assume-se como finalidade inultrapassável da audição técnica especializada, ainda que a esta se junte aquela outra potenciadora de consensos.

Analisando a atividade do sistema público de mediação familiar (SMF), é possível confirmar a mudança de paradigma operada pela entrada em vigor do RGPTC, concretamente no que respeita à origem dos processos submetidos ao SMF.

Com efeito, se antes da entrada em vigor daquele regime a maioria dos processos submetidos ao SMF nascia da iniciativa das próprias partes, após a entrada em vigor do referido regime, os processos submetidos pelos tribunais ao SMF passaram a assumir o maior número. A comprová-lo, refira-se que em 2015 a maioria dos pedidos (64%) tinha origem em pedidos das partes, sendo que em 2016, primeiro ano completo de vigência do RGPTC, 79% dos pedidos foram remetidos ao SMF pelos tribunais. Contudo, nos dois anos subsequentes (2017 e 2018) verificou-se uma crescente diminuição dos pedidos de intervenção nesta matéria dirigidos ao SMF com origem na autoridade judiciária, a qual se inverteu novamente em 2019 1 . Sucede assim e em qualquer caso que, ao contrário do expectável, a inicial tendência de incremento de pedidos de intervenção do SMF com origem na autoridade judiciária ditada pela entrada em vigor do RGPTC não se veio a manter nem intensificar, uma constatação que não pode deixar de convocar a nossa ponderação sobretudo se tivermos em consideração a óbvia desproporção entre o número de processos tutelares cíveis findos nos tribunais judiciais de 1.ª instância e o número de iniciativas dirigidas ao funcionamento do SMF com origem na autoridade judiciária (tendo em consideração

1 Eis os dados estatísticos que respeitam a pedidos de mediação familiar em ações tutelares cíveis, com origem em iniciativa da autoridade judiciária: 2016 – 386; 2017 – 285; 2018 – 249 e 2019 – 324. o ano de 2018 falamos de 38305 processos tutelares cíveis em matéria de responsabilidades parentais e 249 iniciativas dirigidas ao SMF).

Dito isto, não devemos desconsiderar também que a experiência destes primeiros 4 anos de vigência do RGPTC permitiu constatar divergências interpretativas e, ou, tão-só procedimentais na aplicação do regime previsto no artigo 38.º do RGPTC, conduzindo, nuns casos, a que a audição técnica especializada e a mediação familiar sejam apresentadas pelo Juiz às partes em desacordo como alternativas em idêntico plano, sendo que a participação numa ou noutra forma de procedimento é deixada à simples opção das partes e, noutros casos (como de resto nos parece dever ser) sendo conferida à mediação familiar uma primazia de princípio 2 , desde que obtido o consentimento das partes para o efeito e sendo que apenas nos casos em que falte o imprescindível consenso das partes para submissão a este procedimento, são as mesmas, por decisão do Juiz, encaminhadas para a audição técnica especializada.

E com efeito, em nossa opinião é este segundo quadro o único que respeita o espírito do sistema, pois que a primazia de princípio da mediação familiar sobre a audição técnica es

2 Primazia, por natureza afastada, caso o Juiz pretenda, fundadamente, uma avaliação das competências parentais dos envolvidos – resultado que apenas a audição técnica especializada lhe poderá devolver, naturalmente.

pecializada deve encontrar fundamento na articulação conjugada dos princípios da consensualização, mas também da intervenção mínima, da proporcionalidade, da privacidade e da responsabilidade parental 3 (estes últimos,

3 Cf. artigo 3.º da LPCJP: (…)

b) Privacidade - a promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem deve ser efetuada no respeito pela intimidade, direito à imagem e reserva da sua vida privada; (…)

d) Intervenção mínima - a intervenção deve ser exercida exclusivamente pelas entidades e instituições cuja ação seja indispensável à efetiva promoção dos direitos e à proteção da criança e do jovem em perigo;

e) Proporcionalidade e atualidade - a intervenção deve ser a necessária e a adequada à situação de perigo em que a criança ou o jovem se encontram no momento em que a decisão é tomada e só pode interferir na sua vida e na da sua família na medida do que for estritamente necessário a essa finalidade;

f) Responsabilidade parental - a intervenção deve ser efetuada de modo que os pais assumam os seus deveres para com a criança e o jovem; (…) (Nossos negritos).

consagrados na Lei de Proteção da Crianças e Jovens em Perigo e aplicáveis aos procedimentos tutelares cíveis ex vi do n.º 1 do artigo 4.º do RGPTC), afigurando-se-nos inquestionável, em qualquer caso, que o procedimento de mediação familiar será não só aquele que representa uma menor ingerência na vida dos envolvidos e respetiva família (já que a audição técnica especializada obriga a uma avaliação das competências parentais e prestação de informação ao tribunal), como também o que melhor logrará a assunção dos deveres dos mediados para com os seus filhos (já que são as próprias partes responsáveis pelas soluções encontradas em sede de mediação, sendo o mediador um simples facilitador) e, bem assim, o único que, em virtude da confidencialidade que lhe é inerente, melhor garante a preservação da reserva da vida privada dos envolvidos.

This article is from: