Espaço, Lugar, Aurora: três zines e uma deriva

Page 1

FAAP

ANDRADE, JÉSSICA

Fundação Armando Alvares Penteado FAAP – PÓS-GRADUAÇÃO CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO LATO-SENSU EM DESIGN GRÁFICO: CONCEITO E APLICAÇÃO

ESPAÇO, LUGAR, AURORA Três zines e uma deriva

ESPAÇO, LUGAR, AURORA Três zines e uma deriva

Aluna: Jéssica de S. Andrade Orientador: Rodrigo Silveira

assuma sua subjetividade na cidade

2018

São Paulo 2018


FUNDAÇÃO ARMANDO ALVARES PENTEADO FAAP - PÓS GRADUAÇÃO CURSO DE PÓS - GRADUAÇÃO LATO - SENSU EM DESIGN GRÁFICO: CONCEITO E APLICAÇÃO

Jéssica de Souza Andrade

Espaço, Lugar, Aurora. Três zines e uma deriva

SÃO PAULO 2018



Jéssica de Souza Andrade

Espaço, Lugar, Aurora. Três zines e uma deriva

Monografia apresentada a FAAP - Pós Graduação, como parte dos requisitos para aprovação no Curso de Pós - Graduação Lato - Sensu em Design Gráfico: Conceito e Aplicação

Rodrigo Silveira

SÃO PAULO 2018



Agradeço aos meus pais Magda e Roberto por me amarem de forma tão exagerada, aos Professores (as), aos tantos amigos que fiz por aí e que andam junto comigo se aventurando nas minhas ideias absurdas e experimentos poéticos. Gratidão ao universo que pelas vias do amor me colocou sempre em lugares precisos.

Aprendi com o Professor Perrone que a vida tem mais curvas que linha reta e que sorte a nossa.



Na cidade em que me perco na praça em que me resolvo Na noite da noite escura. Torquato Neto Ainda vão me matar numa rua. Quando descobrirem, principalmente, que faço parte dessa gente que pensa que a rua é a parte principal da cidade. Leminski



Não sei ao certo quando esse projeto teve seu início. Antes de ser o que é, já foi muitas outras coisas. A cidade parecia que dormia, parecia não existir, era um tabuleiro sem sentido, sem sinais simbólicos, sem linguagem, sem imagens, um espaço de movimento lógico. Eu não partilhava dos seus códigos. Experimentava uma e outra sensação e insistia na invisibilidade dos edifícios, das pessoas. 11



resumo Projeto que explora o espaço urbano em uma perspectiva subjetiva. Protagonizada por um único sujeito, que realiza o processo de deriva na rua Aurora, localizada no centro de São Paulo, usando o caminhar como instrumento de investigação e experimento perante o desconhecido. O percurso é registrado por meio da fotografia, uso da técnica pinhole, anotações e entrevistas coletadas em campo. O objetivo desse trabalho é unir as narrativas: visual e textual, coletadas durante a deriva no suporte do zine. Os conceitos utilizados abordam o movimento Situacionista e a prática da deriva, o caminhar como ato estético e a leitura do lugar e do espaço no eixo da subjetividade e afetuosidades. O trabalho propõe a construção de uma peça gráfica que permita ao leitor vivenciar a experiência da deriva. Palavra-chave: situacionismo, deriva, rua, zine, espaço, lugar, afeto, subjetividade, experiência.



sumário cap 4 processo

introdução 17

51

A experiência do registro

cap 1 referencial teórico O Situacionismo de Debord

19

62

20

O Caminhar. O visível. O invisível. A natureza da experiência

Caderno de campo

52

26

28

cap 5 peça gráfica Ideia gráfica

65

66

Espaço que vira lugar

Experimentação e linguagem

Movimento que vira pausa

Tipografia

Experiência que vira arte

30

Suporte Grid

cap 2 referencial estético Sophie Calle Família Boyle

36

35

77 79

82

Paleta Cromática Arte final

84

86

37

considerações finais cap 3 metodologia Pesquisa de campo Rua Aurora Pinhole

46

70

44

42

101

41 referências bibliográficas

105



introdução Cidade, esse organismo vivo composto por espaços, lugares, memórias e afetividades; Como descobrir o que ainda é desconhecido?; Como explorar por meio da experiência subjetiva os espaços da cidade?; Como adentrar os lugares e torná-los memória? Quem habita esses espaços? Quais são as histórias que se forjaram no asfalto, no muro, no alto dos prédios? A presente pesquisa tem como fundamento a exploração do espaço urbano em uma perspectiva subjetiva. Protagonizada por um único sujeito, que realiza o processo de deriva na rua Aurora, localizada no centro de São Paulo, usando o caminhar como instrumento de investigação e experimento perante o desconhecido. O trabalho propõe a construção de uma peça gráfica que permita ao leitor vivenciar a experiência da deriva. Foi desenvolvido um conjunto de três zines: Espaço, Lugar e Aurora que mesclam as narrativas visuais e textuais, resultados das pesquisas de campo e derivas executadas durante o desenvolvimento da pesquisa. Os capítulos foram organizados em referencial teórico, referencial estético, metodologia, processo e peça gráfica. O primeiro capítulo aborda o surgimento do movimento Situacionista, explicando sua criação, as reflexões e críticas que o grupo tecia sobre o espaço da cidade e um breve relato sobre as práticas das situações como instrumento para quebrar a lógica industrial de percorrer a cidade para um movimento de reconhecimento do cidadão como sujeito ativo do seu espaço, das suas trocas e do seu percurso. O segundo capítulo traz uma breve análise das linhas de trabalho dos artistas: Sophie Calle e Família Boyle; uma tentativa de discorrer de maneira ampla o modo como cada artista trabalha com o espaço e o percurso, como definem seus processos, narrativas e preocupações estética. O terceiro capítulo concentra os três pilares estruturantes do projeto: pesquisa de campo; apresentação da rua 17


Aurora; explicação da técnica fotográfica pinhole. Nesta seção eu discorro como ocorreu a pesquisa de campo na rua Aurora e como surgiu o interesse de investigar especificamente essa rua, mais adiante descrevo o que notei na rua, as atividades comerciais ali presentes, o perfil do público que transita e reside na Aurora e a paisagem, o contexto físico, os prédios e demais construções que formam o seu entorno. No quarto capítulo trago o processo. As fotografias capturadas por pinhole de todo o percurso de deriva e as imagens do caderno de anotações, com as minhas impressões sobre a rua Aurora, trechos de conversas e os tempos de exposição do experimento fotográfico. O quinto e último capítulo traz a construção da peça e suas etapas de desenvolvimento: ideia gráfica, experimentação e linguagem, tipografia, suporte, grid, paleta cromática e arte final. Por fim, as considerações finais e o acervo bibliográfico consultado durante o projeto.


cap 1 referencial teórico

21


O Situacionismo e a Deriva A Internacional Situacionista surgiu na França no início dos anos cinquenta, resultado de

uma formação coletiva anterior, chamada de a Internacional Letrista, pautada nos pensamentos Poeta romeno, crítico de cinema e artista visual, fundador do Letrismo, um movimento literário e artístico com inspiração no legado revolucionário de esquerda do Dadaísmo e do Surrealismo. 1

de Isidore Isou1. O grupo, formado Guy Debord, Gil Wolman, Michele Bernstein, Mohamed Dahou, Jacques Fillon e Gilles Ivani, rompem com as ideias de Isidore e fundam a IS. O coletivo integra um conjunto de movimentos contestatórios que surgiram no contexto posterior à Segunda Guerra Mundial (1939-1945), assim como as vanguardas, sendo formações engajadas numa prática antiarte e com alto teor de criticidade ante a sociedade burguesa e a alienação do sujeito. No centro dos interesses do grupo já não está a poesia, mas sim um modo de viver apaixonado que se traduz em aventura no ambiente urbano. Lê-se poesia, aqui, como uma metáfora das artes formais que recebem o reconhecimento da academia e uma crítica ao que é poesia, quem a define, se só é poético se construído na estrutura já reverenciada pela literatura.

A poesia chegou à consumação dos seus últimos formalismos. Para além da estética, a poesia está totalmente no poder que os homens terão nas suas aventuras. A poesia lê-se nos rostos. Assim, urge criar novos rostos. A poesia está na forma das cidades. Construímos a subversão. A nova beleza será de situação, vale dizer, provisória e vivida [...] A poesia não significa senão a elaboração de comportamentos absolutamente novos e dos meios com os quais se apaixonar. (CARERI, 2010, p.86).

A IS teve sua produção articulada sobre a tríade política, estética e espaço urbano, e possui fortes influências do Dadaísmo e Surrealismo, movimentos artísticos que também se aproximaram da concepção e experiência de uma cidade imaginária, carregada de conteúdo simbólico. As excursões dadaístas e as errâncias surrealistas são as primeiras tentativas de leitura da cidade através de sua configuração espacial. 22


A investigação da cidade pelo flâneur, segundo a historiadora de arte norte-americana, Christel Hollevoet, vem sido apropriada por grupos de poéticas artísticas desde meados do século passado. O pensamento situacionista estava interessado em ir além dos padrões vigentes da Arte Moderna, passando a propor uma prática artística ligada diretamente à vida, uma arte integral, que deslocasse o indivíduo da alienação do cotidiano. O grupo, no início, objetivava construir cidades, o ambiente apropriado para o despertar ilimitado de novas situações. As investigações urbanas estavam atreladas à experiência da cidade existente através de novos procedimentos e práticas: a psicogeografia, a deriva e a criação de situações novas no espaço urbano. Por meio desses novos procedimentos o grupo acreditava que os resultados das experiências trariam base para uma proposta de cidade situacionista, mas logo a ambição de construir cidades reais cedeu lugar à crítica contra o urbanismo, o sistema capitalista, a alienação do cotidiano e o planejamento em geral, que visava exclusivamente o discurso de uma classe dominante e a territorialização do espaço regida por interesses econômicos. Paola Berenstein Jacques, em seu texto Breve histórico da Internacional Situacionista, pontua que na ideia de pensamento urbano situacionista “não existiu uma forma situacionista material de cidade, mas sim uma forma situacionista de viver ou experienciar a cidade. “ (JACQUES, B. P., 2003) 2

A construção desse tipo de mapa não é uma invenção dos Situacionistas, mas remonta ao século XVII, mais especialmente na Carte de Tendre, realizada por Madeleine de Secudéry em 1653.

Uma das primeiras produções do grupo utilizando as práticas de deriva e psicogeografia foi o mapa Naked City2, realizado por Debord, que aparece em um dos manifestos da Internacional Situacionista (1959) e remete à possibilidade dos trajetos entres os pontos construírem narrativas. A definição de psicogeografia da IS é apresentada como “o estudo dos efeitos precisos do meio geográfico, conscientemente organizado ou não, que atuam diretamente no comportamento afetivo dos indivíduos.” (CARERI, 2010, p.90). A cartografia foi utilizada como recurso para representação gráfica de um percurso psicogeográfico, subjetivo e intuitivo. 23


24 Carte de Tendre, realizada por Madeleine de Secudéry em 1653

Mapa Naked City, realizado por Guy Debord em 1959


Em Além dos mapas (1997), Cristina Freire aponta que a apropriação da cidade de forma significativa se faz por ordem do acaso. As descobertas de lugares onde a imaginação ganha terreno não são voluntárias, mas remetem a múltiplas possibilidades de encontro. A psicogeografia é um método de abordagem da cidade que possibilita a construção de mapas imaginários. O objetivo dos mapas imaginários é de outra ordem, mais vivencial e narrativo, não possui responsabilidade de informar e não tem valor técnico. “A psicogeografia pressupõe a cidade como sendo também a representação que os cidadãos têm dela, isto é, a cidade enquanto usina do imaginário social”. (ANDRADE, 1993, p.17).

Debord chamou esse trabalho de “Guia Psicogeográfico de Paris”. São dezenove setores da cidade, entre os quais diversos monumentos, ligados por flechas vermelhas. Tais flechas indicam as possíveis trajetórias. Porém as distâncias nesse mapa não correspondem às distâncias reais, mas a intervalos vivências psicogeográfico. Não têm uma extensão objetiva e, portanto, não se prestam à quantificação, e as flechas são coloridas de vermelho, sugerindo a intensidade dos afetos. Naked City não cobre toda a cidade, mas apenas pontua lugares significativos da experiência urbana e traça, entre esses pontos, estranhos trajetos, onde as distâncias não são medidas físicas. Fragmentado, repudia a homogeneização dos espaços provocada pela sociedade capitalista. (FREIRE, 1997, p.72)

No mapa de Debord, cada setor da cidade tem uma atmosfera diferente e, portanto, comporta distintas narrativas. A cidade é compreendida como um teatro de operações e um dos procedimentos para sua exploração é a deriva. A deriva se corresponde diretamente com os princípios surrealistas de exploração da cidade, através de procedimentos que conectam o inconsciente, as fantasias e memórias, o imaginário. A definição de deriva segundo a IS “é um modo de comportamento experimental ligado às condições da sociedade urbana: técnica de 25


passagem apressada por vários ambientes. Mais particularmente, também designa a duração de um exercício contínuo desta experiência. “ (CARERI, 2010, p.90). É preciso pontuar a distinção entre o flâneur e a deriva. O primeiro, no século XIX, tinha como característica principal o prazer de olhar, mas em contrapartida, aquele que deriva se apropria dos objetos nos quais investe seu olhar e sua fantasia. Trazendo uma atitude mais crítica comparada a do flâneur, o teor crítico e político do indivíduo que deriva está estritamente relacionado com o período pós-Guerra, quando os veículos de comunicação em massa ganham mais impulsos e os espaços perecem de contrastes e tornam-se homogeneizados por meio da lógica de um sistema organizacional capitalista pautado no valor de troca e propriedade.

Aquele que deriva não considera as coisas espontaneamente visíveis, objetos de contemplação como o flâneur, mas entende que os quarteirões por onde andam são construções sociais e, portanto, ele é capaz de “reconstruí-los”, rompendo-os, fragmentando-os com o seu caminhar. (FREIRE, 1997, p.68). Thomas McDonough em seu livro, The Situationist space, explica: A deriva como um “discurso pedestre” reinstala o valor de uso do espaço numa sociedade que privilegia o “valor de troca”, ou seja, sua existência enquanto propriedade [...]. Uma importante ferramenta para os Situacionistas era fazer com que a deriva pudesse mudar o significado da cidade, através da forma como ela era habitada. Essa luta foi conduzida não para que fosse feito um novo mapa cognitivo, mas para se construir um mapa coletivo mais concreto, um espaço cujas potencialidades permanecessem abertas para todos os participantes nessa narrativa lúdico-construtiva de um novo território urbano. (MCDONOUGH, 2010, p.75).

Além da psicogeografia e da deriva, conceitos fortemente articulados pelo movimento Situacionista, seus membros e idealizadores também acreditavam ser possível a criação de situações novas capazes de fazer o indivíduo emergir de sua alienação cotidiana e dos 26


espaços de insurgência da cidade e se reconhecer como sujeito da própria história, pois a partir desse reconhecimento o indivíduo passa de habitante e simples espectador a construtor, Termos usado nos escritos desenvolvidos pelo próprio grupo da IS. 3

transformador e vivenciador3 de seus próprios espaços, o que impediria a espetacularização urbana. A Internacional conceitua a situação construída como “momento de vida, concreta e deliberadamente construído mediante a organização coletiva de um ambiente unitário e de um jogo de acontecimentos” (CARERI, 2010, p.90) O pensamento acerca da construção das situações está ancorado na ideia de jogo abordado por Johan Huizinga, na publicação do Homo Ludens: O jogo como elemento da cultura, e na relação que o indivíduo estabelece com o tempo, pois na dinâmica de uma sociedade de consumo a fruição de tempo se associa com a lógica do mercado e até o momento destinado ao lazer passa a ser um prolongamento do trabalho alienado. A IS almejava reprogramar esse padrão de comportamento. Desestimulando tal associação, o indivíduo daria voz aos seus desejos e vontades, distanciando-se de sua função de mantenedor do sistema, tornando-se protagonista e sujeito de suas ações e experiências, o que desencadearia uma maior percepção do tempo, espaço e sua realidade urbana.

[...] Se o tempo de espairecimento se transformava cada vez mais em tempo de consumo passivo, o tempo livre tinha de ser um tempo dedicado ao jogo, tinha de ser um tempo não utilitarista, mas lúdico. Por isso, era urgente preparar uma revolução fundada no desejo: procurar no cotidiano os desejos latentes das pessoas, provocá-los, reativá-los e substituí-los por aqueles impostos pela cultura dominante. Assim o uso do tempo e o uso do espaço escapariam às regras do sistema e chegariam a autoconstruir novos espaços de liberdade... desse modo, a construção de situações era o modo mais direto de realizar na cidade novos comportamentos e de experimentar na realidade urbana os momentos do que teria podido ser a vida numa sociedade mais livre [...] (CARERI, 2010, p.90).

27


Os momentos construídos em situações poderiam ser considerados como os momentos de ruptura (...) as revoluções na vida cotidiana tradicional (GROSSMAN, 2006, p.82).

Não há registros de situações praticadas pelo grupo da IS, nem um descritivo do que viria a ser uma situação com potencial de promover tal ruptura e o não condicionamento do homem perante as estruturas sociais. Sabe-se que o objetivo das situações era o de promover uma intervenção ordenada na vida cotidiana e nos espaços urbanos, lugares nos quais não só se identifica a decomposição, mas sobretudo se reconhece um potencial de ação.

O caminhar. O visível. O invisível Careri, na introdução do seu livro Walkscapes: caminhar como prática estética, pontua

que desde o início da vida humana o ato de atravessar o espaço nasce da necessidade natural de mover-se na busca do alimento e das informações necessárias para a sobrevivência. Mas, uma vez satisfeitas as exigências primárias, o caminhar transformou-se numa fórmula simbólica que tem permitido que o homem habite o mundo e modifique os significados do espaço atravessado. Sendo o percurso uma das primeiras ações estéticas que adentrou os territórios do caos, construiu assim um novo modo sobre o qual se tem desenvolvido a arquitetura dos objetos situados. (CARERI, 2010, p.27). No último século o percurso passou a ser utilizado como prática artística para experimentos de deambulações no espaço. A cidade tornou-se um local ideal de coleta de matéria-prima para muitos artistas, intelectuais e pensadores, por abrigar uma diversidade de indivíduos, cenários e relações construindo uma vasta teia de estímulos afetivos, sonoros e visuais. “A cidade passou pelo crivo da experiência subjetiva, que a mediu segundo os seus próprios afetos e paixões 28


constituídos ao frequentar os lugares e ao escutar as próprias pulsões - e confrontou-os com os de outras experiências subjetivas” (CARERI, 2010, p.92). O ato de caminhar produz arquitetura e paisagem e vem ganhando visibilidade e relevância pelos poetas, filósofos e artistas “capazes de ver aquilo que não há, para fazer brotar daí algo” (CARERI, 2010, p.18). Logo o caminhar pôde ser entendido como uma disciplina autônoma, mas que simultaneamente é capaz de tangenciar áreas diversas como a escultura, a arquitetura, a literatura e a paisagem. A partir desta perspectiva do caminhar como prática estética ocorreram três momentos de passagem na História da Arte, cuja tônica da produção de alguns movimentos estava, diretamente, relacionada à experiência do caminhar. Trata-se do Dadaísmo ao Surrealismo (1921-24), da Internacional Letrista à Internacional Situacionista (1965-57) e do Minimalismo à Land Art (1966-67). Observando o conceito de trabalho de cada grupo nota-se uma história da cidade percorrida: para os dadaístas a ideia de cidade banal; para os surrealistas a de cidade inconsciente e onírica; para a Internacional Letrista e Internacional Situacionista a de cidade lúdica e nômade e, para a Land Art, a de cidade entrópica, caótica e desordenada - por esse motivo as práticas desse movimento sugerem uma reaproximação com a natureza. Um dos aspectos fundamentais do caminhar é que, por meio dele, é possível inventar novas modalidades de intervenção no espaço público das cidades, para pesquisá-los, tornálos visíveis. Mesmo sendo uma ação que não gera uma construção física no espaço, implica uma transformação do lugar e dos seus significados.

Hoje se pode construir uma história do caminhar como forma de intervenção urbana que traz consigo os significados simbólicos do ato criativo primário: a errância como arquitetura da paisagem, entendendo-se com o termo paisagem a ação de transformação simbólica, para além da física, do espaço antrópico. (CARERI, 2010, p.28).

29


A presença física do homem num determinado local, mapeado ou não, e várias das percepções que ele tem ao atravessá-lo é uma forma de transformação da paisagem, que não deixa sinais tangíveis, mas modifica culturalmente o significado do espaço e, consequentemente, o espaço em si, tirando-o de uma zona de distanciamento e transformando-o em lugar, uma zona próxima, na qual o sujeito afetou e foi afetado. “O caminhar produz lugares” (CARERI, 2010, p.51). Segundo Careri, é uma ação que, simultaneamente, é ato perceptivo e ato criativo, que ao mesmo tempo é leitura e escrita do território (CARERI, 2010, p.51). O que se pretende é indicar o caminhar como um instrumento estético com potencialidade de descrever e transformar os espaços que muitas vezes apresentam uma natureza que ainda deve ser compreendida e preenchida de significados. O caminhar promove a aproximação de quem caminha com o espaço a ponto de o mesmo se metamorfosear em lugar, pois há um contato com quem ali vive, trabalha e transita, além das edificações e da arquitetura circundante existirem sujeitos produtores de estórias e dispositivos de afeições. A experiência da deriva captura o visível e o invisível da paisagem, forjando uma arte do cotidiano.

A natureza da experiência Para o pesquisador Tuan, o modo que o homem possui para vivenciar e explorar um

espaço desconhecido é a experiência. Uma palavra que sugere inúmeras maneiras concretas e abstratas de se relacionar e apreender estímulos para a construção de seus próprios conceitos e ideias sobre o real. As sensações adquiridas na exploração são rapidamente qualificadas pelo pensamento, calor, frio, prazer, dor, entre outros. 30


Experiência é um termo que abrange as diferentes maneiras através das quais uma pessoa conhece e constrói a realidade. Estas maneiras variam desde os sentidos mais diretos e passivos como o olfato, paladar e tato, até a percepção visual ativa e a maneira Indireta de simbolização. (TUAN, 1983, p.9).

A experiência está voltada para o mundo exterior. Vivenciar experiências provoca o sentir. Segundo Paul Ricoeur, o sentimento é sem dúvida intencional, é um sentimento por alguma coisa. Por um lado, indica qualidades sentidas quanto às coisas, pessoas, ao mundo, e por outro evidencia a forma pela qual o eu é afetado, intimamente. “No sentimento, uma intenção e uma afeição coincidem em uma mesma experiência”. (Ricoeur, 1967, p.127).

Experienciar é aprender; significa atuar sobre o dado e criar a partir dele. O dado não pode ser conhecido em sua essência. O que pode ser conhecido é uma realidade que é um constructo da experiência, uma criação de sentimento e pensamento. (TUAN, 1983, p.10).

Ao se dizer que um homem ou uma mulher são experientes, culturalmente se compreende por indivíduos que viveram muitos acontecimentos que os tornaram maduros, ensinando-os a extrair vantagens perante suas próprias vivências. Logo, a experiência é formada por sentimento e pensamento. A oposição entre razão e emoção é uma tendência 4

Termo usado pelo autor.

e como relata Yu - Fu, “de fato, estão próximos às duas extremidades de um continuum4 experiencial, e ambos são maneiras de conhecer. “ (TUAN, 1983, p.11).

Experienciar é vencer os perigos. A palavra experiência provém da mesma raiz latina (per) de “experimento”, “experto” e “perigoso”. Para experienciar no sentido ativo, é necessário aventurar-se no desconhecido e experimentar o

31


ilusório e o incerto. Para se tornar um experto, cumpre arriscar-se a enfrentar os perigos do novo. Por que alguém se arrisca? O indivíduo é compelido a isso. Está apaixonado, e a paixão é um símbolo de força mental. (TUAN, 1983, p.11).

Para que a experiência aconteça é preciso se deslocar do conhecido e adentrar novos territórios, adestrar, minimamente, o medo, a falta de referências dos locais explorados, a ausência de relações afetivas e estar apto a promover expansões na dicotomia espaço / externo, lugar / interno.

Espaço que vira Lugar. Movimento que vira Pausa. Experiência que vira Arte Tuan pontua que Espaço e Lugar se relacionam a ponto de um tornar-se o outro, pois na

experiência o significado de espaço frequentemente se funde com o de lugar. O que começa como espaço indiferenciado, afetuosamente passivo e desconhecido transforma-se em lugar à medida que o conhecemos melhor, que construímos laços afetivos, que o dotamos de valor. As ideias de espaço e lugar não podem ser definidas uma sem a outra.

A partir da segurança e estabilidade do lugar estamos cientes da amplidão, da liberdade e da ameaça do espaço e vice-versa. Além disso, se pensamos no espaço como algo que permite movimento, então o lugar é pausa; cada pausa no movimento torna possível que localização se transforme em lugar. (TUAN, 1983, p.6).

O espaço é um símbolo comum de liberdade no mundo ocidental. (TUAN, 1983, p.61). Permanece aberto, sugere futuro e convida para ação. Entretanto ser aberto e livre implica em 32


estar exposto e vulnerável. O espaço aberto não tem caminhos trilhados, nem apresenta uma sinalização antecipando o que está por vir. Não tem padrões estabelecidos que revelem algo, é como estar diante de uma tela em branco na qual se pode compor qualquer significado. Já o espaço fechado e humanizado é lugar, podendo-se claramente fazer alusão ao lar, referência de segurança e abrigo, versus uma rua ou local desconhecido. “Comparado com o espaço, o lugar é um centro calmo de valores estabelecidos. Os seres humanos necessitam de espaço e lugar. As vidas humanas são um movimento dialético entre refúgio e aventura, dependência e liberdade “ (TUAN, 1983, p.61). O pesquisador questiona o leitor sobre quais seriam os órgãos sensoriais e experiências que permitem aos seres humanos ter sentimentos intensos pelo espaço e pelas qualidades espaciais.

Resposta: cinestesia, visão e tato. Movimentos tão simples como esticar os braços e as pernas são básicos para que tomemos consciência do espaço. O espaço é experienciado quando há lugar para se mover. Ainda mais, mudando de um lugar para outro, a pessoa adquire um sentido de direção. Para frente, para trás e para os lados diferenciados pela experiência, isto é, conhecidos subconscientemente no ato de movimentar-se. O espaço assume uma organização coordenada e rudimentar centrada no eu, que se move e se direciona. (TUAN, 1983, p.13).

O movimento, olfato, tato, visão e paladar formam um conjunto de modos que possibilitam o sujeito a interagir, conhecer e criar relações com o espaço a fim de transpô-lo para lugar. Entretanto não basta apenas tocar no asfalto ou nas edificações, estar exposto ao ambiente sonoro do local, caminhar nas extensões da calçada: é preciso estabelecer conexões, que são constituídas ocasionalmente por meio de um cruzamento da bagagem cultural e subjetiva de cada indivíduo com algum estímulo ou acontecimento do local, pois 33


a partir do momento em que o sujeito é afetado pelo espaço ele se reorganiza dentro de si como lugar.

Muitos lugares, altamente significantes para certos indivíduos e grupos, têm pouca notoriedade visual. São conhecidos emocionalmente, e não através do olho crítico ou da mente. Uma das funções da arte é dar visibilidade a experiências íntimas, inclusive às de lugar. (TUAN, 1983, p.180).

Quatro anos após o lançamento de seu Manifesto do Surrealismo, que marca o surgimento desse movimento, André Breton publicou, em 1928, Nadja. Uma das obras mais representativas do Surrealismo. 5

34

Breton, em sua obra literária Nadja5, vai trançando suas memórias afetivas e passionais com as ruas, praças e comércios de Paris expondo os seus lugares na cidade e o modo como suas vivências estavam impressas na arquitetura e na paisagem. A narrativa descreve Paris na ótica da experiência subjetiva do escritor.




cap 2 referencial estético

37


Sophie Calle e a subjetividade de seus percursos Sophie Calle é uma fotógrafa, escritora e artista francesa que trabalha

fortemente com a temática da deriva nas cidades, questionando a homogeneidade urbana e construindo relações com o espaço que extrapolam o caminho real e os usos quotidianos do mesmo, criando fluxos imaginários e subjetivos a partir de sua experiência vivencial da cidade e das narrativas criadas por meio de suas perambulações e experimentos, que são incursões temáticas em locais previamente estabelecidos. Seus trabalhos partem de um recorte, um enredo. Por exemplo: hospedar-se anonimamente em um hotel de determinada cidade e fotografar os resíduos e objetos que os hóspedes deixam nos quartos para a partir daí formular um perfil desses personagens. Apesar de inicialmente estruturar uma situação, seu trabalho é altamente constituído através do acaso e há uma ressonância intensa da figura do outro em seu processo de subjetivação. Suas obras têm um repertório visual que se forma nas relações afetivas e memorialistas estabelecidas com os signos urbanos. Quando se adota certos elementos da cidade a passagens de nossas vidas individuais, ao falar destes elementos ocorre não mais uma preocupação descritiva, mas sim uma preocupação narrativa, e Sophie redesenha a cidade constantemente por meio de suas memórias e experimentos, contrapondo uma cidade estrutural e histórica com a cidade de um dia, de uma impressão imediata feita por imagens, sensações e impulsos mentais. Uma dicotomia entre o interior e o exterior, entre o público e o compartilhável. É nessa desconstrução do caminhar lógico e no processo de subjetivação da cidade através da deriva que há similaridades com o presente projeto de pesquisa. 38


Imagens obtidas do google. Obra L’ Hotel (1984)

Família Boyle: O registro arbitrário do espaço O trabalho artístico da família Boyle traz como uma das finalidades a reconstrução do olhar, como se pretendessem ensinar ao público a ver cenas e elementos triviais por meio de outras perspectivas estéticas. A família também trabalha com o acaso objetivo, pois muitos dos lugares de extração de site-specif são escolhidos aleatoriamente, porém dentro de uma proposta inicial. Por exemplo, na série Earth Pieces, iniciada em 1963, um grupo de pessoas disparou dardos em um mapa e as regiões selecionas casualmente pelos arremessos seriam os pontos de partida para coletas no desenvolvimento da série. Cada site-specif traz o inevitável, mudanças e dificuldades, sejam estas provenientes de intempéries ou de eventuais características de cada campo ou não, já que a extração das imagens ocorrem tanto em espaços urbanos quanto em naturais. 39


Os Boyle’s acreditam que dessa forma evitam cair em escolhas pessoais e trilham um caminho estético que denominam contra-cultura. A matéria-prima para suas obras foram inicialmente materiais de demolição, rejeitados pelo estrato social e invisíveis perante a classe artística. No início, com os insumos coletados, produziam colagens, depois passaram a fotografar um site-specif e recriá-lo em fibra de vidro num suporte similar ao de uma tela e levá-los para espaços privados de museus e galerias, construindo um diálogo entre o público e o privado, o real e a reprodução e remontando uma subjetividade de outra ordem, pois há uma mimese do real na construção das peças cujo ponto de partida é o olhar e o fazer do artista. A leitura do espaço ou site-specif como imagem singular, com suas camadas, texturas e ruídos capturados do modo como se manifestam no espaço a partir do recorte subjetivo do artista, dialoga com os critérios

Imagens obtidas do site oficial da Boyle Family.

que utilizei para o registro da deriva na rua Aurora.

40




cap 3 metodologia

43


Pesquisa de campo (quase uma etnografia da deriva e vice-versa) AURORA no meu olhar de estrangeiro, ainda era espaço. Hotel San Juan, Edífico Arecê, Sr. Silvestre, Praça da República. Certa vez, em uma aula, a Professora Maria Izabel Branco Ribeiro disse: “– Assuma sua

subjetividade na cidade”. Após a orientação recebida decidi, assumir a construção de um projeto totalmente embasado na minha perspectiva experiencial como sujeito num espaço que me era desconhecido e tornou-se um lugar de afeto. A academia muitas vezes nos coloca numa posição de escolher recortes temáticos que estão imersos em acontecimentos de grande relevância histórica, obras literárias ou plásticas outorgadas pelo cânone e, logo, optar por uma rua cuja simbologia e fatos são narrados e filtrados por meio da experiência subjetiva de um único sujeito é se colocar num terreno perigoso. Há cerca de dois anos conheci a rua Aurora, e o fato é que a partir dessa descoberta São Paulo inteira descortinou-se de uma só vez. Apesar de ter cursado a graduação no Mackenzie, na rua da Consolação, eu não vivenciei a cidade, os encontros, as atividades noturnas, as manifestações, as paixões, São Paulo e eu não dançamos naquela época. O interesse por Aurora deu-se, inicialmente, no campo das afetações amorosas. Comecei a frequentar a rua, e a paisagem visível e a invisível, tanto daquele espaço quanto as que se forjaram no meu interior, eram novas e instigantes. A frequência na visitação da rua começou a incitar a reflexão sobre as relações do sujeito com o espaço; a potência do corpo na cidade; a própria potência da cidade como um local de intensos e variados estímulos; a transformação ininterrupta da paisagem; a paisagem invisível que encoberta o espaço, trama de memórias afetivas de tantos citadinos. Um bombardeio de 44


caminhos teóricos que até então eu nunca havia posto em discussão ou estudo. O primeiro exercício foi classificar com palavras-chaves áreas que eu gostaria de alcançar no desenvolvimento do projeto. Pontuei um conjunto de palavras: • Espaço • Lugar • Paisagem • Afeto • Memória • Caminhar • Subjetividade • Narrativa • Cotidiano Após essa separação de palavras, o entendimento do objetivo do projeto e da função da pesquisa de campo e da metodologia utilizada para a construção do escopo argumentativo e visual desse trabalho tornou-se claro. Teria de desenvolver uma peça gráfica, um fanzine, que transpusesse o percurso de deriva na rua Aurora com imagens, registradas pelo processo fotográfico pinhole, e por discursos verbais de transeuntes e moradores da rua editados e transcritos a partir da minha interpretação, somados também às descobertas e experiências vivenciadas durante o campo. As perguntas que me nortearam nas saídas para trabalho de estão listadas abaixo. Entretanto, não houve uma abordagem direta com o entrevistado na estrutura pergunta/resposta. Conforme havia abertura para o diálogo e a troca de experiências, tentava-se por caminhos outros chegar em colocações que abrangessem as questões norteadoras do projeto. 45


Por que uma rua é importante? Por que uma rua? Importante para quem? Se Aurora fosse uma mulher, como você a descreveria, imaginaria? É possível relacionar-se afetivamente na cidade? Você se sente seguro na Aurora? Qual qualidade você pontuaria na rua Aurora? As saídas para trabalho de campo ocorreram de diversas formas e com propósitos distintos. Houve saída cujo objetivo era o de caminhar por todo o perímetro da rua Aurora apenas anotando as considerações qualitativas dos espaços percorridos: temperatura, cores, sons, segurança, estética e outras características. Em outros momentos o objetivo foi abordar os citadinos: trabalhadores, moradores, passantes e coletar seus relatos e vivências relacionadas à Aurora. E por fim as saídas exclusivamente fotográficas, registrando diferentes pontos da rua. O instrumental utilizado foi: caderneta para anotações, gravador de voz, máquina pinhole e celular.

Rua Aurora Localizada no centro da cidade de São Paulo, caracteriza-se pela heterogeneidade

dos ocupantes, das edificações locais e por ser uma região altamente sexualizada, alocando grande concentração de estabelecimentos comerciais e pontos de prostituição. Está situada próxima ao Largo do Arouche, região de forte expressão e resistência LGBTQ. É uma rua extensa, e seu início se dá na Luz, expandindo-se até a Praça da República, atravessando as seguintes ruas: Andradas, Santa Ifigênia, Rio Branco, Guaianazes, Conselheiro Nebias, 46


São João e Vieira de Carvalho. Ao longo do percurso a paisagem evidencia construções arquitetônicas com sacadas balaustradas, rococós, brasões, portões de ferro com arabescos, dentre outras peculiaridades. Cada quarteirão são mundos em convivência, sendo possível encontrar, em um curto espaço percorrido, restaurantes variados como o Bar do Leo, Riconcito Peruano, e também hotéis, estacionamentos, prédios residenciais, cortiços, boates, saunas, motéis, lojas de aparelhagem eletrônica, farmácias, papelarias, condomínios decorrentes da especulação imobiliária, loja de discos, lojas de tecido, metrô e editoras como a Edições Aurora, que recentemente se mudou para o Bom Retiro. A rua Aurora, em meados de 1810, era nomeada de Santo Elesbão, em homenagem ao Santo e à igreja de Santa Ifigênia. Apenas em 1865 firmou-se o nome de Aurora em virtude dos êxitos alcançados pelo Exército Brasileiro na Guerra do Paraguai. Aurora simbolizava o presságio de uma nova era, de tempos melhores. Na região existem mais duas ruas adjacentes, Triunfo e Vitória, formando juntas uma trinca que potencializa as condecorações das conquistas contra o Paraguai. As três ruas tiveram seus

Imagem do Google Maps.

nomes oficializados nos órgãos públicos no mesmo período 24 de agosto de 1916/Ato n.º972.

47


Pinhole Uma caixa de fósforos, um instrumento e um dispositivo. “Mais um coletivo”, desacreditados, imaginários A escolha do processo fotográfico Pinhole para o registro das imagens da deriva na rua Aurora deu-se por meio de uma oficina realizada no Sesc 24 de Maio, ministrada por um grupo de três mulheres: Carolina Rolim, Iza Guedes e Mayara Maluceli, educadoras e artistas visuais que trabalham com fotografia e vídeo e são fundadoras de um coletivo intitulado + UM Coletivo. A proposta da oficina era a de desenvolver uma máquina pinhole utilizando como estrutura uma caixa de fósforos. O uso da pinhole agrega ao conceito estrutural do projeto, pois opera no campo experimental e subjetivo no que tange a captura da imagem. É um processo fotográfico artesanal que opera com a precariedade, por seu baixo custo de produção e uso de materiais acessíveis economicamente, e com inesperado pois, sendo uma técnica manual, não há um controle determinante dos resultados obtidos. O conjunto de variáveis é inesgotável e incontrolável. Entretanto é um instrumento capaz de produzir imagens com características tão próprias e tão peculiares. Durante o registro das imagens a sensação de quem opera o instrumento é de insegurança e maravilhamento, pois tem-se um objeto totalmente naturalizado no cotidiano, uma caixa de fósforos, cuja mecânica do engenho, pinhole, foi por você construída, o maravilhamento surgindo a cada giro do filme sob autoquestionamentos: será que houve a captura? Será que houve luz suficiente? Será que eu consegui o enquadramento? Quantas boas cenas foram perdidas, quantos vazios nos frames, uma angústia de não ter revelado imagens únicas das quais a única testemunha daquelas composições foi você. 48


O que interessa não é a perfeição, mas sim essa imagem ruidosa e imprevista. Imagem captada na forma mais simples, subvertendo um discurso da velocidade máxima, do altamente sofisticado e tecnologicamente desenvolvido. (MAUÉS apud HERKENROFF, 2008, p.35).

O objetivo era o de optar por uma técnica de registro que comungasse da mesma perspectiva experimental da deriva, ou seja, a subjetividade do caminhante, a subjetividade do operador do dispositivo. A fotografia pinhole utiliza-se da câmera obscura para registrar em material fotossensível as imagens por ela capturadas. Como a imagem é produzida por furos, é bem menos luminosa e focal que as produzidas por lentes. Os tempos de exposição podem durar segundos ou até horas. Conforme a experiência, cada indivíduo constrói um parâmetro de abertura/exposição para capturas em diferentes ambientes com diferentes intensidades de luz. O pinhole foi um invento do século XVIII. Seus criadores Robert Boyle e Hobert Hooke, ambos ingleses, tinham por finalidade adaptar o fenômeno da câmera obscura para uma escala menor, facilitando assim o trabalho de artistas profissionais. Uma prática de registro que recebeu muitos adeptos pictorialistas no final do século XIX, proporcionando aos artistas e fotógrafos uma fuga das técnicas fotográficas altamente figurativas e fidedignas do real que predominavam até então. 49


Nas pinholes a imagem é formada pelo contato direto da luz com o material fotossensível. A luz então passa pelo orifício, o furo, e não necessita de nenhum condutor para que os raios cheguem ao interior da câmera. Ao contrário do que acontecia com a pintura ou com as câmeras convencionais, não existe nada que se interponha entre o objeto inicial e sua representação, nem a mão do pintor, nem as lentes objetivas, exceto a subjetividade do operador. O fato curioso que ocorreu inúmeras vezes nas saídas para campo para fotografar com a pinhole foi o estranhamento e curiosidade dos citadinos perante aquele objeto que prometia fotografar de igual forma que um aparelho digital, embora com suas limitações processuais. Após muitos transeuntes me abordarem e se aproximarem movidos por curiosidade pelo objeto, logo compreendi que de algum modo a pinhole exercia uma função de dispositivo que desencadeava relações que extrapolavam o estranhamento e a distância dos sujeitos e promovia encontros e aproximações. Em um texto do teórico italiano Giorgio Agamben, intitulado O que é o contemporâneo e outros ensaios, o autor afirma que “o dispositivo é, antes de tudo uma máquina que produz subjetivações. [...]. Na raiz de todo dispositivo está um desejo demasiadamente humano de felicidade, e a captura e a subjetivação deste desejo, numa esfera separada, constituem a potência específica do dispositivo. (AGAMBEN, 2009, p.29). No momento em que Agamben pontua o dispositivo como uma máquina que produz subjetivações, torna-se claro a relação da pinhole com a definição de dispositivo, produtor de subjetivações, pois tanto a captura da paisagem passa pelo fluxo da subjetividade como a narrativa que o operador relata para o seu interlocutor pode até beirar o fantástico, já que se sabe que o outro está num estado de curiosidade e desconhecimento da técnica e pode ser facilmente conduzido por um discurso irreal, no alcance deste desejo demasiadamente humano de felicidade, no caso, de uma narração que o seduza. 50




cap 4 processo

53


A experiência do registro Fotografar com a pinhole foi uma experiência que me fez questionar a reprodução, a captura e

a relação do sujeito com a imagem. Notei como o uso constante do celular nos coloca numa relação efêmera com a imagem. O sujeito não se preocupa com a limitação de poses, não se atenta às oportunidades de registro. Usar a pinhole como ferramenta de registro de uma experiência subjetiva no espaço proporcionou-me descontruir minha própria relação com a fotografia, pois o tempo de exposição é outro, a incerteza da captura é constante, e por vezes nem eu acreditava que uma caixa de fósforos seria capaz de registrar algo. Não há regras estabelecidas, procedimentos assertivos quanto ao sucesso da incursão, tudo é construído a partir do zero. Cada saída, cada tentativa tornavase uma chance de descobrir o novo. Na seção seguinte trago os resultados dos três experimentos que realizei. A primeira saída a campo foi um tiro no escuro. Parecia um tanto ridículo ser vista com uma caixa de fósforos coberta por fita isolante, ficar parada durante alguns minutos na rua aguardando a estática (pois qualquer movimento na pinhole gera um borrão de luz e por isso é preciso buscar uma base fixa para capturar a paisagem). Bobinar o filme a cada disparo e pensar na quantidade de giros suficientes para separar um frame, uma janela da outra, são obstáculos que foram surgindo e desaparecendo com o exercício da prática. Outra relação possível quando se fotografa com filme é o momento da revelação e os laços que surgem a partir do movimento de deixar o negativo, aguardar a revelação e voltar para buscá-lo. Primeiro houve uma pesquisa sobre locais em São Paulo que revelam negativos. Depois de algumas ligações acabei por encontrar a Color Foto Ferrara, situada à rua Xavier de Toledo, número 264, República. Uma loja no térreo de um prédio comercial antigo, um corredor revestido de madeira, uma vitrine com milhares de bobinas usadas de Kodak 36 poses. No balcão, máquinas enfileiradas quase numa ordem didática de linha do tempo e um cheiro de lugar antigo misturado com memórias. 54


Experimento I

Experimento II

Experimento III

As revelações do experimento geraram

Os resultados obtidos

Depois de duas saídas

imagens não figurativas. Borrões,

foram melhores, alcancei

fotográficas registrando

texturas, um conjunto de registros

imagens mais figurativas,

o estático, senti falta de figuras

experimentais, ruidosos e peculiares.

dos comércios locais, das

humanas. Tentei fotografar uma

O furo da máquina foi grande demais

calçadas, construções,

camareira e o recepcionista do

e a exposição longa demais, queimou

mas ainda com alguns

hotel San Juan, local em que

o negativo em diferentes partes e

ruídos. O abstrato cedia

me hospedei para ficar mais

trouxe um resultado estético caótico e

lugar à representação

próxima do campo. Depois

predominantemente vermelho.

mais próxima do real.

instruí, rapidamente, este mesmo funcionário de como utilizar a pinhole para que ele pudesse me fotografar, fazer um retrato. O zelador do Edifício Aracê estava conversando com um amigo no hall de entrada e fiz uma foto dos dois enquanto falavam de suas memórias na rua Aurora. O hotel San Juan fica em frente ao Aracê e tornei-me conhecida para aquelas pessoas. Já não era uma estrangeira. 55


56


registro

Foram selecionadas nove imagens do experimento 1 para compor o zine Espaço, local ainda desconhecido pelo sujeito, local ainda sem vínculos afeitvos. 57


registro

Foram selecionadas nove imagens do experimento 2 para compor o zine Lugar, o local começa a se tornar algo próximo, já é possível identificar ruas, comércios, passagens e pessoas. 58


59


60


registro

Foram selecionadas nove imagens do experimento 3 para compor o zine Aurora, o laço afetivo já foi estabelecido, as memórias já são reais e a cidade já habita o íntimo. 61


caderno de campo

Imagens do caderno utilizado na pesquisa de campo. Anotações sobre as impressões da rua Aurora, percursos realizados, trechos de conversas e tempo de exposição dos registros fotográficos. 62


Rua Aurora - Luz Um rapaz de bicicleta pegou no meu pescoço, arrancou minha corrente, não era ouro. Rua Aurora - Sta. Ifigênia Do semáforo dá para ver Jesus ao fundo, no alto, iluminado.
Muitas portas de comércio, um e outro prédios com rococó, gente torcendo. Rua Aurora - Rio Branco Hotel Lar Estacionamentos Prédios Bandeiras Rua suja Rua Aurora - Guaianazes Gente na rua, gente torcendo, buzina, corneta, migrantes, outros idiomas. Hotel Cachorro Cinema cabine Rua Aurora - Conselheiro Nébias Mais pessoas brancas Rua menos suja
 Crianças
 Prédios mais conservados Fachadas menos roupas expostas Drogaria Viagra 21,99

Rua Aurora - São João Academia Brancos Negros
 Bares
 Outras línguas Bicicleta Lixo amontoado em pontos específicos campo aberto Automóveis Árvores

Experimento Pinhole Dia ensolarado, vento gelado, frio, cheiro de incenso, começo do trajeto primeira foto. Girei antes e depois quase 5 segundos em duas alturas

Ponto afetivo Sol Africano restaurante Perfume de mulher Estacionamento moto Teatro Orion Apartamentos.

Aurora/Andradas-Bar do Leo 7 ou 8 segundos, apoiei a máquina numa mesa na calçada mirei para as bandeirolas da rua Andrada, Brasil suspenso em fitilho. Branco. Faz tempo que eu não via uma dessas

O espaço vai se diluindo para dar vez ao lugar. Rua Aurora - V. de Carvalho Já mais próximo do centro, pessoas brancas, óculos escuro, lugar, mulher de roupa de academia, negros, rua menos suja, hotel Bourbon, prédio, mais prédios para morar, perfume, boa viagem, lugar. - São Paulo antes era bom, agora muita maldade. Estou indo para Timbiras visitar meu filho.

Foto educação, sete segundos, subi numa pilastra, um degrau.

Olha os carros aí Neuza, do que é a pesquisa?, curiosidades, a caixa é um dispositivo. Rua Aurora, 166 Primeiro box “Haja Luz”. Valdivino sempre estou aqui. Tempo de exposição de 8 a 10 segundos. Abacaxi, melancia, cheiro de churrasco. Apoiei na mão. Canteiro Central da Rico Branco com vista para “Aurora” Nunca feche o cruzamento. 
 Aurora nela mesma, frio, sombra, um corredor de

prédios altos. Aqui é o lugar mais frio e escuro do percurso. 
 Inverti a câmera, tentei fazer em mais tempo doze segundos, tinha estática e movimento e o desespero de um garoto R$ 7,00 para comprar uma lata de tinta.

A pior pessoa do mundo, podre, não por ela, mas por quem a frequenta, ajuda no meu trabalho e daqui que eu tiro o meu sustento.

Henrique Aurora 488 com a Guaianazes Muitos colares, tempo de exposição 10 segundos, barba grande.

Não acredite em tudo que ler, apenas o que sentir é real.

Se a Aurora fosse uma mulher seria uma cachorra feia, uma mulher trucada, uma mulher travesti.

Onde eu criei meus filhos, hoje são pais de família.

Fotografei os pés de três moças que trabalham numa casa de prostituição. Simpáticas, inseguras com as pessoas, mas com bom humor. Perguntaram se eu tinha como me identificar, elas têm medo e precisam ter mesmo. Nessa primeira saída eu não me preocupei com os enquadramentos, tentei me guiar pela altura dos meus olhos, usando minha mão de apoio, ando com receio das pessoas.

Nosso espaço. O amor é um sentimento dado aos mortais para eles brincarem. 16 luas é um filme, eu sempre quis dizer essa frase.

Uma mulher desprezada pela sociedade.

A melhor mulher do mundo, porque tem tudo que a gente quer aqui. Cada cabeça é um mundo. Eu a levaria.
 Já pensa que é prostituta.



cap 5 peça gráfica

65


ideia gráfica 1 Zine / Mó tesão Zine, formato não convencional

Os três materiais que utilizei inicialmente, como ponto de partida, foram: o zine de publicação trimestral da Editora Lote42, intitulado Mó, dentre outros; O livro, O Centro e a Borda, da Conspire Edições, publicação que reúne trabalhos feitos durante um ateliê temporário de derivas urbanas e experimentos gráficos, coordenados pela artista Vânia Medeiros no Sesc 24 de Maio; e o livro Douleur Exquise, da artista Sophie Calle, publicado pela Editora Actes Sud. A primeira ideia gráfica era a de fazer um livro em grande formato com as fotografias em preto e branco e um projeto que trabalhasse com imagem e tipografia, dois discursos complementares. Porém, o formato “livro” encerraria em um trajeto lógico um projeto de pesquisa fundamentado na deriva e o leitor/ observador não partilharia da experiência do acaso e do percurso não determinado, tornando sua experiência de leitura comum. Analisando as referências iniciais, os três projetos traziam elementos interessantes: 66

Zine / Mó tesão, Lote42

que aborda diversos temas como Mó Loucura, Mó Tesão, Mó Mistério,


* Imagens retiradas do Google Imagens.

Douleur Exquise, Actes sud.

O Centro é a Borda Temática de cidade, uso de fotografias em escala de cinza impressas em papel poroso e capa em Kraft.

Douleur Exquise projeto gráfico pautado no discurso do texto e da imagem, fotografias em preto e branco e elementos gráficos em vermelho.

O Centro é a Borda, Conspire Edições

Temática de cidade e da experiência da deriva,

67


ideia gráfica 2

Os primeiros testes de diagramação baseados na ideia gráfica 1 revelaram pontos críticos. O processo fotográfico da pinhole produz imagens que não possuem foco definido, por ser uma técnica de registro isenta de lentes em sua construção, o que gera como linguagem imagens que incitam movimento e foco instável. É possível alcançar maior precisão no registro se o objeto fotografado e a base de apoio da pinhole forem fixas e permanentes, mas eu não registrei apenas pontos fixos durante a pesquisa e a minha preocupação não era a de alcançar excelência nos registros. Após estes testes notei que quanto maior o meu suporte mais eu evidenciaria o ruído das imagens e assim perderiam resolução e textura. Optei por fazer um conjunto de três zines intitulados de: Espaço, Lugar e Aurora. Todos com dobras e diferentes possibilidades de abertura. Utilizei como referência o zine Linha Vermelha, da Editora Devora Editorial e de autoria de Ariadne e Lissa Sakajiri, que traz microcontos e fotos inspirados no cotidiano da linha vermelha do metrô de São Paulo. 68


Microcontos e fotos inspirados no cotidiano da linha vermelha do metrô de São Paulo.

Vermelha linha Autoras: Ariadne (textos) e Lissa Sakajiri (fotos) Editora: Devora Editorial Edição: 1ª Altura: 15 cm Largura: 13 cm Ano de lançamento: 2016 Número de páginas: formato de mapa

69


experimentação e linguagem Realizei experimentações de suporte baseado em dois materiais coletados, porém já optando por referências que se aproximassem da estrutura de um zine e que tivessem um formato mais enxuto para garantir qualidade na reprodução das imagens coletadas no experimento. Defini como suporte de trabalho a estrutura do Zine da Lote42, mas com adaptações. No zine da Lote42 o verso compõe uma imagem única, um cartaz, o que limita o percurso de caminhos possíveis de leitura, pois quando se está manuseando o objeto, abrindo, fechando as abas o leitor tem logo a sensação da repetição, pois movimentos de aberturas diferentes coincidem na mesma imagem. No boneco adaptado inseri imagens diferentes em cada janela, o que resultou numa multiplicação de combinações e caminhos, ampliando as possibilidades de percurso.

1. Ismália, livro de Alphonsus de Guimaraens, Formato 12,1 x 16,7 cm Encadernação em brochura e miolo com dobras 2. Zine da Lote42 promovendo o catálogo a editora Formato 14,3 x 10,9 cm Composto por diversas dobras. 3. Boneco adaptado baseado no zine da Lote42 70


1

2

3

71


referências de linguagem

Durante a pesquisa coletei amostras de trabalhos no Pinterest que se aproximavam visualmente da linguagem que queria desenvolver no projeto gráfico dos zines.

72


Pontuo que as imagens dessa seção não possuem identificação de autoria, pois muitas estavam inseridas na plataforma em murais compartilhados e na busca da origem de cada projeto, os sites resultantes da pesquisa nem sempre eram referenciais ao autor, mas sim a publicidades.

73


experimentação e linguagem

74


experimentação e linguagem

75


experimentação e linguagem

As primeiras experimentações gráficas me auxiliaram no entendimento de como trabalhar a sequência de imagens em um suporte com diversas possibilidades de leitura. A linguagem gráfica ainda não estava estabelecida, não sabia se usava preto e branco nas imagens ou se as mantinha colorida, se usava a tipografia em preto ou em cores. Os primeiros bonecos impressos decorrentes destes dois experimentos me nortearam sobre o que não fazer. Testei substratos com diferentes gramaturas, testei a diagramação dos textos com variações de peso e tamanho, alguns elementos eu estendia para mais de um módulo na tentativa de criar dinamismo e um jogo de sentenças na experiência de leitura, mas defino os primeiros experimentos como testes de layout, edição de imagens e sequência de elementos. A partir do terceiro teste, utilizei as fotografias pinhole, a tipografia para os textos e a imagem da malha urbana da cidade de São Paulo como um elemento identitário na abertura de cada zine, esse fator aliado as cores, cuja escolha foi decorrente do perfil de cores já presentes nas fotos selecionadas para o projeto, consolidou a linguagem gráfica, pois o conjunto se organizou melhor com a diferenciação por cor de cada volume. A abertura de cada zine traz três palavras que estão presentes no resultado de pesquisa de significado dos termos: espaço, lugar e Aurora, segundo o dicionário. E os textos da parte interna são fragmentos de diálogos que ocorreram durante a deriva e pesquisa de campo. 76


tipografia A tipografia usada no projeto é a Helvética, lançada em 1957, criada por Max Miedinger a pedido de Edouard Hoffmann, que desejava lançar no mercado uma família tipográfica não serifada. O desenho da Helvética traz uma revalorização da estética modernista que ganhava força no cenário Pós-Guerra. Os tipógrafos classificam a Helvética como fonte realista por ser concebida nos moldes da racionalidade projetual, distanciando-se das tipografias humanistas e trazendo ao designer certa Capa do SPECIMEN de lançamento da Helvetica, desenhado por Hans Neuburg e Nelly Rdin. Imagem: Rietveld Academie

neutralidade estrutural e um leque interessante de variações de peso. 77


Wim Crouwel, designer e tipógrafo holandês, discorre sobre suas considerações à cerca da Helvética no documentário produzido por Gary Hutwit, cujo título é o mesmo da fonte. Crouwel comenta que:

“Foi um verdadeiro passo adiante com relação às tipografias do século 19. Ela era um pouco mais como se fosse feita por uma máquina, descartando detalhes manuais, o que nos deixava muito impressionados, porque era mais neutra. E ‘neutro’ era uma palavra de que gostávamos muito. [O design] não deveria ter um significado em si, o significado era dado pelo texto”. (NEXO JORNAL, 2017).

A neutralidade da Helvética caiu no gosto dos designers para o desenvolvimento de sistemas de sinalização, transporte e identidade de grandes corporações. Seu desenho é isento de marcas culturais, datação ou localização. A Helvética está presente sim na identidade de grandes marcas, porém é inegável sua relação com a cidade, seja através de sinalizações ou na identidade de comércios, anúncios informais, lambe-lambe e outros veículos de comunicação. A escolha da Helvética para compor o projeto gráfico dos zines se deu por sua forte presença no meio urbano, dado que dialoga com o recorte temático da pesquisa, a rua Aurora. A neutralidade do desenho estrutural da fonte, que não traz marcas para o discurso e nem o destina a um público específico, fez-me considerar a Helvética uma fonte polifônica por ter, justamente, a flexibilidade de comportar diferentes vozes nos projetos em que é usada. Além disso, promove equilíbrio na composição do layout dos zines, que possui dois eixos estruturais opostos, mas complementares. O eixo visual, formado por registros fotográficos de natureza subjetiva, e o eixo textual, construído por uma tipografia objetiva, cria um contraste em que ambos potencializam a mensagem a ser transmitida para cada eixo de forma singular. 78


suporte Zine Produção

Nas últimas décadas a proliferação do zine tem sido um

3 peças gráficas

dos mais interessantes fenômenos culturais e sua disseminação

Títulos

é um movimento muito característico do espaço urbano. Os

Espaço

zines são publicações de pequena tiragem não-comerciais,

Lugar

não profissionais e irregulares que tiraram vantagem das mais

Aurora

baratas e mais acessíveis técnicas de duplicação, assim como de

Suporte

métodos mais tradicionais de impressão como offset. O zine pode

Zine

abordar os mais diversos temas e não há uma hierarquia entre

Formado aberto

produtores e consumidores dessa vertente de publicação, todo

42 x 29,7 cm

mundo pode fazer um zine e falar do que quiser falar.

Formato fechado

Sua nomenclatura é derivada da palavra em inglês “magazine”,

14,8 x 10,5 cm

mas na prática são dois tipos de publicações muito diferentes. Larry

Substrato

Bob, editor de zine aponta que “Não há apóstrofe em zine. Zine

Itália Ambra e

não é abreviação para magazine. Uma revista é um produto, uma

Itália Giorgio Perla

mercadoria comercial. Um zine é um trabalho de amor, produzido

130gm2

sem lucro. [...] Informação é a razão pela qual um zine existe; qualquer coisa além disso está de fora” (UGRAPRESS, 2010).

79


Espaço, lugar Aurora Três zines e uma deriva A pesquisa desenvolvida ganha materialidade no suporte zine. Foi desenvolvido um conjunto de três zines: Espaço, Lugar e Aurora que mesclam as narrativas visuais e textuais, resultados das pesquisas de campo e derivas. Cada zine traz uma abordagem da rua Aurora e narra por meio de imagens e textos a transformação do espaço em lugar e do lugar em um local de afeto e memória, já internalizado pelo sujeito. O objetivo é conduzir o leitor a vivenciar a experiência de deriva usando como meio as dobras e os múltiplos caminhos de compreensão da peça. O zine espaço traz os primeiros registros feitos por pinhole durante a deriva. O resultado são imagens não figurativas, borrões, estouros de luz, áreas do filme queimadas por permanecer muito tempo em exposição. Houve a utilização do ruído em linguagem e ferramenta para constituir uma narrativa do desconhecido, logo o primeiro zine é uma incursão por este espaço ainda não conhecido, cujo sujeito observa com distanciamento as impressões causadas por seu entorno. O zine lugar evidencia o começo da transformação do não conhecido em um lugar que já estabelece algum tipo de ligação com o sujeito. É o segundo experimento feito por pinhole, existe o alcance de imagens mais figurativas, porém ainda com algum tipo de ruído, devido o processo ser experimental. É possível identificar o percurso, comércios locais, passagens e pessoas. O segundo zine traz o movimento de transformação de espaço em lugar.

80


O zine aurora é o único que traz figuras humanas e registros de paisagens vistas de dentro para fora, ou seja, fotos capturadas do interior de espaços privados, prédios e quartos de hotéis localizados na rua Aurora e que foram mencionados durante o campo nos relatos dos entrevistados. Este zine tem por objetivo transmitir ao leitor que aquele espaço, foi lugar e agora é um receptor de memórias reais, aquele percurso ilógico decorrente de tantas derivas já habita o íntimo do caminhante, do pesquisador como um território conhecido que promoveu afeto e estória.

81


grid

Utilizei uma construção simples de grid que me auxiliou na ancoragem dos textos em cada módulo, gerando uniformidade na linguagem gráfica do conjunto formado por três zines: Espaço, lugar e Aurora. Depois de descobrir e eleger uma estrutura de grid compatível com a ideia gráfica a ser trabalhada eu apenas o repliquei nos outros volumes.Trabalhei com a página no tamanho padrão de um A3 (42 x 29,7 cm), dividido em quatro colunas, gerando 8 módulos frente e verso da página com margens de 1,27 cm. 82


O designer gráfico e professor universitário Timothy Samara defende que um grid é bem sucedido quando o designer se desvencilha da rigidez da estrutura e enxerga no jogo de linhas racionais do grid a possibilidade de trabalhar os elementos com dinamismo e liberdade. O grid não é um cárcere é uma base para a criação de um layout, projeto gráfico ou diagramação dinâmicos e com potencial de seduzir o leitor a cada página.

Um grid apenas é realmente bem-sucedido se o designer, depois que todos os problemas triviais forem resolvidos, superar a uniformidade implícita nas estruturas e usá-lo para criar uma narrativa visual dinâmica de partes que sustentarão o interesse página após página. (Tondreau, Beth. 2009, p.7)

83


paleta cromática C 15 M 100 Y 100 B 24

As cores foram definidas partindo das fotografias selecionadas para cada seção. A predominância de uma mesma cor no conjunto de imagens foi o critério de escolha para a paleta de cores. O único volume que foge a regra é o terceiro: Aurora que faz uso do lilás para estabelecer uma relação com a mistura de cores que surgem no céu durante o amanhecer. 84


C 75

C 59

M5

M 73

Y 100

Y0

B 66

B 57

85


arte final

universo,

extensão ideal,

ando aqui com receio das pessoas.

inverti a câmera, tentei fazer em mais tempo doze segundos, tinha estática e movimento e o desespero de um garoto gritando

86

explorar o ruído a não forma traçar uma nova deriva

dia ensolarado

Frente

vento gelado

nessa primeira saída não me preocupei com os enquadramentos, tentei me guiar pela altura dos meus olhos, usando minha mão de apoio,

acomodação,

espaço


deriva

cheiro de incenso

parei.

frio

hotel, estacionamento, teatro orion, apartamentos. o espaço vai se diluindo para dar vez ao lugar.

o espaço vai se diluindo para dar vez ao lugar.

experimento 1

um acidente na imagem ? na deriva ? na execução ?

primeira foto

um rapaz de bicicleta pegou no meu pescoço, arrancou minha corrente, não era ouro.

depois continuei mais atenta. tem perigo na deriva.

os primeiros negativos. não sairam as formas que eu tinha imaginado. quase não sairam formas.

Verso

87


Frente

88 valdivino sempre estou aqui.

próxima do centro, pessoas brancas, óculos escuro, mulher com roupa de academia, negros, rua menos suja, hotel borboun, prédios, mais prédios para morar, perfume, boa viagem, lugar.

sentido,

lugar rumo,

direção,

tempo de exposição de 8 a 10 segundos.

três moças trabalham numa casa de prostituição. simpáticas, inseguras, mas com bom humor.

perguntaram se eu tinha como me identificar, elas têm medo e precisam ter mesmo. abacaxi, melancia, cheiro de churrasco. apoiei na mão.

arte final


experimento 2

deriva

tempo de exposição 10 segundos. do que é a pesquisa? curiosidades.

aqui é o lugar mais frio e escuro do percurso.

olha os carros aí neuza,

henrique barba grande colares aurora 488

calor umidade

frio, sombra, um corredor prédios altos.

brancos negros bares línguas bicicleta lixo amontoado campo aberto automóveis

Verso

89


arte final

já pensa que é prostituta, uma travesti.

princípio,

nascer,

amanhecer,

aurora

uma mulher desprezada pela sociedade.

Frente

90

a melhor mulher do mundo, porque tem tudo que a gente quer aqui.


eu faço samba e amor até mais tarde e tenho muito mais o que fazer escuto a correria da cidade, que alarde.

naquele dia eu bebi duas cervejas com alguém que me disse como em junho o jeito que o sol alcançava aurora era incrível.

experimento 3

deriva

cada cabeça é um mundo girei antes e depois quase 5 segundos em duas alturas,.

eu a levaria.

onde eu criei meus filhos, hoje são pais de família.

na esquina do san juan encontrei.

não acredite em tudo que ler, apenas o que sentir é real.

o amor é um sentimento dado aos mortais para eles brincarem. 16 luas filme. eu sempre quis dizer essa frase.

Verso

91


92

Cola

Cola

Costura

Costura

assuma sua subjetividade na cidade

Dobra

Costura

Costura

Costura

Costura

arte final


ASSUMA SUA SUBJETIVIDADE NA CIDADE

93


arte final

94


95


arte final

96


97


arte final

98


99



considerações finais

101



considerações finais Na execução da peça gráfica notei a importância de realizar sequencialmente as etapas de desenvolvimento de projeto, pois quando se adota uma metodologia de pesquisa com a especificação das atividades a serem realizadas em cada fase, a organização do fluxo de trabalho é mais linear e concreta. A maior dificuldade foi encontrar um desenho de grid que acolhesse as fotografias e o texto sem hierarquizar um ou outro. A investigação do grid atrasou o meu cronograma de trabalho, demorei mais do que o esperado para encontrar esta estrutura e a linguagem gráfica das peças (três zines). O objetivo era o de criar um conjunto conectado entre si e também com potência informativa se visto individualmente. As imagens da experiência da pinhole mostrou suas precariedades no momento de decidir o suporte, pois como são registros capturados por uma técnica manual e experimental, que não faz uso de lentes, o foco é prejudicado, o que me impossibilitou de optar por suportes de dimensões maiores. Penso em dar continuidade ao experimento, o praticando em outras ruas de São Paulo com a finalidade de construir um registro de memória dos espaços em diferentes temporalidades da cidade, pautado na perspectiva subjetiva e experimental do sujeito que caminha, que vivência e se conecta com a urbe.

103



referências bibliográficas



Referências Bibliográficas - Embasamento Teórico

AGAMBEN, G. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Editora Argos, 2009. ANDRADE, C. R. M. À Deriva: Introdução aos Situacionistas. Campinas: Óculum, PUC/ Campinas, 1993. ARMSTRONG, Helen. Teoria do Design Gráfico. Tradução: Marcondes, Claudio Alves. São Paulo: Cosac Naify, 2015. BRUNO, Munari. Design e Comunicação Visual. São Paulo: Martins Fontes, 2011. CALAÇA, M. C. Pinhole revisitada: manifestações neopictorialistas na fotografia contemporânea brasileira. 2013. 95f. Dissertação (Mestrado em Arte e Cultura Visual) – Faculdade de Artes Visuais, Universidade Federal de Goiás, Goiás, 2013. CARDOSO, Rafael. Design para um mundo complexo. São Paulo: Cosac Naify, 2012 CARERI, F. Walkscapes: o caminhar como prática estética. São Paulo: Editora G. Gili, 2001. FREIRE, C. Além dos mapas: os monumentos no imaginário urbano contemporâneo. São Paulo: Sesc, Annablume, Fapesp, 1997, 320p. GROSSMAN, V. A arquitetura e o urbanismo revisitados pela Internacional situacionista. São Paulo: Annablume/FAPESP, 2006. HASLAM, Andrew. O livro e o designer II: como criar e produzir livros. São Paulo: Rosari, 2010.

107


HERKENHOFF, P. Prêmio CNI SESI Marcantonio Vilaça: Artes Plásticas. Brasília: SESI/ DN, 2005. JACQUES, B. P. Breve histórico da Internacional Situacionista – IS. Arquitextos, São Paulo, n.03, abr. 2003. Disponível em:<http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/ arquitextos/03.035/696 >. Acesso em: 18 ago. 2018. MAUÉS, D. C. Extremo horizonte: fotografia pinhole panorâmica. 2012. 34f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Artes Plásticas) – Instituto de Artes, Universidade de Brasília, Brasília, 2012. McDONOUGH, T (ed). The Situationists and the city: A Reader. Londres: Verso, 2010. RICOUER, P. Fallible man: philosophy of the will. Chicago: Henry Regnery Co., 1967.

Internet FALCÃO, Guilherme, QUADROS, Thiago e TONGLET, Ariel. Helvética os 60 anos da tipografia que virou ícone. Disponível em: <https://www.nexojornal.com.br/especial/2017/10/06/Helvetica-os-60-anos-datipografia-que-virou-%C3%ADcone1> Acesso em 20 de outubro de 2018. WRIGHT, Fred. História e características dos zines – parte 1. Disponível em: <https://ugrapress.wordpress.com/2010/04/01/historia-dos-zines/>. Acesso 20 out.2018.

108




Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.