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Cap.1 A construção da imagem do corpo

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CAPÍTULO 1. A CONSTRUÇÃO DA IMAGEM DO CORPO

Escultura, pintura, cinema... as artes são espaço privilegiado de construção, exposição e fetiche dos corpos. As imagens do corpo apresentam-se tanto de forma direta, como através das imagens dos artistas evidenciadas na obra, como as pinceladas e as marcas digitais, que se apresentam também como parte do corpo do artista. Ou no caso do corpo artista, onde o próprio corpo é a obra. As performances, danças e atuações teatrais representam essa categoria. Assim como as marcas autorais presentes nas obras.

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Na literatura também há essa construção da imagem do corpo através das palavras. Porém, é mais difícil perceber o corpo do escritor na obra, ou no livro. Tornam-se necessárias algumas estratégias para se evidenciar o corpo do escritor na obra final.Manuscritos, rascunhos, rasuras no canto da página e um cuidado nas edições tentam resgatar um retorno fantasmático do corpo do escritor. É o corpo artista do escritor. No livro Fico besta quando me entendem: entrevistas com Hilda Hilst(2013), há um cuidado no tratamento com o corpo da escritora. Principalmente, por ser um livro de entrevistas, a direção de arte trabalhou com uma série de elementos pessoais da escritora como anotações, lista de supermercado, desenhos, recados, contasà pagar etc. Pode-seperceber uma proximidade maior com Hilstao nos depararmos com tais elementos autográficos. Este capítulo é um passeio por vários lugares ocupados pela metáfora corporal presente no livro de Hilda Hilst e nas pinturas de Iberê Camargo. Ora aproximando, ora distanciando mas seguindo sempre aconstrução imagética do corpopresente na obra desses dois artistas.

Após asleituras do livro de Hilst, e as imersões visuais nas pinturas de Camargo, foram detectados, a priori, alguns elementos recorrentes nessas obras e que possibilitaram uma primeira análise. Digo a priori por se tratar de objetos artísticos, e porque durante o processo da pesquisa sobre as obras e a pesquisa em artes, outros elementos foramsurgindo, suscitados pelas leituras teóricas.

Mesmo focando exclusivamente na imagem do corpo na obra de Hilst e de Camargo, sei da inesgotabilidade do assunto.

A história da representação do corpo vem desde os tempos remotos da préhistória, e em cada período da nossa história essa representação se deu mediante necessidades, imposições, cultura, política, poder etc. A tradição filosófica dominada pelo cartesianismo, até o fim do século XIX pelo menos, representou o corpo de forma mimética, seguindo os preceitos clássicos que ditavam todas as regras para a criação artística.

Porém, o pensamento acerca do corpo em nossa cultura também remonta a uma assinatura teológica. O cristianismo sempre esteve ligado ao controle do erotismo.

Segundo Agamben, (2014, p.94) a descoberta do corpo, a percepção de sua nudez, se dá através do pecado. "Antes da queda, o homem existia para Deus de modo tal, que seu corpo, mesmo na ausência de qualquer veste, não estava nu". Nota-se que a descoberta, como a consciência corporal, aparece fundada no interdito do pecado:a nudez.

Para Georges Bataille, o interdito da nudez é um absurdo de caráter gratuito, historicamente condicionado. "O interdito da nudez e a transgressão do interdito da nudez fornecem o tema geral do erotismo, quero dizer, da sexualidade tornada erotismo ( a sexualidade própria do homem)." (BATAILLE, 2013, p.282) Para Bataille, o erotismo é o que difere o ser humano dos outros animais que têm a sexualidade apenas para a sua reprodução, a sexualidade humana é limitada por interditos e o triunfo do erotismo é a transgressão desses interditos. Apenas os seres humanos fizeram de sua atividade sexual uma atividade erótica. (BATAILLE, 2013, p.35)O corpo do outro, objeto de desejo. O desejo, segundo Agamben(2014, p.111),é uma estratégia para fazer aparecer no corpo do outro a carne. "O desejo é a tentativa de despir o corpodos seus movimentos tal como suas vestes pode fazê-lo existir como pura carne: é uma tentativa de encarnação do corpo do outro." (AGAMBEN, 2014, p. 92)

Para Bataille(2013,p. 41),a nudez se opõe ao estado fechado. Na nudez os corpos se abrem apresentando canais secretos que nos dão o sentimento de obscenidade. O desnudamento é um simulacro, sem gravidade, da imolação. Bataille considera a nudez um prenúncio do erotismo e esse erotismo justifica uma aproximação entre o ato de amor e o sacrifício. Para ele o parceiro feminino aparece, numa relação

erótica, como a vítima, o masculino como o sacrificador, e a consumaçãoum ato de destruição. "A própria paixão feliz acarreta uma desordem tão violenta que a felicidade de que se trata, antes de ser uma felicidade de que seja possível gozar, é tão grande que se compara ao seu contrário, ao sofrimento." (BATAILLE, 2013, p. 43)

Na obra A História do Corpo (2011), Alain Courbin, Jean-Jacques Courtine e Georges Vigarello desenvolvem uma extensa pesquisa, em três volumes de grosso calibre, acerca da trajetória do corpo como objeto cultural no decorrer da história humana. O livro é composto de vários textos de teóricos que têm o corpo como centro de seus estudos, e esses textos foram organizados sob a direção de Courbin, Courtinee de Vigarello. Os autores afirmamque o século XX inventou teoricamente o corpo. E que essa invenção se dá à partir do momento em que Freud decifrou a histeria: o inconsciente fala através do corpo (COURBIN; COURTINE; VIGARELLO, 2011,p.7). E cita Merleau-Ponty:

Nosso século apagou a linha divisória do "corpo" e do "espírito" e encara a vida humana como espiritual e corpórea de ponta a ponta, sempre apoiada sobre o corpo [...] Para muitos pensadores, no final do século XIX, o corpo era um pedaço de matéria, um feixe de mecanismos. O século XX restaurou e aprofundou a questão da carne, isto é, do corpo animado(COURBIN; COURTINE; VIGARELLO, 2011,p.7).

Segundo Courbin, Courtine e Vigarello, o corpo passou no começo dos anos de 1970 a desempenhar os primeiros papéis nos movimentos individualistas e igualitaristas de protesto contra o peso das hierarquias culturais, políticas e sociais, herdadas do passado.

O discurso e as estruturas estavam estreitamente ligadas ao poder, ao passo que o corpo estava do lado das categorias oprimidas e marginalizadas: as minorias de raça, de classe ou de gênero pensavam ter apenas o próprio corpo para opor ao discurso do poder, à linguagem como instrumento para impor o silêncio aos corpos (COURBIN; COURTINE; VIGARELLO,2011: p.9).

Em seu livro O corpo impossível (2002), Eliane Robert de Moraes recompõe o percurso da construção imagética do corpo a partir do modernismo francês pelo viés da ideia da fragmentação do corpo. No período entre o fim do século XIX e a

Segunda Grande Guerra(1939-1945), diversos artistas e escritores se voltaram para a criação de imagens do corpo dilacerado, dispostos a subverter a tradição do antropomorfismoe inaugurar uma estética contemporânea voltada para os dilemas do seu tempo.

Moraes remonta à tela de Gustave Moreau, A aparição (1875), onde podemos ver a cena da bailarina Salomé e Herodes em frente àcabeça amputada de S. João Batista. Moraes chama a atenção para a imagem de Herodes cobrindo o rosto com as mãos. E recorda que,da mesma forma,Batista cobriu a face para não ver Salomé. Com essa aproximação, Moraes conclui que aquilo que se esconde no sexo de Salomé pode ser o mesmo que faz a vista recuar diante da cabeça decepada do santo.(MORAES, 2002, p.36)

Talvez não seja apressado adiantar que essa aproximação entre a sexualidade difusa de Salomé e a cabeça decapitada de S. João Batista atenta para um tema que a modernidade estética não cansará de representar: a perda da unidade do corpo. Estamos,portanto nos domínios da morte. (MORAES, 2002, p.36)

Fig. 13-Gustave Moreau. A aparição, óleo sobre Fig. 24-Gustave Moreau. A aparição, aquarela, tela. 142 x 103 cm, 1874-1876. 72 x 105 cm, 1876.

3 Fig. 1:<Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Gustave_Moreau_A_apari%C3%A7%C3%A3o.jpg>

Segundo Jorge Coli (2010) a guilhotina sistematizou e multiplicou as execuções por crimes políticos ou ideológicos. Trazendo esses corpos decapitados para o cotidiano da população. E mais forte ainda, segundo Coli, foram as guerras napoleônicas com seus milhares de mortos e de aleijados. Tais guerras foram responsáveis pelo aperfeiçoamento de técnicas cirúrgicas para amputações e restaurações de membros. Para Coli:

estes são alguns dos motivos que levaram o cadáver, a putrefação, a entrar como elemento constituinte das novas sensibilidades que se difundiram durante o século XIX. O gênio de Baudelaire cultivou, como ninguém, a poética do mórbido e do putrefato. (COLI, 2010, p. 305)

A erótica batailleana é a erótica que se aproxima da construção da imagem do corpo em Hilda Hilst e em Iberê Camargo. Para Bataille o coito é a paródia da morte. O abjeto, o grotesco e o pornográfico, presentes em Bataille (O "Batalha" como escreve Hilst no Caderno rosa de Lori Lambi (HILST, 1990, p.72) se aproxima da ficção de Hilda Hilst. A própria escritora reconhece tal proximidade, evocando o fracasso, sua incursão pela pornografia e uma angústia diante da ausência de salvação e do abandono de Deus, presente nos seus textos e nos de Bataille, o que se afirma também na ficção hilstiana. "DEUS, se soubesse, seria um porco" escreve Bataille (MORAES, 2002, p. 174), "Deus é um porco com mil mandíbulas escorrendo sangue e imundície", escreve Hilda. (HILST, 2003, p. 163) Segundo Eliane Robert Moraes, o que encontramos, tanto em Bataille quanto emHilst,é uma inversão dos polos da proposição. Uma oposição entre planos radicalmente distintos, um confronto entre o alto e o baixo. Onde Deus representa o mais alto grau de majestade em contraposição à energia abjeta do charco imundo e terreno onde vivem os porcos/corpos. Hilda também usa bastante a imagem do porco em seus textos, não só em Fluxo-floema, mas em toda a sua obra em prosa. Bataille, segundo Moraes, (1999, p.119-120) se vale da imagem do porco para associar Deus aos extremos mais sórdidos da experiência humana.

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Fig. 2: <Disponível em: https://de.wahooart.com/@@/8XY73L-Gustave-Moreau-Die-Erscheinung>

Comono universo batailleano, no universo de Hilst e de Camargo, entram em cena imagens e termos como incisões, feridas ou alusões à objetos cortantes, à orgia sangrenta, àtortura. Em Bataille é o corpo agonizante que ganha relevo:

Se o corpo agonizante, convulsivo e retorcido, prenuncia a morte, ele torna-se paradoxalmente, a alteridade do corpo morto, imobilizado num vazio glacial. As imagens da agonia identificam-se ao êxtase e dela poderíamos dizer o mesmo que Bataille afirmou sobre o erotismo: "é a confirmação da vida até a própria morte". Para esse corpo febril, inquieto, tremendo violentamente diante do abismo que está prestes a ser lançado, dificilmente poderíamos propor a imagem de uma mesa de dissecação. Não: o objeto emblemático da erótica de Bataille é antes uma mesa de sacrifícios. (MORAES, 2002, p. 53)

Com a fragmentação, os artistas modernos problematizam o corpo em primeiro lugar. Livres da representação clássica, e com o projeto de destruir o corpo, submetendo-o a uma mesa de dissecação, os artistas passaram a decompor sua matéria e oferecê-laaos pedaços. Destrói-se a forma humana e desumaniza-se a arte.

O interesse pela anatomia humana era, portanto, proporcional ao desejo de destruíla. Por isso Apollinaire definiu(a pintura de Picasso) Les demoiselles d'Avignon como "o crepúsculo da realidade". (MORAES, 2002, p. 61)

Para tanto foi necessário, com o objetivo de libertar a anatomia humana das proporções estabelecidas e dos cânones normatizados, apresentar e representar um corpo fragmentado, dando assim autonomia aos pedaços e deixando-os viver na desordem que caracteriza o erotismo.

1.1. O CORPO FRAGMENTADO

Na concepção clássica, o corpo humano segue regras estéticas de beleza e proporção. As esculturas gregas e romanas buscavam uma unidade corporal de perfeição e irredutibilidade. Porém, a imagem do corpo fragmentado, destruído e apresentado em partes, tornou-se também prática de artistase escritores. Segundo

Perniola (2010, p. 140), a prática da fragmentação do corpo humano nasce no primeiro romantismo alemão e:

O fragmento é há dois séculos o objeto de uma excitada celebração, que não indica estar se acalmando: começando pelo primeiro Romantismo da revista "Athenaeun" (1798-1800), dirigida pelos irmãos Schlegel, até o pós-moderno, através de uma pletora de filósofos, de escritores, de artistas, de músicos, sendo exaltado como a forma literária e artística mais coerente com a modernidade pela sua capacidade de manifestar a descontinuidade, a incoerência, a dilaceração da experiência e por estar de acordo com o dinamismo convulso e febril de uma atividade que é incapaz de se empenhar em projetos de grande fôlego, porque muda muito frequentemente de direções e propósitos. Estas duas características, a expressão do desmembramento e a adequação de uma frenética "inoperosidade", não são, todavia, suficientes para explicar o sucesso extraordinário do fragmento na cultura contemporânea. (PERNIOLA, 2010, p. 139)

Portanto, se na concepção clássica o corpo humano é apresentado como algo pronto, acabado e dentro das regras vitruvianas de beleza e proporção, o fragmento, ao contrário, implica uma incompletude, uma imperfeição essencial que elimina o modo finito e fechado da representação clássica.

O que ocorria, das artes clássicas até o século XVII, era um antropomorfismo exacerbado, ligado ao cristianismo e à igreja católica: o corpo era a obra prima de Deus, e sendo assim, deveria ser respeitado como a grande criação divina. O respeito religioso e a submissão à Deus passava pela intacta coesão da unidade do corpo humano. Mesmo em um artista como Poussin (1594-1665), apesar de toda a sua fúria e beleza ao representar as guerras e as torturas humanas em uma cultura clássica, sua forma de representação coincide com o respeito religioso pela integridade coesa do corpo humano. Nada de sangue, nada de vísceras, nada de semblantes agonizantes. O que vemos em Poussin, e em muitos outros artistas de sua época,é a beleza acima de qualquer tormento.

Porém, a revolução iluminista trouxe a postura científica e metódica que pressupõe a desmontagem do corpo em partes para a compreensão do todo. É o nascimento de uma cultura do fragmento, como explica Jorge Coli:

na virada do século XVIII para o XIX, surge uma nova configuração, na qual o olhar do homem sobre o homem não é mais sobre si, mas sobre uma coisa. O homem objetiva a si mesmo, no sentido a que se dispõe, como objeto, para um sujeito que

conhece. Objeto de si, seu corpo se evidencia, apresenta-se enquanto corpo apenas, disposto para a ciência ou para a arte. (COLI, 2010, p. 295)

Esse cientificismoafasta o homem de Deus e o aproxima do próprio homem. E isso reflete-se nas pinturas, onde arte e ciência se mesclam:

esses quadros incorporavam também a ofensa à unidade do corpo, imagem divina, templo a ser reverenciado, que ressuscitaria no dia final dos mortos. Ao agredir o corpo, o algoz agredia Deus em sua obra maior. (COLI, 2010, p. 295)

Como afirmou Coli (2010, p. 297), a criação de uma poética do fragmento constitui-se como uma crítica às certezas da ciência e também uma crítica à tirania da perfeição e da beleza. As obras de arte do período iluminista, pode-se dizer, transitavam interdisciplinadamente, muitas vezes, entre arte e ciência. Assiste-se então, nos dois últimos séculos, a um fascínio pelo humano que se desmembra, que se apresenta por partes. Como já elucidou Jorge Coli acerca da invenção da guilhotinademocrática, como apresentarei mais à frente.

Essas partes amputadas de um todo, pode-se pensar, não apresentam uma fragilidade e sim uma potência. Um fragmento torna-se um todo, uma poderosa e nova coesão. É o que explica Perniola:

Na base da experiência da fragmentação não está a dor pela perda da relação com a totalidade cósmica, e nem mesmo a saudade ou nostalgia de tal experiência. Ao invés dessa possibilidade, percebe-se que o que incita o fragmento é o entusiasmo pela afirmação de uma singularidade que é capaz de romper a continuidade do mundo, de transgredir o enredo, o tecido, o entrelaçamento que possuía ao mesmo tempo a grande cadeia do ser, enfim, de conter em si mesma, a plenitude, a exuberância, a vivacidade criativa atribuída da tradição somente à natureza ou a Deus. (PERNIOLA, 2010, p. 141)

O fragmento é uma poética autônoma, enquanto fragmento. Segundo Coli, o fragmento é uno. Como no caso dos fragmentos das esculturas gregas e romanas encontradas em escavações. Cada mão, pé, ou torso fragmentado de sua obra anteriortem hoje sua própria poética.

Ou seja, o fragmento torna-se todo. A experiência da arqueologia moderna contribuiu consideravelmente para a incorporação, na cultura ocidental

contemporânea, do fragmento enquanto portador de beleza e poesia específicas. (COLI, 2010, p. 300-301)

O fragmento, assim, traz uma nova possibilidade, um devir, por assim dizer. Para Perniola:

o fragmento não é o estilhaço de uma totalidadeque se quebra, porém, ao contrário, é a própria totalidade que irrompe na superfície mutilada e parcial, coerente e lacunar, desmalhada e desconectada da vida corrente. Esse é o paradoxo do fragmento: não é completamente fragmentário, mas bastante coeso e unitário, como uma bolinha de ferro. (PERNIOLA, 2010, p. 147)

Ou seja, no pensamento de Perniola, "o fragmento é rico, múltiplo, pleno." (PERNIOLA, 2010, p. 142)

Em seu livro A obra prima ignorada (1831/2003) Honoré de Balzac oferece uma das representações centrais do drama do nascimento da arte moderna. Publicado primeiramente no jornal L'Artiste, foi integrado à sua A comédia humana em 1846 e faz uma reflexão sobre a arte e a literatura. Em seu livro, Balzac acentua a força expressiva do fragmento como modelo de prática artística, onde um velho pintor do século XVII, chamado Frenhofer, tentando produzir uma grande obra prima, destrói a obra com confusas pinceladas que resultam em um borrão. Mas, dentro de tamanha abstração, percebia-se um pé, tão maravilhoso que parecia viver:

"O velho tratante está zombando de nós", disse Poussin, voltando a olhar o suposto quadro. "Só estou vendo cores confusas espalhadas umas sobre as outras [...] Aproximando-se, perceberam num canto da tela um pedaço de pé que se projetava para fora daquele caos de cores, tons e matizes indecisos, uma espécie de neblina sem forma. Mas, aquele era um pé delicioso, um pé vivo! ficaram petrificados de admiração diante daquele fragmento que escapara de uma incrível, lenta e progressiva destruição. Aquele pé parecia ali como o torso de alguma Vênus de Paros em mármore surgindo entre os escombros de um palácio incendiado. (BALZAC, 2003, p. 53-54)

Frenhofer termina por se suicidar ao descobrir o engano ao qual levara sua loucura perfeccionista, mas segundo Jorge Coli:

A parábolapode ser lida pelo avesso: a loucura seria imaginar um todo possível. No lugar da luxúria plena, o fetichismo da parte. Os tempos novos são antes pelo

inacabado, e um pé vale um corpo. Progressivamente a força do fragmento passa a ser moderna. (COLI, 2010, p. 303)

Ou seja, o fragmento parece, portanto, moderno, e aos poucos os escultores, pintores, escritores vão incorporá-lo no seu trabalho. Segundo Moraes:

Fragmentar, decompor, dispersar: essas palavras se encontram na base de qualquer definição do "espírito moderno". Entre a década de 1870 e o início da Segunda Guerra Mundial, a Europa assistiu umacrise profunda no humanismo ocidental, com radical impacto sobre a política, a moral e a estética. (MOAES, 2002, p. 56)

Foi com o escultor francês Auguste Rodin (1840-1917) que o fragmento amplia sua potência, pois Rodin foi um dos artistas que mais empregou o usodo fragmento. O artista leva ao extremo, passando a fabricar fragmentos imitando o trabalho do tempo, do sofrimento e do envelhecimento. Elerasgava e torciasuas peças de argila, amputando braços e troncos. Sua crítica foi muito dura com ele condenando seus procedimentos de mutilações do corpo humano, pois consideravam tais atos como agressões diretas aos ideais artísticos. Mas Rodin conseguiu com tais fragmentos alcançar uma beleza estética,dando assimuma poética completa ao fragmento. Com Rodin o fragmento tornou-se único,como explica Jorge Coli:

Rodin mutila seus próprios gessos e acentua a força expressiva de um gesto, de um passo, de um movimento. Mais ainda, propõe associações inesperadas: enxertar a mão de uma estátua monumental a uma cabeça, por exemplo, e assim formar uma bizarra unidade, onde o todo perdeu referências plausíveis, mas abriu-se para sugestões impensadas. Rodin precede, deste modo, os futuros jogos do surrealismo. (COLI, 2010, p. 303-304)

Fig.35-Auguste Rodin. Homem andando, Fig. 46-Auguste Rodin. Assemblage: Mask of Camille bronze, 86 cm x 56 cm x 28 cm, 1877–1878 Claudel and Left Hand of Pierre de Wissant , gesso, 42 cm x 26,5 cm x 27,7 cm, 1895

Fig. 57-Auguste Rodin, aquarela, 21 x 31 cm, 1876 Fig. 68-Auguste Rodin, Iris, mensageira dos deuses com uma bênção de êxtase para homens e mulheres, 82.7 x 69 x 63 cm, bronze, 1895

O fetichismo então torna-se característica íntima do fragmento. Muitas das obras de Rodin apresentam-se carregadas pela imagemdosexo feminino, davulva. Pode-

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Fig. 3: Disponível em: <https://www.moma.org/collection/works/81085> 6 Fig. 4: Disponível em: http://collections.musee-rodin.fr/fr/museum/rodin/assemblage-masque-de-camille-claudel-et-main-gauche-de-pierrede-wissant/S.00349?materiauxUtilises%5B0%5D=pl%C3%A2tre&anneeDeCreation%5B0%5D=1900&position=4

7 Fig. 5: Disponível em: <http://deslumieres.blogspot.com/2007/02/rodin-ertico.html>

8 Fig. 6: Disponível em: <http://www.musee-rodin.fr/en/collections/sculptures/iris-messenger-gods>

se identificar inúmeros trabalhos seus onde os desenhos, as aquarelas e as esculturas protagonizaram esta parte do corpo. "Rodin a expõe, sem falsos pudores, evidenciando-a, escancarando-a. Ele exalta aspectos imediatamente orgânicos. Nele (Rodin), a pulsão fetichista que o fragmento contém em si aflora, violenta." (COLI, 2010, p. 303-304) Isso não é exclusividade do escultor francês. O pintor Gustave Coubert (1819-1877), atraído pelos mistérios do corpo feminino, pinta o quadro A origem do mundo (1866), um torso feminino, sem cabeça, pernas ou braços, que são cortados no limite da tela. Em evidência, a vulva.

Fig. 79-Gustave Coubert, A origem do mundo, óleo sobre tela, 46 x 55 cm, 1866

Faz-se importante ressaltar aqui, baseado nestes trêsexemplos(figuras 5, 6 e 7), as esculturas de membros de Rodin e a pintura de Coubert, uma diferença crucial. O pormenor e o fragmento. No primeiro, segundo Sarzi-Ribeiro (2007, p. 9), o pormenor só pode ser observado a partir do inteiro e da operação do corte. Os confins da parte do corpo representada são expandidas para as extremidades do quadro, dificultando a visualidade por inteiro. "A parte permanece inacabada e

9 Fig. 7: Disponível em: <http://www.heralddeparis.com/france-head-of-courbets-notorious-origine-du-monde-foundmagazine-claims/>

precisa do exercício de relação do corpo inteiro para ser identificada como corpo. Trata-se de uma obra pormenor." (SARZI-RIBEIRO, 2007, p. 10) O quadro de Coubert é um exemplo de pormenor, como se fosse um zoom de uma câmera.

Já o fragmento, diferente do pormenor, quebra, corta-se, se separa totalmente do conjunto, rompe qualquer relação com o todo, torna-se autônomo enquanto o pormenor dialoga constantemente com o conjunto que o gerou. O fragmento não contempla um inteiro anterior, ele passa a ser observado como ele é e não como uma açãode um sujeito anterior. O fragmento possui caráter de inteiro.

Daí pra frente, o ser humano foi totalmente desfigurado, desmontado e desarticulado: as mãossepararam-se dos braços, os pés se desligaram das pernas, o ventre adquiriu autonomia, os olhos e as orelhas destacaram-se do rosto, os órgãos internosdesagregaram-se uns dos outros. Uma vez fragmentado, só lhe foi possível recuperar a unidade do corpo através de formas híbridas e monstruosas. Uma grande variedade delas se sucedeu até que, em 1936, Georges Bataille e André Masson recolocaram em cena a figura do homem decapitado. (MORAES, 2002, p. 89)

O fragmento é um elemento recorrentenos contos do livro de Hilst e nas obras de Camargo. Como, por exemplo, no conto "Floema", como apresentarei mais adiante, onde a incisão, o corte, a faca, o punhal, o sangue, tudo remete à uma fragmentação do corpo: "... AMARGO, APARÊNCIA. Estilhaço do todo, isso que me perguntas, fragmento do nada. Também busco." (HILST, 2003, p. 225)

É o que pode-se observar também nos dois desenhos de Iberê Camargo (figuras 8 e 9), onde pernas e pés cortados apresentam-se como fragmentos, não como representação de uma incompletude, mas como uma peça única, completa em si, porém aberta para infinitas interpretações. Mais adiante, no capítulo em que trato da obra de Iberê Camargo, apresentarei outros fragmentos recorrentes em suas pinturas e desenhos, como mãos e cabeças.

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