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Introdução

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INTRODUÇÃO

Esta tese abordaa construção da imagem do corpo nas pinturas de Iberê Camargo produzidas entre os anos de 1980 até 1994, o ano de sua morte, e o livro Fluxofloema (1970) de Hilda Hilst. Desse modo, considerei como hipótese central de trabalho o fato de existirem elementos comuns entre as obras escolhidas de Iberê Camargo e o livro Fluxo-floema de Hilda Hilst no que diz respeito à construção da imagem do corpo em suas obras. Considerandoa questão do diálogo entre artes de diferentes linguagens, no caso, a literatura e a pintura, sob a luz da intermidialidade e da tradução intersemiótica.

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Minhas questões de pesquisa articulam-se a partir desse eixo triplo: o livro de Hilst, a pintura de Iberê e a construção da imagem do corpo na obra desses dois artistas. Uma da literatura e outro da pintura. Assim, como pensar um conceito de corpo que seja suficientemente geral para artes visuais e literatura e que seja também suficientemente peculiar para responder aos problemas específicos? Qual a importância da modernidade na formação dos artistas no que diz respeito à representação da imagem do corpo nas artes visuais e na literatura? De modo geral e especificamente,como o problema da construção da imagem do corpo aparece na crítica da obra de Hilda Hilst e de Iberê Camargo? Navisão particular do pintor e da escritora sobre as suas próprias obras, como se dá a construção da imagem do corpo? Existe um diálogo entre o conjunto de obras de Iberê Camargo selecionado para esta pesquisa e o livro Fluxo-floema de Hilda Hilst, no que diz respeito à construção da imagem do corpo? Se existe, é a intermidialidade um caminho apropriado para o estudo desse diálogo interartes?

As indagações expostasno decorrer da tesetornam-se hipóteses de trabalhoque são testadas, descartadas, mantidas ou retomadas de modo mais complexo, segundo o conjunto de informações que minha pesquisa vai acrescentando, a partir da relação entre teorias e análises das obras.

Considerei, para o estudo desses diálogos entre a obra de Camargo e de Hilst, a importância do contexto cultural, social, histórico e artístico ao qual as obras pertencem e se inserem, tendo como base declarações do pintor e da escritora e também a fortuna crítica dos trabalhos aqui analisados. Também considerei a integração do conceito de intermidialidade com o estudo acerca da representatividade do corpo, para a constituição de uma metodologia para este trabalho.

Minha primeira justificativa é a ausência de estudos acadêmicos sobre as correspondências intermidiáticas existentes entre o livro Fluxo-floema de Hilda Hilst e as pinturas de Iberê Camargo especificamente as pinturas figurativas do período entre 1980 e 1994. Tal justificativa faz desta tese não apenas um lugar para investigação da obra desses artistas a partir de questões específicas, mas também uma oportunidade para a apresentação de (parte) da obra desses dois nomes tão representativos na fortuna cultural brasileira, de modo sistemático e abrangente, buscando cobrir uma pequena parte de suas longas trajetórias artísticas.

A segunda justificativa é a da atenção própria à questão do corpo na literatura e na pintura, de modo geral. Ou seja, parte do princípio que parece incontestável de que onde há arte, sempre existe um corpo. "O corpo pode estar lá representado figurativamente, aos pedaços, residualmente, metafórica ou iconicamente, ou seja, até mesmo comouma possibilidade e não como existente." (GREINER, 2005; p. 112113). Justifica-se também, pensar de forma específica a obra de Hilda Hilst e de Iberê Camargo, sob o foco daconstrução imagética do corpo, assim comoareflexão teórica sobre o corpo no que diz respeito à obra desses dois artistas. O que apresentarei mais especificamente no capítulo 1, que dedico exclusivamente aos conceitos relacionados ao corpo.

A terceira justificativa é a necessidade de estudar a questão da intermidialidade, pela necessidade de apresentar um panorama de seu desenvolvimento conceitual, quesurge a partir de um campo distinto: o da tradução intersemiótica. Acredito que tais práticas estabelecem um campo intermidiático em que convergem os problemas de diálogos entre linguagens de diferentes códigos, no caso a literatura e a pintura,

oferecendo uma entrada promissora para a compreensão de um tempo - o nosso tempo -cuja proximidade deproduções tão heterogêneasdesafia o nosso olhar.

Como qualquer investigação de fundo hipotético, esta tese se construiu pela ligação de fatos, de conceitos e de intuições sobre os problemas. A partir desses fundamentos básicosdesenvolveu-se de forma progressiva e buscouevidenciar em sua própria estrutura a construção da pesquisa, ao contrário de apresentar questões preestabelecidas.

Como sou artista plástico, como forma de suplementar minha pesquisa, usei os fundamentos da tradução intersemiótica para produzir uma série prática de obras plásticas que dialoga com o livro Fluxo-floema de Hilda Hilst e com as pinturas de Iberê Camargo, aproximandoos trabalhos do pintor e da escritorado meutrabalho e de outros artistas da arte contemporânea.

A pesquisa em artes visuais implica um trânsito ininterrupto entre prática e teoria. Os conceitos extraídos dos procedimentos são investigados pelo viés da teoria e novamente testados em experimentações. Dessa forma, passamos sem cessar do exterior para o interior e vice-versa. A teoria alimenta-se da subjetividade e da vivência prática do artista, ao mesmo tempo em que reafirma ou coloca em discussão questões oriundas da própria maneira de trabalhar. Uma vez pinçados das condutas instauradoras da obratais questões balizam a pesquisa teórica. A pesquisa em artes visuais parte da maneira como a obra é feita, e frequentemente a investigação teórica indica novas possibilidades para a resolução de procedimentos técnicos. Nesta pesquisa o fator de motivação criativa é apreendido a partir dos estudos do objeto.

Diferente da pesquisa sobre artes, que é aquela onde o pesquisador trabalha com artistas e obras pré-definidas podendo fazer articulações com a história da arte e a crítica da arte, na pesquisa em artes o artista-pesquisador produz concomitantemente à parte teórica uma parte prática. Acredito que a pesquisasobre artes foide suma importância nesta tese, ondepude correlacionar tanto o trabalho de Hilda Hilst quanto o de Iberê Camargo com artistas que, posso dizer, "influenciaram" e também artistas "companheiros de estrada" tanto de Hilstquanto de Camargo. E também fazer correlações com artistas contemporâneos que

produzem hoje, trabalhos que dialogam com os trabalhos de ontem, do pintor e da escritora.

Esta tese constrói-se a partir de vários desvios, e por meio deles construí meu método de trabalho. Entendo estes desvios como um sentido quase metodológico de deslocamentos, recuos, avanços e mudanças de trajetórias ao longo de um caminho. A priori meu objeto de pesquisa era a trilogia obscena de Hilda Hist: O caderno rosa de Lori Lambi, Cartas de um sedutor e Contos d'escárnio, textos grotescos. Como já havia trabalhado a questão do erotismo e da pornografia no mestrado, pretendia continuar essa pesquisa no doutoramento. Minha proposta era identificar graus de picturalidade nessas três obras de Hilda Hilst e traduzi-los intersemioticamente para a linguagem visual. Cheguei a desenvolver um livro de artista, Olho de Cão (2016), baseado no livro Contos d'escárnio, textos grotescos, que apresentarei mais adiante, no capítulo 5. O trabalho andou, a pesquisa avançou, e no decorrer dela senti a necessidade de mudar radicalmente o meu objeto de estudo: troquei a trilogia obscena pelo livro Fluxo-floema e acrescentei a obra de um pintor para o diálogo intermidiático.

Minha pesquisa é, antes de tudo, um processo, um trânsito ininterrupto entre teoria e prática que a cada movimento me suscitou novas perspectivas e assim novos caminhos a seguir. É o que explica Sandra Rey:

Duchamp, não sem ironia, estabelece seu "coeficiente de arte" na "distância entre intenção do artista e a obra acabada". Então o projeto na pesquisa em artes visuais, equivaleria a um projétil, algo que é lançado com uma mira. Mas o caminho exato que irá percorrer nunca saberemos. Pierre Soulages declara que "o que eu faço me esclarece o que procuro” revelando, de certo modo, a cegueira do artista no processo de criação.(REY, 2002,p. 134)

Outro fator importante a ressaltar é que a inserção do trabalho de Iberê Camargo ampliou apesquisa sobreartes, permitindo-me situar a obra de Camargo e de Hilst em contextos históricos, sociais e culturais específicos, e fazendo-me entender o conceito de arte de cada época, de cada sociedade, de cada classe social, bem como o conceito de obra e até mesmo o de artista. Icleia Cattani explica:

A pesquisa sobre arte deve inter-relacionar as instâncias histórica, teórica e crítica. Essas instâncias, que compreendem também, em seu cerne, a estética e a filosofia da arte, compõem os fundamentos teóricos das artes visuais, ou seja, a produção de conhecimentos, sob a forma de discursos, que se elabora a partir de, ou simultaneamente à produção artística. (CATTANI, 2002; p. 42)

Apresento um conjunto de reflexões ligadas a uma estrutura geral de pensamento relacionadas à História da Arte e aos Estudos Literários que delimitaram os discursos de Iberê Camargo e de Hilda Hilst e da fortuna crítica de seus trabalhosao conceito de representação do corpo. Chego ao campo da intermidialidade no sentido de adequá-la à nossa questão e finalmente apresentá-la como uma ferramenta para a análise das obras de Iberê Camargo e do livro de Hilda Hilst.

Os "diálogos" suscitados por essa tríade - pinturas de Camargo, livro de Hilst e a imagem do corpo - são conduzidos à luz da intermidialidade, que é um campo teórico em processo, que abriga perspectivas e linhas teóricas múltiplas. Trata-se de um campo de interseção que tem a intenção de abrir tanto a discussão quanto à criação de objetos de caráter heterodoxo, por ser atravessado por fontes teóricas, mídias e regimes de signos diversos.

O termo intermidialidade, segundo Irina O. Rajewsky, surgiu nos anos de 1990 e está relacionado, basicamente, aos vários modos possíveis semioticamente para produções textuais que ultrapassam os limites do verbal para atingirem outros sistemas semióticos/de linguagens. O principal divulgador da intermidialidade é Claus Clüver, que vem substituindo a denominação "estudos interartes" por "estudos intermidiais ou intermidiáticos"(RAJEWSKY, 2012, p. 16). Há muito tempo existe um discurso preocupado com a interface entre as diversas artes, e esse discurso é um elemento chave nos estudos de artes apresentadas em códigos diferentes.

A intermidialidade começou a ganhar os contornos de um campo de investigação autônomo, devido ao fato das produções culturais contemporâneas mostrarem uma variedade de textos e hipertextos visuais, verbais, musicais, cinéticos, performativos e digitais que não se circunscrevem em uma categoria disciplinar restrita.

Intermidialidade diz respeito não só ao que em geral se chama de “arte”, mas também às “mídias” e seus textos, que incluem não apenas as mídias impressas, mas também o Cinema, a Televisão, o Rádio, o Vídeo, bem como as novas mídias eletrônicas e digitais. Uma mídia pode ser o próprio corpo, o óleo sobre a tela, o pincel e a tinta,ouainda, a câmera de vídeo, ou instrumentos como piano e flauta, a voz, a caneta, o papel, o pergaminho, o tecido. Num outro sentido, a mídia equivale à “arte”, isto é, dança, arquitetura, escultura, escrita, vídeo emídias digitais1 .

Portanto, ao não tomar um caminho direto e preestabelecido, busquei a mesma fluidez e surpresa da pincelada na pintura no desenvolvimento das questões desta tese, ora traçando seus contornos e texturas exteriores, ora buscando, a partir de seu interior, a configuração conceitual da estrutura da forma. Do mesmo modo, a apresentação das teorias de maneira mais ampla possível, e a aplicação dos pensamentos que considerei mais pertinentes de forma mais específica foram os meios que encontrei de ser o máximo explícito e abrangente na redação desta tese.

Ainda que seguindo uma trajetória indireta, múltipla e rizomática, é importante ressaltar que meu objeto central - a construção da imagem do corpo no livro de Hilda Hilst e nas pinturas de Iberê Camargo -está presente em diferentes níveis, nos capítulos destatese.

A intermidialidade é o estudo que se dedica ao cruzamento de fronteiras entre diferentes mídias. Esta tese então, em termos intermidiáticos, estuda as fronteiras permeáveis entre a mídia verbal (o livro Fluxo-floema de Hilst) e a mídia visual (as pinturas de Camargo). Esta pesquisa não pretende identificar traduções entre as obras aqui estudadas, tanto porqueas obras foram produzidas por seus autores sem este fim. A intermidialidade foi aporte quanto à identificação de picturalidade no texto de Hilst e a aproximação desses marcadores de picturalidade com a pintura de Camargo. É o que Agnaldo José Gonçalves chama de "homologias de procedimento", quando analiso as obras levando em consideração as especificidades de cada gênero, para assim caminhar para uma compreensão dos objetos. Para comparar as duas artes, fez-se necessáriauma análise dos próprios objetos aqui apresentados, e assim,

1 -Disponível em: <http://www.letras.ufmg.br/intermidia2017/ > Acesso 17/05/2017.

a análise das suas relações estruturais. Dizer que esse estudo busca a homologia estrutural, ou homologia de procedimentos, entre literatura e pintura, é buscar identificar correspondências expressivas de procedimentos entre artes distintas.

A intermidialidade é um conceito que se articulana multiplicidade, no diálogo, na parceria. Na intermidialidade acontece um cruzamento, uma contaminação de uma mídia por outra. Pode-se afirmar que desse cruzamento"nasce" um terceiro objeto. Podemos pensar que toda criação artística sempre vem acompanhada de outros "textos" precedentes a ela, ou seja, toda pintura tem sua tradição e todo texto é uma intertextualidade de outros textos e, segundo Clüver, "a intertextualidade sempre significa também intermidialidade" (CLÜVER, 2011, p.17). É o que explica Maria do Carmo Freitas Veneroso:

Considerando as artes plásticas como um sistema de significação, que tem signos tal qual a escrita, podemos ler a arte do século XX, principalmente a arte mais recente, como um processo intertextual de reescrita de outros textos. A intertextualidade designa o trabalho de transformação e assimilação de vários textos, operado por um texto centralizador, que irradia sentidos. A produção do outro “texto” se dá através de processos de rapto, absorção e integração de elementos alheios na criação da obra nova. Essa relação não se dá como uma relação de mera influência, mas de diálogo. (VENEROSO, 2012,p.82)

O texto de Veneroso mostra claramente a multiplicidade que se apresenta na composição de uma obra. Tal composição é a absorção e integração de outros textos. São conexões de conexõese,como um agenciamento,a composição está em conexão com outros agenciamentos. A arte torna-se um reflexo do mundo contemporâneo, do hibridismo, do múltiplo, do caos.

Além da intermidialidade também utilizei o biografismo para as análises dos objetos. Entendoque o biografismonão é uma ferramenta definitiva em uma análise de obras de arte. Porém, nos casos de Hilda Hilst e de Iberê Camargo, observeique suas vidas refletiram muito em suas obras. Se arte é vida nela haverá, ainda que minimamente, reflexos da existência de quem a produziu.

Como explica Juarez Guimarães Dias:

Alguns traços biográficos dessa escritora [Hilda Hilst] metamorfoseiam-se em fala, adentrando o corpo de linguagem e afetando a sua expressividade... n' O Unicórnio, a voz da escritora emerge com muita clareza na narrativa para quem conhece seus traços biográficos ede personalidade. (DIAS, 2010, p.40)

Quem conhece a biografia de Hilda Hilst sabe que muitas passagens de sua vida aparecem, mesmo que disfarçadas, na vida de seus personagens. Como por exemplo, a inúmeras menções à santas e padres, remetem ao fato de Hilst ter vividodurante sua infância em um convento de freiras. A loucura que ronda seus textos, pode remeter ao fato deseu pai ter ficadolouco e morrerem um sanatório. Esse episódio em sua vida a marcou profundamente. A figueira, o "pátio de pedras perfeitas" é uma alusão à parte da Casa do Sol, onde a escritoraviveu e escreveu todaasua obra. Outros fatores que apresento no capítulo 2,onde trato da obra de Hilst evidenciando muitas passagens de sua vida presentesnos seus personagens:

Hilda estudou durante oito anos como interna no Colégio de Freiras Santa Marcelina, em São Paulo, ambiente evocado na sua dramaturgia (A Possessa, Rato no Muro), na narrativa O Unicórnio, deste volume [Fluxo-floema] e também na poesia:

Osamantes no quarto Os ratos no muro A menina Nos longos corredores do colégio. (ROSENFELD, 1970, p.10-11)

A biografia também é uma marca indelével na obra de Iberê Camargo. Quando pintava abstrato informal era seu próprio corpo que estava presente na pintura através de marcas autográficas - no empastelamento da pintura, nos rastros de pinceladas - elementos que denunciam a presença do corpo do artista. Quando, em outra fase,surgiram objetos na tela,eram carretéis e dados que o pintor foi resgatar no pátio de sua memória, nos brinquedos da sua infância, no regresso ao Sul, que ele considerava o colo de sua mãe, elementos que também remetem à pessoa do artista. Ao se aproximar da década de 1980 Iberê já vinha colocando questões mais humanistas em seus trabalhos.

A partir desses tempos, as obras do artista mostram uma substancial transformação artística e outros problemas formulados. As referências biográficas não são o foco

dessas reflexões, mas não se pode omitir que as novas possibilidades dos trabalhos desses tempos tenham sido intensificados por proximidade da morte, seja por um trágico incidente ocorrido em legítima defesa em 1980, como pela doença incurável, contraída em 1985. Esses fatos certamente exacerbaram seu desespero de terror humanista, extrapolando as questões históricas e os fatos apreendidos a nível pessoal. (ZIELINSKY, 2014, p. 43)

A biografia de Iberê Camargo é intrínseca à sua obra. Iberê pintou exclusivamente o que estava no atelier, perto dos olhos ou guardado na sua memória. Mesmo no período em quemorava no Rio de Janeiro, nunca se rendeu a tropicalismos, calor ou alegrias exacerbadas. Em suas pintura, Camargo prezava exclusivamente suas questões pessoais e interiores, ele pintava para dentro. O modelo e a paisagem não importavam, a não ser o modelo que buscava em sua memória de menino no Rio Grande do Sul, ou a paisagem das suas lembranças -plana, fria e solitária.Camargo é um trágico nos trópicos. Como explica o próprio pintor:

Há formas que são melhores condutos, que servem melhor aos nossos fins. Eu sou levado com mais facilidade à expressão de um drama, de um vazio, diante de uma árvore esgalhada, de inverno, do que se eu apanhasse uma árvore frondosa. Seria bem difícil despolpar todas aquelas folhas. Esta árvore não serve no meu jardim, não serve no meu paraíso. Eu faço uma escolha, procurando no modelo aquilo que ele pode me dar. (CAMARGO in LAGNADO, 1994, p.30)

É o que o pintor Carlos Vergara, que foi aluno de Camargo, afirma no filme documentário O Pintor (1992): "a pintura de Iberê não tem nada a ver com a paisagem do Rio de Janeiro, não tem nada a ver. É um pintor que podia não ter janelas no atelier, ele pintava olhando para dentro."

Iberê Camargo nasceu em Restinga Seca, no Rio Grande do Sul, a 18 de novembro de 1914. Filho de ferroviários não recebeu estímulos de seus pais para a carreira artística, nem tampouco conviveu com livros em sua casa. como relata o próprio Camargo:

O único livro que lembro ter encontrado, que suponho, pela capa, ter sido de Júlio Verne, mas que nunca li. O que eu gostava, mesmo, era de mexer nas gavetas de minha mãe, porque as gavetas tem muitas surpresas, o fundo das gavetas guarda bens inesperados: restos de fazenda, carretéis, coisas mutiladas. (CAMARGO in BERG, 1985, p. 14)

Em 1922 a família de Iberê muda-se para Canela, na serra gaúcha, e não encontrando escola para o menino Iberê, envia-o para o internato em Santa Maria. Foi em Santa Maria que Iberê inicia seus estudos de pintura,em 1927 na Escola de Artes e Ofícios. Mais tarde muda-se para Porto Alegre onde retoma os estudos à noite, no curso de arquitetura do Instituto de Belas Artes, e começa a trabalhar como desenhista na Secretaria de Obras Públicas.

Naquela época Porto Alegre parecia-lhe uma cidade acanhada. O modernismo, que tanto entusiasmava Camargo, ainda nem chegara a apontar suas primeiras influências. Decidido a estudar no Rio de Janeiro, Iberê é agraciado com uma bolsa de estudos concedida pelo governador do Rio Grande do Sul. No Rio de Janeiro conhece Guignard e participa do seu grupo de pintura.Em 1947 ganhao Prêmio de Viagem à Europa no salão Nacional de Belas-Artes, Divisão Moderna, o maior prêmio de artes plásticas conferido no país. Na Europa, Camargo trabalhou com o mestre em gravura Carlo Alberto Petrucci (1881-1963) onde aprendeu toda a técnica da calcografia e da gravura em metal. Depois, frequentou os ateliers de André Lothe (1885-1962) e de Giorgio De Chirico (1888-1978).

De volta ao ambiente cultural do Brasil, Iberê encontra um cenário artístico em progressiva mudança. Ele traz na bagagem um significativo conhecimento intelectual e nos anos seguintes sua produção artística passa por um processo de amadurecimento, conseguindo assim inserir-se no novo ambiente e conquistar reconhecimento. O pintor não tinha compromisso com nenhum movimento estético ou estilo, porém dominava exemplarmente a técnica pictórica. Ele mesmo dissera: "Não me filio a nenhum pintor ou escola, simplesmente porque há muito estou filiado a mim mesmo." (CAMARGO in BERG, 1985, p. 23)

Durante as décadas de 1960 e 1970 Iberê participou de diversas exposições e Bienais no Brasil e no exterior. Era dono de uma reputação que o colocava como um dos maiores artistas brasileiros, tendo sido convidado para pintar um painel de 49�!para o novo prédio da Organização Mundial da Saúde, um presente do governo brasileiro para essa instituição nas Nações Unidas. Teve uma sala especial na Bienal de São Paulo, participou de diversas bienais internacionais como a de Veneza, Bienal do Japão, Quadrienal internacional de Roma, fez exposições na

Iugoslávia, Paris, Londres, Venezuela, Estados Unidos... Iberê ganhou o mundo e suas obras eram das mais valorizadas em termos comerciais no Brasil.

Em 1965, após ler o livro Carta à El Greco (1963) do escritor grego Niko Kazantzákis, HildaHilstdecide sair de São Paulo. Muda-se para a Fazenda São José, de propriedade da mãe Bedecilda, a 11 quilômetros de Campinas. Foi lá que, três anos depois, constrói a Casa do Sol, em companhia do escritor Dante Casarini.

HH- Quando li esse livro, Carta a El Greco, resolvi mudar para cá. Resolvi mudar minha vida. Eu tinha uma casa gostosíssima em São Paulo, todo mundo ia lá comer, namorar, dançar - meus namorados, meus amigos, minhas amigas. Aí, li o livro e mudei minha vida. CLB-Era preciso essa renúncia mesmo, essa vida reclusa para poder produzir? HH-Ah, sim. CLB-Por quê? HH- Eu tinha que ser só para compreender tudo, para desaprender e para compreender outra vez. (HILST, 2013,p. 197)

Em Carta à El Greco Kazantzákis prega a necessidade fundamental do isolamento para o conhecimento do ser humano. No livro, o personagem estava em Paris e combina um encontro com uma linda prostituta. Quando estava fazendo a barba para sair com a moça, nasceram pústulas em seu rostoe ele acabou não indo ao encontro. Achou que era um milagre. "Deve ter sido um milagre mesmo"(HILST, 2013, p. 198) disse Hilda Hilst, aí ele foi para o Monte Athos escrever. O livro impressionou de tal maneira Hilda Hilst que a fez refletir sobre a sua dificuldade de optar entre a vida de festase glamour e o trabalhode se construir uma obra. Hilda Hilst "refere-se ao texto como um chamamento, que a levou a dedicar-se ao projeto de escrita." (DIAS, 2010, p. 24) É o que Anatol Rosenfeld chama de "experiência decisiva":

não só de ordem literária e sim 'existencial' (se é que é possível separar o que é inseparável para quem, como para Hilda Hilst, a criação literária é uma atividade absolutamente vital).(ROSENFELD, 1970, p. 13)

E foi na Casa do Sol que Hilda Hilst, de forma sacerdotal, escreveu toda a sua obra, até o fim dos seus dias. A casa hoje abriga uma fundação onde artistas e

pesquisadores podem fazer residências artísticas. E também onde se encontram os móveis e objetos pessoais de Hilda. A edificação foi construída nos moldes de um mosteiro espanhol em estilo colonial, e com um pátio interno. No centro dele um enigmático poço que, dizem, foi construído baseado nos princípios da alquimia, um pátio interno "de pedras perfeitas" (HILST, 2003, p. 22). O terreno possui também uma enorme figueira centenária onde "Hilda costumava realizar rituais e fazer pedidos debaixo da árvore sagrada" 2 .

Na Casa do Sol Hilda Hilst viveu até a sua morte e escreveu seus quarenta e um livros. Por quarenta anos viveu reclusa com seus vários personagens, mas cercada de amigos que sempre a visitavam A Casa do Sol se tornou um ponto de encontro de uma comunidade artística, com lendárias noitadas regadas a vinho do Porto e debates que iam de filosofia a romances açucarados da novela das nove. Hilda amava os animais e chegou a ter 100 cachorros vira-latas que ela resgatava, abandonados.

A seguir apresento alguns conceitos que identifiquei, tanto na obra do pintor quanto da escritora, e que guiaram todas as minhas análises: no capítulo 1, trato das teorias acerca do corpo que mais se aproximaram das obras aqui estudadas, como o fragmento, o grotesco e o abjeto. No capítulo 2, trato do livro de Hilda Hilst, sua fortuna crítica e como se dá a apresentação da imagem do corpo na obra. No capítulo 3 apresento a fortuna crítica acerca da obra de Iberê Camargo produzida no período referente ao recorte aqui selecionado e analiso a presença da imagética do corpo nas pinturas. No capítulo 4, apresento algumas correspondências identificadas entre a obra do pintor e o livro de Hilda Hilst. E no último capítulo, por meio das obras produzidas por mim, apresento algumas traduções intersemióticas oriundas de diálogo entra=e as pinturas de Camargo e o livro de Hilst.

2 Disponível em: <http://jconline.ne10.uol.com.br/canal/cultura/literatura/noticia/2015/03/29/casa-do-solfoi-refugio-criativo-de-hilda-hilst--174372.php>

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