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2.4. Osmo : decifra meu corpo ou eu te devoro

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e noventa, tenho ótimos dentes, um pouco amarelados, mas ótimos, quase não tenho barriga, um pouco, como todo mundo da minha idade, eu ainda não lhes disse a minha idade, acho que eu existo desde sempre, mas afinal, o que importa? Agora as coxas. As coxas são excelentes porque eu fazia todos os dias cem metros na butterfly, vocês imaginam como isso me deixou com um peito deste tamanho. Ah, sim, eu estava falando das coxas, pois é, são excelentes. Há mulheres que dizem que as minhas coxas são fortes, sei lá, uma porção de besteiras, ou melhor, não são besteiras o que elas dizem, as minhas coxas são excelentes realmente, mas acho que vocês não estão interessados, ou estão? Se não estão, paro de contar, mas se estão, posso acrescentar que além de fortes, têm uma penugem aloirada... (HILST, 2003, p. 78-79)

O que Osmo deixa transparecer neste relato do seu corpo é o narcisismo, uma valorização do próprio corpo como algo perfeito e sublime. O problema de Osmo começa com o desencanto com o amor materno, quando sua mãesaía para dançar e o deixava abandonado em casa. Os sentimentos agressivos de Osmo são fruto do estilo de vida desregrado da mãe.

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Bem, vou explicar: a minha mãezinha não me aguentava porque ela era louca para dançar, dançar, dançar, isso mesmo, eu espero que vocês saibam o que é dançar, antes era ficar andando pelo salão, a dois, é assim que eu ainda danço, agora é ficar sozinho se rebolando, tanto faz, a gente sempre está sozinho ainda que esteja à dois, a três, dançando ou, enfim, a gente sempre está sozinho. A minha mãezinha dançava a dois. Mas não é exatamente isso que eu quero contar, aliás nem sei se é bom-tom ficar falando assim da mãezinha da gente mas vocês hão de convir que eu não falei nada de ofensivo, apenas disse que ela gostava de dançar. Isso parece ser o gosto de quase todas as mulheres isso de dançar. Pelo menos as que eu conheci. Todas gostavam muito de dançar. Ainda gostam. Não sei porquê. (HILST,2003, p. 76)

O fato de Kaysa ter-lhe pedido para levá-la para dançar o faz se lembrar de sua relação com a mãe, quando ela saia para dançar e o deixava abandonado em casa, e isso é o que faz despertar seu lado mais cruel e perverso. A solidão nos relacionamentos é muitasvezes representada pela dança, em que mesmo estando a dois se está só.

O que Osmo sente é que ele foi abandonado pela mãe, trocado por outros homens. O personagem dá cusparadas nos cantos da casa como se quisesse expelir o que o aflige na memória que tem da infância: a mãe preferir dançar a ficar com o filho. Osmo é um solitário colocado em situação angustiante e absurda. Em fluxo aflitivo, que não permite a pausa e o silêncio, o mundo surge estranho, incoerente, desfocado. As atitudes são grosseiras, apresentando desilusão e amargura. O protagonista-

narrador aparece como um louco a desafiar o sentido da vida e as verdades estabelecidas. Por isso Osmo odeia as mulheres que lembram sua mãe. É o complexo de Édipo às avessas. Pode-se notar o desprezo do personagem pelas questões femininas das mulheres que o circundam. Como na passagem:

as mulheres inventam sempre esse negócio de dançar e o convite vem invariavelmente quando você está cansado, pelo menos comigo acontece assim, então você está cansado e resolve pegar a sua metafísica e de repente ela telefona, angustiada, absurda: faz um favor pra mim, tá? O quê? Vamos dançar. De início, dá aquele mal estar medonho, lógico, por que eu estou deitado na minha cama, estou tomando nota das coisas mais importantes. (HILST, 2003, p. 77)

Para Osmo, as mulheres são inferiores à sua metafísica egocêntrica. Em seu egocentrismo o personagem relaciona sua maldade com a maldade de Deus. Quando Osmo está lendo um livro e sublinha o trecho:

"Deus tira o bem, do mal que acontece. Por isso, o universo é mais belo contendo o mal como um canto." (HILST, 2003, p. 78)

Ou seja, mais uma vez Hilst nos coloca nas mãos de um Deus cruel, que só pode mostrar o bem diante de um mal acontecido, um Deus bem humano. Um Deus que se mostra bondoso e misericordioso diante de uma desgraça criada por ele mesmo. Como um tirano benevolente.

Em certa passagem,Osmo narra um acessode fúriaque teve pelo fato de sua mãe não defendê-lo:

Uma vez tive um acesso de fúria quando a minha mãezinhaque adorava dançar me disse que alguém lhe dissera o seguinte ao meu respeito: o seu filho, dona, tem alguma coisa que não vai bem. Aí quebrei todos os cristais, dei mil cusparadas nos tapetes que também eram persas, as mulheres tem manias dos tapetes persas, depois o que elas fazem mesmo em cima desses tapetes é foder, não tenho nada com isso, mas além das cusparadas, mijei nos tapetes persas da minha mãezinha, e disse: espera que eu ainda vou dar uma cagadinha, e depois, você, mãe, manda de presente o tapete pro cara que disse esse negócio de mim, aliás, você, mãe, você deveria ter feito na hora o que eu estou fazendo agora, mas eu sei mãe, você não tem presença de espírito, não é? E como você gosta muito do seu filhinho, do seufilhinho que fica sozinho porque não tem com quem ficar quando você vai dançar, então, como você gosta muito de mim, sua vaca, você não respondeu nada, não é? E também fez aquelas caras de mãe sofrida, e abaixou a cabeça e esticou a boca ameaçando choro, não é? E aí o homem convidou você para dançar, não foi mãe? (HILST, 2003, p. 89)

Nesta passagem, vê-se que a escritora se valeu dos contrastes para ressaltar o grotesco. Pode-se notar a aproximação de cristais e tapetes persas a mijo, escarro e fezes. Tais elementos orgânicos de excreção são característicos da arte abjeta. Outro elemento do grotesco nesta passagem é quando Osmo xinga sua mãe de vaca. Tal expressão, quando referenciada à própria mãe, causa certo asco no leitor pelo fato de certos tratamentos serem inaceitáveis no convívio social estabelecido. Outro fator que chama à atenção é a ambiguidade com relação à palavra dançar. Aqui pode-se entender como uma metáfora do sexo, a dança do acasalamento, a ciranda do sexo. Interessante notar também que quando as mulheres de Osmo o chamam para dançar, o desfecho é sempre o sexo porém ele as mata, ou seja, a palavra dançar também pode ser lida da maneira figurada da gíria dançar, que quer dizer: se dar mal.

Uma figura de características grotescas, presente na tragédia de Édipo Rei, é a figura da esfinge. Conta-se que havia uma esfinge no deserto que fazia uma charada para todos aqueles que tentassem atravessá-lo. Todos que falharam foram devorados. Apenas Édipo conseguiu desvendar a charada.

Na Grécia existiam leoas aladas com cabeças de mulher, enigmáticas e cruéis, espécie de monstros temíveis, símbolo da feminilidade pervertida. Seria o símbolo da devassidão e da dominação perversa, e a esfinge grega designava a vaidade tirânica e destrutiva(CHEVALIER; GHEERBRANT,2016,p.389). Segundo Kayser, "A mistura do animalesco e do humano, o monstruoso, é a característica mais importante do grotesco, e já transparece no primeiro documento de língua alemã.” (KAYSER, 1986, p. 24). A esfinge é uma parte do nosso lado bestial representada pela combinação de diversos animais e do homem. A esfinge é o ego de Osmo. O deserto onde habita a esfinge representa a individualidade, o egoísmo e a solidão. É o mundo onde vivemos, hostil, e aterrorizante, e seco onde a água não chega. (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2016, p.389) Enquanto Osmo está afundado em sua individualidade, seu ego se sobressai e o questiona. Dessa forma, vê-se um homem em processo de regressão, nutrindo sua própria bestialidade.

A imagem do corpo das mulheres de Osmo, Mirtza e Kaysa, é descrita de forma pejorativa. Osmo fala da limpeza do corpo de Mirtza: "Coitada da Mirtza, ela não era exatamente um peixe de tão limpa, não era, enfim ela já está morta e quando as pessoas estão mortas não convém ficar falando muito sobre elas." (HILST, 2003, p. 81)Ou no trecho: "A Mirtza era estranha, além de ser um pouco sujinha, a Mirtza era uma ladra. Mirtza roubava e vendia moldes de alta costura." (HILST, 2003, p. 83) Podemos notar a descrição do corpo de Mirtza no trecho:

E numa dessas viagens encontrei a Mirtza. Olhei para Mirtza, a Mirtza era branca, muito branca, aliás, ela parecia essas gringonas de hospital, as pernas grossas, o cabelo crespo aloirado e toda branca. (HILST, 2003, p. 91)

A presença de elementos da estética do abjeto se evidencia na fala de Osmo, quando ele narra sua relação sexual com Mirtza. Os odores do suorde Mirtza, a pele branca e gorda sendo lambidapor Osmoe comparada ao gosto azedo da coalhada, o cheiro da terra, fluídos corporais, são elementos do abjeto que, postos ao lado de uma narração de uma relação sexual, podem causar estranhamento ao leitor desafeito:

E quando a festa acabou, já muito tarde, a Mirtza quispassear no bosque debétulas. O bosque de bétulas. Esperem um pouco, era muito tarde. Mas quero dizer é que já estava amanhecendo. O cheiro ingênuo daquele chão verde misturado à terra e o cheiro branco e acre da nuca de Mirtza. Beijei os braços gordos e minha boca deslizava sobre a pele de Mirtza, os meu olhos olhavam os poros delicados, olhavam sem ver, olhavam a totalidade daquela pele, e passei a língua, e era como se eu passasse a língua sobre a superfície cremosa da coalhada, e ela ria, a garganta corde-rosa, os dentes minúsculos, as axilas suadas. Deitei-a. Deitei-a, e fiquei de pé olhando-a. Eu não sabia o que olhava, nem por que olhava, sim evidente, olhava uma mulher deitada na terra, uma mulher que se chamava Mirtza, que tinha a pele muito branca, as mãozinhas gordas que muitas vezes seguravam meu pênis com um gesto ovalado, como se meu pênis fosse um novelo de lã. (HILST, 2003, p. 94)

No trecho, identifico elementos picturais. A imagem do corpo de Mirtza deitada na terra e a descrição das partes do corpo se dão de forma pictural, ou seja, de forma plástica, com elementos da pintura ou de um filme, como cores e cheiros. Na intermidialidade é o que se denomina iconotexto. Como explica Márcia Arbex: "é a presença de uma imagem visual convocada pelo texto e não somente a utilização de

uma imagem visível para ilustração ou como ponto de partida criativo." (ARBEX, 2013, p.73) E esse iconotexto, segundo Arbex, é evidenciado pelos marcadores de picturalidade, que é o que contribui para a impregnação pictural no texto. Como o amanhacer, o chão verde misturado ao ocre da terra, a pele branca, os braços gordos, a garganta cor-de-rosa, e a cena da mulher deitada na terra vista de cima, da visão de Osmo de pé.

Osmo está de pé, Mirtza deitada na terra, em uma floresta de bétulas, o dia amanhecendo. Osmo então, começa a pensar no ex marido de Mirtza: "E agora penso: que fim será que levou o ex marido de Mirtza, um enfermeiro inglês paralítico que morava na Austrália?" (HILST, 2003, p. 95) A imagem do ex marido em uma cadeira de rodas excitando Osmo, é mais uma das estratégias da escritora em tratar da temática do diferente de forma abjeta afim de causar repulsa. Pois sabe-se que a sexualidade do deficiente é tratada como um tabu na sociedade hipócrita e excludente: "Por que me vem uma vontade enorme de meter quando penso nessas coordenadas de Mirtza?" (HILST, 2003, p. 95) E num delírio, Osmo imagina imagens grotescas da fusão do corpo de Mirtza e do seu ex marido paralítico:

Ele deve estar numa cadeira de rodas. Ele deve ter as pernas brancas. E daí? Daí, Mirtza e o marido se fundem, umas pernas brancas, uma imobilidade masculinofeminina à espera. Mirtzadiz: bem, eu vou me levantar. Comprimo o meu pé direito contra o seu tornozelo, ela deita-se novamente e sorri: vem, Osmo. Espere. (HILST, 2003, p. 95)

Nas relações de Osmo com as mulheres ele se sente superior a elas. E as descrições das mulheres acontecem sempre de forma pejorativa. Kaysa, a segunda personagem do conto "Osmo", também é representada como uma mulher vulgar, que se preocupava com tapetes, pratarias e danceterias. A sua sensualidade irritava Osmo: "A Kaysa deve estar a essa hora no portão, ela é demais impaciente, e deve estar toda de preto, com aqueles decotes que me chateiam um pouco."(HILST, 2003, p. 84) E prossegue: "Pronto ela está lá. Eu não disse? O decote é imenso, mas está

bem, está bem." (HILST, 2003, p. 86) e: "sou um homem muito lúcido, mas a presença e a fala de Kaysa me incomodam." (HILST, 2003, p. 87)

A presença da temática do ânus e da homossexualidade também é marcante no conto. Osmo discorre sobre o ânus, a princípio de forma recatada e formal. Em seguida se torna abjeto e vulgar.

Bem, não é por pudores estilísticos que não falo o... Sim, talvez seja por um certo pudor, porque agora nas reticências eu deveria ter escrito cu e não escrevi, quem sabe deveria ter escrito ânus, mas ânus dá sempre a ideia de que a gente tem alguma coisa nele, não sei explicar muito bem, mas é sempre o médico que pergunta: o senhor tem fístulas no ânus? (HILST, 2003, p. 82)

Em seguida:

Eu tenho o ânus muito estreito e cada vez que é preciso ir ao banheiro, é pudor sim, mas logo mais perderei, vocês vão ver, cada vez que é preciso, como eu ia dizendo, eu não consigo. Não consigo ir ao banheiro, e isso é uma chatice e dá fístulas no ânus. Então fui ao médico e ele me enfiou o dedo lá dentro, o dedo dele, lógico, não sei qual dedo, acho que não importa, mas na hora de sair, quero dizer, na hora que ele deveria tirar o dedo, ele não conseguiu porque eu sou assim, muito tenso, e apertei e não conseguia relaxar. Foi muito desagradável e o médico achou que era preciso fazer uma ligeira intervenção cirúrgica, não naquela hora, eu já tinha conseguido relaxar, mas posteriormente. Achei besteira e não fiz coisa alguma porque pensei: antes um ânus apertado do que ficar se cagando por aí. Viram como consegui? (HILST, 2003, p. 82)

A temática anal é presente no pensamento batailleano, onde o filósofo francês relaciona tal órgão a nossa animalidade. Foi quando o ser humano adquiriu sua verticalidade e assim transformou-se de quadrúpede para bípede, o olfato foi desprezado e a visão privilegiada, o anal reprimido e o genital, enfatizado. Na arte contemporânea,a temática anal aparece, como na obra de Hilst, na forma traumática de choque no leitor. Objetivando assim, uma reversão simbólica da repressão do anal e do olfativo. Essa forma de apresentação do corpo abjeto tem como objetivo também uma "reversão simbólica da visualidade fálica do corpo ereto como modelo fundamental da pintura e da escultura tradicionais -a figura humana como sujeito e estrutura de representação na arte ocidental."(FOSTER, 2014, p.152)

Os movimentos LGBT pela igualdade de direitos de gênero ainda encontram muito preconceito, e muito pouco seconseguiu mudar culturalmente quanto àaceitação da diversidade sexual. A provocação realizada através da exposição do corpo erótico anal de forma abjeta,na arte e na literatura, a partir do século XX, funciona como um estímulo traumático para atingir o expectador/leitor para as questões normativas das sexualidades. Hilda Hilst aborda o tema da homossexualidade, tanto no conto "Osmo" como em todas as outras passagens do livro, de forma irônica e grotesca, prática recorrente da arte contemporânea. Como explica Hal Foster:

Na arte contemporânea, a provocação erótico-anal costuma ser autoconsciente e até paródica de si mesma: não só põe à prova a autoridade repressora do anal da cultura tradicional museológica, mas também ridiculariza o narcisismo erótico anal do artista rebelde de vanguarda. (FOSTER, 2014, p. 153)

Osmo,ao descrever o seu empregado, se vale depalavras e chavões homofóbicos. Trata de uma diferença de classes onde o empregado mora na casa do patrão em um compartimento isolado da casa. Em seguida o personagem-narrador levanta a questão do ânus, de forma chula, apenas como um órgão excretor. Tal posição, é muitas vezes usadas por argumentos homofóbicos: "cu é para sair e não para entrar." Mas, Osmo admite já ter tentado praticar sexo anal, como mulher, ele frisa, para ver como era. Insinuando assim, sua possível homossexualidade:

O José é meu empregado. Ótimo aliás. A única coisa é que o José é pederasta, já sei vocês estão dizendo: iii... que falta de imaginação, um empregado pederasta. Pois é, mas eu sou muito honesto quando resolvo contar no duro uma coisa, e a verdade é essa mesmo: o José é um pederasta. Discreto. Eu sei que ele recebe meninos no quarto mas finjo que não sei, afinal não tenho nadacom isso, não sou eu que vou ser enrabado. Nunca mais vou falar do José. Aliás posso ter todos os defeitos mas esse negócio de cu nunca me entusiasmou. Todo mundo que fala de cu vira santo. Uma vez tentei esse negócio. Numa mulher, assim só pra ver, afinal falavam tanto. Mas não acertei. De jeito nenhum. Não sei se era porque a mulher rebolava muito. Mas o fato é que não acertei. Acho que foi melhor. Não me explico bem, foi melhor não ter acertado. Afinal isso de cu é para sair e não para entrar. (HILST, 2003, p. 85)

Hilst amplifica sua abjeção na fala de Osmo, quando trata da homossexualidade infantil. Como o fez também ao relatar as aventuras sexuais de uma menininha de oito anos em O caderno rosa de Lori Lamby.

Esse mesmo médico que queria me fazer uma intervenção me contou uma estória horrível. Não sei bem a propósito de quê. Ah , naturalmente. Ele me contou que um menininho foi consultá-lo. Escondido dos pais. Consulta aqui, consulta lá, e daí ele viu que o ânus do menininho estava em estado lastimável. Era urgente operá-lo e tudo o mais. Deu uma grande confusão mas depois de seis meses o menininho estava novo, quero dizer, com ânus deplatina, tudo direitinho, e ele,o médico disse para o menininho: meu filho, nunca mais tenha relações anais. Nem mais uma vezinha doutor? Os menininhos dessa geração tem a mania de cu. Ninguém explica. (HILST, 2003, p. 85)

Osmo, de forma abjetae preconceituosa, tenta teorizar sobre a homossexualidade. No trecho a seguir, pode-se notar a relação da fala de Osmo com a explicação de Foster quanto a questão da ironia ao abordar de forma ridícula o erotismo anal.

Dizem que é a busca do pai, mas vão procurar o pai tão lá no fundo? Não sei, dizem que é a falta de amor e mil estórias mas ninguém ainda me explicou direito por que esse negócio de dar o cu é tão moderno. Dizem também que todo sujeito sensível e delicado é pederasta porque a sociedade atual é toda de agressão etc., e o cara acaba dando o cu por delicadeza e carência de afeto. (HILST, 2003, p. 86)

Imerso em seu ego, Osmo comete as mais cruéis barbaridades contra as mulheres até cometer o feminicídio, "o grande ato" (HILST, 2003, p. 96). O feminicídio é o assassinato de uma mulher pela condição de ser mulher. As suas motivações mais usuais são o ódio, o desprezo. É a última instância de controle da mulher pelo homem, por meio da violência sexual associada ao assassinato. Para Lourdes Bandeira, socióloga, pesquisadora e professora da Universidade de Brasília:

O feminicídio representa a última etapa de um contínuo de violência que leva à morte. Seu caráter violento evidencia a predominância de relações de gênero hierárquicas e desiguais. Precedido por outros eventos, tais como abusos físicos e psicológicos, que tentam submeter as mulheres a uma lógica de dominação masculina e a um padrão cultural de subordinação que foi aprendido ao longo de gerações.17

Em Osmo, há claramente esse jogo de poder, a animalidade do mais forte dominandoo mais fraco. Homem e mulher, mãe e filho, marido e esposa, são jeitos

17 Disponível em: < http://www.agenciapatriciagalvao.org.br/dossie/violencias/feminicidio/> Acesso em: 29/06/2017.

de ser característicos do ser humano, papéis controlados na sociedade pelo dominador, o mais forte,e pelo dominado, o mais fraco. Dois lados, dois opostos.

Osmo narra como cometeu o "grande ato", que é como ele chama o assassinato. Pode-se notar a frieza de um psicopata ao relatar como assassinou Mirtza e Kaysa, cada uma em momentos diferentes, após ambas o convidarem para dançar.

Aí me deitei sobre ela, encostei as minhas coxas naquelas coxas de Mirtza e do meu enfermeiro, e meti meu pênis, meu pênis reto como o tronco da bétula, e não meti simplesmente, meti com furor, com nojo também, e assim que terminei, cometi o grande ato. E depois do grande ato peguei o corpo de Mirtza, levantei-o acima dos meus ombros e o sol bateu nas coxas de Mirtza, suave, um sol suave, um sol perfeito para depois do grande ato. Agora nãovou dizer tudo o que fiz. Ou digo? Gosto mais de dizer o que penso porque o que a gente faz são atos comuns, colocar o corpo de Mirtza apoiado num tronco de bétula, arrumar a calça, a minha calça, arrumar a minha camisa azul-clarinha (ou clarinho, ainda não sei), andar vagarosamente, olhar para todos os lados e não ver ninguém, agora uns passos mais apressados, um pequeno canto me comoveu, um canto de pássaro me comoveu, isto é, me fez respirar à larga, estiquei a boca, um pouco assim quando a gente faz quando quer mostrar os dentes quando alguém pergunta se são brancos ou amarelos, os meus são amarelos, eu já lhes disse, não sei porque estiquei a boca assim, e depois sorri, e depois assoviei. (HILST, 2003,p. 96)

Para narrar a morte de Mirtza, Hilda Hilst utiliza do incompatível, dos opostos, do contraste entre o canto dos pássaros e o corpo de Mirtza estrangulado, encostado em uma árvore. Segundo Victor Hugo, "a poesia verdadeira, a poesia completa está na harmonia dos contrários" (HUGO, 2007,p. 11).Como o sol batendo nas coxas de Mirtza, um sol suave e perfeito, um canto de pássaro, um assovio em oposição ao pênis reto como um tronco de bétula, a "metida" com furor e nojo e o assassinato.

Osmo abandona o corpo de Mirtza encostado em um tronco na floresta de bétulas. Não sente nada, só prazer, nenhum remorso. A fim de causar mais impacto no leitor, mais uma vez Hilst se vale da ironia do personagem, quando Osmo fala do cheiro do corpo de Mirtza que não era muito chegada atomar banho:

Eu poderiater jogado o corpo de Mirtza no lago, mas não, o corpo de Mirtza não era amigo de muita água, aquele corpo tinha seu próprio cheiro, um cheiro singular e não era lícito despojá-lo daquele cheiro-perfume-singular, cada corpo tem o seu lugar, cada corpo pertence a um lugar, o meu ainda não sei. (HILST, 2003, p. 97)

Para cometer o "grande ato" com Kaysa, Osmo narra imagens que vêm à sua mente como numa edição de um filme. Osmo descreve imagens que se confundem entre as coisas de Kaysa e as coisas de sua mãe:

Kaysa mulher, mulher que tem tapetes persas, e agora dou duas cusparadas e pergunto: você dançava e fornicava com o Hanzi nos teus tapetes persas, hein, Kaysa? Ha, ha, ha, Osmo, como você é engraçado. Sim, eu sou muito engraçado, eu sou bizarro. Pare. Vem, vem fornicar na terra. O meu peito parece um fole, ela está encantada, ela também parece um fole, um fole encantado, resfolegando debaixo do meu corpo, Kaysa, tapetes persas vasos chineses aquarelas russas leninismomarxismo (oh, que estimulante!)Hanzi guardião de riquezas, oh, como as mulheres têm coordenadas absurdas, como tudo é absurdo, e como tudo que é absurdo me dá vontade de meter [...] E agora os meus polegares de aço junto ao seu pescoço, o pescoço delicioso de Kaysa, ah, que ternura rouca explode dessa garganta, que ternura, que ternura. A lua sobre a garganta de Kaysa, o corpo eu vou deixar aqui sob os ramos, que lua, que lua. (HILST, 2003, p. 104)

A imagem do corpo em "Osmo" é a imagem da violência, do assassinato. Tem-se no conto, a imagem do corpo fragmentado quando a autora concentra-se em partes do corpo para descrever um todo. A garganta, as axilas, as coxas, os polegares de aço etc. Aparece também a imagem do cadáver, como uma boneca inanimada. Segundo Bataille, o interdito do assassinato é um aspecto particular do interdito global da violência. Para o filósofo, o interdito, ou seja, o tabu, se opõe ao desejo de tocar os mortos.

Em presença do cadáver, o horror é imediato, inevitável e é, por assim dizer, impossível resistir a ele. [...] a violência é sempre causa da morte: ela pôde atuar por efeito mágico, mas há sempre um responsável, há sempre assassinato. (BATAILLE, 2013, p. 71)

Osmo rompeu com este interdito pois a morte e o assassinato não causam a ele nenhuma repulsa ou horror. Osmo é um doente, um psicopata. Mirtza abandonada encostada no tronco da bétula, Kaysa abandonada sob os ramos. O sepultamento do cadáver, segundo Bataille, desde os tempos mais remotos da civilização, é prática para com aqueles que, quando vivos, eram nossos companheiros e, vítima da violência, morto, devemos preservá-lo de outras violências. "A inumação significou sem dúvida, desde os primeiros tempos, por parte daqueles que sepultaram, o

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