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2.5. Lázaro : o corpo reencarnado

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desejo que tinham de preservar os mortos da voracidade dos animais." (BATAILLE, 2013, p. 70) Não Osmo. Ele despreza, descarta os corpos e não sente nada, ou melhor, sente prazer. Após abandonar o corpo de Kaysa,Osmo parte:

Ligo a chave do meu carro depressa, abro todos os vidros e com esse vento batendo na minha cara eu estou pensando: talvez eu deva contar a história da morte da minha mãezinha, aquele fogo na casa, aquele fogo na cara e tudo o mais, não, ainda não vou falar sobre o fogo, foi bonito sim, depois eu falo mais detalhadamente, essa história sim é que daria um best-seller, todas as estórias de mãe dão best-sellers, e querem saber? Amanhã, se ninguém me chamar para dançar, eu vou começar a escrevê-la. (HILST, 2003, p. 105)

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Segundo Kristeva, todo crime, por assinalar a fragilidade da lei, é abjeto, mas o crime premeditado, o assassinato acobertado, a vingança hipócrita, é mais ainda porque redobra e aumentaessa exibição da fragilidade legal."Osmo", como "Fluxo" é um conto que trata da morte, da morte abjeta. Porém, não de uma morte natural ou de uma morte vinda pelotempoou pela doença, eque gera a decreptude corporal. A morte em "Osmo" é o assassinato. É a morte premeditada e covarde sem direito a defesa,por motivo fútil ou por puro prazer.

2.5. "LÁZARO": O CORPO REENCARNADO

Em "Lázaro", Hilda Hilst subverte a indagação acerca da morte e do sagrado a partir da apropriação de símbolos da tradição cristã, e através do rebaixamento do divino ao expor uma visão cética e desolada dos homens diante do mundo e da vida. Os três temas centrais hilstianos também se fazem presentes: o Amor, de Lázaro por Jesus; Deus, onipresente mas ausente, deixando Lázaro na dúvida de sua existência; e a morte, do próprio Lázaro que é ressuscitado, e assim gerando dúvida sobre ter sido mesmo umadádiva ter voltado do mundo dos mortos e viver na angústia de ser obrigado a existirem um mundo violento e abandonado por Deus.

Hilst faz uma paródia da fábula bíblica disposta no Evangelho de São João, reapresentando, à sua maneira, a miraculosa ressurreição de Lázaro e o pranto das

irmãs Marta e Maria na cidade de Betânia. "Estava, porém, enfermo um certoLázaro, de Betânia, aldeia de Maria e de sua irmã Marta." (JOÃO, 10, cap.11, p. 208)

Lázaro se encontra deitado em sua cama: "De repente vejo Marta. Ela põe as duas mãossobre a boca.Ainda vejo a cabeça de Maria na beira da cama. A cabeça cheia de cabelos escuros na beira da cama. Foi a última coisa que eu vi: a cabeça de Maria." (HILST, 2003, p. 112)

A visão da cabeça de Maria apresenta a construção de um corpo fragmentado. Como a visão que Lázaro tem do próprio corpo, configura-se fragmentada como uma imagem cubista, ou seja, o objeto pode ser visto por ângulos diferentes: "Vejo de cima, dos lados, de frente, vejo de um jeito que nunca vi. Jeito de ver de um morto." (HILST, 2003, p. 113)

Hilst reelabora a escritura sagrada, dando voz e corpo ao Lázaro morto, quando encerrado na gruta.O medo de não ver mais o sol, não mais sentir a água e o vento no rosto, não pisar na terra apavora o narrador-personagem. A narrativa se apresenta sob um ponto de vista bastante peculiar: o do próprio ressuscitado. Logo nas primeiras linhas nota-se que Lázaro está morto e que sua narrativa é construída a partir de um estado de pós-morte, uma visão de fora do corpo. "O meu corpo enfaixado" (HILST, 2003, p. 111) são as primeiras palavras do personagem, que prossegue relatando como sua irmã, Marta, cuidou doseu corpo:

Primeiro ela tirou minha roupa. E tirar a roupa de um morto é colocar outra. Depois lavou-me. Depois escolheu as essências. São todas muito dispendiosas, mas eu fui encharcado de essências. Não, ela não tirou as vísceras, não pensem nisso, nãoé isso que eu quero dizer. Ela embebeu as faixas nas essências. É isso que eu quero dizer. E depois ela enfaixou-me, os gestos amplos, pausados, indubitáveis, indubitáveis sim, o gesto de quem está fiando. Fiando uma roca sem tempo. Observei-a desde o início... esperem um pouco, como é que se pode explicar esse tipo de coisa... estou pensando... acho que é melhor dizer assim: observei-a, logo depois de passar por essa coisa que chamam de morte (HILST, 2003, p. 111-112).

A primeira imagem do corpo que aparece no conto é a imagem do cadáver. Segundo Umberto Eco (2014), na literatura e na arte o tema do triunfo da morte aparecem no século XII com os Vers de la mort, de Hélinand de Froidmont, "onde estão as belas mulheres, as esplêndidas cidades de outrora? Tudo desapareceu". (ECO, 2014, p. 62)

Acompanho o meu corpo, atravesso as ruas humildes da minha aldeia, as mulheres falam em segredo à minha passagem: é Lázaro, amigo de Jesus. E morreu. É Lázaro, que adoeceu de repente, ninguém sabe porquê. Eu sei porquê. Eu sei agora que depois de ter visto o Homem, o meu sangue e minha carne não resistiram. (HILST, 2003, p. 115)

No trecho, Lázaro narra a procissão de seu funeral. O cortejo fúnebre, em algumas culturas,é tidocomo a maior homenagem realizadapara um ente querido. A população da sua aldeia comenta enquanto seu corpo segue carregado rumo à sepultura:

Chegamos. Tenho medo. Um pequeno vestíbulo. Depois, a rocha. Dentro da rocha, um lugar para o meu corpo. Olho pela última vez a claridade da minha aldeia. (HILST, 2003, p. 115)

E prossegue: "O meu corpo foi depositado no seu lugar."(HILST, 2003, p. 116)

Os meus amigos recuam. Olham-me em silêncio. Inútil tentar qualquer gesto. Não me veem. Grito três vezes: Marta! Marta! Marta! não me ouve. Rolam a pedra. Fecham a entrada. Tudo está terminado. É verdade. Tudo está terminado. (HILST, 2003, p. 116)

Aqui temos a imagem do corpo sepultado. O lugar do corpo morto. A morte escrita na literatura. Com base nesse modelo nasce uma literatura na qual está presente o Triunfo da Morte, que vence toda a vaidade humana, o tempo e a fama (ECO, 2014,p. 62). Eco afirma que o poder da igreja sempre se valeu da imagem da morte como forma de controle Tanto a pregação quanto as imagens exibidas em locais sacros eram destinadas a lembrar a iminência e a inevitabilidade da morte,além de cultivar o terror das penas infernais criadas pelo cristianismo. O trecho a seguir, de Sebastião Paoli (1684-1751) sob o título Sermões quaresmais, relata toda a abjeção que é possível caber em uma descrição de um estado de decomposição de um cadáver:

Assim que este corpo, bem composto, todavia, e bem organizado, estiver fechado no sepulcro, mudado de cor ficará pardacento e morto, mas de um certo palor e de uma certa lividez que dão náusea e dão medo. Mas escurece depois da cabeça aos pés[...] Então, no rosto, no peito e no ventre, começa estranhamente a inchar; sobre esse

inchaço estomacal nasce um mofo fétido e untoso, sórdido argumento da corrupção próxima [...](ECO, 2014, p. 65).

Estes Sermões quaresmais prosseguem detalhadamente descrevendo lábios pútridos, vísceras laceradas, vermes e toda sorte de imundice e de podridão. Segundo Hall Foster, há uma certa bipolaridade entre o êxtase e o abjeto quando observada como uma crítica social. (FOSTER, 2014, p. 156). Porém, a abjeção aparece como um instrumento de poder e de controle. Eco sugere que na antiguidade a vida era muito mais breve, morria-se muito mais rápido, a humanidade vivia em guerras constantes, a morte era um ente presente na mesa, sentada ao lado. Na pós-modernidade a morte já não é tão aparente, apesar de certeira. Segundo Humberto Eco:

em nossos dias, quando, vendendo modelos de juventude e formosura, fazemos todos os esforços para esquecê-la, ocultá-la, relegá-la aos cemitérios, nomeá-la apenas através de perífrases ou exorcizá-la reduzindo-a a um simples elemento de espetáculo, graças ao qual é possível esquecer a própria morte para divertir-se com a dos outros. (ECO, 2014,p. 62).

Hoje, vivemos numa sociedade onde tudo se quer rápido, límpido, perfeito e efêmero. Um simulacro de perfeição criado pelo sistema captalista. Em contrapartida, artistas aderem ao abjeto como forma de contestar o simulacro estabelecido pelo poder. Hoje, vê-se um fascínio pela abjeção como forma de insatisfação com o modelo perfeccionista e vazio vigente, e assim, usa-se a estética do abjeto para se mobilizar contra um mundo fantasioso oferecido pelo consumismo. A arte contemporânea é problematizada, segundo Foster,

pelo desespero ante a persistência da crise da Aids, doença e morte invasivas, pobreza e crime sistêmicos, o bem-estar social destruído, inclusive o contrato social rompido (pois de cima os ricos não participam da revolução e de baixo os pobres são largadosna miséria). A articulação dessas diferentes forças é difícil; em conjunto, no entanto, elas estimulam a preocupação contemporânea com o trauma e a abjeção.

Uma das consequências é que para muitos na cultura contemporânea a verdade reside no sujeito traumático ou abjeto, no corpo enfermo ou deteriorado. Esse corpo, com certeza, constitui a base probatória de importantes testemunhos da verdade, de testemunhos necessários contra o poder. [...] Se existe um sujeito na história para o culto de abjeção, este não é o trabalhador nem a mulher nem a pessoa de cor, mas o cadáver. (FOSTER, 2014,p. 157)

O cadáver como símbolo de um sujeito aniquilado pelo poder. O cadáver da mulher, do trabalhador, do negro, do índio, do mulçumano, de todas as minorias esmagadas. E Foster indaga: seria a abjeção uma recusa do poder, seu estratagema, ou sua reinvenção?Segundo Julia Kristeva:

O cadáver – visto sem Deus e fora da ciência – é o cúmulo da abjeção. É a morte infestando a vida. Abjeto. Ele é um rejeitado do qual não dá para se separar, do qual não dá para se proteger como se faria com um objeto. Estranheza imaginária e ameaçareal, ele nos chama e acaba por nos devorar.(KRISTEVA, 1982, p. 11)

Georges Bataille(2013)explica essa ameaça real do cadáver, como o grau máximo da abjeção:

Ela constitui até um perigo mágico, capaz de agir por "contágio" a partir do cadáver. Muitas vezes a ideia de "contágio" se liga à decomposição do cadáver, em que se vê uma força temível, agressiva. A desordem que é, biologicamente, a podridão por vir, que, assim como o cadáver fresco, é imagem do destino, carrega em si uma ameaça. Não cremos mais na magia contagiosa, mas quem de nós poderia dizer que não empalideceriaà visão de um cadáver repleto de vermes? (BATAILLE, 2013, p. 70)

Depois que o corpo de Lázaro foi depositado na sepultura, ele continua a pensar e sentir. Parece que a morte só se consuma para os vivos. Para os mortos, pelo que parece no conto, os corpos continuam movendo-se. Dentro de sua sepultura, Lázaro se encolhe de medo. Então, ele conhece Rouah. Numa aparição, aquele que se diz irmão gêmeo de Jesus, vindo dos infernos.

Tu está preparado, Lázaro? É teu esse corpo? Há alguns anos lutas com ele, não é? Apressa-te. Chegou a hora. De repente vejo Rouah: tosco, os olhos acesos, o andar vacilante, as pernas curtas, parecia cego, apesar dos olhos acesos, as mãos compridas, afiladas, glabras, eram absurdas aquelas mãos naquele corpo, todo ele era absurdo, inexistente, nauseante. [...] Rouah senta-se. Abre as pernas. Seu sexo é peludo e volumoso. Coça-se estrebucha, sem que eu saiba por quê. Abre a boca amarela e diz com a voz tranquila: Lázaro, acostuma-te comigo[...] Rouah coloca os pés escuros sobre a cabeça. Vejo nitidamente que os pés de Rouah são pés minúsculos, talvez por isso ele tem o andar vacilante. Ele abre a boca, aboca vazia e amarela, fica de pé num salto, olha ao redor, depois deita-se e começa a lamber-se. Uma língua achatada e lenta. (HILST, 2003, p. 117)

Temos aqui, uma descrição pictural do personagem Rouah. Pode-se observar uma descrição minuciosa do corpo grotesco do personagem. A escritora se vale de elementos do cinema e da pintura como cores e movimentos. Ao descrever o cheiro do ambiente, Hilst utiliza o procedimento do contraponto, que é um procedimento do grotesco.Lázaro,em sua memória, lembra do cheiro de sua casa perfumada e do carinho das irmãs para com ele: " ocheiro da casa. O cheiro de Marta. Sento-me. Ela trás água. Lava-me os pés. Desfaz o trançado dos cabelos. Enxuga-me. Depois, a toalha de linho embebida em perfume: nas minhas costas, no meu peito, no meu rosto, na minha nuca."(HILST, 2003, p. 118)

Mas dentro da sepultura o cheiro é outro:

Agora sinto o cheiro da minha própria carne, um cheiro gordo entupindo minha boca, um cheiro viscoso, preto e marrom. Rouah também o sente, porque parou de lamber-se, levantou a cabeça, os buracos de seu focinho se distendem, se comprimem [...] levantou novamente a cabeça num gesto vaidoso de lobo, pôs-se em pé aproximou-se do meu corpo enfaixado. (HILST, 2003, p. 118)

No trecho, Hilda Hilst confronta o cheiro da casa, o cheiro de Marta e o cheiro da toalha de linho embebida em perfume, com o cheiro da carne putrefata de um morto. Nota-se que a escritora utilizou elementos sinestésicos para ressaltar o abjeto do cheiro da carne morta: Hilda mistura olfato com visão, ou seja, um cheiro com cor. Um cheiro marrom, cheiro gordo, cheiro viscoso. A sinestesia é um recurso de relação subjetiva que se estabelece espontaneamente entre uma percepção e outra que pertença ao domínio de um sentido diferente (p. ex., um perfume que evoca uma cor, um som que evoca uma imagem etc.). No caso, a união de sentidos serve para potencializar o efeito abjeto da cena. Outros elementos do grotesco também são elencados na cena como, por exemplo, a fusão do corpo de Rouah com partes do corpo de animais, focinho de porco, gesto de lobo. Ao ressuscitar, sair da sepultura e voltar à vida em sua aldeia, Lázaro é indagado pelos moradores que o perguntam se ele viu mesmo o corpo de Rouah. Uma pessoa lhe pergunta se ele viu uma claridade ao redor de Rouah e Lázaro responde:

Não. Ele é todo repulsivo e obsceno? Sim. Todo? Não: as mãos tem muita coisa dos humanos: compridas, afiladas, glabras. São iguais às tuas mãos? Não: a minha mão é escura, sombreada de pelos. É verdade que as tuas mãos completariam o corpo de Rouah? (HILST, 2003, p. 120)

No diálogo, Lázaro percebe a ligação do corpo grotesco de Rouah com o seu próprio corpo. Um fragmento do corpo de Lázaro completaria o corpo de Rouah. Isso pode significar que o mal está em nós, seres humanos, e é este nosso mal que completaria o corpo do demônio. Ou seja, o mal só está completo, com a mão dos humanos. Pode-se perceber a presença do corpo fragmentado quando a escritora ressalta uma parte do corpo, no caso as mãos de Lázaro, como parte de um todo, o corpo de Rouah. Vemosaqui uma reunião de fragmentos corporais a fim de ressaltar a imagem do corpo grotesco.Como apresentei nos procedimentos de Rodin.Tem-se aqui, a figura do monstro feito de partes.

Em "Lázaro" características abjetas estão presente em sua narrativa. O grotesco também se faz presente através de descrições angustiantes e sinistras. Como o próprio corpo morto de Lázaro, quase putrefato, assume incomum via de acesso ao entendimento da morte e também abre para a representação do cadáver abjeto. Como explica Eliane Robert Moraes:

As formas de decomposição aqui descritas remetem inexoravelmente à degradação dos corpos mortos: nessas imagens o homem se vê confrontado com sua condição de matéria, perecível e reciclável, cuja evidência maior se manifesta no aspecto definitivo do cadáver. Descoberta insustentável que também desperta o ser humano para a irrevogável condição de objeto que ele é, que pode vir a ser, e que seguramente será. (MORAES, 2002,p.126)

Nos trechos a seguir, temos a população da aldeia onde Lázaro vive, depois de morto, e também vivia antes de morrer, com desejo irreprimível de saber e conhecer mais sobre a morte:

Então tenho diante de mim um ressuscitado, porque estavas morto, não é? Ou não estavas? Sim, estavas morto, eu te vi, eras amarelo, tinha os lábios roxos, oh, por favor, me diz, me diz como é láembaixo. (HILST, 2003, p. 121)

E em outro momento:

Se estamos dizendo que Lázaro estava morto é porque estava. Até fedia. Fedia? Isso é mentira, estava enfaixado, e se o nardo éfedor para você, não temos nada com isso. [...] ele fedia, sim, [...] Sua irmã Maria estava junto à cama. Ajoelhada. Quieta. A outra chorava muito alto, levantando os braços. Ele estava tão amarelo que metia medo, ao redor da boca um círculo arroxeado, o morto mais morto que já vi. (HILST, 2003, p. 122-123)

Nos trechos acima, podemos perceber um alto grau de picturalidade nas descrições construídas por Hilda. O uso das cores, o amarelo, o roxo, para representar o cadáver de Lázaro em seu corpo enfaixado. Temos uma imagem que podemos afirmar ser esteticamente expressionista,eas cores complementares, roxo e amarelo, impactam a cena. As personagens femininas, Maria e Marta, uma ajoelhada à beira da cama onde se encontra o irmão morto, e a outra chorando muito alto com os braços levantados. Podemos também, nesta composição dos corpos das duas mulheres, perceber um acentuado grau de picturalidade, onde as posições corporais pretendem exprimir sentimentosextremos.

Na cena do contoacima, onde vemos as irmãs de Lázaro, observandoas ideias de Le Brun (2008), temos uma irmã ajoelhada junto da cama, venerando o corpo do irmão morto. Segundo Le Brun: "Na veneração, o corpo se curva ainda mais do que na estima, braços e mãos estão praticamente colados, os joelhos tocam o chão e todas as outras partes do corpo assinalam um respeito profundo."( LE BRUM, 2008, p. 86)

A outra irmã apresenta-se de forma diferente, num arrebatamento escandalosamente ruidoso. A imagem do corpo humano, quando for representar a paixão do arrebatamento, segundo Le Brun, "pode mostrar o corpo inclinado para trás, os braços erguidos e as mãos espalmadas." (LE BRUM, 2008, p. 86)

A imagem do corpo em "Lázaro"é a imagem do morto, do corpo enquanto cadáver. "sinto o cheiro da minha própria carne, um cheiro gordo entupindo minha boca, um cheiro viscoso, preto e marrom" (HILST, 2003, p. 34). O Lázaro de Hilst, mesmo depois de ressuscitado, carrega consigo a consciência dolorosa da morte que não

pode ser evitada e nem superada. Mesmo com sua (re)encarnação, Lázaro traz entranhado em sua pele oodor damorte,que perfume algum é capaz de lavar.

A imagem da ressurreição de Lázaro é um tema recorrente na expressão artística ao longo da história humana. A iconografia da parábola bíblica "A ressurreição de Lázaro" vemdesde as mais antigas pinturas-muitas foram estabelecidas na pintura bizantina e também representadas por Giotto e Duccio, pelo menos. Algumas imagens datam de cerca de 550 d.C.e tal representação comporta sempre a imagem do Cristo com o braço estendido para a esquerda, em direção à Lázaro; Lázaro de pé, diante de uma gruta, enrolado em faixas; e um personagem secundário que tapa o nariz por causa do mau cheiro. Temos diante dos nossos olhos, apesar da temática da re-vida, a presença da morte, do corpo macilento, corroído pela decomposição.

Fig. 1118 -Giotto, A ressurreição de Lázaro, 1304 Fig. 1219-Juan de Flandes, A ressureição de Lázaro, 1519. Óleo sobre tábua de madeira de pinus, 110 x 84 cm

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Fig. 11: Disponível em: < www.lacomunicazione.it > 19 Fig. 12: Disponível em: < https://www.museodelprado.es/coleccion/obra-de-arte/resurreccion-de-lazaro/ccb0e223-16b1-47ed-9c041cb8c44c43bc?searchid=05a59f6b-492b-9f52-6ba9-0400614a511d >

Na história da pintura,a representação de certos temas relacionados ao feio e ao grotesco é uma recorrência. Nas imagens da parábola de Lázaro pode-se notar que, até o início do modernismo, as representações do grotesco eram muito tímidas. As pinturas e as poesias da antiguidade, até o fim do classicismo,tinham compromisso com o belo. Por mais grotesco, cruel e abjeto que fossem as imagens a serem representadas, estas deveriam seguir os preceitos do belo e da contemplação. Como afirmou Victor Hugo (2007, p.30): "o grotesco antigo é tímido, procura sempre esconder-se. Sente-se que não está no seu terreno, porque não está na sua natureza. Dissimula-se o mais que pode."Como nas pinturas Renascentistas da representação da história de Lázaro, não sentimos horror, nem nojo e nem desconforto ao vermos Lázaro sair ressuscitado de sua sepultura. A morte na antiguidade é antes horrenda por seus atributos do que por seus traços. Em Chevalier e Gheerbrant, a morte enquanto símbolo:

é o aspecto perecível e destrutível da existência. Ela indica aquilo que desaparece na evolução irreversível das coisas: ela está ligada ao simbolismo da terra. Mas é também a introdutora dos mundos desconhecidos dos Infernos ou dos Paraísos; o que revela a sua ambivalência, como a da terra, e a aproxima, de certa forma, dos ritos de passagem. (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2016, p. 621)

Como na passagem a seguir, onde pode-se perceber a ligação da simbologia ambivalente da terra com o sangue e os joelhos:

eu me ponho de joelhos, não lavro mais a terra, só ando no caminho para poder sangrar os meus joelhos, para que todos repitam até o dia de Vossa glória: Lázaro tinha os joelhos de sangue, o seu sangue era vermelho e grosso e empapava a terra. (HILST, 2003, p. 122)

Lázaro, ao retornar à vida, passa a ter uma existência de tormento.O tormento de viver duas vezes na angústia da morte certa. Nesta passagem, também podemos perceber o alto grau dos índices de picturalidade: os joelhos, o sangue vermelho e a terra empapada de sangue. Segundo Chevalier e Gheerbrant: "O sangue é universalmente considerado o veículo da vida. Sangue é vida, se diz biblicamente. Às vezes, é até visto como o princípio de geração. Segundo uma tradição caldéia, é o

sangue divino que, misturado à terra, deu a vida aos seres." (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2016, p. 621)

Os joelhos de sanguerepresentam as chagas de Jesus, o corpo sacrificado. Ao dizer que "não lavro mais a terra", Lázaro fecunda a terra com o seu próprio sangue. Lázaro dá sua vida, seu sangue à terra. Temos aqui, mais uma vez, a imagem simbólica da terra devoradora. Se o sangue é vida, em certos povos é considerado o veículo da alma, o que explicaria, segundo Chevalier e Gheerbrant, "os ritos dos sacrifícios, durante os quais todo o cuidado era tomado para que o sangue da vítima não se derramasse no chão." (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2016, p. 621) Aqui, Lázaro fecunda a terra com sua alma, seu sacrifício. Para Bataille:

É geralmente próprio ao sacrifício fazer concordar a vida e a morte, dar à morte o jorro da vida, à vida o peso, a vertigem e a abertura da morte. É a vida misturada com a morte, mas nele, no mesmo instante, a morte é signo de vida, abertura ao ilimitado. (BATAILLE, 2013, p.115)

A questão do corpo morto, e do renascimento,é presente em diversas iconografias utilizadas por Hilda Hilst em "Lázaro". A construção da imagem corporal no conto atravessa os três eixos centrais da obra hilstiana: o amor, a morte e Deus. O amor, presente na relação entre Lázaro e suas irmãs, o amor de Lázaro para com Jesus, a morte de Lázaro ea crucificaçãode Jesus,e a imagem de Deus, representada por um ser que abandona seus filhos em um mundo violento.

Em determinada passagem do conto, Lázaro descreve a imagem do corpo de Jesus. Percebe-se que a escritora utiliza-se de uma imagem estereotipada do filho deDeus:

Eu não me canso de observá-Lo: seus cabelos brilhantes são lisos até a altura das orelhas, depois esparramam-se encaracolados pelos ombros, sua barba espessa é cheia de fios amarelos, queimados de sol. Lázaro, por que me olhas tanto? Porque és belo. (HILST, 2003, p. 125)

Mais uma vez, o contraste do sublime e do grotesco é utilizado pela escritora ao colocar lado a lado a imagem bela de Jesus e a imagem grotesca de Judas: "Chama-se Judas, o Iscariote. O amor desse homem é diferente do meu amor: é um amor de mandíbulas cerradas, de olhar oblíquo, de desespero escuro." (HILST, 2003, p. 127)

Pode-se notar que a descrição da beleza de Jesus passa por uma descrição puramente física, enquanto a descrição de Judas passa por uma descrição das paixões, ou seja, uma descrição da alma refletida no corpo. Em uma passagem de Xenofonte (c.430-355 a.C.) em seu texto "Memoráveis" (séc. IV a.C.), o filósofo narra a conversa de Sócrates com o pintor Parrásio:

E então, imitais o caráter da alma, o mais persuasivo, doce, amável, querido e desejável? Ou isso não é imitável? Ó Sócrates, perguntava Parrásio, como seria imitável o que não tem proporção, nem cor, nem nada do que há pouco mencionaste -o que em suma, não é visível? Mas o homem não olha para os outros de forma amistosa ou hostil? Parece-me que sim, disse. E isso não pode se imitar nos olhos? Certamente, respondeu Parecem-te semelhantes as faces dos que se importam as dos que não se importam com as alegrias e tristezas dos amigos? Por Zeus, é claro que não, disse, com as alegrias ficam radiantes, com as tristezas, sombrias. Portanto, não é possível produzir semelhanças dessas coisas? Certamente, disse ele. Além disso, também a magnificência e a liberdade, a humildade e o servilhismo, a prudência e a sensatez, a insolência e a vulgaridade, transparecem nas faces e nas atitudes dos homens, quer estejam parados ou em movimento. É verdade, disse. Então, essas coisas não são também imitáveis? Com certeza, disse. (XENOFONTE, 2008, p.16-17)

No trecho de Xenofonte, pode-se notar como Hilst descreveu o corpo de Judas Iscariote através de paixões que não têm forma nem cor, como o "amor de mandíbulas cerradas"e o amor de "olhar obliquo de desespero escuro". A descrição do corpo belo de Jesus passa por uma imagem mais retiniana e descritiva,de forma naturalista, e a descrição de Judas é mais psicológica, uma descrição das paixões da alma, refletidas nas partes do corpo.Ou seja, como explica Vitor Hugo: "o belo é um, o feio é mil". O feio é, sem dúvida, muito mais passível de interpretações. O feio é relativo e cultural, o belo é normativo. À representação de tais expressões e sentimentos, na literatura como na pintura é necessário uma atenção especial, diferentemente da representação do belo. Leonardo da Vinci (1452-1517), no texto "A fisionomia e as expressões dos afetos: de como um bom pintor tem de pintar

duas coisas: o homem e sua mente.", em seu Tratado da pintura (1490-1517) explica que:

O bom pintor tem de pintar duas coisas principais, isto é, o homem e o estado de sua mente. O primeiro é fácil, o segundo é difícil, porque se deve representar com gestos e movimentos dos membros; e isto pode ser aprendido com os mudos, que o fazem melhor que qualquer outra espécie de homem. [...] (VINCI, 2008, p.43)

O abade Jean-Baptiste Du Bos (1670-1742) em suas Reflexões críticas sobre a poesia e a pintura (1719), também aborda a temática dos gestos, os quais deviam significar algo inteligível, gestos que deviam falar. Segundo Du Bos, os gestos significativos são de duas espécies: uns naturais e outros artificiais. Os gestos naturais são aqueles que fazemos enquanto estamos falando, gesticulando, dando ênfase à nossa oração. Para Du Bos, o gesto natural é muito difícil de ser compreendido sem o acompanhamento da fala. A não ser quando o gesto natural signifique uma afecção como uma dor de cabeça ou uma impaciência, mas segundo Du Bos o gesto natural não basta, nesse caso, para que se conheçam as circunstâncias dessa afecção. As afecções, segundo Spinoza (2009), são o corpo sendo afetado pelo mundo. São dessas afecções que nascem os afetos, que podem ser afetos de alegria ou de tristeza. Hilda Hilst trabalha com as palavras, não de forma descritiva naturalista. A escritora se vale, muitas vezes, dos afectos para compor sua narrativa.

No trecho a seguir:

Estou debaixo desse céu absurdo, arrasto-me, caminho de joelhos, beijo a terra, a terra escura e profunda. Apoio-me na figueira, tateio as artérias grossas desse tronco, essa aspereza, essa vida digna, esse existir calado. (HILST, 2003, p. 129)

Podemos notar novamente a presença da terra, do corpo que se arrasta sobre ela, beija a terra, escura e profunda como relação ao túmulo, às profundezas infernais. Neste trecho também se repete a ação de caminhar de joelhos, sobre a terra. O sangue grosso e vermelho que empapa a terra. O caminhar de joelhos tem uma relação de submissão e de resignação sob o céu absurdo. A imagem dos joelhos aparececom frequência em "Lázaro", segundo Chevalier e Gheerbrant:

Os bambaras chamam ao joelho nó do bastão da cabeça. E veem nele a sede do poder político.Identificam-se, nisso, com numerosas tradições antigas, que fazem do joelho a sede principal da força do corpo... o símbolo da autoridade do homem e do seu poder social. Donde o sentido das expressões: dobrar o joelho = fazer ato de humildade; fazer dobrar os joelhos = impor a vontade à alguém ou matá-lo; ajoelhar-se diante de alguém = fazer ato de vassalagem, adorar; no joelho dos deuses = em seu poder; tocar os joelhos = pedir proteção. (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2016, p. 518)

Os joelhos em "Lázaro", representam a sua servidão e adoração aDeus. Um Deus representado aqui por um céu absurdo.

Outra imagem que aparece em todos os contos de Fluxo-floema é a imagem da figueira.A imagem da figueira,como já disse, é um elemento do biografismo, ou seja, está diretamente ligado à vida pessoal de Hilda Hilst. Em sua Casa do Solexiste uma imponente figueira no quintaleessa figueira aparece, não só em Fluxo-floema, como ao longode sua obra. A árvore majestosa é um dos símbolos do misticismo da casa.

Fig. 1320-Foto do quintal da Casa do Sol, ao centro, a figueira.Frame do filme Hilda Hilst pede contato de Gabriela Greeb, filmado na Casa do Sol. 2018.

20 Fig. 13: Disponível em: http://www.planocritico.com/critica-hilda-hilst-pede-contato/

No trecho do conto (HILST, 2003, p. 129), Lázaro se apoia ao tronco da figueira como se ela tivesse uma força espiritual, e tateia suas artérias fazendo uma alusão ao título do livro, Fluxo-floema: floema são as artérias por onde passam o fluxo de seiva no interior do caule das plantas.

A imagem da figueira aparece também no conto "Fluxo" quando Ruisis se lembra de quando subiam a colina (a imagem da colina também é recorrente em todos os contos) e sentavam debaixo da árvore: “... ah como era bonito lá, o tronco, a distorçura da árvore, eu debaixo da árvore, eu debaixo de toda aquela nervura, ...” (HILST, 2003, p. 46) Também aparece no conto "O Unicornio", quando dois personagens conversam sobre uma menina lésbica: "Quando ela me falava de sexo debaixo da figueira, eu começava a rir inevitavelmente." (HILST, 2003 p. 145) Ou quando a escritora fala da figueira indiretamente como no conto "Floema": “ sou sempre o de baixo, que seiva é para sugar? Quem é que suga aquilo que não vê?” (HILST, 2003, p. 230)

Na passagem de "Lázaro"(HILST, 2003, p. 131)"Deito-me na terra", novamente o motivo da terra como simbologia do rebaixamento. No trecho Lázaro é traído e sofre agressões e exílio por ter sido escolhido por Jesus. Temos aqui, a imagem do corpo vítima do ciúme e da inveja, atacado por ser diferente.

Deito-me na terra. [...] Sou agarrado com extrema violência. [...] E recebo golpes na cabeça, no ventre, no peito. [...] Acordo com o ruído do mar. [...] Estou sozinho num barco. Um barco sem vela, sem leme, sem remos. [...] tenho feridas no corpo, ainda sinto aquelas mãos pesadas golpeando-me. (HILST, 2003, p. 131)

A imagem acima é característica do abjeto segundo Kristeva:

O abjeto está relacionado com a perversão. O sentimento de abjeção que eu experimento está ancorado no super-eu. O abjeto é perverso porque não abandona nem assume um interdito, uma regra, uma lei; mas distorce-os, extravia-os, corrompe-os; serve-se deles, usa-os, para melhor negá-los. Mata em nome da vida: é o déspotaprogressista; vive ao serviçoda morte: é o traficante geneticista; realimenta o sofrimento do outro para seu própriobem: é o cínico(e o psicanalista); estabelece seu poder narcísicofingindo expor seus abismos: é o artista que exerce sua arte como

um “negócio”... A corrupçãoé sua figura mais conhecida, mais evidente. Ela é a figura socializada do abjeto.(KRISTEVA, 1982, p. 25)

A abjeção é a violência contra os corpos diferentes, a violência por intransigência. Lázaro, ao indagar ao frei que o recebeu, o por quê de tanta violência o frei o adverte que é inútil questionar à multidão enfurecida pelo ódio cego. O frei Benvenuto tenta mostrar a Lázaro que é inevitável a angústiade viver até a morte e conviver com "o rosto duro e cruel dos humanos."(HILST, 2003, p. 138)e expõe:

o que quero dizer é que nenhum cristão morria simplesmente. Morriam cuspidos, pisados, arrancavam-lhes os olhos, a língua. Lembro-me de um cristão que carregava o crucifixo e gritava como tu: está vivo! Ele está vivo! Sabes o que fizeram? Pregaram-lhe o crucifixo na carne delicada do peito e urraram: se Ele está vivo por que alimenta o ódio, o grito e a solidão dentro de cada um de nós? [...] O sangue dohomem salpicava-lhes as caras e o coitado só repetia essa palavra: a cruz! A cruz! Aí foram tomados de fúria: ouviram? O porco quer nos legar a cruz! Como se não nos bastasse a vida! E pisotearam-no até a morte. Muitos morreram de uma forma mais cruel do que essa. (HILST, 2003, p. 139)

Ao final do conto “Lázaro” temos um corte brusco na narrativa, marcado por um espaço em branco. Abaixo desse espaço encontram-se apenas três linhas, e Lázaro não é mais o narrador: "Lázaro grita. Um grito avassalador. Um rugido. Arregala os olhos e vê Marta. Ela está de pé, junto à cama. As duas mãos sobre a boca." (HILST, 2003, p.140) Temos aqui um corte, característico de um corte de edição de vídeo, onde temos o que se chama de fade to white, um corte para o fundo branco, um silêncio. A imagem de Marta com as mãos sobre a boca remete ao início do texto, quando Lázaro relatava de que forma se dera sua morte, e sugere que ele talvez tenha apenas adormecido e tido um sonho absurdo, ou até que tenha de fato morrido, vivenciado todas as experiências que sãorelatadas ao longo da narrativa, e então voltado à vida, em sua própria casa. O sentido fica suspenso e o leitor escolhe uma das versões apresentadas.

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