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2.3. Fluxo : o corpo grotesco

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2.3. "FLUXO" - O CORPO GROTESCO

"Fluxo"é a história de um escritor às voltas com os conflitos do mundo exterior e interior. Ruiska vive trancado dentro do seu escritório, preocupadocom o texto que precisa escrever, urgente. Seu editor está a pressioná-lo a escrever algo que todos entendam, e assim poderá ganhar muito dinheiro para tratar da doença do filho Rukah, que sofre de encefalite. Sua esposa, Ruisis tenta ajudá-lo dando algumas ideias. Mas o velho Ruiska não sabe escrever coisas de fácil digestão, Ruiska só sabe escrever "coisas de dentro". Por isso, o escritor prefere ficar trancado dentro do seu escritório. Ruiska fecha o portão de ferro, abre o poço e a clarabóia, comunica-se pelo interfone. "Agora estou livre, livre dentro do meu escritório" (HILST, 2003, p. 23). Essa imagem reflete a imagem do artista no atelier, a necessidade de se entregar à solidão do processo criativo. Remete também a um distanciamento social tão rico à produção, tanto de Hilst quanto de Ruiska. Remete à urgência de uma imersão no trabalho criativo. "Livre dentro do atelier!" O atelier do artista é uma metáfora da cabeça do artista, onde o criador pode viajar por mundos distantes e desconhecidos da memória criativa. O artista, tanto no pensamento, nos devaneios criativos, ou quando está dentro do atelier produzindo, vislumbra ou concebe o novo, o perigo, às vezes até o inatingível. Tanto Hilda Hilst, quanto o personagem Ruiska, querem dizer o indizível, o incognoscível o que não pode ser conhecido, o inominável. Como na passagem onde Ruiska conversa consigo:

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Olhe aqui Ruiska, você não veio ao mundo para escrever cavalhadas, você está se esquecendo do incognoscível. O incognoscível? É, velho Ruiska, não se faça de besta. Levanto-me e encaro-o. Digo: olhe aqui, o incognoscível é incogitável, o incognoscível é incomensurável, o incognoscível é inconsumível, é inconfessável. (HILST, 2003,p. 24)

Em "Fluxo", Ruiska, o escritor, carrega a imagem mitológica de Sísifo, que na procura da palavra indizível e que não pode ser conhecida (incognoscível) é obrigado a empurrar incansavelmentesua pedra montanha acima, dia após dia, por toda a eternidade. No conto "Fluxo", o sacrifício do escritor na busca da palavratem uma forte correspondência com a própria vida de Hilda. O fato de Ruiska trancar o

portão de ferro, abrir o poço e a clarabóia, e se sentir livretrancado, corresponde ao auto-isolamento da escritora na Casa do Sol em 1965. Como a própria escritora afirma:

O importante é que aprendi [com o isolamento na Casa do Sol] a necessidade decisiva que cada um de nós tem de meditar profundamente, sem mentiras, sem coação, sem censuras. É necessária a distância para se conhecer melhor o próximo, o outro. De perto como eu estava, era muito difícil. Não havia nada por inteiro e também não havia a mim por causa das invasões do cotidiano em sociedade...Quero dizer: devemos pensar - e repensar-sobre nós mesmos, para tentarmos tolerar uns aos outros melhor. (HILST, 2013, p. 49)

Ruiska, sua mulher Ruisis e seu filho Rukah. Três personagens. Os personagens são um só e ao mesmo tempo três.

O meu de dentro é turvo, o meu de dentro quer se contar inteiro, quer dizer que Ruisis, Ruiska, Rukah, são três coisas que se juntaram aqui com um propósito definido, elas caminham para algum lugar, elas são alguém, elas não podem estar aqui por nada, nem eu as colocaria aqui por nada, entende, anão? (HILST, 2003, p.37)

Ou também mais adiante Ruiska diz:

Eu sou três. Eu amo Ruisis e amo Ruiska, odeio Ruisis e odeio Ruiska, amodeio Rukah. (HILST, 2003, p.37)

Nos outros contos do livro também há a presença marcante do número 3 como forma de representar um eu lírico composto de vários eus. O conto "Osmo" é constituído dos personagens: Osmo, Mirtza e Kaysa. Em "O Unicórnio", há dois irmãos: o menino pederasta, meio homem e meio mulher, e a menina lésbica, também homem-mulher, e o eu-narrador transformado em unicórnio, homemanimal. Em "Lázaro", os três personagens: o próprio Lázaro, Rouah e Jesus. Koyo, Haydum e Kanah são os personagens de "Floema" . O número três é presente não só no livro Fluxo-floema, mas também em toda a construção poética de Hilst, lembrando que sua obra circula em torno dos três pilares: Amor, Deus e Morte - figuras fundamentais do conhecimento que

interrogam a condição humana. Como também na tríade cristã: pai, filho e espírito santo.

O conto "Fluxo" começa coma entrada rompante do narrador.Direta e incisiva, a intervenção do narrador obriga o leitor a tentar, de alguma forma, situar-se em algum lugar familiar: "CALMA, CALMA, também tudo não é assim escuridão e morte. Calma."(HILST, 2003,p.19)

Não é assim? Uma vez um menininho foi colher crisântemos perto da fonte, numa manhã de sol. Crisântemos? É, esses polpudos amarelos. Perto da fonte havia um rio escuro, dentro do rio havia um bicho medonho. Aí o menininho viu um crisântemo partido, falou ai, o pobrezinho está se quebrando todo, ai caiu dentro da fonte, ai vai andando pro rio, ai ai ai caiu no rio, eu vou rezar, ele vem até a margem, aí eu pego ele. Acontece que o bicho medonho estava espiando e pensou oi, o menininho vai pegar o crisântemo, oi que bom vai cair dentro da fonte, oi ainda não caiu, oi vem andando pela margem do rio, oi que bom vou matar minha fome, oi é agora, eu vou rezar e o menininho vem para a minha boca. Oi veio. Mastigo, mastigo. Mas pensa, se você é o bicho medonho, você só tem que esperar menininhos nas margens do rio e devorá-los, se você é o crisântemo polpudo e amarelo, você só pode esperar para ser colhido, se você é o menininho, você tem sempre que ir a procura do crisântemo e correr o risco. De ser devorado. Oi ai. Não há salvação. (HILST,2003, p. 19)

Pode-se observar nesse trecho a abordagem da angústia de viver. Os personagens do livro sofrem não pelo medo da morte, mas pela angústia de viver na certeza da morte. Por essa razão, parece-nos adequado para pensar a condição do personagem o conceito heideggeriano de ser para a morte.ParaHeidegger(2012)a morte não é uma simples presença que ainda não se tornou realidade, mas uma iminência que constitui existencialmente o ser. A morte irrestrita, insuperável, certa, indeterminada. Para Heidegger a ideia da morte revela o modo mais originário e mais penetrante por encontrar-se na angústia. O ser para a morte, portanto, é um ser em angústia. O angustiar-se é condição para que se configure a consciência para um saber-se mortal.

Na obra de Hilst a estranheza também se dá pela abordagem dos temas relacionados à degradação do corpo humano e ao sentimento de abandono. É o que Wolfgang Kayser diz acerca do grotesco: a angústia de viver e não o medo da morte (KAYSER, 1986, p. 159).

A narrativa, em forma de parábola infantil, causa um certo desconforto ao expor um menininho, indefeso, aum monstro medonho. Nisso o narrador nos apresenta a inevitabilidade da morte do menininho ante o monstro. "Não há salvação". O uso do personagem infantil também reforça a ideia de grotesco, pois tem o objetivo de chocar o leitor. "A infância é o símbolo da inocência, da simplicidade natural e da espontaneidade. O menininho de Hilst representa o estado anterior ao pecado, como na parábola do Reino dos Céus, a infância representa o estado prévio à obtenção do conhecimento". (CHEVALIER, 2016, p. 302). Na parábola do Reino dos Céus, após provarem do fruto proibido da árvore do conhecimento, Adão e Eva são expulsos do Paraíso por Deus e expostos atoda sortede desgraças. Ou seja, antes da queda, Adão e Eva andavam pelo Paraíso despidos de roupas mas vestidos de graça. Após a quedaambos perderam a Graça Divina, passaram a sentir vergonha de seus corpos, tornaram-se desgraçados, sem a graça de Deus.

Assim, o bicho medonho da fábula introdutória do conto “Fluxo”, constitui a imagem da bestialidade, do perigo. Tal imagem representa a imagem da morte do corpo. Personificada por Tânatos, filho da Noite e irmão do Sono, na iconografia antiga, a morte é representada por um túmulo, um personagem armado com uma foice, uma divindade com um ser humano entre as mandíbulas, no caso aqui, o corpo do menininhoque caiu na fonte. "A morte designa o fim absoluto de qualquer coisa de positivo: um ser humano, um animal, uma planta, uma amizade, uma aliança, a paz numa época. Não se fala na morte de uma tempestade, mas na morte de um dia belo". (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2016, p. 621). Entretanto, há uma ambivalência na morte enquanto símbolo, pois sendo representante do aspecto perecível e destrutível da existência do corpo, ao mesmo tempo a morte é também a introdutora aos mundos desconhecidos, a morte é quem abre acesso auma vida com orito de passagem. Se a morte é filha da noite e irmã do sonoela possui, como sua mãe e seu irmão, o poder de regenerar. Mas isso não impede que o mistério da morte seja tradicionalmente sentido como angustiante e figurado com traços assustadores. Tal angústia é o que caracteriza os personagens do livro de Hilda Hilst. Imersos na angústia, não de morrer, mas naangústia de viver na iminência da morte,

abandonado por um Deus cruel e sádico, pelo qual, e apenas através Dele, pode-se conhecer o verdadeiro amor.

Em "Fluxo", Hilda Hilst utiliza da escatologia, que é o tratado acerca dos excrementos,para causar repulsa. A imagem do corpono conto,e também em todo o livro, é construída a partir de imagens grotescas que a escritora associa ao uso do conceito de abjeto, com um linguajar chulo, referências as entranhas corporais, fluidos corporais, excrementos, órgãos sexuais apresentados de forma agressiva e capaz de causar a repulsa ao invés de sedução. O abjeto é composto por todas as coisas que ameaçam a nossa sensação de limpeza. Diz respeito às coisas repugnantes, como o interior do corpo, fluídos corporais ou resíduos,e a imagem de vísceras e excrementos. Caracterizauma fala grotesca quando esta se opõeao ideal platônico de beleza.

Eu queria ser filho de um tubo. No dia dos pais eu comprava uma fita vermelha, dava um laço no tubo e diria: meu tubo, você é bom porque você não me incomoda, você é bom porque é apenas um tubo e eu posso olhar para você bem descansado, eu posso urinar a minha urina cristalina dentro de ti e repetir como um possesso: meu tubo, meu querido tubo, eu posso até te enfiar lá dentro que você não vai dizer nada. (HILST, 2003, p. 20)

No trecho, o personagem fala de um tubo. Tal imagem remete à ideia de Bataille, quando o filósofo sugere:

que os animais podem ser vistos como simples tubos de dois orifícios, o ânus e a boca, disso decorrendo sua capacidade de descarregar os impulsos violentos que provêm do interior do corpo indiferentemente numa ou noutra extremidade, como acontece de fato, onde encontram menor resistência. (MORAES, 202, p. 206)

De fato, a imagem do tuboaparecerá outras vezes como apresentarei mais adiante. Tanto a imagem do tubo, e seus dois orifícios, bem como a presença da urina, remetem ao conceito de abjeto, que associa-se com tudo que é repulsivo e fascinante sobre os corpos, em particular aspectos da experiência corporal que inquietam, como os líquidos corporais excretados.O abjeto se apresenta de forma dual, ou seja,

ele atrai e repele. O abjeto quando objeto de erotismo torna-se duplamente abjeto, potencializa-se. Haja visto muitas práticas sexuais que envolvem a urina e as fezes e o sado-masoquismo. Neste caso o abjeto se transforma numa transgressão sexual.O sexo, que para muitos é um tabu, aqui torna-se o tabu do tabu, um interdito. Que para alguns especialistas ou pessoas não afeitas, o indivíduo que sente prazer com fezes, urina, saliva, dor e outras práticas de parafilias, necessita de tratamento psicológico.

A saliva também é um líquido corporal que tem por natureza um teor abjeto. Tanto quando apresentada sob forma mais passiva, como a baba que escorre pela boca, quantoquandoé usada de forma agressiva,como o cuspe e o escarro. A saliva alheia é um fluído corporal que representa o nojo, mas também representa aafronta. A saliva, em forma de cuspe, ou seja, excretada por força agressiva, abjeta, designa o que agride e incomoda, perturba uma ordem estabelecida.

No texto, o personagem Ruiska é constantemente coagido e subjugado pelo seu editor, "o cornudo". Nesta passagem, o editor pressiona Ruiska para que ele entregue o texto no dia seguinte: "Mostram a cara, assim é que eu gosto, me enfrentam, assim é que eu gosto, cospem algumas vezes na minha boca, assim que eu gosto. Gosto de enfrentar quem se mostra."(HILST, 2003, p. 23)e na sequência: "Ele me cospe no olho." (HILST, 2003, p. 24) O cuspe como forma de subjugação e também de humilhação. Segundo Chevalier e Gheerbrant, o cuspe é uma expressão única do ser humano: o único animal que adquiriu a capacidade de cuspircomo uma forma de expressão grotesca. A saliva é uma secreção corporal muito significativa e dual que pode ser interpretada tanto de forma abjeta como espiritual. A saliva vai do sublime ao grotesco:

Saliva: símbolo de criatividade e da destruição. Jesus cura um cego com sua saliva(João, 9, 6) Jófala de inimigos que cospem no seu rosto (Jó, 17, 6). A saliva apresenta-se como uma secreção dotada de um poder mágico ou sobrenatural de duplo efeito: ela une ou dissolve, cura ou corrompe, aplaca ou ofende. (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2016, p.799)

Entretanto, a saliva pode estar relacionada ao erotismo. O beijo na boca é uma troca de saliva. Algumas práticas de S&M (sadomasoquismo) tem o cuspe como forma de humilhação e excitação. Quando Ruiska diz que "cospem algumas vezes na minha boca, assim que eugosto" isto pode ser associado a uma prática masoquista de excitação pela humilhação. E quando ele diz: "ele me cospe no olho", imediatamente relaciono a passagem ao livro de Bataille A história do olho (2003), onde o escritor faz uma analogia entre o olho e o ânus. Constata-seassimuma carga de erotismo à cena de Hilda Hilst.

Mais adiante, Ruiska narra mais uma dominação do editor sobre seu corpo:

Encosto a cabeça no chão. Não porque tenha vontade, não, ele é que me obriga a encostar a cabeça no chão. Irriga tua cabeça, velho Ruiska, suga a vitalidade da terra, torna-te terra, estende-te no chão agora, abre os braços, abre os dedos, faz com que tudo se movimente dentro de ti, torce as tuas vísceras, expele o teu excremento. (HILST, 2003, p. 24)

Nessa passagem o personagem se mostra caído, jogado na terra. A imagem da terra, do chão de terra,é recorrente, como apresentarei, em todos os cinco contos do livro. A imagem do corpo de terra. A terra é um importante elemento grotesco corporal presente em Fluxo-floema. Aautora usa a imagem da terra,que é o símbolo do baixo, do grotesco e da morte. O oposto do divino céu, a terra. Para Bakhtin (1999), a terra é um elemento característico do corpo grotesco, a terra como imagem da morte, "do último abraço da nossa mãe terra", e o filósofo trata do tema da terra maternal e da morte como um retorno ao seu seio, a imagem da morte como renovação e fertilidade.

A imagem do corpo de terra é apresentado em diversas partes do livro Fluxofloema. A terra, que vai nos tragar certamente um dia, é elemento muito utilizado por Hilda em sua obra. Na verdade a temática da morte aparece com frequência. Ruiska em determinado momento diz: "quero fazer o possível para não morrer, a terra, a terra dentro da gente e sob agente, isso da terra me exaspera."(HILST, 2003, p. 41)O mesmo Ruiska, ao lembrar do pai, louco na fazenda, falando com a terra, por entre os animais, em um tom bem autobiográfico remete à história de Hilda, que

teve o pai acometido pela loucura, e morava em uma fazenda no interior de São Paulo. Aítem-se novamente a temática da terra:

nem imaginas o que ele falava com a terra, ele falava: eu te amo de um jeito que ninguém sabe ao menos o trejeito, eu te amo inteira com tua escuridão, o teu vermelho, o teu diamante, teus amarelos, teu vermelho cristal, teu vermelho fundo, teu, tua. Depois ele arranhava a terra, se lavava de terra, depois me chamava: Ruiska, Ruiska menino! Eu saía e entrava, ele dizia de um jeito santo: come terra, filho Ruiska, esfrega a terra no dente, bobalhão, cheira essa que vai te comer, essa linda vermelha, essa que é mais você do que você, essa que é mais eu do que todos meus cantares, meus esgares, meus. (HILST, 2003, p. 46)

As vísceras também são elementos grotescos da imagem corporal criada por Hilst no conto. Segundo Bakhtin, essas imagens do corpo fazem parte da corrente poderosa do grotesco:

corpo despedaçado, órgãos destacados do corpo [...] intestinos e tripas, bocas escancaradas, absorção, deglutição, beber e comer, necessidades naturais, excrementos urina, morte, parto, infância, velhice etc. Os corpos estão entrecruzados, misturados às coisase ao mundo. (BAKHTIN, 1999, p. 282)

Neste momento do conto, o personagem escritor Ruiska, trancado dentro do seu escritório, está às voltas com o seu editor, que acaba de lhe cuspir no olhoe na boca, e manda que ele escreva coisas fáceis, comerciais e vendáveis, ou seja, manda ele expelir seu excremento. O editor, também chamado por Ruiskade "cornudo", diz a ele que nãoescrevasobre oincognoscível. O incognoscível aquié a erudição, são as "coisas de dentro", o sensível. No trecho do conto Hilda apresenta um corpo reprimido por forças externas, sendo subjugado e jogado à terra. A imagem do corpo abjeto se apresenta sobforma das vísceras e dos excrementos que Ruiska é forçado a expelir. Hilda se vale do abjeto e do grotesco para expor a violência e a dominação do homem sobre o homem e sobre os animais.

Hoje,artistas e escritores empregam material abjetocomo formade resistência. O abjeto é um conceito cultural que se refere ao impulso de rejeitar o que ameaça o eu. Em Fluxo-floema, Hilda Hilst utiliza o abjeto como instrumento de expressão contra as crueldades do ser humano, a desigualdade social, e a violência do Brasil. Hilda

critica grotescamente as "bandalheiras" que caracterizam a sociedade, principalmente a forma como os governantes encaram a política brasileira. "Brasil, país bandalho!"-bradava Hilda em suas entrevistas.

Hilda Hilst já se valia daestética do abjetoem 1970, o ano em que lançou Fluxofloema. Provavelmente, pela grande influência que teve do pensamento de Georges Bataille, Lautréamont e os surrealistas que jáhaviam trabalhadocom o grotesco em suas criações, anteriormente.Pois o grotesco é o pai do abjeto. Segundo Prazeres, o abjeto reintroduz a tradição do grotesco no campo das artes visuais e da literatura incorporando alienação, monstruosidade, através da exploração da identidade e ramificações do monstruoso.(PRAZERES, 2015, p. 11)

Outra imagem no texto de Fluxo que também refere-se ao corpo grotesco é a imagem hibrida de dois animais. Quando o "cornudo" pergunta a Ruiska quem é ele, "Quem é você, Ruiska? Hein?...Está bem, está bem, sou um porco com vontade de ter asas". (HILST, 2003, p. 24)

Para Kayser, não é preciso fazer longas descrições sobre a maneira como o humano e o animalesco surgem fundidos no grotesco. O filósofo alemão ressalta a imagem do corpo grotesco na transição de corpos humanos para formas de animais e plantas onde se entrelaçam objetos, gavinhas, corpos meio homem meio animais. (KAYSER, 1986, p. 20). A imagem de Ruiska como um porco com asas refere-se ao alto e baixo corporal. A imagem do porco, um animal que vive fuçando por entre excrementos e revirando a terra, representa o baixo, o sujo. As asas, em contrapartida,representamo alto, o divino, os anjos. Essa dualidade presente nesse ser onírico é característica marcante do uso do grotesco em "Fluxo".

A imagem do porco será muito utilizada pela escritora ao longo dos cinco contos. O porco é um dos muitos animais que fazem parte do bestiário hilstiano. Seja para nomear Deus, Jesus, o escritor. O porco em "Fluxo" relaciona-se com a imagem de um corpo abjeto, que vive por entre a imundície fuçando e sempre olhando para baixo. A imagem grotesca do porco nos chama a atenção para nossa mais profunda animalidade.

O porco é geralmente o símbolo das tendências obscuras, sob todas as suas formas, da ignorância, da gula, da luxúria e do egoísmo. Pois, escreve São Clemente de Alexandria citando Heráclito, o porco tira o seu prazer da lama e do esterco. É a razão de ordem espiritual da interdição da carne de porco especialmente no Islã [...] Para os quiguirzes, ele é um símbolo, não somente da perversidade e da sujeira, mas também da maldade. (CHEVALIER, GHEERBRANT, 2016, p. 734)

Na imagem contraditória do porco com asas, temos a presença do grotesco e do sublime. O porco representa o que de mais baixo e sujo,e as asas,que representam a elevação, o voo, os anjos. Pode-se reconhecer uma beleza estética juntamente com uma repulsa, há uma atração e uma aversão, e essa ambiguidade aparece como forma de transgressão, pois a sensação de estranho surge quando se subverte aproximando elementos que não são familiares entre si.Como é o caso das asas nos porcos. As asas,segundo Chevalier e Gheerbrant:

São, antes de mais nada, o símbolo do alçar voo, do alijamento de um peso (leveza espiritual, alívio), de desmaterialização, de libertação -seja de alma ou de espírito , de passagem ao corpo sutil. [...] Na Bíblia, são símbolos constantes da espiritualidade, ou da espiritualização, dos seres que as possuem, quer sejam representados por figuras humanas, quer tenham forma animal. Dizem respeito à divindade e a tudo quedela pode se aproximar após uma transfiguração. [...] Fala-se das asas de Deus na Santa Escritura. Elas designam seu poder, sua beatitude e sua incorruptibilidade. [...] Portanto, as asas exprimirão geralmente uma elevação ao sublime, um impulso para transcender a condição humana. (CHEVALIER, GHEERBRANT, 2016, p. 90-91)

Assim, o hibridismo corporal "porco com asas" é uma característica evidente da presença do corpo grotesco em "Fluxo". Aliás, os animais estão muito presentesem todos os contos desse livro. O bestiário é um livro em que, na Idade Média, se reuniam descrições e histórias de animais, reais ou imaginários, geralmente com ilustrações. Hilda se vale de espécies mais próximos do ser humano, como o cachorro, o porco, a vaca, a galinha o rato ou o jumento. Animais domesticados e mais sujeitos à existênciahumana. Hilda era muito próxima dos animais, era famosa por chegar a ter cem cachorros em seu canil na Casa do Sol. Em suas entrevistas a escritora sempre mencionava a presença dos animais em sua obra e em sua vida:

JC: O que seria possível dizer das relações entre "animalidade" e "humanidade"?

HH: Eu acho que são coisas tão diferentes, tão completamente diferentes! Eu adoro bichos: cachorros, gatos, cavalos, vacas. Acho que os animais são puros, não têm consciência. Já o homem não: é safado. (HILST, 2013, p. 202)

Principalmente os cachorros:

CLB: Em português, todos sabemos o que significa "fazer uma cachorrada" com alguém. Na sua opinião - abalizada, pois poucas pessoas se dariam ao trabalho de criar noventa cães, é bastante conhecida a sua afeição por esses animais. Como se explicariaessa carga semântica negativa em relação aos cachorros, que alguém disse tratar-se do melhor amigodo homem? HH: É porque o homem não tem a compreensão do sacana que ele é. Coitados dos cachorros. Está completamente errado, não é? O homem não presta; já o cão é um ser maravilhoso. O cavalo, a vaca, o boi, todos eles. Eu sempre tive um amor desesperado pelos animais. Tenho muita pena dos animais, por eles serem tão mal compreendidos. Eu tenho tudo a ver com o animal. (HILST, 2013, p. 203)

O porco também tem lugar de destaque:

Vocês viram, eu tenho ali um retrato de uma moça beijando um porco; eu adoro porcos. (HILST, 2013, p. 203)

No conto"Fluxo" a escritora recorre à imagem do cão para representar o homem abandonado, frágil, subjugado e agredido pela sociedade. Hilda utiliza essa relação humano/animal como forma de potencializar a crueza humana, no trecho em que Ruiska conta que, ao tentar salvar um cão da carrocinha, os funcionários olhavam atravessado para ele e diziam:

O cachorro é pra matar, seu, esse aí então tá todo sarnento, olha o pus escorrendo, olha a casca feridosa da ferida. (HILST, 2003, p. 41)

Também elementos do abjeto como a violência, doenças, casca de ferida, pus, são elencados a fim de causar um efeito traumático no leitor, originário do confronto com o que repulsa.

O abjecto é composto por todas as coisas que ameaçam a nossa sensação de limpeza. Diz respeito às coisas repugnantes, como o interior do corpo, fluídos corporais ou resíduos.(PRAZERES, 2015, p. 15)

Outra imagem grotescapresente em "Fluxo", relacionada ao bestiário hilstiano,é a presença de sexo com animais. No conto, o leitor é apresentado à relação sexual entre um anão e uma serpente. Tanto a figura do anão como a da serpente são figuras do universo grotesco. Um anão com uma serpente introduzida no ânus e delirando de prazer é,no mínimo,uma cena abjeta. Proponho uma leitura da cena:

E... enrabou-me. Hein? Pois foi. Fiquei preso no covil e o rabo de prata entrava na minha víscera, estufava, olha, cheguei a dar dez gritos de prazer, pela alegria de ter o teu rabo na minha caverninha, mas agora devo seguiro amigo lá de cima, deixa-me partir, gozei esplendorosamente, obrigadinha. E a serpente nada. Não saía? Pelo contrário, mais entrava. Fiquei assim alguns dias, comi minhocas, cascudinhos que não sei bem o nome, e de vez em quando eu olhava para trás pra ver até onde eu estava metido, quero dizer, até onde ela se metia em mim, e quando eu olhava ela silvava redonda de alegria, até que inventei de meter o meu próprio rabo, esse ocre que vês, naquela gargantinha, foi o que me valeu, Ruiska, enquanto ela tossia eu tossia também e num espasmo medonho desligamo-nos, espera Ruiska, ainda não acabei. Fui saindo de costas, obrigadinha, e depois corri, mas a maldita atrás, não queria por nada me largar, chamava-me de irmãozinho, dizia coisas, Ruiska, nem posso repetir o que a maldita dizia, houve um momento que ela se inteiriçou, pensei é agora, vem como lança e me estoura, mas não, abriu-se prodigiosa, em leque, te lembras daquele mexedor de champanhe que a mulher do editor trazia na bolsinha? Não era lima, anão? Que nada, uma pequena vara, um botão na ponta e a peludinha apertava e do outro lado saía uma vassourinha. Pois a serpente também, mas que vassoura homem, aí é que eu entendi porque gritei dez vezes, entendeste por certo, quando o rabo entrava ela abria a vassoura na minha víscera e chacoalhava. E depois? Senhora minha, eu disse, pela minha barba, deixa-me seguir caminho, não posso perder meu velho amigo, e ela se aproximava, fazia caras, homem, que caras, apertava os olhinhos, de repente não sei quem foi que me ajudou. O quê? Caiu fulminada. Não. Verdade Ruiska, a um palmo de mim, silvou, retesou-se inteirinha, desabou esfarinhada. Que sorte, anão. Pois foi. (HILST, 2003, p. 60-61)

O sexo entre humanos e animaisapareceem várias obras de Hilda Hilst. No livro Contos d'escárnio, textos grotescos (1990) há uma cena de sexo entre um homem e uma macaca (p. 42), no Caderno rosa de Lori Lamby (1990) uma jovem que tem relações sexuais de várias maneiras, com um jumento, para citar duas cenas da obra de Hilda. A escritora usa tal recurso como forma de expor um interdito, que é a zoofilia ou bestialidade, de maneira bem suave e beirando a normalidade. Tal conteúdo funciona como um trauma para o leitor desavisado, causando-lhe um

intenso incômodo. O sexo com animais é considerado em nossa sociedade como um tipo de aberração e desvio psíquico.

Em seu livro A Vida Sexual (1901-1933) o neurologista português Egas Moniz (1874-1955) constrói noções de sexualidade normal e patológica, num discurso construído a partir da interseção entre diferentes campos do conhecimento, tais como a psiquiatria e a psicanálise. Segundo Moniz, a bestialidade é a perversão sexual que consiste "na preferência que os indivíduos dos dois sexos dão aos animais para a saciação dos desejos genésicos."(MONIZ, 2009, p. 563) E prossegue:

A bestialidade tem quase sempre uma origem psico-patológica, auxiliada por uma notável hiperestesia sexual. Indivíduos há que fazem descer o seu carácter moral até o último grau pelos excessos da libertinagem e que se dão à prática destevício como uma necessidade imperiosa da sua satisfaçãogenésica. Encontra-se nos dois sexos e por vezes é o único processo que pode sexualmente satisfazer os doentes que se entregam a tão repugnantes práticas. (MONIZ, 2009, p. 564)

Chamada à sua época de puta, bruxa, louca, Hilda Hilst, em narrativas de questionamento da realidade e dos limites do eu, na exibição de parcelas do humano vedadas à circulação, lança-nos alguns vislumbres sobre o papel ético dos escritores frente aos muros e véus que nos restringem. Segundo Prazeres (2015), essas parcelas vedadas ou veladas à circulação é o que denomina-se o obsceno, do latim ob skene, ou seja, fora da cena. No teatro grego, era o que deveria ser encenado atrás do palco, longe das vistas dos espectadores. Eles ouviam mas não viam. Sabiam que existia mas não era mostrado. A obscenidade é uma categoria cultural e reside no olhar do observador. Hilda emprega a obscenidade como maneira transgressiva. Como explica Bruna Prazeres:

A obscenidade tem sido empregada em práticas de representação como um potente instrumento de transgressão e resistência contra normas sociais e hierarquias dominantes, regimes de disciplina opressiva e controle. De um modo geral, o obsceno significa algo que ofende ou provoca porque desafia as normas aceitáveis da decência, do civilizado. (PRAZERES, 2015, p. 32)

E prossegue: "A obscenidade é aplicada aos horrores da vida quotidiana como a pobreza, guerra, homicídio… pode-se dizer que a obscenidade conota o excesso, violência e transgressão." (Idem) Segundo Leo Gilson Ribeiro:

Hilda Hilst também indagava a si mesma se a História não tinha sentido em seu fúnebre desfile de guerras, massacres, inquisições, discriminação dos judeus, dos negros, dos índios, dos homossexuais, em guerra aberta contra tudo que fosse "diferente".Como explicar que Jesus Cristo e Gandhi pregaram a mansuetude, a paz, o amor ao próximo e foram assassinados? Porque uma figura como São Francisco de Assis não instaurara uma fé na humanidade capaz de levá-la ao amor e sempre apenas rumo ao egoísmo e a barbárie? E previa um final apocalíptico para a espécie humana porque o homem perdera sua alma. (RIBEIRO, 1999, p. 87-88)

No conto "Fluxo", o estranhamento causado pelo texto toma grandes proporções quando Ruisis, a mulher de Ruiska, o avisa que seu filho Rukah havia morrido. (HILST, 2003, p.28): "Morreu? Tão depressa?"

As palavras insensíveis soam agressivas ao leitor acostumado com a comoção da morte por parte de familiares tão próximos, e tais palavras causam repulsa no leitor.

Os laços de carne me chateiam. São laços rubros, sumarentos, são laços feitos de gordura, de náusea, de rubéola, de mijo, são laços que não se desatam, laços gordos de carne. O galo está cantando, o carneiro está balindo, a vaca está mugindo, Ruisis está chorando e meu filho está deitado mudo no seu pequeno caixão, no centro do pátio de pedras perfeitas. (HILST, 2003, p. 28)

Neste trecho pode-se observar a aproximação de opostos como forma de caracterizar o grotesco. Tem-se lado-a-lado palavras abjetas como excrescências, mijo, nomes de doenças infecciosas, e animais domésticos postos a emitirem cada um o seu som característico como numa imagem de presépio de Natal às avessas, um presépio de velório. A imagem de uma criança no caixão evento que desloca a expectativa do existir, também caracteriza-se por uma imagem grotesca. A imagem do cadáver, por si, já caracteriza uma imagem abjeta. A imagem do cadáver de uma criança ultrapassa esse grau de abjeção.A cena se passa no pátio interno da casa de Ruiska. Que claramente remete à Casa do Sol, onde vivia Hilda Hilst. "Rukah está

deitado no seu minúsculo caixão doirado. Castiçais de bronze, de prata e de lata. No centro do pátio de pedras perfeitas. Que harmonia."(HILST, 2003, p. 28)

Fig. 1014 -Casa do Sol, Campinas, SP.

Na figura 10, pode-se observar o pátio da Casa do Sol, com seu calçamento de pedras e o poço no centro, onde Hilda Hilst viveu de 1965 até a sua morte. No conto "Fluxo" , o personagem Ruiska, que também é escritor, refere-se ao "pátio de pedras perfeitas" e ao poço diversas vezes além da passagem do velório de Rukah, seu filho. Como neste trecho em que o editor cobra-lhe o texto:

Amanhã eu pego o primeiro capítulo, tá? Engulo o pirulito. Ele me olha e diz: você engoliu o pirulito. Eu digo: não faz mal, capitão, o uc é uma saída pra tudo. Está bem. Ele sai peidando no meu belíssimo pátio de pedras perfeitas e grita: amanhã hei? Sorrio. (HILST, 2003, p. 21.

14 Fig. 10: Disponível em: http://www.suplementopernambuco.com.br/component/content/article.html?id=1387:prodigio-da-colombia

Ou na passagem, quando Ruiska expulsa sua mulher Ruisis do seu escritório:

Pois é, dou três gritos e ponho minha mulher para fora do escritório. Ela está chorando agora, está chorando sentada no meu belíssimo pátio de pedras perfeitas. fecho a porta de aço do meu escritório. (HILST, 2003, p. 22)

A imagem do poço, de importante presença no conto, tem significante representatividade no universo grotesco, segundo Bakhtin,

é preciso sublinhar que o "poço", o "ventre de vaca", e a "adega" são correspondentes da "grande boca aberta". Na topografia grotesca, a boca corresponde às entranhas, ao "útero"; ao lado da imagem erótica do "buraco", a entrada dos Infernos é representada com a boca bem aberta de Satã ("a goela do inferno"). O poço é a imagem folclórica corrente das entranhas da mãe. [...] Assim, já nessa passagem, a terra e seus orifícios tem também um sentido grotesco e corporal (BAKHTIN, 1999, p. 288).

Ou tambémem: "Aí esfrego as pálpebras, a minha mulher entra no escritório, digo tome cuidado com o poço, ela toma..." (HILST, 2003, p. 21)

É duro, é duro ser constantemente invadido, nem com a porta de aço não adianta, eles se fazem, se materializam. Ora, ora, Ruiska, você abre uma clarabóia, abre um poço, e não quer que ninguém apareça? Vamos, você vai gostar de mim, eu sou um anão. Alguma coisa a ver com estrelas anãs branquinhas e negras? Não Ruiska, nada disso, apenas uma coincidência, não fique fazendo ilações, relações, libações. Hi, o anão é um letrado, meu Deus. Posso olhar para você? Claro, ele disse. HO HO HO GLU GLU GLU, eu não pude me conter, ele parece uma pera, não, um abacate, a cabeça eu quero dizer. De onde você vem, hein? Do intestino, da cloaca do universo, do cone sombrio da lua. E veio fazero quê? Agora ele ri: gli, gli, gli. (HILST, 2003,p. 35)

Nessa passagem, a imagem do corpo é representada pela figura do anão, que também representa a consciência de Ruiska. Hoje, ativistas e instituições lutam pelos direitos democráticos dos corpos na sociedade, e defendem a igualdade de direitos aos obesos, aos deficientes físicos, aos cadeirantes, aos cegos, àqueles com Síndrome de Down e também aos portadores de nanismo, vulgarmente conhecidos como anões. A atriz e estilista Carina Casuscelli, 34 anos, não é anã, mas trabalha

pela democracia dos corpos na moda com o teatro de inclusão15. Ela afirma que anõesque trabalham com entretenimentosó fazem pastelão, trabalhos de comédia. É raro vermos anões em uma novela, em filmes, capas de revista, como comunicadores ou falando sobre assuntos sérios, diz ela.

Em 2017, a atriz Juliana Caldas, que é portadora de nanismo, interpretou uma personagem em uma novela da emissora Globo, onde viveu a personagem Estela. Em um fato inédito na TV brasileira, a personagem anã não era um personagem humorístico. Na trama, Estela é rejeitada pela mãe por ser anã, entretanto é uma menina forte, romântica, inteligente e que ama a família16 .

A associação da imagem do anão ao grotesco e ao burlesco, remonta ao século XV. Segundo Kayser, na literatura e na pintura, a figura do anão é associada ao cômico ou, mais precisamente, ao cru, baixo, burlesco, ou então ao mau gosto (KAYSER, 1986, p.14). A imagem do anão, relacionada ao corpo grotesco, aparece de forma inquietante e desconcertante nos quadros de Velásquez e Goya, assim como nos de Bosch e Brueghel, colecionados já no século XVI. Kayser atribui aos espanhóis e ingleses essa criação da imagem burlesca do anão. Em uma visita ao Museu do Prado pode-se vivenciar essa imagem associada ao grotesco logo nas primeiras salas dedicadas a Velásquez:

com seus quadros de aleijados, monstros e anões da corte, que não obstante, tratavam o rei de "senhor primo". Ou entramos na sala onde está uma das obrasprimas de Velásquez, intitulada Las Meninas: um grupo de graciosas senhorinhas do paço, com a infanta no meio, -um quadrode donaire e encanto juvenis, e pintado de tal forma que se acredita ouvir o roçagar da seda dos vestidos. A este encanto e graça acresce a dignidade e solenidade da majestade; pois num espelho, motivo tão caro a Velásquez, reflete-se o par real, que não está sentado dentro, mas fora do ambiente que a tela apresenta. Na mesma sala, porém, chocante e enorme, em primeiro plano, à direita, e em contraste agudo com a graça, surge o assustador: duas senhorinhas da corte, aleijadas e disformes, e o contraste torna-se tanto mais agudo, quanto não se trata do feio e inatural vistos como algo inteiramente distinto, mas como parte desta corte (KAYSER, 1986,p.14).

15 Disponível em: https://delas.ig.com.br/comportamento/2013-05-06/anoes-enfrentam-preconceitos-na-busca-por-empregotradicional.html> Acesso: 09/11/2018. 16 Disponível em: https://gshow.globo.com/novelas/o-outro-lado-do-paraiso/noticia/juliana-caldas-estreia-em-o-outro-lado-doparaiso.ghtml> Acesso: 09/01/2018.

Segundo Kayser, o anão é considerado um elemento grotesco por excelência por representar um homem com característicasfísicasdiferentes das característicasdos padrõesde beleza e normalidade estabelecidos.

Segundo Chevalier e Geerbrant (CHEVALIER, GEERBRANT, 2016, p. 49), para os germanos os anões eram considerados gênios da terra e do solo, oriundos dos vermes que roíam o cadáver do gigante Ymir. Os anões estão ligados às grutas e às cavernas (coincidentemente ou não, a palavra "grotesco" vem de grotta que quer dizer gruta) onde escondem suas oficinas de ferreiros. Vindos do mundo subterrâneo ao qual permanecem ligados, simbolizam as forças obscuras que existem em nós e em geral têm aparências monstruosas. Por sua liberdade de linguagem e de gestos, junto aos reis, damas e grandes desse mundo, personificam as manifestações incontroladas do inconsciente.

Por tudo isso, fixou-seno inconsciente coletivo a imagem grotesca e burlescados corpos das pessoas portadoras de nanismo.

No conto de Hilst, é exatamente assim que se comporta o anão: como a consciênciagrotescade Ruiska. O anão de "Fluxo "é Rukah, o filho morto de Ruiska, que retorna do poço como verdadeira encarnação do grotesco.

Hilda Hilst se vale dessa imagem grotesca estereotipada do anão e a usa de forma abjeta afim de chocar o leitor. A escritora usa os próprios preconceitoscomo forma de choqueno leitor e assim causar-lhe certa sensação de desconforto e repulsa. Em outros momentos isto também acontece no livro, quando no conto "O Unicórnio", o personagem relaciona o homossexualismo à maldade e outros exemplos que apresentarei mais adiante. Perniola afirma que o abjeto leva o ser humano a sentir náuseas nos confrontos consigo mesmo. Aquilo que faz parte dele torna-se uma coisa execrável e inconcebível. (PERNIOLA, 2010, p. 20)

Segundo Kayser, o grotesco adquire outras proporções quando colocado ao lado do sublime. No texto da passagem de "Fluxo", a figura do anão é colocada ao lado de palavras eruditas e singelas e bem formuladas como estrelas branquinhas, ilações, relações e libações, mas de repente aparecem palavras como intestino, cloaca e sombrio. O escritor francês Victor Hugo (1802-1885), em seu Prefácio de Cromwell

(1827), destaca o emprego do grotesco junto ao sublime nas artes, como meio de contrastee potência de sensações:

O sublime sobre o sublime dificilmente produz um contraste, e tem-se necessidade de descansar de tudo, até do belo. Parece, ao contrário, que o grotesco é um tempo de parada, um tempo de comparação, um ponto de partida, de onde nos elevamos para o belo com uma percepção mais fresca e mais excitada (HUGO, 2007, p. 33)

Em "Fluxo" os personagens apresentam-se de forma angustiada diante da vida massacrante, em um mundo hostil abandonado por Deus, e entregues à própria sorte e ao sofrimento humano. Como o mundo revela sua segurança instável, o homem se vêexposto, sozinho e ameaçadopelo outro. Ruiska é a representação do homem na busca incessante pela essência da vida,em escrever sobre a natureza do ser, em oposição ao mundo externo e opressor. É o dentro e o fora. O de dentro que Ruiska diz precisar escrever sobre, e o de fora interpretado pelo editor "cornudo" que lhe "cospe na boca" e esbofeteia-lhe a face e que espera que ele escreva sobre coisas de fácil digestão para um público limitado intelectualmente, porém bastante rentável comercialmente. Como na passagem:

Meu filho, não seja assim, fale um pouco comigo, eu quero tanto que você fale comigo, você vê, meu filho, eu preciso escrever, eu só sei escrever as coisas de dentro, e essas coisas de dentro são complicadíssimas mas são... são as coisas de dentro. E aí vem o cornudo e diz: como é que é, meu velho, anda logo, não começa a fantasiar, não começa a escrever o de dentro das planícies que isso não interessa nada, você agora vai ficar riquinho e obedecer, não invente problemas. (HILST, 2003, p. 20)

O de dentro, o seu escritório perfeito, com seu poço e sua clarabóia e sua porta de aço, e o de fora, os manifestantes querendo lhe matar, a mulher do "cornudo" toda de amarelinho lixando as unhas no lindo sofá decouro preto de Ruiska.

cruzou as perninhas peludas e agora palpita: todos nós queremos te ajudar. A vaca. Oh, pois não, peludinha, vocês tem me ajudado muito, isso é verdade, médicos etc. A vaca. É para teu bem que te pedimos novelinhas amenas, novelinhas para ler no bonde, no carro, no avião, no módulo, na cápsula. Agora ela tirou uma lima de ouro do bolso e começou a limar as unhas. Eu digo: pare de limar as unhas no meu lindo sofá de couro preto. Oh, Ruiska, porque você é assim? E continua. Eu digo: pare. Ela diz: você é antissocial, é burguesinho besta. Muito bem, abro a braguilha e começo a me masturbar. Ninguém se mexe. Sorriem obliquamente. Guardo a coisa. Levantome. Grito: bando de inúteis, corja porca, até que inventei uma bela sonoridade,

muito bem, corja porca, mas essa gente não entende nada, eu poderia ter dito creme de leite, caju, caguei, anu, são uns analfabetos. (HILST, 2003,p.31)

Nesta passagem, Hilst recorre ao grotesco e ao abjeto para expressar o sentimento de angústia vivido por Ruiska sob a pressão do mercado de trabalho, as falsas aparências que o ser humano está mergulhado, num mundo onde o ter é sem sombra de dúvida muito mais importante do que o ser. Ruiska preocupado em escrever coisas do "de dentro" e sendo pressionado em escrever sobre o de fora. A imagem dos pêlos nas pernas da mulher do editor causa certo erotismo à cena, as pernas cruzadas, limando as unhas. Porém, erotismo e repugnância fundem-se aos sentimentos de Ruiska.

O bestiário é usado como forma de agressividade: vaca, porca, corja porca. Os interditos sexuais também ilustram a transgressão ao sistema quando Ruiska abre a braguilha e masturba-se em público. Porém, o estranhamento é causado quando ninguém se mexe diante da cena e "sorriem obliquamente". A imagem grotesca nessa passagem é claramente utilizada como forma de recusa à exploração do homem sobre o homem, a exploração do capitale a recusa ao controlede dominação intelectual e criativo por parte dos donos dos meios de produção, no caso aqui do editor. O abjeto aqui, a masturbação em público, não é mostrada como forma de obtenção de prazer solitário e sim como forma de agressão, de ejaculação como um cuspe agressivo. A masturbação em público surge como representação do obsceno, aquilo que deveria ficar fora da cena, e segundo Prazeres: "Relaciona-se o obsceno com o abjecto que ameaça o sistema cultural e social, onde há dissolução da fronteira com o outro, do interior e exterior e do limite que separa o que é permitido." (PRAZERES, 2015, p. 14)

No conto “Fluxo”,o grotesco e o belo se misturam. Como neste trecho:

Velho louco Ruiska, diz aquele teu poema. Digo: Reses, ruídos vãos vertigem sobre as pastagens ai que dor, que dor tamanha de ter plumagens, de ser bifronte ai que reveses, que solidões

ai minha garganta de antanho minha garganta de estanho garganta de barbatanas humana ai que triste garganta agônica. (HILST, 2003, p. 40)

No poema, Ruiska fala dos animais (rês: qualquer quadrúpede usado na alimentação humana), da dor de ter plumagens, referentes às suas asas, mas a imagem da garganta é a imagem grotesca como explica Bakhtin:

a boca escancarada tem também um papel importante na construção do corpo grotesco. Ela está, naturalmente, ligada ao "baixo" corporal topográfico: a boca é a porta aberta que conduz ao baixo, aos infernos corporais. A imagem da absorção e da deglutição, imagem ambivalente muito antiga da morte e da destruição, está ligada à grande boca escancarada. (BAKHTIN, 1999, p. 284)

A boca pode apresentar aspectos monstruosos, ainda que se apresente bela quando fechada, se mostra horrível em seu interior. Bataille afirma que a boca sofre de violenta discórdia ao reunir numa só cavidade um aspecto alto e outro baixo.

Na medida em que a linguagem e o cuspe provém da mesma fonte, a boca concentra em si o princípio de inversão que precipita o incessante trabalho das contradições entre o ideal e o abjeto.(MORAES, 2002, p. 199)

Portanto, a imagem da boca escancarada, da garganta agônica, presente em "Fluxo", representa a imagem do corpo grotesco e do corpo abjeto. A imagem do corpo envelhecido, da decrepitude corporal também faz parte do universo abjeto grotesco. Os personagens Ruiska e sua mulher Ruisis se descrevem relatando o envelhecimentode cada um. Ruiska fala da mulher:

ah, Ruisis vai envelhecendo, tem olhinhos estreitos, olhinhos caídos, tristes olhinhos de velha, meio remelentos, pobrezinha, e quando ela chora, sim, porque de vez em quando ela chora quando se lembra das caganeiras terníssimas de Rukah ... Quando ela chora, a lágrima não cai como cai na jovenzinha que chora, não, quando Ruisis chora, a lágrima fica boiando cheia de sal, de espessura dentro do olho, não nas bordas. ... Na borda fica matéria branco-amarelada, no canto do olho também, as

pálpebras ficam vermelhinhas e enrugadas, é, Ruisis envelhece rapidissimamente. Rejuvenesço. (HILST, 2003, p. 43)

E ela descreve o corpo do marido:

O corpo de Ruiska é como um cipó sugando uma árvore que não sei, o corpo de Ruiska é seco, estala, é seco-marrom, ai Ruiska sem aurora, afogado nas paredonas do escritório, subjugado pelos fantasmas do de dentro, pobre Ruiska, que foi meu. ... Está velho sim, eu digo que está moço, está velho, uma fundura de olhos, um vazio de carnes. (HILST, 2003, p. 46)

Pode-se notar que a imagem do corpo descrita por ambos revela corpos desgastados, envelhecidos, cansados.A imagem do corpo de Ruiska se fundindo com a planta cipó é a imagem do grotesco quanto ao hibridismo das formas se metamorfoseando. Hilst, persegue a questão da finitude do corpo e a velhice é um tema recorrente em toda a sua trajetória literária. A velhice como um prelúdio da morte. A escritora, quando se referia às pintas que apareceram em suas mãos, "Quando se está com aquelas manchas nas mãos, que aparecem com os anos e que eu chamo de asflores do sepulcro".(HILST, 2013, p. 119)

No conto, a desesperança, a falta de Deus, o sentimento de abandono levam os homens ao desespero. A sensação insuportável de viver sem a presença de Deus gera a insegurança e realça a agressividade inata no homem. Hilst apresenta, na narrativa de "Fluxo" , que viver é profundamente doloroso e ainda assim o homem tem que aceitar ser crucificado dia após dia, tendo suas vísceras arrancadas como forma de expressar a angústiae as incertezas diante da mortecerta. Como o mito de Prometeu, e como se o mundo, lá fora do portão de aço, fosse para o homem o abutre que come o fígado. A agressividade humana que habita a face da terra faz com que atodas as intempéries de um viver vazio se perpetue no trágico destino de Prometeu.

Ao final do conto, Ruiska e o anão se deparam com uma manifestação, e o anão adverte: "Agora fica quieto, há uma passeata, não vês? São os príncipes do mundo, a juventude, os que vão fazer." (HILST, 2003, p. 65) Os jovens abordam Ruiska de maneira violenta. Querem matá-lo quando souberam que ele éum escritor:

Senhores, eis aqui, um nada, um merda nesse tempo de luta, enquanto nos despimos, enquanto caminhamos pelas ruas carregando no peito um grito enorme, enquanto nos matam a cada dia, um merda escreve sobre o que o angustia, e é por causa desses merdas , desses subjetivos do baralho, desses que lutam pela própria tripa, essa tripa de vidro delicada, que nós estamos aqui mas chega, chega, morte à palavra. (HILST, 2003, p. 66)

Em seguida, aparece a polícia, dispersando. Quando os soldados descobrem que Ruiska é um escritor logo o tratam e o classificam de subversivo, contra a ordem e o progresso. Também o espancame o prendem. "Ai capitão, me larga, me ajuda anão, dos dois lados me matam, UIIIII."(HILST, 2003, p. 67)

É a imagem do corpo sob dominação violenta. Fluxo-floema foi escrito em um momento da história do Brasil em que passávamos por uma violenta ditadura militar, pessoas foram torturadas, mortas e desaparecidas. Hilst usa sua arte como forma de pensamento e busca a transformação do ser humano.

Nos anos de 1966 a 1969a escritora se dedicou a escrever todo o seu Teatro. São oito textos teatrais finalizados nesses quatro anos, que compõem a produção da escritora nas artes dramáticas. Hilda precisava de um contato mais direto com seu público. Numa época obscura da nossa vida política, a escritora buscava despertar esse público com suas palavras. Como explicaRenata Pallottini:

Seu trabalho [no teatro] visto em conjunto, dá-nos o retrato de uma situação injusta, de um mundo feito de homens submetidos à força , de um mundo ameaçado por um poder absoluto e despersonalizante, poder que se defende fazendo emudecer as vozes dos artistas e dos poetas. Seus heróis rebeldes são esmagados pela força, seus jovens inquietos são calados. (PALLOTTINI, 2000, p.181)

O seu grito de revolta dramático, assim como sua poesia, transmutaram-se e contaminaram sua prosa. Fluxo-floema, como já mencionei, é uma obra híbrida , com corpo de texto escrito em prosa, em tom poético, e que se dirige sempre para uma plateia. Porém, esse grito de revolta de Hilda Hilst não tem um caráter panfletário. Tanto a direita quanto a esquerda são culpados: "me ajuda anão, dos dois lados me matam, UIIIII."(HILST, 2003, p. 67)Em uma entrevista, nas palavras da escritora:

e você vê quem é que resolve os problemas do mundo, entende? São os homens comuns, entende? É muito difícil você ver no governo, dentro dos poderes e tudo mais, intelectuaissérios que de repente resolvessem fazer uma série de disposições para modificar realmente a essência da estrutura. Eu não sou nem marxista, nem stalinista, nada, quer dizer, eu não sou... de todas as estruturas totalitárias eu tenho nojo, eu acho as esquerdas, as direitas a mesma esterqueira, você entende? (HILST, 2013, p. 83)

O corpo político que Hilda apresenta é o da transformação do eu. Em uma entrevista Hilda explica essa transformação:

Uma transformação ética que leva ao político: a linguagem e a sintaxe passam a ser intrinsecamente atos políticos de não pactuação com o que nos circunda e que tenta nos enredar com seu embuste, a sua mentira ardilosamente sedutora e bem armada. (HILST, 2013, p. 83)

E prossegue:

O que existe é que eu escrevo movida por uma compulsão ética, a meu ver a única importante para qualquer escritor: a de não pactuar. Para mim, não transigircom o que nos é imposto como mentira circundante é uma atitude visceral, da alma, do coração, da mente do escritor. O escritor é o que diz: "Não", "Não participo do engodo armado para ludibriaras pessoas". (Idem)

Ao final, o anão indaga Ruiska:

Ruiska, o que é que procuras? Deus? E tu pensas que Ele se fará aqui, na tua página? No teu caminhar de louco? No silêncio da tua vaidade? Sim, no teu caminhar de louco, em ti todo fragmentado, abjeto. Ele se fará na vontade de quebrar o equilíbrio, de te estilhaçares, Ele se fará no riso dos outros, nesses que sorriem apiedados quando te descobrem {...} mostra tua anca, teus artelhos, tuas canelas peludas, teu peito encovado, teu riso frouxo, mostra tudo de ti [...] estás sozinho como um porco que vai ser sangrado, estás sozinho como um boi que vai ser comido, sabes como é o boi? Abrem a veia, deixam-no sangrar, enquanto isso todos conversam, amam, tu és um boi, Ruiska, e te imaginas homem, pedes todos os dias que te deem as mãos, suplicas, procuras o Deus, Ele está aí mesmo no teu sangue, na tua natureza de porco, nesse chão escuro por onde escorrem os teus humores, no teu olho revirado, ai, acalma-te, preserva-te, estás em emoção, [...] o teu caminho terá um só destino, a morte, ela sim é grandiloquente, ela é rainha, chega a qualquer hora, oh, não te exaltes, recebe-a, tens mais ossos que carnes? (HILST, 2003, p. 70-71)

"Fluxo" é um conto que trata da morte. Desde sua abertura, onde um monstro horrendo devora um menininho, passando por um funeral infantil, até o final. Todo o conto questiona a finitude dos corpos, a finitude da criatividade, dos relacionamentos e das instituições e termina afirmando que não adianta: não há salvação. Constata-se que vivemos na angústia de uma morte certeira e iminente.E nesse nosso caminhar, somos obrigados muitas vezes a fazer coisas que não queremos, seja pelo dinheiro, seja por imposição ou censura. Mas é necessário, sempre que possível, trancar a porta de aço, abrir o poço e a claraboia para que possamos fazer o que realmente precisamos: as coisas de dentro.

2.4. "OSMO" : DECIFRA MEU CORPO OU EU TE DEVORO

"Osmo" é o título do segundo conto do livro Fluxo-floema. São três personagens: Osmo, Mirtza eKaysa. É oconto mais curto,direto e brutaldo livro (apesar de que a brutalidade está presente em todos os contos). Hilda expõe toda a agressividade e desespero que o homem revela na busca do outro. Osmo, o personagem narrador, tenta, dentro da escuridão onde vive, não enlouquecer, e busca uma luz, uma explicação para si mesmo esua relação com a mãe e com as mulheres. Osmo,narra em um tom autobiográfico, direcionado ao leitor, sua vida "bizarra".

Não se impressionem. Não sou simplesmente asqueroso ou tolo, podem crer. Deve haver alguma coisa de admirável em tudo isso que sou. Bem, vou começar. É assim: eu gostaria realmente de lhes contar a minha estória, gostaria mesmo, é uma estória muito surpreendente, cheia de altos e baixos, uma estória curta, meio difícil de entender, surpreendente, isso é verdade, muito surpreendente, porque não é a cada dia que vocês vão encontrar alguém tão lúcido como eu, ah, não vão, e por isso é que eu acho que seria interessante lhes contar a minha estória. Estou pensandose devo ou não devo. O meu medo é que vocês não sejam dignos de ouvi-la, por favor, não se zanguem, isso de dignidade é mesmo uma besteira, lógico que há gente que se importa com essas coisas de honra e dignidade, eu não, nunca me importei. (HILST, 2003, p. 75-76)

No conto, o personagem Osmo busca um lugar no mundo onde caiba seu corpo. Seu corpo "limpo", dependente de uma higiene pessoal para se sentir homem,

opondo-se a "sujeira" do mundo em referência ao comportamento humano: sua agressividade, seus pecados e a descrença diante da vida. Para Leandra Alves dos Santos (2006, p.65),em "Osmo"Hilda Hilst

mostra a pulsãode morte, a agressividade inata no ser humano como uma maneira de buscar a compreensão dos opostos para o entendimento do homem. Essa agressividade está adormecida no homem devido ao processo de repressão, podendo, a qualquer instante, se manifestar, de várias formas, em qualquer um de nós, e em qualquer situação, como ocorre em Osmo.(SANTOS,2006, p.65)

"Osmo" é a mais agressiva das cinco narrativas de Fluxo-floema, onde o narrador apresenta um mundo escatológico e violento, utilizando-se de palavras chulas e incoerentes, expressando, em um fluxo contínuo, as amarguras de viver. Em um ritmo vertiginoso Osmo vai se apresentando, e o que de início parecia um pouco de pudor e dignidade, vai se tornando abjeção e agressividade. Em sua narrativaOsmo parece provocar o leitor tentando intimidá-lo e chocá-lo com sua forma narrativa grotesca.

Em uma carta escrita por Caio Fernando de Abreu, amigo íntimo de Hilda, o escritor comenta a leitura de livro Fluxo-floema. No trecho, Abreu cita especificamente o conto "Osmo":

Aí, quando a minha preocupação com o excesso de humor estava no auge, começaram a aparecer no texto os "elementos perturbadores": a estória do Cruzeiro do Sul (ninguém vai desconfiar jamais que você viu MESMO aquilo), o "grande ato", a lâmina, os pontos rosados. E imediatamente o texto vai da dimensão puramente humorística para ganhar em angústia, em desespero. A coisa cresce. O tom rosado do início passa para um violáceo cada vez mais denso, até explodir no negror completo,no macabro [...]. (ABREU, 1999, p. 21)

Osmo apresenta-se como um narcisista que, ao descrever o seu corpo, não utiliza nenhum elemento escatológico ou grotesco. Ao contrário, usa o belo para se descrever:

Abro o chuveiro. Está frio ainda. Estou nu, com o sabonete na mão, e espero. Agora está quente. Ótimo. [...] Começo lavando bem as axilas, agora esfrego o peito, o meu peito é liso e macio, na verdade eu sou um homem bem constituído, tenho um metro

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