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2.7. Floema : o corpo na mesa de dissecação

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No conto "O Unicórnio", o estranhamento, o grotesco e a imagem da degradação do corpo , do início ao fim da narrativa, parece uma metáfora à intranquilidade que é pensarnas questões cruciais do homem, no desassossego da fome, das injustiças, no medo da morte, no medo da vida e nas dúvidas que essas questões nos trazem. A ideia do corpo apodrecendo, como a carne que é comida pelos vermes, que é a pior ideia de morte do corpo, constitui mais uma faceta do grotesco desestruturador.

Todos os cinco contos do livro apresentam um forte cunho político, mas "O Unicórnio" é o que retrata mais fielmente a sociedade brasileira, ou qualquer outra sociedade que viva nas condições de um país desigual e violento, pois em momento algum Hilst faz referência a acontecimentos brasileiros. Lembrando que Hilda escreveu este livro no auge da ditadura militar no Brasil. É interessante notar as semelhanças da sociedade retratada por Hilda nolivro em 1970, e a sociedade e as questões vividas hoje, em 2019, no Brasil, no cenáriopolítico, econômico e cultural. Hoje, 48 anos depois, vivemos questões que são abordadas no conto “O Unicórnio” com muita atualidade, como as questões de gênero, homofobia, pedofilia, desigualdade e intolerância política. A escrita dos textos em Fluxo-floema apresenta uma atualidade e contemporaneidade evidentes.

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2.7. "FLOEMA": O CORPO NA MESA DE DISSECAÇÃO

"Floema"é o último conto do livro. Koyo, Haydum e Kanah são os três personagens do texto que, de todos de Fluxo-floema, é o que mais confronta a questão de Deus perante o ser humano. O conto mescla a questão religiosa,sob a ótica do amor e ódio ao medo de que Deus possa existir ou não. "Floema" discute a importância dos homens continuarem a acreditar em Deus e em seu amor, ainda que sintam ódiona vida. Nos cinco contos, a questão de Deus, o amor e a morte aparecem recorrentemente. Porém, em "Floema" a questão de Deus é peculiar: Hilst coloca frente a frente o homem, Koyo, e Deus, Haydum, para uma conversa. Koyo, o representante das inquietações humanas, busca desesperadamente um contato

divino, uma dica qualquer que amenize sua alma. Nesse embate Hilst apresenta um Deus distante dos homens e incapaz de reconhecer as suas criaturas. Através da ironia, esse Deus se surpreende com a pequenez e a inferioridade do homem. Na imagem da dissecação, do corpo fragmentado, Koyo apresenta-se a Deus de forma grotesca e abjeta.

KOYO, EMUDECI. Vestíbulo do nada. Até... onde está a lacuna. Vê, apalpa. A fronte. Chega até o osso. Depois a matéria quente, o vivo. Pega os instrumentos, a faca, e abre. Koyo, não entendes, vestíbulo do nada eu disse, aí não há mais dor, aprende na minha fronte o que desaprendeste. Abre. Primeiro a primeira, incisão mais funda, depois a segunda, pensa: não me importo, estou cortandoo que não conheço (HILST, 2003, p. 221).

A imagem do corpo no conto"Floema" apresenta-se de forma escatológica. Hilst, em uma descrição vertiginosa em fluxo contínuo, mostra um diálogo entre um homem e Deus através de cortes e incisões, com tipos diferentes de facas. A narrativa caminha por entre vísceras, omoplatas e lagartas. "Tens a faca, abre já te disse."(HILST, 2003, p. 224)Questões tiradas a limpo com Deus, como uma imagem de uma endoscopia, uma câmera que desce pela garganta até o âmago do homem. Koyo é posto em uma mesa de dissecação e glândulas pituitárias são expostas: "é vermelho clara, úmida, escorregadia, tudo escorrega para baixo" (HILST, 2003, p.229).

A narrativa desenvolve-se, entre subidas e descidas de diferentes tipos de facas de serra, grande, pequena, formão. Koyo pergunta à Haydum, Deus: "Eu te pergunto, Haydum: tu sangras? Eu sim. Tateio e sangro. Koyo sangra por entre seu córtex, arquicórtex, mesocórtex, neocórtex, mais fundo Haydum”."(HILST, 2003, p. 231)

Tudo é vermelho e escorre em "Floema" . O conto de Hilst caminha pela anatomia. Koyo tateia e sangra. A linguagem grotesca representa a revolta, o ódio de um Deus indiferente à nossa desgraça final. Koyo blasfema num ímpeto final, quando tudo está para terminar: "Escancaro a boca, me deito, as narinas abertas, grito: porco Haydum, chacal do medo, olha-me na cara, não vês que dia a dia estou secando, que a cadela da noite avançaa língua?" (HILST, 2003, p. 231)

Hilda usa a imagem de uma série de animais carniceiros e carnívoros:“os corvos! vejam, os corvos! A garra, a comida e a morte. Koyo tateia: Estavas na pedra quando te procurei? No dente? Na garra? Usei o punhal. Chacal do medo. A hiena, o lobo e o porco.”(HILST, 2014, p. 236)

Koyo se vê preso no meio de uma paliçada -um tapume feito com estacas fincadas na terra , um obstáculo usado para defesa militar." A floresta é amiga quando se entra armado. Porco Haydum: tentei"(HILST, 2003, p. 235)

A imagem de dissecação do corpo é bastante recorrente na História da Arte. Antes de Leonardo da Vinci, artistas e escritores foram queimados na fogueira por profanarem o corpo. Foi a partir do Renascimento que a exploração do corpo, por dentro, foi liberada pela Santa Inquisição.

Fluxo-floema é um livro marcado pela imagem do grotesco. Nos cinco contos que compõem a obra, Hilda Hilst apresenta a imagem do corpo de forma abjeta descrevendo vísceras, ossos, excrementos e humores. A presença do grotesco também se manifesta nos contos pela fusão do corpo humano com animais de um bestiário peculiar hilstiano. O chacal, o lobo, o porco, a cobra, o urubu, a vaca, o verme e o corvo povoam este livro vermelho, sangue e cor de carne. O grotesco também aparece na metamorfose do corpo humano em um animal onírico, um unicórnio.

O corpo em Fluxo-floema morre e ressuscita, porém, carrega impregnado na pele o cheiro abjeto do sepulcro. O corpo apresentado pela autora estrangula, mata, morre e é deixado aos vermes encostado em uma árvore no meio de uma floresta de bétulas. E por fim, o corpo grotesco é desnudado, e dissecado, e suas partes expostas por entre sangue, tripas e glândulas. O erotismo como componente básico do corpo é representado pelo baixo corporal, através de palavras chulas e de baixo calão, onde a abjeção torna a imagem do corpo algo desconcertante.

Hilda Hilst é daquelas escritoras que escrevem a dor, não a dor física, mas a dor da alma que irradia para o corpo. Como Iberê Camargo, que não faz arte com as pontas dos dedos, a arte de Hilst também atinge primeiro o estômago depois o cérebro. Como dizia Iberê Camargo: "Eu pinto porque a vida dói."

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