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2.6. O Unicórnio : o corpo bestial

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2.6. O UNICÓRNIO: O CORPO BESTIAL

Em "O Unicórnio", há os dois irmãos: o menino pederasta, meio homem e meio mulher, e a menina lésbica, também homem-mulher, e o eu-narrador, o único feminino presente no livro todo, transformado em unicórnio, homem-animal. O Unicórnio atuando como bicho, comendo verduras e frutas podres, causando estranheza e nojo, apresentando características grotescas e abjetas. No conto, Hilst procura mostrar com essa metáfora, como é visto o homem: que é homo e ainda assim não deixou ser animal. A escritora apresenta esse homem primata por meio de um rebaixamento do humano quando o retrata atuando como um bicho, um ser irracional. Segundo Santos,

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Em "O Unicórnio", com uma linguagem narrativa trespassada de poesia, a autora critica o homem, suas crenças e injustiças, e lembra que “o homem é o lobo do homem”, pois ele mesmo cria suas regras, seu mundo, de acordo com suas conveniências, utilizando-se dos veículos de informação para nos fazer acreditar naquilo que é melhor para um determinado momento político e econômico, denunciando o trabalho ideológico. (SANTOS, 2006,p. 22)

No início do conto, o eu-narrador relata a outro personagem as características físicas e psicológicas da menina lésbica e do menino pederasta, contrapondo um certo erotismo com baixos corporais de forma grotesca:

Eles eram malignos. Ela amava as mulheres. Mas isso não tem importância e talvez não dê malignidade a ninguém. Dizem que todos os pervertidos sexuais tem mal caráter. Dizem, eu sei. Você acredita? Acredito sim. No aspecto físico ela era uma adolescente sem espinhas, E ele? Espere, quero falar mais dela. Muito bem, espinhas então. Isso não é tudo. Quando ela falava de sexo, debaixo da figueira, eu começava a rir inevitavelmente. Que coisa saberia do sexo aquela adolescente tão limpinha? E depois, veja bem se era possível levar asério: ela usava uma calcinha onde havia um gato pintado. Quê? juro. Você viu a calcinha? A calcinha foi pendurada certa vez num prego do banheiro: você jura que eu estou vendo um gato pintado na tua calcinha? Ela sorriu. Mas o gato teria por certo uma finalidade. Que finalidade pode ter um gato pintado numa calcinha? É, moça, não sei, essas coisas são complicadas. Podem ser ingênuas e engraçadas para você e muito eficientes, assim, no plano erótico, para o outro. (HILST, 2003, p. 146)

Novamente a temática do interdito aparece em cena. A sexualidade da adolescente colocada em contraponto com a ingenuidade. Um gato pintado numa calcinha pode muito bem, como diz a outra personagem que conversa com o eunarrador, ser muito eficiente no plano erótico. A imagem da gata já é um símbolo que caracteriza o órgão sexual feminino de forma erótica - pussycat. O grotesco aparece justamente nesse desconforto que a autora nos impõe ao presenciar essa dubiedade entre a inocência e o erotismo de uma adolescente. Outro incômodo grotesco imposto pela escritora,na voz do personagem eu-narrador,é a questão da homofobia. O fato da menina amar outras mulheres ao lado de perversão sexual e da fala: "Dizem que todos os pervertidos sexuais tem mal caráter. Dizem, eu sei. Você acredita? Acredito sim." Mais uma vez a escritora se vale de um um elemento politicamente incorreto, que é a homofobia, para confrontar e incomodar o leitor desavisado.

A representação do corpo em "O Unicórnio" é sempre feita por meio da degradação.Este homem(mulher)animal é a parte anormal propícia à representação do bizarro que, aliado às palavras chulas e descrições grotescas, faz crítica às mazelas da sociedade, derrubando crenças e valores. É o que explica Leandra Alves dos Santos: "Como forma de acentuar o incongruente no contemporâneo, os personagens sofrem rebaixamentos, desarticulando toda a trama do convencionalismo tomado pelo belo e sublime." (SANTOS, 2006, p.88)

Ou:

Ou:

a mãe era uma possessiva gorda. (HILST, 2003, p. 146)

O irmão também. Vi que ele amava os homens. A irmã era lésbica e o irmão pederasta? (HILST, 2003, p. 147)

O pai é um esquizofrênico, a mãe, uma possessiva gorda, o pai é louco, o pai é louco. Você sabe que o meu pai também era louco? Ah, é. (HILST, 2003, p. 148)

E também em:

Nós achávamos que a maior parte da humanidade era estrume, lixo, merda. São todos uns merdas. (HILST, 2003, p. 149)

Pode-se notar que as descrições dos personagens passam sempre pelo rebaixamento ridículo, por meio da degradação. Hilda se vale de elementos do grotesco quando mostra a mãe caracterizada pela glutonice, por sua alimentação desregrada, tornando seu corpo disforme, seu ventre enorme; o irmão-pederasta é retratado, segundo a eu-narradora, pela falta de consciência moral, por manter relações sexuais com outros homens, e ele é caracterizado pelas partes do baixo corporal e pela frivolidade com a qual trata seu corpo. Preocupado com as roupas e com a aparência, o perfume, Hilda faz uma crítica ao mundo da aparência e da superficialidade e do preconceito sexual. O irmão-pederasta era professor de filosofia:

Ele gostava de boas roupas, era estranho. Por quê? Um filósofo não pode gostar de boas roupas? Não, não pode, eu não levo a sério esses filósofos com blasers de âncoras douradas. Lixo. [...] Os pederastas se cuidam minuciosamente. Isso é sempre um perigo para todos. Por quê? (HILST, 2003, p. 151)

No conto "O Unicórnio" Hilda Hilst destrói a crença na inocênciainfantil expondo a agressividade das crianças, o fingimento e o lado mau da tenra idade. A agressividade não é exclusividade dos adultos, ela aparece também na falta de compreensão das crianças e em sua sinceridade cruel. Com isso a escritora busca mostrar a agressividade inata do homem: As crianças são de uma crueldade nojenta. "As crianças são nojentas. [...]. A época é de violência, de assassinato, de crianças delinquentes, de sexo."(HILST, 2003, p. 153)Também nesta passagem, nota-se mais uma vez a estratégia desconcertante da autora ao aproximar opostos gerando uma sensação traumática no leitor: criança e crueldade. As crianças têm por habitam o imaginário coletivo como algo puro, livre das maldades do adulto. Hilst ao aproximar as crianças e à crueldade, gera um desconforto e um sentimento grotesco.

Hilst ressalta a agressividade do ser humano pelo fato de não admitir o diferente. No trecho a seguir a intolerância é apresentada de forma grotescaexpondo vísceras e extrema violência com cuspe, faca e revólver. De forma abjeta a eu-narradora associa a personalidade de cada um à sua opção sexual. Aescritora se vale do baixo corporal, a imagem do corpo sexual não normativo, a homofobia como forma de choque e desconforto afim de atingir o leitor peloasco:

Você associa a maldade com a pederastia? Eu associo a pederastia com um defeito físico e o defeito físico com a maldade. Todas as pessoas com um defeito físico são más. A desconfiança que elas têm dos outros... Você não ficaria desconfiada de todos se tivesse o coração exposto e não por dentro da caixa torácica? A qualquer momento alguém podia te comer o coração. [...] Os cães podem me comer o coração, eu vou matar esses cães, eu vou mata-los. Você tem um revólver? Uma faca? Um veneno? Tenho a mim mesma de coração exposto, eu mesma sou uma agressão, avanço em direção a eles, cuspo na cara deles, cago em cima deles, cago nessa humanidade inteira, essa humanidade de coração engolido, cheia de proteção (HILST, 2003, p. 155)

Termos chulose abjetos vão dando forma a construção da imagem do corpo em "O Unicórnio",mostrando um corpo humano sofrido pela opressão e pela intolerância.

A presença dos cães também aparece como índice grotesco ao mostrar o bestiário hilstiano. Aqui, maisuma vez,o biografismo, a imagem dos cães: Hilda chegou a ter 100 cães em sua casa. Os animais em Fluxo-floema representam a animalidade do ser humano. Ohomem e o animal seaproximam, não só na questão daviolência, mas também na inocência de um ser abandonado por Deus e entregue à própria sorte neste mundo cruel, caminhando para a morte e vivendo sua decrepitude progressiva, dia após dia.

Eu tinha pensado em escrever a estória de um homem muito simples, um homem que nunca havia visto o mar, nem conhecido uma mulher. Ele era um carpinteiro. Ele não entendia o mundo, não entendia. E ele se apaixonou por uma mulher que sabia tudo sobre o mundo. A mulher fez uma porcaria com ele. [...] Ele começou a correr e chegou até a colina mais alta da cidade. Já era noite. Ele deitou-se sobre a terra, respirou e de manhã encontraram o corpo e vários cães ao redor. Os cães estavam comendo o corpo? Não, os cães não entendiam como era possível que um cão não tivesse pelos, nem corpo de cão. Depois os cães se deitaram em cima dele e ficaram ali até que o corpo apodrecesse. (HILST, 2003, p. 156)

Podemos perceber também a recorrente imagem da terra, do corpo terra, do corpo horizontal, caído, submisso à sua condição de corpo perene e frágil. A imagem do corpo podre, do cadáver em decomposição, como em "Lázaro" aparece como forma caracteristicamente abjeta. O cadáver como forma suprema da abjeção, sem Deus e sem ciência, nulo.Segundo Kristeva(1982), é a morte infestando a vida.

A representação familiaré alvo de crítica no conto"O Unicórnio". Todos os atores são representados de forma grotesca: o pai é louco, motivo de preconceito e vergonha; a mãe gorda possessiva, caracterizada pela glutonice e deformidades adiposas e os filhos fogem aos padrões estabelecidos pela sociedade por causa da sexualidade que escapa aos padrões heteronormativos esperados. A escritorabusca o caos ao inverter as hierarquias, embaralhar os sexos a fim de mostrar resistência a um controle imposto pelo sistema.

Olha, eles disseram que meu companheiro fez propostas indecentes para a empregadinha deles. Eles disseram que o companheiro falou assim para a empregadinha: você não quer foder comigo? A minha mulher é uma velha porca. A empregadinha usava um gorro de tricô na cabeça e se masturbava todos os dias quando via o rosto do meu companheiro, e dava gritinhos quando ele aparecia para visitar os dois irmãos. A mãe dos dois irmãos dava a bunda pela empregadinha. (HILST, 2003, p. 156)

Na passagem, Hilstusa uma série de elementos grotescos eabjetos como o termo "empregadinha" para rebaixar o cargo de doméstica. É um termo quase escravocrataque deriva do período do Brasil colonial. Ainda hojetemos pessoas que trabalham em "casas de família",servindo, trabalhando duro, a troco de um salário mínimo. Outro fator que descende do período escravocrata brasileiro é a recorrência de relações sexuais entre o patrão e seus filhos com as empregadas. Hilstdescreve a cena com uso de palavras de baixo calão para designar o ato sexual e tornar mais abjeta a relação descrita. A descrição da mulher pelo marido, também se faz de forma grotesca, nivelando por baixezaso corpo da mulher: "velha porca". A escritora trabalha, aqui também, no contraponto entre o grotesco e o sublime, ao colocar ao lado destanarrativa completamente abjetauma descrição poética.

Eu estou deitada na minha cama. Ao meu lado, uma moça magrinha de ombros curvados. Ela diz um poema em voz baixa: se eu pudesse trocar esse meu corpo por um corpo de lobo/ se eu pudesse ser mais voraz/ se eu pudesse ter garras como estiletes/ se eu soubesse de um só caminho de sangue como um lobo. (HILST, 2003, p. 167)

Na descrição desta cena, Hilst inclusive se vale da linguagem e da forma de um poema, dando mais lirismo ao lado do grotesco. Este é o caos da linguagem, proposto o tempo todo por Hilda Hilst: ao mesmo tempo em que fala da masturbação da empregadinha com gorro na cabeça, da mulher que é uma velha porca, da proposta do marido: "você não quer foder comigo?" Hilstfala de uma moça magrinha deitada na cama, como uma linda ninfa declamando um belo poema metafísico que fala do corpo de um lobo. Em Hilda Hilst é assim: "é metafísica ou putaria das grossas." (HILST, 1990, p. 76) O conto traz a temática do abandono, do desamparo, da busca de um lugar no mundo e do medo da morte. O grotesco se revela, dentre muitas outras evidências, por meio do corpo de uma mulher preso ao corpo de um animal, um unicórnio, causando repulsa e estranheza.

Recuo e meu traseiro bate na janela, inclino-me para examinar minhas patas mas neste instante fico encalacrado porque alguma coisa que existe na minha cabeça enganchou-se na parede. Meu Deus, um corno. Eu tenho um corno. Sou um unicórnio. (HILST, 2003, p.185)

A imagem do corpo transgressor ao antropocentrismo que, pelo hibridismo, se apresenta de forma caricatural à imagem humana e ao seu papel na sociedade de simulacros e simulações, que vive sob máscaras, exigidas para interpretar papéis. No conto, a autora critica o absurdo da maneira como os humanos vivem em uma sociedade tendo que repetir, rotineiramente, as mesmas atitudes, de forma autômata. É a imagem do homem-besta, preso à sua jaula mundo. Para Santos,

A tortura sofrida pelo eu-unicórnio lembra a manifestação da crueldade do homem no momento da crucificação de Cristo, uma crueldade liderada pelos homens em posição de comando e poder, uma situação que parece despertar no homem a necessidade de agredir o outro de forma irracional, pautada apenas em seu instinto de morte. (SANTOS, 2006,p. 22)

É o que comenta Umberto Eco (2014, p.49) acerca da feiura e do grotesco para representar o martírio e a dor, ao citar Hegel em sua Estética: "não se pode representar o Cristo flagelado, coroado de espinhos, crucificado, agonizante, nas formas da beleza grega." Na sua Estética II, Hegel (1770-1831) destaca a potência do feio na representação do martírio:

Os inimigos...quando se contrapõea Deus, o condenam, o escarnecem, o martirizam, o crucificam, são representados como internamente maldosos, e a representação da maldade interna e da hostilidade para com Deus comporta, no exterior, feiura, rudeza, barbárie, raiva e deformação da figura. Por todos estes aspectos, o não belo se apresenta aqui, diversamente do que acontece na beleza clássica. (HEGEL apud ECO, 2014,p. 54)

A maldade e a violência praticada contra o diferente, representada no martírio de Cristo, é o que Hilst apresenta no trecho de "O Unicórnio" quando o personagemnarrador, apóssofreruma metamorfose e transformar-se em um unicórnio, é então preso e mandado para o zoológico, onde fica encarcerado em uma minúscula cela imundasofrendo os mais terríveis abusos:

O zelador do parque afastou-se. Não durmo há vários dias. No início fui tratado com bondade: duas vezes, pela manhã e à tardezinha, jogavam verduras e restos de fruta no meu quadrado. Agora, na parte da manhã, me atiram alfaces podres e um maço de brócoli e tudo isso é muito difícil de engolir. Hoje é Domingo, o sol está batendo nas minhas patas, estou muito triste porque hoje exatamente faz dois anos que estou aqui, e me lembro como estava quando cheguei, como eu tinha esperança de conquistar o amor dos que me vissem. Fiz o possível para agradar as pessoas –naturalmente dentro dos meus parcos recursos – mas sei agora que não compreendem os meus gestos. As visitas estão rareando. Nesses dois anos vi, uma vez, a superintendente e os conselheiros-chefes. Épreciso dizer antes de tudo que os perdoei. Eles estavam acompanhados daquela empregadinha que usava o gorro de tricô na cabeça e creio que o irmão-pederasta-conselheiro-chefe casou-se com ela, porque pude ver a aliança na mão esquerda. Eles pararam perto de mim e eu quis dizer que eles eram feitos um para o outro, e para expressar-me -sempre dentro dos meus parcos recursos -coloquei o meu traseiro entre as grades do meu quadrado e bem à frente do casal, dando a entender com esse gesto, o seguinte: assim como as duas partes do meu traseiro se completam necessariamente, não podem separar-se, assim também vocês dois só poderiam acabar se entendendo muito bem. Fiz isso na melhor das intenções. Mas não fui compreendido. Sabem o que eles fizeram? Espremeram um cigarro acesso no meu ânus. Estrebuchei de dor aquela tarde inteira. (HILST, 2003,p. 195-196)

A maldade humana, a intolerância para com as nossas diferenças se apresentam em "O Unicórnio" de forma irônica, expressada na angústia de viver sob o domínio do tempo, privado de liberdade eaté ser arrancado da vida pela morte. Abandonada a toda sorte, a personagem vê um Deus que é a imagem e semelhança do homem, capaz das mais perversas brutalidades. Como na passagem:

Meu Deus. Sabe o que me dizem? Dizem: o teu Deus é um porco com mil mandíbulas escorrendo sangue e imundície. Meu Deus, meu Deus. O teu Deus nos cuida assim como os homens cuidam dos cães sarnentos: a porretadas. O teu Deus nos cuida assim como os homens cuidam das cobaias, para a morte, para a morte, nós todos a caminho da morte, repasto para o teu Deus e ele lá em cima, insaciável, dizendo: venham meus filhos, venham alimentar-me. O teu Deus está por aí, bocejando com duas bocas: numa um hálito fétido, noutra, uma rosa. Você escolhe a boca que quiser meu chapa (HILST, 2003,p. 163)

Ou seja, em "O Unicórnio" como nos outros contos do livro, a escritora apresentaa imagem de um Deus cruel que cuida de nós para a morte. Na passagem, Hilst trata da imagem de Deus com uma agressividade verbal e com expressões abjetas, evidenciando assim, o contraste grotesco característico de sua estratégia de trauma para com o leitor. Um leitor, que nem seja assim tão religioso e temente à Deus, ao ler tais palavras direcionadasao "Todo Poderoso", provavelmente sentirá um certo desconforto ou alguma repulsa. O interessante é que Hilda Hilst escolheu a figura do unicórnio para representar a metamorfose no conto. O unicórnio figura em diversas estampas de tratados alquímicos (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2016, p. 920). Essa besta fabulosa de origem oriental, segundo Chevalier e Gheerbrant, está ligada ao terceiro olho e ao acesso ao Nirvana. O unicórnio é por excelência um animal de bom agouro. Além de ser um símbolo de poder, por causado seu chifre, expressa também o luxo e a pureza. No cristianismo, ainda segundo os escritores, é considerado o símbolo da fecundação espiritual e seu chifre único foi comparado a um pênis frontal, a um falo psíquico e representa a Virgem fecundada pelo Espírito Santo. A figura do unicórnio torna-se assim o símbolo da encarnação do Verbo de Deus no seio da Virgem Maria.

Sendo um animal tão próximo da pureza e da perfeição, o unicórnio utilizado por Hilst está ao lado das baixezas humanas, ao lado de elementos grotescos e abjetos,

fazendo assim, um contraste com a figura clássica do unicórnio. Sabendo dessas significações do unicórnio, pode-se compará-lo ainda mais, no conto de Hilst, com os sofrimentos sofridos por Cristo na crucificação. Ou seja, um ser tão puro e elevado, com estreitas ligações com o divino, como Cristo e o unicórnio, serem tratados com tanta violência e desprezo. A intolerância e a violência geradaspela incapacidade de aceitar o diferente. Tudo aquilo que não se parece comigo, é estrangeiro, estranho.

A figura do unicórnio, embora de aparência belíssima, representado por um garanhão branco com um único chifre sobre a fronte, integra a lista dos grandes bestiários da história. Segundo Umberto Eco (2016, p. 120), são as mirabilia, (do verbo mirari, que significa “ver”). As mirabilia são coisas admiráveis, espantosas, assumindo a designação de “aquilo que se afasta do curso ordinário das coisas.” Embora certamente não fossem considerados exemplos de beleza (no caso do unicórnio sim) nem todos esses monstros eram percebidos como perigosos. Sem dúvida eram temíveis, como o Basilisco, a Quimera,a Mantícora ou o Acéfalo.

A figura do unicórnio no conto de Hilst aparece depois que a personagemnarradora sofre uma metamorfose. A história da literatura e das mitologias estão cheias de descrições de metamorfoses: deuses se transformam ou transformam outros seres em seres humanos, animais, e na maior parte dos casos, em árvores, flores, nascentes de rios, ilhas, rochedos, montanhas, estátuas etc. Essas metamorfoses podem ter aspecto negativo ou positivo, dependendo se elas representam uma recompensa ou um castigo. (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2016,p. 608)

No conto de Hilst, as modificações no corpo do personagem não afetaram sua personalidade pois manteve-se seu psiquismo. Segundo Chevalier e Gheerbrant, a metamorfose é um símbolo de identificação em uma personagem em via de individualização que ainda não assumiu todas as suas potencialidades. Como no romance de Lucio Apuleio (sec.II, d.C.), O burro de ouro ou Metamorfoses (APULEIO apud CHEVALIER; GHEERBRANT), onde o escritor latino narra as transformações de um certo Lúcio que, frequentador da alcova de uma cortesã sensual, sofre diversas transformações, uma delas em um burro como castigo para que ele abandone o prazer da carne. (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2016,p. 93).

A experiência moderna da metamorfose tem como expoentes principais o Conde de Lautréamont (1846-1870) e também Franz Kafka (1883-1924), com a obra A Metamorfose (KAFKA, 1997). Hilda Hilst nunca escondeu as suas influências, tanto de Lautréamont quanto de Kafka. Seus nomes inclusive são citados no texto de "O Unicórnio" . Outra referência citada no conto de Hilst é O Rinoceronte (1959), de Eugène Ionesco (1909-1994) "Mas será que você não pode inventar outra coisa? Essa coisa de se saber um bicho de repente não é nada original e além da "Metamorfose" há "O Rinoceronte", você conhece?" (HILST, 2003: p. 186).

Em "O Unicórnio" , como em todo o livro Fluxo-floema, Hilda Hilst se utiliza de uma profusão de gêneros literários. Além da narrativa em prosa aparece a poesia e a linguagem dramática. Essa "anarquia de gêneros" (PÉCORA, 2010, p.10) pode ser relacionada com a Metamorfose (8 d.C.) de Ovídio (43 a.C.-18 d.C.). O amor em Metamorfose se alastra por todos os gêneros: encontramos escapadelas amorosas, amores impossíveis, incestuosos, não-consentidos, amor de irmão, amor entre parentes, amor homoerótico. Além de sua aparência leve de conto de fadas, Metamorfose, de Ovídio, apresenta uma história demasiadamente fragmentada e aparentemente incoerente, mas que nos mostra centenas de lendas que inspiram, que são grotescas, e às vezessubversivas. A narração, dessa forma, explode em uma multiplicidade de episódios mitológicos, salientando a fluidez do mundo das metamorfoses e constituindo um universo que apaga as fronteiras porosas entre o humano e o divino, para sempre interligados. Pode-se ver a proximidade do conto de Hilst com a obra de Ovídio também na homossexualidade do irmão pederasta e da irmã lésbica, o amor entre parentes, a prostituição infantil, o processo destrutivo do consumismo, a proximidade com o divino de forma blasfematória, além de uma multiplicidade de episódios fragmentados e aparentemente incoerentes,mas que se amarram em torno da natureza humana e suas metamorfoses sociais.

Hilda Hilst era uma erudita. Lia muito, conhecia muito, estudava desde filosofia à física quântica, artes, poesia e astronomia.

"há vinte e sete anos leio, medito epenso sobre o Homem, a Morte, o Ódio etc." dizia Hilda em 1978. Sabe-se, em meio às entrevistas, que nessa tarefa estava, entre outras, a leitura (não sabemos ainda o quanto nem como foi feita) de Heidegger,

Hegel, Sartre, Merleau-Ponty, Jankélévitch, Russel, Ernst Becker, Jung, Otto Hank, Freud, Edith Stein, Paul Tillich, George Bataille, Chersterton, Kafka, Beckett, Herman Bloch, Kazantzákis, Ionesco, Genet, Simone de Bevoir, Simone Weil e Wittgeinstein. (DINIZ, 2013, p. 8)

Apesar de não citar Ovídio, pode-se imaginar que Hilda conhecia a obra do escritor romano. A obra Metamorfoses de Ovídio figura como uma importante obra clássicada mitologia greco-romana e da literatura latina.

São sete horas da manhã e sei disso porque o zelador do parque aparece gritando: como vai besta unicórnio? São sete horas da manhã e hoje eu estou aqui para limpar a sua fedentina. Como é, dormiu bem? Vira-se para o ajudante: esse animal é uma besta mesmo, agora deu para ter um corrimento nos olhos e parece que está sempre chorando,as crianças vivem me enchendo: o unicórnio está chorando, hein moço? E eu repito a mesma coisa o domingo inteiro: o unicórnio não chora, parem de inventar coisas, já pinguei colírio nos olhos dessa besta mas parece que é pior, ele fica o dia inteiro fungando, eh, bicho medonho, só sabe ficar aí parado olhando entre as grades (HILST, 2003,p.194-195)

Hilst expõe o seu unicórnio entre as grades de um zoológico com toda sua animalidade primordial, contida, e exposta de maneira grotesca às famílias da "canalha dita gente honesta". Em "O Unicórnio" o corpo humano é a parte insólita propícia à representação do grotesco que, aliado às palavras chulas e descrições grotescas, dá forma à poética de Hilst que, com sua crítica mordaz à sociedade contemporânea, desarticula tudo o que pode ser visto como belo, e por meio do efeito contaminador do grotesco vai mostrando as mazelas da sociedade, derrubando crenças e valores. Como forma de acentuar o incompatível os personagens sofrem rebaixamentos, desarticulando toda a trama do convencionalismo tomado pelo belo e sublime.

Todareferência ao corpo é sempre feita por meio da degradação, às vezes fazendo menção à velhice para realçar o efeito do tempo. Como forma de criar um contraste com a aparência e atitudes características do grotesco, são ressaltados os cuidados que o irmão-pederasta demonstrava ter com o corpo, as roupas que usava, o perfume, a preocupação exagerada, tratamento que parece fazer alusão ao mundo superficiale fútil, ressaltada na representação, inclusive, das relações homossexuais.

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