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3.2. Pinturas de 1980 1994: Corpos densos

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3.2. PINTURAS DE 1980-1994: CORPOS DENSOS

A pintura, no cenário artístico da década de 1980, no Brasil e no exterior, ressurge dos escombros e ruínas como meio de expressão privilegiado. Isto depois de uma intensa crítica à pureza dos meios, tendo a pintura como o alvo principal, depois do discurso da morte da pintura, da desmaterialização da obra de arte levado às últimas consequências pelas vertentes conceituais da produção artística e também passando pelo próprio questionamento da definição de arte. Sem contar a demanda participativa por parte do expectador na obra de arte, a demanda por projetos coletivos, a necessidade do engajamento político a contracultura que caracterizaram os anos de 1960 e 1970.

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Para citar um único e significativo exemplo, a exposição "A new spirit in painting", grande mostra realizada no início de 1981 pela Royal Academy of Arts de Londres, sinalizava em seu catálogo que a arte deveria retomar o "gozo dos sentidos", a sensualidade da matéria plástica/visual -em uma franca crítica ao que os curadores consideravam excessivo asceticismo provocado pelas vertentes conceituais e minimalistas -sob o risco de perder seu ímpeto criativo.(CARVALHO, 2014, p. 65)

Até 1980, as pinturas de Iberê Camargo dialogaram com o abstracionismo informal o que pode-se observar na pintura a seguir (figura 19).

Depois de 1980, as pinturas de Iberê Camargo podem facilmente ser associadas ao neo-expressionismo e à transvanguarda italiana. Nomes como Picasso, Roberto Matta, Baselitz, Markus Lüpertz, Francis Bacon, Lucian Freud, Balthus, artistas que, tal como Iberê Camargo, jamais haviam abandonado a pintura.

Figura 19-Iberê Camargo, Espaço com figura III, 1965. óleo sobre tela, 130 x 184 cm

Os artistas dessa época resgataram o prazer de pintar. Contestavam o que os movimentos conceituais e minimalistastinham posto em cheque, como os conceitos canônicos de arte, sua funçãoestética, autenticidade, unicidade, reprodutibilidade e a própria marca da presença do artista na obra. Esses fatores propostos pela arte conceitual e minimalista afetaram irreversivelmente a hegemonia da pintura no campo da arte.

Camargose mostrou resistente aexperimentalismos forada pintura, alinguagem que o homem-pintor escolheu para se expressar. Toda a construção de sua paleta de cores sombrias dos anos 1960, assim como o vigor das cores dos anos de 1970, estão presentes nas figuras humanas das telas a partir de 1980, onde Camargo incorpora o embate físico entre pintor e tela associando o ato pictórico, a performance corporal da pintura, à energia criativa. Camargo pintava uma tela de dois metros por quatro em 15 horas. Era um verdadeiro duelo onde só um sairia

vivo: ou o pintor ou a tela. Camargo muitas vezes usava uma espátula que mais parecia uma faca. Aplicava tinta, raspava, refazia, aplicava mais tinta, raspava e aplicava, muitas vezesaté o fim. Muitas telas foram cortadas com o estilete ao final de uma batalha perdida.

Avança para a tela em branco. Desarranjadamente surgem os primeiros trações vincados pela ponta grossa do lápis. Melhora o corpo. Sobrancelhudo. Olhos pequenos. A tela que é oferta. Espichadão que pincela curto. Parece uma caricatura bem feita por Dürer. Calças frouxas por trás. Arte por explodir. A personagem da tela é seu rosto. Sugado. Arfa. Funga. Cheiro de tinta. Cheiro de tinta, cheiro que incha os pulmões. Parece um bicho doente. O pintor[....] Com os pés inchados, subia na escadinha. A escadinha providencial para retocar telas tão altas. Mãos firmes sem tremeliques. Suas mãos são firmes. Enfia sem dificuldade à esquerda na paleta. Traz uma pasta de tinta. Ele subindo na escada para fazer um arremate. Grande Pintor inteiro afastado da tela. Busca o fundamento. A cor. Pincela, pincela, raspa e pincela e a mão é firme. Renova o corpo. Se equilibra. Impulsa. Pincela curto, longo, raspa e nova pincelada. Esbraveja, usa o esfregão, pano, funga, calça caindo, bunda aparecendo, está lá o homem pincelando de costas. Faz azul. Usa a desbastadeira, sua ferramenta manual. Ajusta a cor. Usa azul - e divide por 2; o traço em busca de um tom certo de grená. Pincela curto, pincela, pincela. Pára. Respira, troca de mão, renova a tinta. Olha, não gosta, azeda,esbraveja, arremata, aplaina e pincela. Pinta. Espichadão assim e o serviço aparece. Tela de bêbado. Tela às avessas. Tela de Iberê começa por cima. Resulta suja a tela que contempla com os olhos cerrados, cerrados, cerrados... É seu rosto. Ah, essa Fúria de talento!(RIBEIRO, 1996, p.46)

Paulo Ribeiro conviveu com Iberê Camargo de 1991 a 1993. Frequentou seu atelier e sua casa e,entre conversas espontâneas e entrevistas, presenciou diversas vezes o pintor trabalhando. Em uma dessas conversas, Iberê confessa:

Sou um Dom Quixote. Troque-se lança pelo pincel, o Escudo pela paleta, os moinhos pelas telas, e lá está a mesma fúria, o mesmo idealismo, a mesma silhueta magra e grisalha." (CAMARGO in RIBEIRO, 1996, p.46)

IberêCamargo, como Hilda Hilst, construiu uma obra. E uma obra é o conjunto de todos os trabalhos desenvolvidos em uma vida. Um processo. A figuração humana que surgiu na obra de Iberê Camargo neste período é fruto de um processo. Como apresentei na pintura intitulada Pintura de 1979, (Fig. 14), já percebe-se o surgimento da figura humana de forma esquemática no canto direito da tela. As

cruzes, nesta tela, começam a transmutar-se em rostos. Tanto nesta pintura como em todo otrabalho de Camargo, háum processo contínuoe ininterrupto.

É certo que as pinturas de Iberê Camargo realizadas entre 1980 e 1994, ano de sua morte, contêm uma potente presença acerca da construção da imagem do corpo, como nunca visto antes em toda sua obra.

As pinturas de Iberê não são de fácil acesso ao expectador. São pinturas que a priori não buscam o belo, a decoração. O pintor não se importa com o realismo de uma construção da imagem do corpo. Eledistorce a figura ao máximo em busca da expressão.Como explica Jacques Leenhardt:

A figura assume ares grotescos, carnavalescos, como num teatro medieval e cruel. Os recursos expressivos de uma pintura apressada, violenta, despreocupada com a anatomia, despreocupada com a correção da anatomia ou com a semelhança constituem a base do seu novo estilo figurativo. Pensamos então em artistas como De Kooning ou do Dubuffet que sempre privilegiaram a expressividade burlesca, atentatória à bela figura ligada àtradição humanista. (LEENHARDT, 2014, p. 170)

Figura 20- Iberê Camargo, Ciclistas no Parque da Figura 21-Iberê Camargo, Série ciclistas, Redenção, 1989 (detalhe). óleo sobre tela, 95 x 212 cm 1990(detalhe). Óleo sobre tela, 145 x 185 cm

O conjunto de pinturas deste período impressiona pela expressividade epeso das figuras. As telas trazem em seu corpo pictórico tanto desencanto, ao apresentar figuras abrutalhadas, corpos que ganham carnalidade na superfície fria de cores e texturas, que mais lembram um cenário pós-apocalíptico. As pinturas de Iberê

Camargo adquirem uma atmosfera trágica radicalizando a experiência do corpo e da finitude. O que vem em cena é a presença da morte, o confronto direto com o corpo-tempo que escorre sem cessar. Mas não há lugar para o esmorecimento. O pintor luta com a sua finitude com pincel na mão. O que importa nestas últimas pinturas é o corpo a corpo entre pintor e tela.

Há desespero, mas há também potência sensorial, capacidade de dar a ver a força que brota da massa de tinta. Essas figuras trazem algo do que Lionello Venturi viu nos últimos retratos do jardineiro pintados por Cézanne: o corpo aí é carne, a carne é vida e a vida é assustadora, sensual e finita. (OSORIO, 2015, p. 17)

Seus personagens transitam pelo campo do grotesco ao exprimirem solidão, abandono e morte envolvidos por amplos espaços de pintura. Os corpos são marcados pelo vulgar, pelo grotesco e o violento.

Com seu aspecto descarnado as figuras apresentam uma certa indefinição de gênero. Não sabemos ao certo se é um homem ou uma mulher, sabemos que é uma

Figura 22 -Iberê Camargo, No vento e na terra II, 1992. Óleo sobre tela, 200 x 283 cm

criatura. Porém, essa vulgaridade violenta da aparência dos personagens são apresentadas no "mesmo espaço refinado da pintura informal que comentava com desenvoltura os rumos da escola de Paris no pós-guerra." (ZIELINSKY, 2014, p. 5556)Ou seja, Iberê Camargocontrasta em suas obras o sublime e o grotesco, postos lado a lado em um mesmo espaço poético.Como explica Paulo Ribeiro:

Portanto, Iberê, trabalhando a deformação da figura, com uma ligação evidente com a arte abstrata e expressionista e a noção de fantasia intelectualista de herança baudelairiana, corresponde à ideia de Kayser de que o grotesco é a forma da modernidade enfrentar o vazio metafísico e exorcizar as forças sombrias que o assombram. (RIBEIRO,2010, p.407).

Nestas pinturas, o pintor lança mão de imagens de corpos bizarros, descarnados, na terra ou expondo suas vísceras e seus ossos. Com esse procedimentoCamargose alinha às tendências do século XX, aproximando-se dos conceitos de Wolfgang Kayser (1986) e Mikhail Bakhtin (1999) acerca do grotesco. Assim, nas suas pinturas, destaca-se o drama e a tragédia. O próprio procedimento do seu fazer pictórico alinha-se ao grotesco, quando o pintor se vale de um automatismo psíquico, num fazer e refazer como se estivesse em um transe, sem obstáculos e sem convenções pré-estabelecidas. Iberê propõe uma nova interpretação da figura, sendo um abstrato informal dentro do figurativismo. Segundo Ribeiro, nesse paradoxo pode-se ver a relação de Iberê coma tradição da estética grotesca:

A possível ligação do estilo de Iberê com o automatismo, sabe-se, por outro lado, como ele meditava seus quadros. Essa informalidade dentro do figurativismo é, na verdade, um capricho disciplinado de um homem movido por forças invisíveis, por impulsos quixotescos. Ansiedade e tensão entre a mão que busca e a tela em branco. (Idem, p.312)

Figura 23-Iberê Camargo, Manequim, 1986. Óleo sobre tela, 42 x 30 cm Figura 24-Iberê Camargo, Diálogo, 1987. Óleo sobre tela, 42 x 30 cm

As pinturas da fase final de Iberê tem uma temática alinhada à estética do grotesco desenvolvida por Wolfgang Kayser em seu livro O grotesco: configuração na pintura e na literatura. (1986). O livro aponta para a criação artística de um mundo estranho, inspirado pelo temor à opressão e à violência. Para Kayser "o grotesco é a manifestação do fantasma interior do artista que representa o mundo através de uma expressão deformativa." (RIBEIRO apud KAYSER, 2010, p. 228) Como explica o próprio Iberê:

O Grego tinha um ideal de beleza. Todo esforço, para ele, era plasmado numa imagem que contivesse purificação em beleza. E no sentido de plasmar uma verdade, e que dói, porque as figuras que pinto, de certo modo, são grotescas na forma. Não são Vênus. Pinto nus, mulheres, mas na verdade ele é quase um animal, comum, só que ele contem essa espiritualidade, não digo satânica, sofrida, de vida. Não há um ideal de beleza, mas o ideal de uma verdade pungente e sofrida que é minha vida, é tua vida, é nossa vida, nesse caminhar no mundo. (CAMARGO in LAGNADO, 1994, p. 28)

E prossegue:

Não tenho uma ideia preconcebida, mas quando encontro a figura ela se revela nesse aspecto grotesco, não é uma coisa gratuita, a coisa está lá também. Essa associação de meu sentimento, e é muito difícil discernir o que sou eu e o que está fora, não sei se é uma visãoque eu tenho ou se aquilo existe de fato. (Idem, p. 30)

As forças invisíveis e estranhas que marcam a imaginação de Iberê Camargo identificam-se com uma linhagem deformadora que nasce da necessidade de expressão. Iberê se vale da deformação e da transfiguração para tornar estranha a realidade que o atormenta. Essa tendência à deformação, à estética do grotesco inclui a obra de Iberê Camargo numgrupode artistas de períodos diferentes porém com alguma irmandade poética:

Lembremos aqui daquela tendência à metamorfose de que fala Bosi, e do poderoso elenco de artistas, Bosch, El Greco, Goya, Dalmier, Ensor, Van Gogh, a caminho da deformação. Lembremos, sobretudo, da divisa de Kandinsky: "Ah, os procedimentos tão sagrados, a satisfazer a necessidade interior." (RIBEIRO, 2010, p.397)

Camargodenominava essas últimas telas de realismo grotesco, em que a realidade aparece somente como pano de fundo para a transfiguração do primeiro plano.Uma transfiguração disforme apresentada em forma de feiura. Como no caso das pinturas e desenhos da série Idiotas, com figuras sentadas numplano ampliado e desolador, de uma frontalidade constrangedora.

Como explica Lisette Lagnado:

Somos encarados por uma ignorância que sorri, a "risível humanidade" de Baudelaire. O sorriso conjugado à feiura do corpo que o ostenta nada mais é que o triunfo do disforme, da inumanidade progressiva de um mundo que se alimenta de aparências em detrimento de uma justificativa ética. (LAGNADO,1994, p.115-116)

Figura 25-Iberê Camargo, A Idiota, 1991. óleo sobre tela, 155 x 200 cm

Paulo Pasta,em seu artigo Memória e matéria na pintura de Iberê Camargo (2003), explica que para agir no presente o pintor tinha sempre que equacioná-lo com a memória, como se o presente só se constituísse nessa possibilidade de lembrar. A forma para Camargo só conseguia ser de fato expressiva quando vinda de uma depuração da memória. Esse procedimento baseado na experiência conduzia o pintor à transfiguração, palavra pela qual tinha muito apreço:

A transfiguração seria algo situado sempre atrás das aparências, espécie de síntese concedida por filtragem, trazendo ao artista um real insuspeito, longe de um simples testemunho visual ao alcance de quem quer que seja. O novo, então sempre surgiria do passado, ou seria o próprio passado revivido. A identificação entre lembrança e emoção estética fica nítida, e parece-me que quando essa identificação se faz de

modo consciente e deliberado é que Iberê se transforma em um grande artista. (PASTA, 2003, p.115)

Iberê Camargo transitou por diversas modalidades expressivas em sua produção. Trabalhou com a pintura, o desenho, a gravura e também com texto escrito, com a mesma desenvoltura e potência em todas as linguagens. Não se tratava de linguagens paralelas ou independentes, estava tudo interligado. Todas as características expressivas presentes nas pinturas, estão também presentes nos desenhos , gravuras e também nos textos.

Outra particularidade que também pode-se encontrar nos trabalhos de Iberê Camargo é a performance. Não no sentido da performance contemporânea, mas no sentido do uso do próprio corpo do artista na produção de seus trabalhos. Um procedimento muito próximo da action-painting24 . O pintor usava todo o seu corpo para pintar.

Figura 26-Iberê Camargo, 1994. Serigrafia Figura 27 -Iberê Camargo,1994. Gravura em metal

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Pintura de ação [action painting]: descarta a noção de composição, ancorada na identificação de pontos focais na tela e de partes relacionadas. Esta obra de arte é fruto de uma relação corporal do artista com a pintura, nasce da liberdade de improvisação, do gesto espontâneo, da expressão de uma personalidade individual. As influências do automatismo surrealista parecem evidentes. Aí estão a mesma ênfase na intuição e no inconsciente como fonte de criação artística, embora permeada por uma forte presença do corpo e dos gestos. Disponível em: < http://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo3785/expressionismo-abstrato >

Figura 28-Iberê Camargo, Sem título, 1993. guache e lápis stabilotone sobre papel, 50 x 70 cm

Iberê Camargo também se expressava pela escrita. Sua ligação com a literatura remonta ao tempo de escola. Além disso,trocou cartas comÉrico Veríssimo portoda a vida. No Rio de Janeiro frequentou o Café Vermelhinho, ponto de encontro da intelectualidade, onde o pintor conviveu quase que diariamente com Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira. Seu amigo e mecenas, Luiz Aranha, foi um dos grandes incentivadores de Graciliano Ramos e também responsável pelo lançamento de Vinícius de Moraes no mundo literário. Camargo escreveu continuamente artigos parajornais, com temas que iam desde a baixa qualidade das tintas brasileiras acríticas à ameaça nuclear em Angra dos Reis.

Era leitor refinado. Além de Dante, tinha como autores prediletos Dostoiéviski, Tolstói, Balzac, Faulkner, Thomas Mann, Kafka, Goethe e Cervantes. Dessa eclética seleção, era capaz de passar dos poemas do português José Régio às descrições políticas e apaixonadas de Grécia, feitas por Henry Miller em O colosso de Marússia, lido em italiano. Entre os nacionais, Machado de Assis -e nas suas estantes apareciamexemplares de Jorge Amado, especialmente um ABC de Castro Alves, em alemão, cuja paisagem de

capa tinha a marca do seu punho. A biblioteca continha ainda um razoável número de obras específicas de estética, história da arte, além de livros com reproduções dos grandes mestres.(RIBEIRO, 2010, p. 224)

Camargosempre foi,além de um grande leitor,um escritor assíduo. Como em suas telas, nos seus escritos encontram-se dores e angústias, revelando pleno domínio da técnica literária. Segundo Paulo Ribeiro,o legado que Iberê Camargo nos deixou em forma de textos "demonstram que a pintura nos privou do fabulador, de um escritor muito interessante." (idem) Em suas expressões, seja pictórica ou literária, Iberê sempre buscou a sensação, o sentimento que emana das coisas e corpos. Iberê não buscou uma arte em que bastasse apenas a união do pensar e ver. Iberê também buscou o sentir. O que Alfredo Bosi, acerca do conceito de representação e estilização, chama de imaginação construtiva, pela qual o trabalho do artista se desenvolve, ao mesmo tempo, no plano do conhecimento do mundo pela mímese, e no plano original de construção de outro mundo, ou seja, a obra. (BOSI, 1985, p.36) Segundo Bosi, este encontroentre a natureza e o sonho,quando se deu em Cézanne, Gauguin e Van Gogh, criou linhas de forças que ataram indissoluvelmente o gesto plástico aos movimentos da paixão e ao inconsciente, precedendo as aventuras do surrealismo e do expressionismo.

Na obra de Camargo é evidente a presença do conceito de intermidialidade, quando o artista transita com maestria por entre linguagens de códigos diferentes como a palavra e a imagem. Paulo Ribeiro,em seu estudo, aponta a afinidade entre o texto e a produção pictórica de Camargo, e destaca o grau de picturalidade presente no texto do pintor. Ou seja, como Iberê escrevia com imagens e pintava com palavras. Segundo Ribeiro, essa relação fronteiriça de códigos poéticos, os limites das mídias, tinham como fio condutor a estética do grotesco. Imagens grotescas e palavras grotescas.

Em suma, são construções metafóricas e alegorias das quais se serve Iberê em suas memórias, em consonância com a busca intuitiva de imagens do fazer e criar, agora imersa no processo de uma forma que procura dar conta igualmente de uma poética textual; ele constrói de fato imagens que se assemelham, tanto plástica como textualmente. O processo criativo de Iberê evidencia uma relação de afinidade entre a palavra do poeta e a visão do pintor. Essa capacidade de conjugar o que há de similaridade entre a pintura e a escrita.(RIBEIRO, 2010, p. 298)

Ao dialogar diferentes códigos de linguagem,como palavra e imagem,no corpo da sua obra, além de diferentes técnicas pictóricas como a gravura e o desenho, Camargo abre um leque regido pela multiplicidade, no qual podemos notar uma multimidialidade, ou seja, Iberê se vale de múltiplas mídias no escopo poéticode sua obra.Essa picturalidade é explicada por Márcia Arbex:

No século XX, traços comuns à literatura e às artes plásticas podem ser verificados: rejeição da mimese e consequente ênfase no significante; decomposição do objeto em partes, nos textos futuristas ou cubistas; simultaneísmo, deslocamento e distorção dos planos presentes na pintura e que surgem na literatura com o rompimento da continuidade espacial e temporal; princípio da colagem e montagem. (ARBEX, 2006. p. 57)

Na obra de Iberê Camargo a intermidialidade acontece sob a forma da écfrase. Que é quando o artista transpõe uma imagem pela escrita e vice versa em um fluxo ininterrupto, sem hierarquias. Ou seja, na écfrase a transposição poética busca transferir a imagem para a escrita, exprimindo verbalmente as mesmas emoções provocadas pela pintura. No caso de Iberê, ao transpor de sua obra depintura para o texto e do texto para a pintura ocorre uma certa independência de cada meio. Segundo Leo H. Hoek:

Não somente a obra de arte, mas também o estilo de um artista ou de um movimento artístico pode se tornar o objeto da transposição de arte: o impressionismo, porexemplo, é transposto para a "escrita -artística" dos Goncourt ou para a poesia de Verlaine; Kokoschka tem manifestado o expressionismo dos seus quadros em seus próprios dramas, e a escrita de Gertrude Stein se apresenta como uma transposição cubista. Notadamente, os artistas dotados de um "duplo dom" como Blake, Hugo, Strindberg ou Van Gogh buscam de bom grado realizar uma transposição intersemiótica. (HOEK, 2006,p. 173)

Como por exemplo no conto "Hiroshima" (CAMARGO, 2009), onde Iberê Camargonarra a saga do homem-pintor quesofre as consequências físicasdevido à radiaçãoda bomba nuclear soltada pelos americanos naquela cidadedo Japão. Para que se possa compreender o conto na sua totalidade, é preciso vislumbrar como a tragédia coletiva da bomba de Hiroshima se mescla à tragédia individual do câncer real do pintor. Alguns sintomas da doença e efeitos colaterais do tratamento de

radioterapia são aproximados por Iberê à consequências da bomba, como a secura na boca: "Sono intranquilo, acessos de tosse, respiração opressa, boca ressequida. Várias vezes, à noite, se ergue do leito para molhar a boca. Passa horas e horas insone a escutar o silêncio." (CAMARGO, 2009, p. 39) Uma aproximação que extrapola o terreno literário e dialoga com o pictórico, num exemplo de écfrase, como no trecho do conto de Iberê:

as mãos do homem-pintor tocaram uma parede de terra úmida que deteve seus passos. Sentiu que de súbito o túnel se estreitava, ameaçando sufocá-lo. Palpou o chão e, deitando-se de bruços, rastejou como um réptil, procurando retroceder no caminho, fugir. Sentiu sufocar-se. (CAMARGO, 2009, p. 40)

No trecho, pode-se perceber uma aproximação com a tela "No vento e na terra I" onde a figura na tela está deitada de bruços na terra arrasada e sumária.

Figura 29-Iberê Camargo, No vento e na terra I, 1991. óleo sobre tela,200 x 283 cm

Em outro trecho do conto "Hiroshima", a figura da tela parece ouvir as mesmas palavras escutadas pelo homem-pintor:

O homem pintor não sente mais o corpo, que por fim se aquieta. A noite desce, uma noite diferente, espessa, impenetrável,mas leve como uma mortalha. Dorme, dorme, foi a última palavra que ele ouviu. (CAMARGO, 2009, p. 41)

Esta tela exprime claramente a presença do grotesco na obra de Iberê Camargo: a deformação do corpo, a morte representada pelo corpo caído e pela terra, a solidão e o medo de viver em um mundo devastado.

Nas palavras do próprio pintor acerca desse jogo duplo entre palavra e imagem, numa entrevista a LisetteLagnado:

LL: Para você que escreve também, qual a função da literatura? IC:A literatura, como as demais artes, recria e enriquece a vida. Não me satisfaz o que eu escrevo. Sempre esbarro no inatingível. Para mim, escrever é pintar com palavras. LL: A palavra e a imagem. Qual das duas é mais autêntica? IC: Como dizer que a noite é mais autêntica que o dia? (LAGNADO, 1994, p. 56)

Paulo Ribeiro,em sua pesquisa acerca da relação texto e imagem na obra de Iberê Camargo,faz uma rigorosa comparação entre os textose as pinturas de Iberê em sua tese de doutorado Que forças derrubaram o ciclista? A relação entre a expressão literária e a expressão pictórica em Iberê Camargo apresentada na Faculdade de Letras/ Teoria da Literatura da Puc-RS em 2000. Sua pesquisa foi de grande valia nesta tese, na identificação da estética grotesca na obra de Iberê e nas relações com o pensamentode Wolfgang Kayser acerca do grotesco na pintura e na literatura de Camargo.Em sua pesquisa Ribeiro une, de forma definitiva, a visão do escritor à do pintor.

Os seus personagens, envoltos em uma atmosfera decadentee grotesca, remetem aos acontecimentos trágicos que aconteceram em sua vida, num discurso quase sempre autobiográfico. Camargo,em primeiro lugar, pinta a sua vida, suas memórias e suas dores. Seus trabalhos se confundem entre ficção e realidade, seus personagens e suas máscaras transitam por entre uma quantidade considerável de autorretratos.Sua arte é lugar de suas memórias,que muitas vezes aparecem como experiências imaginárias.É o que explica o próprio pintor:

Como modelo me transmuto em forma. [...] O autorretrato é uma introspecção, um olhar sobre si mesmo. É ainda interrogação, cuja resposta é também uma pergunta. [...] O pintor sempre encarna as figuras que pinta. Ele as cria à sua imagem e semelhança. Picasso se retrata na sua celebrada tela, Les demoiselles d' Avignon. Admito que minhas figuras se me assemelham. (LAGNADO, 1994, p. 31-32)

E prossegue:

Seria impossível saber se a realidade que percebo constitui verdadeiramente a realidade que existe fora de mim, se ela também não estivesse dentro de mim. Os instrumentos criados pelo homem apenas aguçam os sentidos. Só a imaginação pode ir mais longe no mundo do conhecimento. Os poetas e os artistas intuem a verdade. Não pinto o que vejo, mas o que eu sinto [...] Pinto porque a vida dói. (LAGNADO, 1994, p. 25)

Fig. 30 -Iberê Camargo, Fig.31 -Iberê Camargo, Fig. 32 -Iberê Camargo,

Iberê, 1987. Óleo sobre tela, 78 x 55 cm. Autorretrato, 1984. Óleo sobre tela, 25 x 35 cm Autorretrato,1979. Pastel oleoso sobre papel, 25 x 35 cm.

Figura 33-Iberê Camargo, Eu e signos, 1981. Óleo sobre madeira, 30 x 42 cm.

Figura 34-Iberê Camargo, Eu, carretéis e dados, 1983. Óleo sobre tela, 65 x 92 cm.

Toda a pintura de Iberê Camargo é a demonstração da conquista moderna da superfície anti representacional,aliada as forças dos afetos pictóricos da sensação. O que ele busca nas coisas não é a representação mimética e sim a sensação que emana das coisas e das pessoas. Na representação da imagem do corpo humano, Iberê busca ultrapassar a imagem do modelo. Não pintar o modelo e sim à partir do modelo.Como pode-se observar nas pinturas com modelos específicos aseguir:

Figura 35-Iberê Camargo, Gelson, 1992. Óleo sobre tela, 185 x 146 cm. Figura 36-Iberê Camargo, Retrato (Jane e Mariza), 1987. Óleo sobre tela, 184 x 130 cm.

Figura 37-Iberê Camargo, Figura 38-Iberê Camargo,

Figura 39-Iberê Camargo, Retrato, 1991. Maria, 1990. Retrato, 1987. Óleo sobre tela, 155 x 200 cm. Óleo sobre tela, 155 x 200 cm. Óleo sobre tela, 150 x 93 cm.

As últimas pinturas de Iberê Camargo apresentam características marcantes ao romper com uma forma descritiva naturalista tradicional. O pintor deforma suas figuras a fim de melhor atingir a expressão, e expor as mazelas humanas.

Eis a confirmação da sua divisa no plano criativo: a deformação nasce da necessidade de expressão. Ele torna estranha a realidade, preservando, através da transfiguração, o que o atormenta. (RIBEIRO, 2010, p.397)

Ou como o próprio Iberê esclarece: "A deformação é a expressividade da forma." (LAGNADO, 1994, p. 25) E para apontar as mazelas humanas, e as suas próprias mazelas, o pintor se vale da estética do grotesco, que caracteriza também a deformação, o estranho, o monstro. Comopode-se observar nas pinturas aseguir:

Figura 40-Iberê Camargo, Retrato, 1987. Óleo sobre tela, 150 x 93 cm.

Figura 41 -Iberê Camargo, Ciclista, 1988 (detalhe). Figura 42-Iberê Camargo, Homem de Óleo sobre tela, 200 x 236 cm. bicicleta, 1989. Óleo sobre tela, 42 x 30 cm.

A imagem do corpo em suas pinturas apresenta-se de forma fragmentada, expressando a fragilidade da matéria corpórea a partir da angústia da certeza da morte e do horror do abandono. É por meio do grotesco e do abjeto que o pintor questiona a época contemporânea da sociedade de massa, construída sobre aparências e que nos causa a agonia de viver em um real distorcido e banalizado pelos meios de comunicação para o bem do capitalismo. A reflexão sobre as atrocidades humanas chama a atenção pela força das imagens do corpo humano, distorcido e descarnado.

A presença do fragmento na representação do corpo em Iberê Camargo, se dá como uma crítica às certezas da ciência, e também à tirania da perfeição e da beleza passageira. O fragmento também permite que a imagem permaneça em aberto, sempre como num processo. Pode-se lembrar o pensamento de Perniola (2010) sobreo fragmento, que se deslocasempre para a frente seguindo o processo infinito e de autossuperação que define a vida do artista. É o que constato na obra de Iberê Camargo: uma obra aberta por estar sempre em processo de autossuperação. Ele pintava e repintava ao infinito suas telas. Os fragmentos trazem sempre novas possibilidades, um devir, por assim dizer. O fragmento está sempre pronto para uma nova conexão.

Figura 43- Iberê Camargo, Fantasmagoria IV, 1987. Óleo sobre tela, 200 x 236 cm.

Lorenzo Mammì identifica o fragmento como o elode ligação entre Iberê Camargo e apintura contemporânea.Camargotrabalha na fragmentação do espaço pictórico, onde cada objeto, cada signo, toma sua área de cor como algo independente. Ou seja, o quadro inteiro se torna uma figura única e as forças internas da simultaneidade de objetos existem de forma independente.

Os signos se amontoam, esbarram e sobem uns sobre os outros. Ou então cada um se destaca sobre sua própria área de cor, como uma colagem. Prosseguindo imperturbável por seu caminho, o "passadista" Iberê encontra assim, talvez antes e mais claramente do que todos no Brasil, a descontinuidade do espaço contemporâneo. E é aqui que sua arte se enxerta com a nova pintura da geração de 1980. (MAMMÌ, 2014, p. 283)

O que Mammì identifica nos fragmentos presentes na obra do pintor a partir de 1980, é o caráter de fóssil, onde cada fragmento está presente devido a uma arqueologia sígnica, onde parece que tais signos pertenciam a um passado não muito remoto, e hoje foram ressignificados nas pinturas. Como na tela Pintor e signos, ondeIberê dispõe os elementos de sua memória como carretéis, dados e seu próprio autorretrato,que aparece duas vezes. Na telaos elementos são dispostosde forma fragmentária e o espaço pictórico é dividido, é dividido com cada peça atuando em seu próprioespaço.Cada espaçoatua de forma independente e também compõe um todo pictórico. Nessa tela pode-se perceber a aproximação de Iberê com as questões contemporâneas referentes à fragmentação do tempo e do espaço.

Figura 44 -Iberê Camargo, Pintor e Signos, 1981. Óleo sobre tela, 100 x 173 cm.

A imagem do corpo humano apresentada por Iberê em suas últimas telas mostra-se de forma grotesca e fragmentada , atravésde corpos solitários diante de um mundo em pedaços e amontoado de ruínas , que são as ruínas do pintor e também as nossas próprias, como expectadores:

Mário Carneiro passou uma tarde filmando Iberê no trabalho. É impressionante a descrição que Wilson Coutinho faz da reação dos espectadores (que aparecem no filme) ao presenciá-lo, durante o registro, no trabalho. Na "arena da tela"- para usar uma expressão adequada ao expressionismo abstrato, como quer Coutinho -, para espanto das pessoas, Iberê pintou e destruiu várias vezes o mesmo quadro. "Infinitamente " e refez o modelo durante a filmagem, que se estendeu por uma tarde inteira. O filme registra como o pintor digladiou com a forma e como desprezou as várias faces surgidas durante as tentativas de composição. Iberê aparece apagando a figura, repintando impacientemente o mesmo rosto, fazendo com que os que o assistiam também se impacientassem, vivendo as inúmeras transfigurações surgidas na tela. No enfrentamento da tela que assistiram sentiam ansiedade com o prolongado processo de criação. Uma coisa insólita para eles: tanto o ato de criar, como o pintor em plena inspiração, espontânea, impetuosa e ao mesmo tempo crítica, construída a partir da reflexão do seu laboratório autoral. (RIBEIRO, 2010, p. 319)

O procedimento de Iberê Camargo, ao enfrentar uma tela, perpassa pela multiplicidadee por um método que leva ao infinito, num eterno processo.

O erotismo é presente em toda a obra de Iberê Camargo, que produziu vários desenhos eróticos e pornográficos no decorrer de sua trajetória. Porém, nessas últimas pinturas,Iberêapresenta um erotismo grotesco.Os personagens desta fase são representados por meio de rebaixamentos com genitálias frontais e uma certa ambiguidade com relação ao gênero.

Figura 45 -Iberê Camargo, Figura, 1943. Gravura em metal, 21,1 x 19,7 cm. Figura 46 -Iberê Camargo, Figura deitada, 1993. Gravura em metal, 9,7 x 15,2 cm.

Figura 47 -Iberê Camargo, Sem título, 1991. Figura 48 -Iberê Camargo, Sem título, 1988. Guache e lápis stabilotone sobre papel, Lápis stabilotonne sobre papel, 32,4 x 23,5 cm. 50,2 x 35,2 cm.

Por meio de deformidades e distorções, Iberê mostra as várias possibilidades de construção da imagem do corpo pela ótica do feio, do disforme, do podre e asqueroso. Tanto nas imagens como nos textos, Iberê nos apresenta personagens envoltos em palavras e imagens de baixo calão:

Desse ângulo, Gaveta de guardados (2009) desempenha um papel fundamental, pois sinaliza abertamente para um erotismo que, apesar de atravessar toda a sua produção plástica, vem sendo ignorada pela crítica. [...] (em seus textos) Na dicção elevada narra uma sexualidade em surdina feita de encontros furtivos. Mas, quando menos se espera, a linguagem perde sua compostura e abre clareiras para passagens cabeludas. (MASSI, 2009, p. 21)

Como já apresentei, , esta estratégia é característica de procedimentos bizarros, ao causar certa estranheza quando aproximaelementos opostos como o grotesco e o sublime. Como nas passagens dos textos de Iberê:

Excitado, deixo-me envolver por uma morena -Wanda -de coxas grossas e roliças, que se insinua e se instala na minha mesa. Como deve permanecer até o final do show, vou aguardá-la no quarto. Na espera, adormeço. Desperto à sua chegada. Ela segue a prática: acocora-se atrás de um biombo. Ouço o rumor da água da bacia, espargida com a mão. Um curto saiote lhe encobre a nudez. Deita-se ao meu lado. Sôfrego a possuo, como fazem os cães de rua. (CAMARGO, 2009, p. 49)

Pode-se perceber nesta passagem do conto "Cabaré" (1994) os rebaixamentos corporais de uma prostituta que, antes de atender o cliente, lava seu sexo em uma bacia de água no chão atrás de um biombo. Percebe-se também o grotesco no hibridismo do homem com o animal, quando o personagem, ou o ato sexual, é comparado às atitudes de um cão. Tudo isso são características da estética do grotesco. Em outras passagens:

Mas lembro-a imóvel na pose: sigo-lhe os contornos do corpo, acaricio-lhe os seios, acaricio-lhe o ventre com fervor de amante. Dela nada sei. Apenas que sustentava a mãe e que, à noite, era taxi-girl num dancing qualquer no Rio. (CAMARGO, 2009, p.53)

Ou:

Uma tarde, no escuro do portão, toco a genitália de Iva, úmida e víscida, que ela arreganha para mim. Oferece o fruto de polpa rosada, aberto. Ela também toca meu pistolo empenado, bonitinho como diz. De pé, enlaçados, ensaiamos um arremedo de cópula. Ela afasta a perna da calça, oferece-me o sexo. Sôfrego, apalpo seu púbis, que começa a emplumar. (Idem, p.56)

Ou: "Queres um anel? mete o dedo no cu." (Idem p.55) Ou: "Na boceta da mãe, na rebimboca da mãe, na re-bim-bo-ca da boceta da mãe." (Idem, p.53)

O grotesco também se faz presente quando Camargo usa palavras de baixo calão ao lado de composições arrojadas. A descrição de cenas prosaicas ao lado das baixezas naturais do corpo. O erotismo dos corpos é presente em toda a obra de Iberê Camargo, seja na pictórica seja na literária. Entretanto, como Hilda Hilst, ele não apresenta um erotismo que valoriza o belo e as formas clássicas. Seu erotismo se apresenta de forma grotesca, tanto nos desenhos, quanto nas gravuras e nos personagens de suas pinturas. Em suas Conversações (1994) Lisette Lagnado

pergunta ao artista sobre a representação do corpo da mulher, tão presente em sua obra, principalmente a partir de 1980:

Figura 49 -Iberê Camargo, Sem título, 1973. Nanquim sobre papel, 14,3 x 11,2 cm. Figura 50 -Iberê Camargo, Sem título, 1990. Caneta esferográfica sobre papel, 9,5 x 15,8 cm.

LL: Sobre a apreensão psicológica do corpo feminino: a mulher na sua visão, é um ser monstruoso, beirando a animalidade carregado de Fatalidade? IC: Não sei porquê, mas esta pergunta me transporta às ladainhas da Virgem Maria, que cantávamos no ramerrão na capela do internato da Escola de Artes e Ofícios de Cacequi:"Estrela da Manhã", " Farol dos Navegantes", "Mãe dos pecadores", etc., etc. Sim, a mulher deificada, todos esses atributos lhe cabem. Rameira é sempre a outra, não a que nos trouxe ao mundo, ou a que amamos. O corpo da mulher sempre foi motivo para os artistas através da história, e objeto de prazer para os amantes. O corpo humano é belo por fora. Faço questão de ignorar seu aspecto interno. Nos meus solilóquios, procuro me explicar o que faz uma coisa bela. Vê, só um misterioso condicionamento nos faz ver beleza no sorriso, que nada mais é que um arreganhar de lábios, é uma boca que devora e a exibição acintosa de presas que dilaceram. Bem, mas não entremos na oficina de bruxo. Eu amo a mulher. Basta que ela exista. Se for um monstro, será então um divino monstro. (LAGNADO, 1994, p.54-55)

Mônica Zielinsky em seu textopara o Catálogo Raisonné da obra gráfica de Iberê, ressalta a presença de uma sexualidade latente na série de gravuras Erótica:

Figura 51 -Iberê Camargo, Erótica 1, 1987. Litografia, 42,4 x 32,1 cm.

Figura 53 -Iberê Camargo, Erótica 3, 1987. Litografia, 48,6 x 17,2 cm. Figura 52 -Iberê Camargo, Erótica 2, 1987. Litografia, 42 x 28,6 cm.

Figura54 -Iberê Camargo, Erótica 4, 1987. Litografia, 48,6 x 17,2 cm.

Várias litografias compõem obras significativas nesse momento da produçãode Iberê. Constitui a série Erótica, em que quatro delas são elaboradas em 1987, noveem 1988 e uma, que determina a conclusão de um século em 1990. Com figuras esguias, rostos impessoais, quase caricaturas, essas gravuras abordam, em uma conformação aparentemente superficial tocadas porcerta ironia, uma questão importante entre as interrogações. São sintomas de vida: fazer sexo é indício de vida. Outros artistas abordam essa temática, mas Iberê o faz dentro de suas inquirições essenciais do momento. Tem consciência de que não é mais jovem, está doente e os limites da existência anunciam-se. Abordar o erotismo e sexualidade é, para ele, o campo metafórico por excelência das histórias do desejo e das transgressões, em fim da vida. É expansão de sujeito, relação passional e fusão desse mesmo com o outro, uma investigação sobre sua identidade e os territórios partilhados. Nesse sentido, as gravuras da série Erótica trazem na configuração esguia, quase ilustrativa de suas figuras, todas essas questões, também evocadas em diversos de seus óleos e em muitos desenhos desse mesmo período.(ZIELINSKY, 2006, p. 106)

Sônia Salzstein levanta a questão de que, desde o princípio dos anos de 1960, o tema da sexualidade esteve presente na obra de Iberê Camargo, aparecendo sem muitos rodeios e admitindo sem cerimônias o vulgar, o grotesco e o violento no mesmo espaço refinado da pintura informal,no que diz respeito à representação do corpo e da sexualidade. Porém, Salzstein ressalta que nessas últimas pinturas e desenhos o tema da sexualidade parece surgir sublimado, ou talvez fosse melhor dizer esvaziado, em imagens de repouso e meditação:

De modo um tanto curioso, nos trabalhos dos anos de 1990, os cenários quase vazios e a imobilidade dos personagens solitários dão a impressão de que Iberê, no fim da vida, reatava a pintura meditativa e a experiência da contemplação que se viam nos seus primeiros quadros de natureza morta. (SALZSTEIN, 2003, p. 56)

Assim, sob forma vital ou esvaziada, a temática sexual erótica e pornográfica é recorrente na obra de Iberê Camargo. O artista explora em desenhos, gravuras, pinturas e textos a representação erótica. Seus trabalhos se destacam pela frontalidade da figura e a exibição grotesca da genitália dos personagens.

Figura 55 -Iberê Camargo, Crepúsculo de Restinga Seca, 1993. Óleo sobre tela, 65 x 92 cm.

Figura 56 -Iberê Camargo, Mulher e manequim, 1989. Óleo sobre tela, 42 x 30 cm

Tanto as pinturas quanto os textos de Camargosão repletos de uma ironia trágica, do uso de paródias, justaposições de elementos díspares como o fundo composto por uma abstração tradicional,fruto de um virtuosismo pictórico,ao lado de figuras grotescas.Como afirma Bakhtin:

O corpo grotesco é um corpo em movimento. Ele jamais está pronto nem acabado: Está sempre em estado de construção, de criação, e ele mesmo constrói outro corpo; além disso, esse corpo absorve o mundo e é absorvido por ele.(BAKHTIN, 1999, p. 227)

Bakhtin esclarece que, na verdade, o corpo individual, o uno, está totalmente ausente da imagem grotesca, vista sob o ângulo do seu limite, do completo. Segundo Bakhtin, o grotesco ignora a superfície sem falhas que fecha e limita o corpo, fazendo dele um fenômeno isolado e acabado.(Idem)

Considero o corpo grotesco, fragmentado, inacabado, em processo contínuo de construção. Lembrando a frase de Victor Hugo (2007, P. 36): "o belo é um, o feio é mil." Assim, posso afirmar que o grotesco preza pela multiplicidade. E assim é a imagem do corpo na obra de Iberê, sempre inacabada e grotesca.

As justaposições de elementos díspares também é característica da estética do grotesco. Segundo Kayser o grotesco existe na mistura do incompatível: “Ao lado de alegrias mais loucas surgem na vida os dramas mais horríveis; no riso contrafeito das máscaras mais obscenas choram por vezes os sofrimentos mais dolorosos.” (KAYSER, 1986, P. 117)O grotesco, segundo Kayser, se dá na mistura dos domínios, na simultaneidade do belo e do bizarro, do delicioso e do doloroso nauseabundo num todo turbulento. Tudo cabe no conceito de grotesco. (KAYSER, 1986, p.117)

Figura 57 -Iberê Camargo, Mulher 2, 1993. Figura 58 -Iberê Camargo, Sem título, 1991. Guache e Gravura em metal, 15,1 x 9,6 cm. lápis stabilotone sobre papel, 25 x 35 cm.

Outra característica da estética do grotesco presente na obra de Iberê é a presença do riso grotesco. Segundo Wolfgang Kayser o riso cínico, configurando o riso grotesco,é algo essencialmente destrutivo. O riso como um dos temas mais caros do universo do grotesco: a ideia aniquiladora do humor. O riso grotesco que só acontece naquele sorriso em que ainda há dor.

O mundo do grotesco é o nosso mundo -e não o é. Horror, mesclado ao sorriso, tem seu fundamento justamente na experiência de que nosso mundo confiável e aparentemente arrimado numa ordem bem firme, se alheia sob a irrupção de poderes abismais, se desarticula nas juntas e nas formas e se dissolve em suas ordenações. (KAYSER, 1986, p.40)

Não se pode ignorar o sorriso estampado nos rostos das figuras da série As idiotas de Iberê Camargo.

Figura 59 -Iberê Camargo, Tudo te é falso e inútil IV, 1992. Óleo sobre tela, 200 x 236 cm.

Com seus corpos grotescos e seu sexo exposto, essas figuras exibem um sorriso angustiado diante de um cenário catastrófico.

O riso abismal, excêntrico, horrorizante: este riso se torna cada vez mais claramente grotesco, a medida em que não é percebido e, por conseguinte, interpretado como sintoma pessoal do desespero, mas como um poder estranho, desumano. Tão logo alguém rir no momento em que não se deve ririrrompe algo estranho; mas quando a pessoa que ri, o faz contra sua própria vontade (ou de maneira completamente independente dela), então já não é possível interpretar o fato como sintoma pessoal, pois produz a sensação de uma opção direta de um poder estranho. (KAYSER, 1986, p. 61)

A construção de uma imagem grotesca da figura humana nas pinturas de Iberê Camargo também se apresenta sob a temática da morte. Em suas últimas pinturas Iberê abordou incansavelmente a imagem do corpo em sua finitude. "A humanidade

que resiste ao drama de sua dissolução" (SIQUEIRA, 2009, p. 91) Camargo, que diante de degeneração do seu próprio corpo, aos seus 80 anos de vida na luta contra um câncer incurável, , procura reviver as lembranças mais caras da infância. Segundo Kayser,no caso do corpo grotesco, não se trata domedo da morte, porém daangústia de viver. (KAYSER, 1986, p. 159)

O que resta é uma urgência diante da estupidez de um Deus que insufla vida tendo estabelecido a certeza da morte. [...] Nem mesmo uma vaga ideia de eternidade, perpetrada através da obra que fica, pode devolver ao artista a noção de liberdade. [...] Eis o sentimento irremediável do artista que, resoluto, frontalmente se entrega ao pânico da expressão. (LAGNADO, 1994, p.124)

Iberê Camargo não queria morrer, era um inconformado com o passar do tempo que a tudo corrói. Para ele,pintar era uma forma de adiar a morte, iluminar a noite que amedronta o pintor. Sensação que aparece na imagem de suas pesadas figuras deitadas sobre a terra devastada.

Figura 60 -Iberê Camargo, Sem título, 1991. Figura 61 -Iberê Camargo, Sem título, 1991. Caneta esferográfica sobre papel, 24,1 x 32 cm. Grafite, caneta esferográfica e nanquim sobre papel, 24,1 x 32 cm.

Assim, a presença certeira da morte e o seu ímpeto de pintar para negá-la, assume um caráter positivo, "transforma-se até em uma fonte paradoxal de vitalidade." (LAGNADO, 1994, 103)

Com a existência corrompida, banal, venal, onde "tudo é falso e inútil" , Camargo sabe que:

diante da realidade contida do mundo, a morte pode ser até um consolo. Mas apenas se for prefigurada em cada forma, experimentada a cada instante, acatada como experiência última, absoluta, exemplar, de uma luta perene pela afirmação da vida. (SIQUEIRA, 2009, p. 92)

A imagem da morte na obra de Iberê Camargo, o ser caído, o cadáver, também remete a outro elemento intenso do grotesco que é a imagem da terra. A terra sumária que a todos um dia irá abraçare acolher. A terra como a imagem da mãe ao avesso. Um buraco escuro pra onde todos certamente seguirão. A terra, com seus orifícios, tem também um sentido grotesco e corporal. (BAKHTIN, 1999, p. 288) O corpo-terra que,apesar da angústia docaminhar para a morte,também simboliza a renovação vital da fertilidade criativa da pintura,que tem o poder de adiar amorte. Em Camargo,a terra sempre aparece arrasada, como num mundo pós apocalipse, o que amplia a sensação de abandono e de fragilidade das figuras. O expressionismo foi a maneira estética pela qual elese comunicou com o mundo. Para o pintor,a obra de arte só acontecia quando a forma se expressava. Sua arte sempre buscou a expressão. É o que o crítico Paulo Ribeiro afirma:

Para Iberê, arte era transfiguração, isto é, o artista toma a realidade, "toca" a realidade, mas a arte deve nascer exatamente da necessidadede expressão. Em suas memórias sublinharia: "Importante é encontrar a magia que existe nas coisas, na vida. Do contrário, seria apenas um testemunho visual de um fenômeno ao alcance de qualquer um." (RIBEIRO, 2010, p. 245)

O expressionismo foi um movimento que surgiu na Alemanha em oposição à arte vigente e ao academicismo. Segundo Maria Inês Castro e Silva (2011), a primeira antologia de poesia expressionista data de 1919. Os poetas não consideram o expressionismo uma escola ou grupo, mas um movimento. Silva (2011), desenvolveu uma completa pesquisa acerca do expressionismo e do grotesco relacionada à obra do escritor Raul Brandão. Sua pesquisa foi de grande valia nesta tese no que diz respeito à história da arte em relação ao expressionismo. Em sua dissertação, Silva entende o expressionismo como um grito de uma juventude explosiva e possessa, abrasada por uma vontade de inovação. O expressionismo

fundou-se como sendo a voz de todos aqueles que,de alguma forma,tentaram lutar contra o conformismo vigente.É exatamente no inconformismo e no desagrado,que surgem o grotesco e a ironia, como estandartes da geração expressionista. A deformação da realidade e uma atitude pessimista em relação a essa mesma realidade, assim como a expressão do íntimo e a ruptura com a tradição, se unem para dar lugar a um novo olhar sobre o século. Segundo Silva:

Considerado, em muitos momentos, como um ponto que se situa entre a criação e a ação, o Expressionismo concebe a problemática da deformação a diversos níveis, nomeadamente no que diz respeito à linguagem. A deformação aliada à estética do grotesco acentua não só o caráter de revelação, como também sublinha o caráter de afastamento dos expressionistas face ao mundo envolvente. A distorção que o grotesco comporta transporta-nos para o campo das visões expressionistas que se afastam progressivamente do real quotidiano. Neste sentido, podemos defender que o Expressionismo habita um mundo próprio e desfigurado.(SILVA, 2011, p. 21)

Para Silva (2011), o expressionismo é a tensão entre aquilo que o mundo dá a ver e aquilo em que o mundo pode transformar-se, ou seja, expressar-se. Como explica Mônica Zielinsky em seu texto A pintura de Iberê Camargo: um processo sempre inacabado (2003):

A expressão nega a realidade ao inventá-la, em um modo essencialmente crítico. Mostra aquilo que não se iguala àrealidade, mas não a recusa. Não é a duplicação do que é subjetivamente sentido, mas é a sua invenção. Em um movimento de dentro para forao artista traz algo alémdo que percebe, ele reinventa o drama da vida em pintura. (ZIELINSKY, 2003, p.106)

Entretanto, o expressionismo não pode ser considerado um fato datado ou fechado em um determinado período ou espaço geográfico. É certo que o expressionismo não se limita a sentimentos ou cores ou temáticas. Mas o expressionismo também está ligado diretamente na contestação e no inconformismo: onde houver um grito de dor lá estará a expressão deste grito. Segundo Alfredo Bosi:

A poética expressionista alemã só eclodiu no começo do século 20, mas a tendência àmetamorfose vem de muito longe. Vem das máscaras do teatro grego e dos rituais

africanos; vem das figuras grotescas esculpidas nos pátios das catedrais góticas; vem das imagens surreais entre eróticas e demoníacas de Bosch; vem do Barroco Místico de El Greco e dos desenhos pesadelares de Goya; vem da caricatura política de Daumier; anima as fantasias misteriosas de Ensor; inspira as pinceladas em vírgula e em onda das últimas paisagens de Van Gogh, para enfim acender a consciência de si mesma na teoria de Wassily Kandinsky: "todos os procedimentos são sagrados desde que satisfaçam uma necessidade interior ". (BOSI, 1985, p. 65)

Em uma entrevista à Lisette Lagnado, Camargoconfirma essa teoria de Bosi:

LL-O crítico Mário Pedrosa certa vez afirmou que a produção expressionista é uma coisa peculiar a Alemanha. Hora, sua obra traz essa característica. Você acredita que certos movimentos estéticos não possam transcender seu lugar de origem? IC-Como o expressionismo é um grito de dor, ele não tem fronteiras, porque nasce no coração do homem. Pode historicamente ter sido codificado na Alemanha, mas sempre existiu no pranto, no soluço, no sofrimento, e até no uivo do cão sem dono, nas noites do mundo.(LAGNADO, 1994, P.48)

O expressionismo se dá na tragédia, que é um momento que toca os extremos e onde o gesto do artista move-se para o limiar da destruição. E é dessa destruição que nasce a deformação. A forma sob pressão muda de contorno -esse é o princípio da deformação expressionista. E é esse o objeto de estudo de quem persegue a dialética daforça interior e expressão.Como disse o próprio Iberê: "a deformação é a expressão da forma." (CAMARGO in LAGNADO, 1994, p. 25) Segundo Bosi, o expressionismo é o grotesco, a máscara de horror ou pena, o gesto estertorado, a metáfora em órbita, o traço grosso, a mancha empastelada, o vinco mais fundo na xilografia sarcástica, o grito rouco em cena aberta, a estridência e a quebra das harmonias tonais. "Romper, chocar e lacerar são os verbos expressionistas por excelência. " (BOSI, 1985, p. 66)

O crítico Ronaldo Brito reafirma a inclusão da obra de Camargo na estética expressionista:

Uma vez mais, compulsivamente, uma lírica moderna exerce ao extremo o seu autoconhecimento para reativar uma pulsão estética primitiva, anterior às regras, modelos e ideologias. Talvez resida aí o motivo básico da vinculação da poética de Iberê Camargo ao expressionismo. A razão estética emancipada foi e continua a ser obrigada a formular ela própria o antídoto à sua incontrolável voracidade

intelectual. [...] fatalmente, portanto, a sorte da pintura de Iberê Camargo decide-se inteira na agonia do Ato de Expressão. (BRITO, 1994, p.36)

Como grande parte das obras expressionistas, as obras de Iberê Camargo também abordam temas como a sua realidade cotidiana, as ruas desertas, os transeuntes no Parque da Redenção, seus personagens desvalidos originados de suas anotações em cadernos. Temáticas que se aproximam dastemáticasde Oswaldo Goeldi. Ambos produziram obras de um expressionismo alheio à luz tropical. Tanto Camargo como Goeldi apresentam obras onde as cores e as formas são de uma atmosfera fria e sombria. Entretanto, na busca de aproximações, diferente de Goeldi, em Iberê:

as imagens não se dão facilmente ao olhar, sua inquietude vai além do contexto despretensioso no qual tem origem, sua força reside em uma auto decomposição da própria forma, o que gera instabilidade, destrói a fixidez de sua apreensão e interroga o sentido da existência desses personagens. (ZIELINSKY, 2006, p. 105)

Figura 62 -Oswaldo Goeldi, sem título, 1940 Xilogravura, 21 x 27,3 cm. Figura 63 -Iberê Camargo, Músicos, 1987. Litografia, 25,9 x 26,1 cm.

A deformação das figuras em Iberê Camargo se dá sob a forma de negação de uma brasilidade cordial e alegre. Nas paisagens do pintor as árvores estão sempre

desgalhadas e a tristeza e a solidão predominam. Elesempre repetiu: "pinto porque a vida dói. (LAGNADO, 1994, p. 15)

Luiz Camillo Osorio em seu texto Um trágico nos trópicos (2015), ressalta essa ideia de uma antibrasilidade no expressionismo de Iberê Camargo:

O ensaísta português Eduardo Lourenço discutiu em um dos seus textos a tendência da literatura brasileira-e poderíamos acrescentar do modo de ser do brasileiro -em rasurar a dimensão trágica da existência. Segundo ele a estrutura cultural eufórica que caracteriza o modernismo brasileiro vai constituir-se como uma segunda natureza do Brasil [...] este novo nascimento do Brasil para si mesmo - embora mítico ou por isso mesmo-condicionar a forma do espírito e da cultura brasileiros, envolvendo na sua pulsão positiva eotimista das visões mais cruas ou dolorosas da vida nacional nos seus aspectos históricos ou individuais.25 É justamente o mergulho nas visões quase dolorosas da vida que me parece evidenciar a dimensão trágica da pintura de Iberê, sua densidade existencial, sua recusa, tão anti brasileira, a crer que, ao fim, a harmonia afirmará. (OSORIO, 2015, p. 13)

Assim, pode-se pensar que a obra de Iberê Camargo se vale da estética do expressionismo ao utilizar a deformação dos elementos, a presença simultânea do belo e do bizarro, doloroso e nauseabundo, apresentando-se em fusão num todo turbulento no qual o estranhamento se faz como confirmação do conceito do grotesco. O riso grotesco conjugado à feiura do corpo ostentando o triunfo do disforme, a inumanidade progressiva de um mundo que se alimenta de aparências em detrimento de uma verdade ética. Iberê Camargo denominava as telas que constituem sua fase final de vida de realismo grotesco, em que a realidade aparece somente como pano de fundo para a transfiguração do primeiro plano e onde se dão as forças invisíveis, estranhas, que marcam a sua imaginação em estado bastante aguçado. Nestas forças encontram-se as marcas estilísticas da sintaxe expressionista: lirismo impregnado de assombrações, traumas, vergonhas e feridas.

Nessas últimas pinturas aparece um elemento também muito característico da estética grotesca: o manequim.

Símbolo da perversidade, o fragmento do corpo com aparência de manequim foi muito utilizado pelos artistas (MORAES, 2002), representando o corpo feminino

25 LOURENÇO, Eduardo. Da literatura brasileira como rasura do trágico. In: A nau de Ícaro. São Paulo: Cia das Letras, 2001, p. 201.

com algo de manipulável, manuseável, desmontável, transformável à vontade. Tanto que nos anos de 1930, na arte, os manequins passaram a ser chamados de mulherobjeto. Segundo Eliane Robert Moraes (2002), na concepção batailleana, os manequins expressam a inesgotável capacidade de metamorfoses da figura humana desdobrando-se em outros e consequentemente projetando-se para fora de si. O manequim opõe-se ao corpo humano pelo seu caráter esquemático. É uma montagem de formas, uma colagem, uma edição de falsos membros, uma reunião de fragmentos. Para Marcel Duchamp e os surrealistas, o manequim era um veículo para a fantasia e o desejo, também como nos trabalhos de Ray e Bellmer.

Figura 64 -Marcel Duchamp, Figura 65 -Hans Bellmer, Figura 66 -ManRay, Étant donnés, 1945 -1966 A Boneca, 1936 O manequim de Man Ray, 1938 Instalação. Fotografia, 11,7 x 7,6 cm. negativo 1938; impressão 1966. Fotografia, 19,2 x 14,2 cm.

É sabido que George De Chirico, mestre de Iberê Camargo quando o gaúcho estudou na Itália, representou inúmeras vezes a imagem do manequim em suas obras.

Seria difícil precisar as relações possíveis entre os manequins de De Chirico e os manequins que habitam as obras de Iberê Camargo nesta fase final de sua produção. Entretanto, Carlos Zílio ressalta que a figura do manequim para Camargo instala-se

no romantismo e no drama, e a sedução do fetiche, própria dos surrealistas, entra em choque com seu sentimento pessimista, produzindo assim um instantâneo olhar crítico. (ZILIO, 2003, p. 181) Como explica MônicaZielisky:

Figura 67 -Giorgio De Chirico, O Filho Pródigo, 1922. Óleo sobre tela, 87 x 59 cm.

Os manequins de Iberê remetem à revolta do artista em relação ao campo banalizado e solitário do cotidiano, ao vazio da vida e sua inutilidade, à

superficialidade do ser humano urdido no consumo que se alastra na sociedade. Essas personagens falam ainda da espessura desencarnada do homem, do arremedo da vida e da falsidade que permeia as relações humanas. Mesmo em uma conformação aparentemente superficial e ilustrativa, essas obras são carregadas de forte conteúdo crítico. Veem-se impregnados também de profunda angústia, pois esses manequins são indicativos da recusa do artistaa esses fatos que se tramam na vida social. (ZIELINSKY, 2006, p.104)

Figura 68 -Iberê Camargo, Sem título, 1991. Óleo sobre tela, 42 x 30 cm. Figura 69 -Iberê Camargo, Sem título, 1989. Caneta esferográfica e nanquim sobre papel, 34 x 23 cm.

Esses contatos de Camargo com os aspectos banais da vida assumem um lugar destacado na produção do artista e incorporam um forte conteúdo às suas discussões existenciais.Lisette Lagnado(1994)ressalta que é preciso lembrar que a série que o pintor realizou sobre manequins é um exemplo por excelência de Unheimlich, no qual bonecas artificiais questionam a presença da alma. O Unheimlich26 foi um termo usado por Freud e configura o tema do estranho. Na

26 ALMEIDA, Marcela Toledo França de. O estranho e a retomada da angústia. Artigo. Universidade de Brasília. UnB. Disponível em: www.escolaletrafreudiana.com.br/wpcontent/uploads/2012/06/9_Unheimlich.pdf.

psiquiatria, o conceito que aborda a incerteza intelectual sobre um objeto inanimado pode ser, de alguma forma, dotado de vida autônoma. Como, por exemplo, a impressão dada pelas figuras de cera, pelos autômatos e fantoches engenhosamente construídos. Efeitos perturbadores são geralmente obtidos pela incerteza, a imagem estranha do duplo, do corpo estranho. Freud aborda algo que traz à tona sentimentos opostos: repulsa e familiaridade, o unheimlich remete ao sentimento de radical estranheza com o que mais de familiar poderia haver:a nossa própria imagem refletida no espelho ou reproduzida na forma de um simulacro do corpo humano. Eé justamente este o lugar do aparecimento da angústia. A angústia grotesca de viver. Assim,a presença do manequimem IberêCamargotambém nasce pela égide do grotesco.

Figura 70 -Iberê Camargo, Tudo te é falso e inútil V, 1993. Figura71 -Suíte ManequinsIII, 1986 Óleo sobre tela 200 x 250 cm. Serigrafia, 70,3 x 50 cm.

Figura 72 -Iberê Camargo, Manequins, 1985. Serigrafia, 36,5 x 55,2 cm. Figura 73 -Iberê Camargo, Figuras e Manequins, 1985.Serigrafia, 31,3 x 45, 1 cm.

Figura 74 -Iberê Camargo, Manequim e Ciclista, 1992. Gravura em metal, 24,6 x 29,5 cm. Figura 75 -Iberê Camargo, Manequim e Modelo, 1992. Guachee lápis stabilotone sobre papel,70 x 50 cm.

O corpo estranho, na obra de Iberê Camargo, além de pertencer à estética do grotesco, também aparece sob a forma do abjeto que, nas artes,funciona como algo político, uma subversão da beleza e dos interditos do excremento e de tudo que é considerado obsceno. Em suas pinturas e textos Iberê apresenta relação com o

informe e o imaginário escatológico, presentes tanto em sua matéria pictórica como em sua atividade deescritor, o que é evidenciado no conto "O relógio".

A questão política, relacionada ao abjeto na obra do pintor, revela-se quando Camargousa excrementos para protestar contra a má qualidade da tinta brasileira. É Paulo Ribeiro que relata:

O ateliê na Lapa, naquela tarde, estava infestado por um cheiro de merda. Iberê, com efeito, manuseava a matéria fecal como se fosse tinta, amolecendo a pasta com o cabo do pincel. Em sua frente a tela já está toda borrada, empastada, escorrida. Iberê trabalha uma figura abstrata com a própria merda. Protesta com a sua própria merda. Protesta veementemente contra a qualidade das tintas. A tinta não presta. A tinta brasileira parece minha merda - berrava Iberê. Isto é minha Guerra dos Cem Anos, que eu declarei contra essa canalha - berrava Iberê, sempre pronto para voltar à luta. (RIBEIRO, 1996, p. 42)

No conto "O relógio" Camargonarra a história de Savino, um menino que um dia foi usar o banheiro, que era uma fossa do lado de fora da casa. Uma latrinano fundo do quintal construída de tábuas velhas carcomidas pelos cupins e infestadas de aranhas e moscas. Acocorado sobre o assento, Savino faz suas necessidades fisiológicas enquanto é molestado pelas aranhas, pelas moscas e pelo mau cheiro que sobe pelo buraco da fossa. Ao terminar, rapidamentedesce do bancosegurando as calças para que não encoste nas sujeiras espalhadas pelo chão. Ouve um baque abafado dentro da fossa e ao olhar pelo buraco vê o seu relógio desaparecer, "lentamente, numa imundície espessa, escura, variegada de amarelo-laranja." (CAMARGO, 2012, p. 73)

Savino decide reaver seu relógio a qualquer custo, pois era a única herança que recebeu de sua avó. Não poderia perdê-lo.Transcrevo aqui um trecho do conto:

Após dois dias de busca incessante, encontra elos da corrente. Estimulado, redobra os esforços e decide esvaziar a fossa. Começa a retirar da latrina seu conteúdo fedorento, pegajoso, que amontoa sobre folhas de zinco espalhadas pelo pátio. No seu vai e vem deixa atrás um rastro imundo. Ajoelhado, revista minuciosamente cada monte com um graveto, espalhando e separando a merda em pequenas porções. Examina, apalpa cada fragmento. Na busca, reduz a merda a grúmulos. À medida que se demora e que se adentra na busca, a excitação aumenta. Apaixona-se. Não importam mais as aranhas, o nojo e o fedor. Perde todo o escrúpulo: usa as próprias mãos. Com os dedos esmaga cada caroço que encontra. Desfaz, esmiúça

ávido cada nó suspeito na avidez de encontrar os preciosos rubis. Às suas mãos enredam-se pedaços de panos apodrecidos. A merda gruda-se aos seus dedos. Seu rosto se umedece de um turvo suor que escorre pelo pescoço. A camisa amarelece, uma pasta escura endurece a calça nos joelhos. A postura o cansa, sente as pernas entorpecidas. Para recuperar-se, muda de posição: hora de cócoras, ora de joelho, ou, então, apoia-se sobre o joelho direito, depois sobre o esquerdo. Circula em torno dos montes e inadvertidamente aopisar,os pés enlameiam-se. (CAMARGO, 2012, p. 73)

Neste conto, originalmente escrito em italiano, IberêCamargonarra a história de Savino de forma totalmente autobiográfica. Savino é o menino Iberê, no lixo da estação de ferro, à cata de rolamentos, fios, fusíveis, pernas de boneca, caixas de fósforos, carretéis, tubos de graxa etc. " - Esse Savino sou eu - diz Iberê. - Sou eu buscando, buscando no mais fundo das minhas lembranças os meus restos, os meus rastros." (RIBEIRO, 1996, p. 56)

Na tela um homem revira um monte de lixo. Busca, procura obsessivamente nos excrementos. Remexe naquela massa bruta, quase apodrecida. Paulo Ribeiro pergunta: "O que leva um homem a buscar assim na podridão? -Busca uma parte de si. Afetiva -responde Iberê. Este é o homem, esta é a sua arte."(Idem)

Busca nas reminiscências, nos rastros, nas ruínas os motivos para a sua criação. O entulho, os restos do Homem, os restos dessa vida miserável, tratados escatologicamente ali na tela.Segundo Lisette Lagnado:

Aqui, dois aspectos merecem relevância: a metáfora do tempo que se esvai numa fossa (são trazidos à realidade do conto os brinquedos da infância de Iberê, soldadinhos de chumbo, cornetinha e carretéis) e a paixão do sujeito que mergulha de corpo inteiro nas impurezas dos excrementos (símbolo por excelência da matéria da criação que precisa ser trabalhada para que dela possam emergir as formas). A matéria que pré-existe à criação denota ainda uma herança helenista na formação do artista. (LAGNADO, 1994, p. 114)

Figura 76 -Iberê Camargo, O Relógio, 1988. Guache e lápis stabilotone sobre papel, 33,3 x 22,4 cm. Figura 77 -Iberê Camargo, O Relógio, 1988. Guache, lápis stabilotone, caneta esferográfica, grafite e nanquim sobre papel, 32,9 x 22,1 cm.

Figura 78 -Iberê Camargo, Sem título, 1988. Figura 79 -Iberê Camargo, Sem título, 1988. Guache, lápis stabilotone, caneta esferográfica Nanquim sobre papel, 33 x 22 cm. grafite e nanquim sobre papel, 32,9 x 22,1 cm.

E é exatamente num monte de lixo, monturo, que Iberê, à moda de um cubeiro, trabalha seus elementos:

Ser um operário da arte. Carregar a merda - diz. Como os cubeiros faziam. Os cubeiros carregavam a merdaem lata. Explica: - No tempo da minha infância as latrinas eram nos fundos das casas. Os cubeiros eram os sujeitos que carregavam depois os nossos restos depositados lá, as nossas sobras. -É a lição que trago deles -diz. A simplicidade. Ser simples, mesmo que nossa tarefa seja puxar merda em potes. A simplicidade, a simplicidade como técnica. Coisa de antigo -arremata. (RIBEIRO, 1996, p. 43)

Napassagemdo conto "A gaveta dos guardados" de Iberê Camargo, ele diz:

Viver é andar, é descobrir, é conhecer. No meu andarilhar de pintor, fixo a imagem que se apresenta no agora e retorno as coisas que adormeceram na memória, que devem estar escondidas no pátio da infância. Gostaria de ser criança outra vez para resgatá-las com as mãos. Talvez tenha sido o que fiz, pintando-as. As coisas estão enterradas no fundo do rio da vida. Na maturidade, no ocaso, elas se desprendem e sobem à tona, como bolhas de ar. Como se vê, a criação se faz com o agora e com o tempo que recua. O pintor cria imagens para expressar seus sentimentos. Esses podem ser do real ou formas abstratas, pouco importa. Creio que sua criação e duração na obra do artista são determinadas pelo subconsciente. A memória é a gaveta dos guardados, repito para sublinhar. O clima de meus quadros vem da solidão da campanha, do campo, onde fui guri e adolescente. Na velhice perde-se a nitidez da visão e se aguça a do espírito. (CAMARGO, 2009, p. 30)

Figura 80 -Iberê Camargo, Monturo, 1984. Óleo sobre tela, 95 x 212 cm.

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