46 minute read

Cap.4. Hilda Hilst e Iberê Camargo: o esgar do crânio nu

Next Article
5.1.7	Vídeo

5.1.7 Vídeo

CAPÍTULO 4 - HILDA HILST E IBERÊ CAMARGO: O ESGAR DO CRÂNIO NU

Neste capítulo apresento correspondências entre o livro de Hilda Hilst e as pinturas de Iberê Camargo. Através de procedimentos comparativos e intermidiáticos, identifico nos contos do livro Fluxo-floema elementos pictóricos que correspondem de certa forma às pinturas de Iberê. Igualmente, apresento neste capítulo procedimentos pictóricos de Iberê Camargo que relaciono com certos procedimentos de escrita exercidos por Hilda Hilst no livro. Não digo que farei aqui uma comparação entre pintura e literaturapois,segundo Baudelaire(2008, p. 105), as comparações entre artes de códigos diferentes "não passam de ninharias retóricas" , pois, segundo ele, as artes se correspondem. Portanto, o que exponho neste capítulo, são correspondências identificadas por mim, entre as obras desses dois artistas.

Advertisement

Destaquei o máximo possível de peculiaridades linguísticasdo livro Fluxo-floema. Digo linguísticas em nome dos vários gêneros literários de que Hilda se valeu na escrita dessa obra de complexas narrativas e estilos. Em Fluxo-floema, usando as palavras deHilda Hilst, "é quando a putaria das grossas se aproxima da metafísica." (MORAES, 2014, p. 267). Além disso, todos esses gêneros contaminam-se na fronteira específica de cada um, inclusive transmutando-se em prosa-dramática, com a marcação de falas como no texto teatral. As possibilidades flutuam na multiplicidade.

A priori, o recorte proposto na vasta obra de Iberê Camargo para esta tese foram somente as pinturas realizadas entre 1980 e 1994, ano de sua morte. Porém, ao debruçar-me sobre a obra do artista, deparei-me com uma obra múltipla, o que me fez ampliar um pouco o foco da pesquisa. Assim, passei a considerar, além das pinturas, os desenhos, as gravuras e também seus textos. Afinal, o pintor transita por todas essas linguagens com a mesma desenvoltura e potência.Suas questões são asmesmasem todas as modalidades propostaspor esse artista multifacetado.

Nessas andanças feitas pela obra desse gaúcho de Restinga Seca,que tem sua arte apontadatanto para a memória pessoal comopara a grande arteuniversal, descobri que Camargotambém transmutava seu trabalho para a linguagem verbal.Ou seja, a palavra e a imagem, para além da coexistência, se mesclam num amalgamento. Como explica o artista e também escritor Nuno Ramos, na quarta capa do livro de Iberê Camargo No andar do tempo (RAMOS in CAMARGO, 2012):

alguma coisa próxima à literatura sempre esteve lá (na pintura). Claro que as "Ciclistas", pintadas no final da vida, explicam essa origem, obesas de gordura e sentido, mas desde os "Carretéis" já era possível pressenti-lo. Algo vizinho à narrativa insinua-se pelas bordas do quadro, um imaginário que solicita a palavra, intuindo sua presença. Talvez por isso o vínculo fundamental entre Iberê e Goeldi salte aqui com tanta clareza, sob o manto comum de Dostoiévski.

Goeldi era um grande amigo e uma referência para Iberê. Quando Oswaldo Goeldi morreu Iberê escreveu um carinhoso texto prestando uma"homenagem ao querido e grande artista que foi e que todos nós perdemos." (CAMARGO, 2009, p.97) No texto, Iberê ressalta a visão trágica e silenciosa dos homens e das coisasque Goeldi buscou em sua obra, e também a temática constante do homem na sua fadiga de viver.Parece que,ao falar de Oswaldo Goeldi,Camargofala de si e de seu trabalho: "Creio que ele foi magistral ilustrador de Dostoiévski" (Idem).

Em sua entrevista concedida à Folha de São Paulo em 1994:

O Goeldi foi um grande gravador, um grande artista, porque soube ficar no seu mundo, o mundo simples de pescadores, dos córregos, das casas vazias, das janelas. Tem o corredor de fundo e o corredor de cem metros. Cada umtem que saber de que tipo é,senão vai dar em bobagem. (CAMARGO, Folha de São Paulo,1994.)

Com as análises pude perceber que, tanto Hilda Hilst quanto Iberê Camargo, possuem uma constância característica e comum, na expressão da imagética do corpo.

Hilst e Camargoconstroem uma narrativa calcada na angústia do homem de viver na iminência de uma morte certeira. A violência também é uma marca comum à imagem do corpo, tanto na escritora quanto no pintor. Essa angústia vivida pelos

personagens também se deve ao fato da morte estar associada diretamente à violência dos homens contra os homens. O pintor e a escritora apresentam um corpo violentado. No conto "Osmo"de Hilda Hilst:

E agora os meus polegares de aço junto ao seu pescoço, o pescoço delicioso de Kaysa, ah, que ternura rouca explode dessa garganta, que ternura, que ternura. A lua sobre a garganta de Kaysa, o corpo eu vou deixar aqui sob os ramos, que lua, que lua. (HILST, 2003, p. 104)

Como também, em uma aproximação com o literário do pintor, por exemplo no conto "Cartão de Natal" de Iberê Camargo:

Ressoam dois tiros no ar morno daquela tarde que se imobiliza para sempre na minha memória. O homem, atingido, estremece, ergue-se no ar como que impulsionado por uma onda invisível. Um urro inumano reboa e antecede sua queda. Agora, o homem seminu procura erguer-se. Com esforço, põe-se de joelhos, inclinase para a frente apoiando-se nos braços. As mãos tateiam o asfalto. A cabeça lhe pende. A respiração é curta, difícil, ofegante. Seus esforços são vãos. Foge-lhe as forças. Do amplo dorso brotam, sem parar, sutis filetes de sangue - uma vertente, a fonte da vida que se esvai. (CAMARGO, 2009, p.35)

A imagem do corpo do cadáver, da morte, é fato central na obra desses dois artistas. O cadáver, cadere, aquilo que irremediavelmente caiu.Imagem que pode-se identificar no conto "Fluxo": "Rukah está deitado no seu minúsculo caixão doirado. Castiçais de bronze, de prata e de lata. No centro do pátio de pedras perfeitas. Que harmonia."(HILST, 2003, p. 28)

No conto "Osmo" a imagem do corpo cadáver aparece na passagem do assassinato da personagem Mirtza pelo personagem Osmo. Depois há o abandono do corpo na floresta:

Colocou o corpo de Mirtza apoiado num tronco de bétula. Eu poderia ter jogado o corpo de Mirtza no lago, mas não, o corpo de Mirtza não era amigo de muita água, aquele corpo tinha seu próprio cheiro, um cheiro singular e não era lícito despojá-lo daquele cheiro-perfume-singular, cada corpo tem o seu lugar , cada corpo pertence a um lugar, o meu ainda não sei. (HILST, 2003, p. 97)

Porém, foi o conto "Lázaro", que também traz a temática da morte e do cadáver, que escolhi para dialogarcom a pintura No vento e na terra II de Iberê Camargo.

No conto de Hilst, Lázaro descreve a cena: "Estou debaixo desse céu absurdo, arrasto-me, caminho de joelhos, beijo a terra, a terra escura e profunda.". (HILST, 2003, p. 129)Ou em: "Deito-me na terra.Quem sabe? Quem sabe se minha tristeza é apenas uma impaciência de uma espera?" (Idem)

Figura 22-Iberê Camargo, No vento e na terra II, 1992. Óleo sobre tela, 200 x 283 cm

Na tela de Camargo,pode-se ver a imagem de um corpo caído na terra. Numa terra arrasada, num cenário pós-apocalíptico. A mesma terra que simboliza a morte, também simboliza o retorno para o colo da mãe. A terra sumária, o túmulo. Tanto em Fluxo-floema, quanto em Camargo, a imagem da terra é associada a imagem da morte, do corpo caído.

Como na passagem do conto "Fluxo": "Ai, sei que não quero morrer, a terra, a terra dentro da gente, a terra sobre a gente e sob a gente, isso da terra me exaspera." (HILST, 2003, p. 41)A terra grotesca que espera por todos,de boca aberta.

Ao final do conto, Lázaro, perdido em questões metafísicas sobre a verdade da existência ou não de Jesus Cristo, agoniza em uma língua ininteligível tentando fazer um padre crer em sua fé Nele:

Deus é agora a grande massa informe, a grande massa movediça, a grande massa sem lucidez. Está dormindo Lázaro? Dorme, dorme. Lázaro grita. Um grito avassalador. Um rugido. Arregala os olhos e vê Marta. Ela está de pé, junto à cama. As duasmãos sobre a boca. (HILST,2003, p.140)

Ao final do conto "Hiroshima",de Iberê Camargo, depois de percorrer o mundo à procura de um unguento que curasse seu câncer, o homem-pintor se vê diante de uma parede de terra úmida e escura, rasteja por um buraco, como uma pequena gruta, quando se vê apertado, sem poder mais respirar e não consegue mais voltar:

Após os gestos desesperados, as convulsões, os espasmos, os estertores, realidade e pesadelo se misturam: Uma suave sensação de paz, de conciliação, de reintegração e de dissolução-como adosal na água -o invade. O homem -pintor não sente mais o corpo, que por fim se aquieta. A noite desce, uma noite diferente, espessa, impenetrável, mas leve como uma mortalha. Dorme, dorme, foi a última palavra que ele ouviu.(CAMARGO, 2009, p. 41)

Pode-se perceber a proximidade, tanto estilística quanto temática, destes dois trechos. Nos dois contos, "Hiroshima" de Camargo e "Lázaro" de Hilst, ao pronunciarem as palavras, "Dorme, dorme", os autores evidenciam a certeza de uma vitória da morte sobre a vida. Nada mais pode ser feito, não adianta mais lutar: dorme, dorme.

O corpo vivo também é evidenciado nas obras dos dois artistas como um corpo grotesco, o corpo disforme que temos que carregar até o fim dos nossos tempos. O corpo físico em Hilst e em Camargo, apresenta uma transitoriedade e uma decrepitude que anseia o fim.

No conto "Fluxo" a escritoradescreve os personagens Ruiska e sua mulher Ruisis:

ah, Ruisis vai envelhecendo, tem olhinhos estreitos, olhinhos caídos, tristes olhinhos de velha, meio remelentos, pobrezinha, e quando ela chora, sim, porque de vez em quando ela chora quando se lembra das caganeiras terníssimas de Rukah [...] Quando ela chora, a lágrima não cai como cai na jovenzinha que chora, não, quando Ruisis chora, a lágrima fica boiando cheia de sal, de espessura dentro do olho, não nas bordas. [...]Na borda, fica matéria branco-amarelada, no canto do olho também, as pálpebras ficam vermelhinhas e enrugadas, é, Ruisis envelhece rapidissimamente. Rejuvenesço. (HILST, 2003, p. 43)

E também:

O corpo de Ruiska é como um cipó sugando uma árvore que não sei, o corpo de Ruiska é seco, estala, é seco-marrom, ai Ruiska sem aurora, afogado nas paredonas do escritório, subjugado pelos fantasmas do de dentro, pobre Ruiska, que foi meu. ... Está velho sim, eu digo que está moço, está velho, uma fundura de olhos, um vazio de carnes. (HILST, 2003, p. 46)

A construção da imagem dos personagens em Iberê Camargo também apresentase de forma grotesca. Pode-se perceber a proximidade da descrição verbal dos personagens deHilste os personagens de Camargo:

Figura 24-Iberê Camargo, Diálogo, 1987. óleo sobretela, 42 x 30 cm. Figura 43- Iberê Camargo, Fantasmagoria IV, 1987. Óleo sobre tela, 200 x 236 cm.

Observa-se nas figuras do pintor corpos secos, cadavéricos como cipós. Como o corpo de Ruiska, velho, uma fundura de olhos e um vazio de carnes. Como o corpo de Ruisis, envelhecido, com olhos estreitos, chorando com lágrimas secas e remelentas.Como escreve Icleia Cattani:

Que corpos são esses? Corpos fantasmáticos, como nas telas "Fantasmagorias", corpos artificiais, como nos manequins, corpos dominados pela idiotice, como nas "Idiotas", corpos vencidos pelo ceticismo, em "Tudo te é falso e inútil" e corpos derrotados pelo cansaço ou pela morte como em "No vento e na terra I" e "No vento e na terra II" (1991 e 1992, respectivamente). (CATTANI, 1985, p.149)

Ou como escreve Anatol Rosenfeld na introdução de Fluxo-floema:

Hilda Hilst encarna e ao mesmo tempo supera "o limite da carne" que "pesa sobre nós". "O pensamento discursivo e lento" naufraga na corrente vertiginosa de uma linguagem conotativa de cujo ventre fecundo nasce, lembrando quadros de Bosch e Brueghel, o mundo casto e impudico, real e supra-real, profundamente natural e terreno e, ao mesmo tempo, alucinatório e fantasmagórico. (ROSENFELD, 1970, p. 17)

Lisette Lagnado ao descrever a tela No vento e na terra II:

Pintada no mesmo período quea série "As idiotas". Tomado no conjunto da obra de Iberê, este quadro, que é quase duplo de uma versão feita logo antes["No vento e na terra I"], potencializa o inverno e a velhice. Seu céu é feito de tormento e de nuvem carregada, onde o movimento corre para a esquerda. No solo estéril, pela primeira vez na pintura de Iberê, jaz uma figura que parece escutar ruídos vindos do fundo do solo. Está virada para a direção oposta, no contra fluxo da massa de pinceladas. As pernas desproporcionalmente curtas em relação ao resto do corpo, conferem a figura o sinistro aspecto de um grotesco recém-nascido agonizando. Monstro imundo, disforme, boschiano, entre réptil e homúnculo, esta criatura caída catalisa nesta posição tanto a impotência do artista quanto a tirania da consciência da morte. O fundo branco dos olhos, sugerindo que eles tenham sido extraídos, pela primeira vez também remete a um ser desalmado. Que forças derrubaram o ciclista? (LAGNADO, 1994, p. 117)

Hilda Hilst e Iberê Camargo transitaram pela estética da tragédia e da busca da verdade, o que lhes proporcionou uma sensação de isolamento nas intempéries de um mundo enganoso, "falso e inútil" (título da tela de Iberê : Tudo lhe é falso e inútil tirado de um poema de Fernando Pessoa).Hilda e Iberê construíram a imagética dos

corpos em suas obras fundamentados na dor diante da maldade de um mundo injusto.

Tanto as pinturas de Camargoquanto o livro de Hilst, interrompem violentamente a contemplação passiva. Não são obras que prezam a beleza nem a fácil digestão. Os corpos no pintor apresentam-se disformes e muito longe dos padrões de beleza esperado pelas belas artes. Camargobusca uma síntese da imagem do corpoquando se vale de traços rápidos e indefinidos, fragmentando o todo do corpo. Como em Hilda Hilst que não escreve nada para ser lido no "bonde ou para se distrair" .Tanto a escritora quanto o pintor, buscavam uma ruptura com a forma clássica de expressão. Como explica Alcir Pécora:

Em Hilda, a experiência da poesia é a experiência da ruptura sucessiva de todos os pactos, não tem acordo nenhum, não tem acordo nem com os sentidos universais das palavras, nem com os sentidos universais dos conceitos, nem com os sentidos das palavras na língua, porque ela vai quebrando todas elas, porque ela explora a ausência dos sentidos, dentro do que parece organizado.27

É o que Jacques Derrida (1998) fala acerca dos textos de Artauld sobre a "boa inabilidade", que consistiria em desaprender o "princípio do desenho" que é o sistema das belas artes, sua técnica, suas normas e suas competências. Segundo Derrida, a boa inabilidade de Artauld atesta a malversação, pois trata-se de uma outra memória e de um outro saber, de uma outraescola. E Derrida cita Artauld:

Esse desenho como todos os meus outros desenhos não é o de um homem que não sabe desenhar, mas o de um homem que abandonou o princípio do desenho e que quer desenhar na sua idade, na minha, como se nunca houvesse aprendidonada por princípio, por lei ou por arte, mas unicamente pela experiência do trabalho. (DERRIDA, 1998, p.78)

Hilst e Camargo propunham um pensamento do próprio fazer do trabalho. Suas questões, no caso dele, vinham da própria pintura, no dela,daprópriapoética, seja lírica, prosaica ou dramática. Como diz Pécora: "a ideia decisiva de base ontológica

27 Itaú Cultural, publicado em 12 de março de 2015. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=qZEfqJq4sk8> Acesso em: 22/05/2016)

na criação de Hilda Hilst é a própria poesia, o sentido da poesia no mundo. Esse sentido é uma poesia que se pensa o tempo todo. Ao fazer ela pensa sobreo fazer." (Idem)

Mônica Zielinsky explica como este processo se dá no fazer do pintor. Nota-se uma considerável aproximação nos fazeres dessesdois artistas:

Sua verdade [a de Iberê] estava no ato de pintar, nunca fora. Dos detalhes à percepção geral de cada quadro, qualquer parte de sua obra aponta uma violenta revolta, impressa nos relevos e incisões da tinta, nas cores e matizes de cada pincelada, assim como nos pigmentos jorrados diretamente das bisnagas no suporte dos quadros. [...] A dimensão experimental da pintura de Iberê é ação, é a forma dinâmica de agir sobre a matéria. Mas ao mesmo tempo, ela é ultrapassagem de limites, os do suporte e do material, para atingir a essência humana. Pouco importam para Iberê os jargões sobre o estatuto da pintura, eles pertencem a âmbitos extrínsecos a sua arte. Os problemas da pintura, para ele, são formulados exclusivamente pela própria pintura. (ZIELINSKY, 2003, p.109)

O que apresenta-se aqui é o corpo da palavra, ou o corpo da pintura. Essa corporeidade que está ligada à eternidade, que é o que dura, o que fica, depois do último ato criativo. Hilst e Camargo questionaram a presença iminente da morte. Para Iberêpintar era um diálogo com a morte, e Hilda também tinha a morte como um dos pilares da sua poética. Porém, a obra, o corpo da obra, a tela, a palavra é o que sublima a morte. Esse corpo é o corpo que permanecerá no futuro. E esse corpo é constituído de passado. Tanto a escritora quanto o pintor têm a memória viva na constituição de suas obras, talvez uma forma de compreender isso esteja no modo peculiar com que estes dois artistas articularam memória pessoal,pintura e escrita.

Ambos tinham uma relação produtiva com o passado. Seria como se o presente só pudesse existir na possibilidadedo lembrar. Como nas frases bem correspondentes de Hilst e Camargo. No livro Com os meus olhos de cão (1986) no conto "Tu não te moves de ti", a autoradedica o conto "À memória de meus mortos":

Pra onde vão os trens meu pai? para Mahal, Tami, para Camiri, espaços no mapa, e depois o pai ria: também para lugar algum meu filho, tu podes ir e ainda que se mova o trem tu não te moves de ti. (HILST, 1986, p. 113)

No conto "O tormento de Deus" do livro A gaveta dos guardados (2009), de Iberê Camargo, o narrador conta que quando morreu chegou ao outro lado, e uma entidade satânica de nome Tártaro o colocou sentado em uma cadeira e lhe apresentou todo o seu passado, tudo que ele fizera de desenhos, pinturas, textos, cartas etc. Desesperado, o homem estende a mão e suplica por sua paleta, seus pincéis, quer retocar toda a sua obra, refazer seus quadros, corrigir seus erros. O diabo se afastae ouve-se um gargalhada. Então uma voz murmura em seu ouvido, e essa voz é confundida com a própria voz de Iberê (prática muito comum em Hilda também): "o passado vive em ti", assim como também: "jamais poderá deixar de ser".(CAMARGO, 2009, p.113)

Juntas, essas duas frases, a do pintor e da escritora, oferecem a dimensão da importância desse passado. A primeira vista parece uma condenação, mas é, ao mesmo tempo, a única forma de poder existir. Para agir no presente parece que, tanto Hilstquanto Camargo,tinhamsempre que equacioná-lo com a memória. Como diz Iberê Camargo: "No meu andarilhar de pintor, fixo a imagem que se me apresenta no agora e retorno às coisas que adormeceram na memória, que devem estar escondidas no pátio da infância." (LAGNADO, 1994, p. 24) Ou como para Hilda Hilst,que escrever é "antes de tudoa procura de uma expressão para o já sentido e apreendido." (HILST, 2013, p. 8)

Para o pintor a construção da imagem do corpo se dá pela transfiguração, para a escritora, pela transmutação, que é algo situado sempre atrás das aparências. Uma espécie de síntese para ele, ou uma subversão da língua para ela. Longe de um simples testemunho visual, ou de um relato qualquer ao alcance de quem quer que seja.

Assim, a imagem do corpo no livro Fluxo-floema e nos trabalhos de Iberê Camargo produzidos na sua última fase, giram em torno da poética do corpo. Tanto em Hilst quanto em Camargo, essa poética corporal recusa uma unidade estável, ou seja, preza pela fragmentação. Em ambos tem-se a imagem do corpo grotesco, disforme, obeso de gordura e sentido, que vaga solitário, com medo, pela face de uma terra sinistra e violenta, impondo a esse corpo as mais sádicas torturas. Um corpo que vive na angústia da morte,que ameaça acontecer a qualquer momento.Como na fala

de Camargo: "Pinto porque a vida dói", ou: "Se eu me interesso pelo desespero é apenas porque às vezes me ocorre estar desesperado", ou ainda: "Ao tentar desfibrar a dor, fazemos parte dela." (CAMARGO, 1994, p. 15) Ou como na fala de Hilda: "Para mim escrever me provoca mal estar, medo mesmo. É assim mais ou menos como o dia em que a gente vai fazer uma operação. Na manhã desse dia dá aquele frio escuro lá dentro da gente." (HILST, 2013, p. 29) Ou também: "Na poesia, na obra de arte, há uma terra de ninguém, cantos obscuros que para serem iluminados necessitam de sensibilidades 'antenadas' à nossa." (Idem, p. 30) Ou na fala do personagem do conto "O Unicórnio" do livro Fluxo-floema:

ele dizia: existir é sentir dor, existir não é ficar ao sol, imóvel, é morrer e renascer a cada dia, é verter sangue, minha amada irmã. [...] A dor é patrimônio nosso,é assim: eu sinto dor e eu existo assim com esse meu contorno. Eu sinto dor e todos os dias recebo vários golpes que me provocarão infinitas dores. Recebo golpes. Golpeio-me. Atiro golpes. Existir com esse meu contorno é ferir-se, é agredir as múltiplas formas dentro de mim mesmo, é não dar sossego às várias caras que irrompem em mim de manhã à noite. Levante-se comece a ferir esse rosto.(HILST, 2003, p. 169-170)

Figura 34-Iberê Camargo, Eu, carretéis e e dados, 1983. Óleo sobretela, 65 x 92 cm. Figura 33 -Iberê Camargo, Eu e signos, 1981. Óleo sobre madeira, 30 x 42 cm.

As figuras 33 e 34, são duas pinturas de Iberê Camargo dois autorretratos. Nas imagensa cabeça do pintor ocupa 1/3 datela e apresenta-se fragmentada no canto direito, com uma secção no alto. Pode-se perceber a tensão presente tanto no semblante do rosto quanto nas cores empregadas pelo pintor. A figura mostra-se encurralada e esmagada por formas geométricas pintadas de forma agressiva e ameaçadora. Podemos sentir a dor presente nestas cabeças que, postas de lado e espremidas no canto da tela, representamum desespero claustrofóbico.As imagens

parecem verter sangue, pela predominância do vermelho, tanto nas carnes quanto no cenário. Não há diferença de planos. Tudo é posto no mesmo nível. Fundo e figura se misturam. Nestes autorretratos de Camargo, como no texto de Hilst, não há sossego, e as facesirrompem com feridas abertas por golpes de uma existência.Sim, pode-sesentir que realmente a vida dói.

O medo é um sentimento presente em todos ospersonagens doscontos de Fluxoflema e também nos personagens de Camargo. O medo em Hilst e Camargo vem atrelado à angústia de viver. O medo está vinculadoa toda a violência do mundo, e a uma relação com umDeus,do tipo criador e criatura. Em todas as narrativas, tanto de Hilstquanto de Camargo, o medo vem do abandono deum Deus sem compaixão, que decide a vida de quem nada sabe, nem pode, contra ele.

No conto "Sacos de Deus", de Iberê, do livro No andar do tempo (2012), o pintor/escritor narra um Deus reclinado sobre um confortável almofadão, que tira de saquinhos papeizinhos aleatórios para decidir o futurode suas criaturas.

Assim começam os nossos padecimentos sem explicação, sem causas. Chamam a isso de destino. Desde a criação do mundo, Deus entretêm-se neste jogo: Castigar e premiar suas criaturas. Assim distribui catapora para uns, sarampo para outros e males muito maiores. Às vezes, como os governos dos povos, consegue algum benefício. Mas, como acontece aqui na terra, lá no alto a sorte também não é cega. (CAMARGO, 2012, p. 15)

O medo de Deus se vê presente no conto "Floema" de Hilda Hilst, onde o personagem Koyo tenta um diálogocom Deus, que ele chama de Haydum:Eu tenho fome. Escancaro a boca, me deito, as narinas abertas, grito: porco Haydum, chacal do medo, olha-me na cara, não vês que dia a dia estou secando, que a cadela da noite avança a língua? Se eu digo medo, sentes o cheiro? (HILST, 2003, p. 231)

O corpo abandonado, o corpo-medo. Na passagem do conto "Lázaro", de Fluxofloema, o próprio Lázaro descreve seu funeral, seu corpo enfaixado e carregado pelas ruas de sua aldeia, os moradores comentando a sua passagem. Até que chegam à sua sepultura e depositam lá seu corpo morto: "Chegamos. Tenho medo. Um pequeno vestíbulo. Depois a rocha. Dentro da rocha, um lugar para o meu corpo. Olho pela última vez a claridade da minha aldeia." (HILST, 2003, p. 115)

Dentro da sua sepultura Lázaro se encontra comRouah, o Maldito, uma entidade grotesca que pode muito bem representar o Diabo, e que pergunta: "É teu esse corpo?" (Idem, p. 116)Lázaro está em pânico.

Nesta passagem as mãos de Rouah são partes consideráveis na narrativa: "as mãos compridas, afiladas, glabras, eram absurdas aquelas mãos naquele corpo." (Idem) Pelas mãos, Lázaro tem medo de se reconhecer em Rouah, (HILST, 2003, p. 120)quando Lázaro ressuscita, pois é através das mãos que se dá o milagre:

O maldito: que ele não me toque a cabeça. Que ele não me toque a cabeça, que ele não me toque a cabeça, que ele não me toque a cabeça. Encosto as minhas duas mãos nas mãos de Rouah. Encosto o ventre. Encosto o peito. E ouço as minhas palavras: irmão gêmeo de Rouah, eu preciso voltar, eu devo voltar. E de súbito não o vejo mais. (Idem)

Na pintura de Iberê Camargo Homem (Fig. 81) pode-se perceber uma figura central com as mãos abertas voltadas para a frente e sua cabeça voltada para trás. Constatamos que a figura, de boca aberta e olhos arregalados, está com medo. Atrás dela, à direita, na direção de seus olhos, vemos uma figura estranha, com uma cabeça quadrada, azul escuro, contornada de branco, provavelmente com tinta aplicada diretamente do tubo. Os olhos negros e a sobrancelha grossa e sisuda. A boca com dentes cerrados e verdes causando uma sensação desagradável e estranha. Ao fundo, em tons terrosos, temos a impressão de um lugar fechado e claustrofóbico. A esquerda nota-se os signos usuais de Iberê: o carretel e o dado, símbolos da sua memória, como já vimos.

Figura 81-Iberê Camargo, Homem, 1984. Óleo sobre tela, 60 x 120 cm.

As figuras são pintadas de forma grotesca, onde a representação mimética dá lugar à expressão. O que Camargo pretende com isso é afastar o caráter figurativo, ilustrativo, narrativo e assim buscar o figural. Segundo Deleuze (2007, p. 12), o figurativo está ligado à representação, implica relacionar uma imagem a um objeto e buscar ilustrá-lo. Já o figural, busca a sensação que emana dos objetos e dos corpos. Na pintura de Camargo, nota-se a busca pelo figural, no sentido de uma forma pura, e expressiva.

Camargo, como Hilst, busca a sensação e não a representação, como explica Deleuze: "pintar a sensação ouregistrar o fato: é uma questãomuito precisae difícil saber por que uma pintura toca diretamente o sistema nervoso. " (Idem p. 43) Se, segundo Camargo, a deformação é a expressão da forma, eDeleuzediz que a forma remete à sensação (figura), logo:"É por isso que a sesação é mestra de deformações, agente de deformações do corpo." (Idem) Isso vale para cada quadro, para cada figura.

Em Camargo existe o horror, o medo e a violência, porém, as figuras sentadas, agachadas ou deitadas não sofrem nenhuma tortura nem brutalidade, nada de visível se dá. Assim,efetuam melhor a potência da pintura. Como explica Deleuze:

É que a violência tem dois sentidos muito diferentes: quando falamos de violência na pintura, isso não tem nada a ver com a violência da guerra. A violência do representado (o sensacional, o clichê) se opõe à violência da sensação. E esta se faz só na ação direta sobre o sistema nervoso, os níveis pelos quais ela passa, os domínios que atravessa: sendo ela mesma uma Figura, ela nãodeve nada à natureza de um objeto figurado. É como em Artauld:a crueldade nãoé o que acreditamos ser, depende cada vez menos do que está representado. (DELEUZE, 2007, p.21)

Portanto, pode-se pensar que Camargo eHilstperseguema expressão dosafetos, ou seja, sensações e instintos, e, no caso da obra desses dois artistas, baseadas na dor e na violência a histeria é uma forma de produzir tais sensações no leitor/expectador. EDeleuze explica que histeria seria essa:

O que queremos dizer é que há uma relação especial da pintura com a histeria. É muito simples. A pintura se propõe a destacar diretamente a presença da representação, para além da representação. O sistema das cores é ele mesmo um sistema de ação direta sobre o sistema nervoso. Não é uma histeria do pintor,éuma histeria da pintura. Com a pinturaa histeria torna-se arte. Ou melhor, com o pintor a histeria se torna pintura. O que a histeria é totalmente incapaz de fazer, um pouco de arte, a pintura o faz. (DELEUZE, 2007, p. 27)

Como na Figura 81, Homem, e também na Figura 82, Medo, que representa uma cabeça em pânico. Suas mãos também se evidenciam representando o pavor, quando o personagem põe as mãos nas laterais da cabeça num gesto de desespero. Na pintura, Figura 82, o personagem aparece em um ambiente fechado, posicionado à direita da tela. À esquerda os habituais signos de Camargo.

A temática da mão é recorrente em Fluxo-floema e em muitas pinturas da fase final de Iberê Camargo. A imagética da mão, segundo Eliane Robert Moraes,

remete a uma tópica antiga, desenvolvida por vários filósofos. Aristóteles, por exemplo, afirma que a mão possibilitou ao homem tornar-se senhor da natureza, pois "foi a criatura capaz de adquirir o maior número de técnicas que a natureza dotou do utensílio efetivamente mais útil, a mão". (MORAES, 2002, p. 190)

Segundo a pesquisa de Eliane, vários autores concordam que a supremacia humana fundou-se em definitivo quando o homem assumiu a postura ereta: "assim,

a conquista da verticalidade estaria na origem da primeira forma humana, ou seja, da mão."(MORAES, 2002, p.191)

Porém, tanto em Iberê quanto em Hilda, não há orgulho algum desta mão capaz dos mais horrendos atos de barbárie. Nas bombas de Napalm, nas violências das guerras e das explorações do homem pelo homem. Assim, a mão torna-se a parte menos humana do ser humano. Semelhante recusa encontra-se num poema de Robert Desnos, que denuncia a sujeição das mãos às atividades mais produtivas da sociedade burguesa:

Existem mãos terríveis / Mãos manchadas de tinta do estudante triste / Mão vermelha sobre a parede da câmara do crime / ... / Mãos abertas / Mãos fechadas / Mãos abjetas que seguram uma caneta / Ó minha mão você também / Minha mão com suas linhas misteriosas / Por quê? Antes as algemas. (DESNOS apud MORAES, 2012, p.193)

Em seu Dicionário de símbolos (2016) Chevalier e Gheerbrant explicam que a simbologia da mão exprime as ideias de atividade. A palavra manifestação tem a mesma raiz que mão. Manifestar-se representa aquilo que pode ser alcançado pela mão. (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2016, p. 589) Nas artes plásticas, segundo os autores, as mãos simbolizam atitudes interiores. As mãos do homem estão ligadas ao conhecimento, à visão, quando estão ligadas à linguagem. Todas as civilizações com maior ou menor sutileza, utilizaram da linguagem das mãos, dos gestos e das atitudes.

A mão é como uma síntese, exclusivamente humana, do masculino e do feminino; ela é passiva naquilo que contém; ativa no que segura. Serve de arma e de utensílio; ela se prolonga através de seus instrumentos. Mas ela diferencia o homem de todos os animais e serve também para diferenciar os objetos que toca e modela. Mesmo quando indica uma tomada de posse ou uma afirmação de poder -a mão da justiça, a mão posta sobre um objeto ou um território, a mão dada em casamento ela distingue aquele que ela representa, seja no exercício de suas funções, seja em uma situação nova. (Idem, 592)

As mãos, fragmento do corpo, tanto em Camargocomo em Hilst, proclamam esta parte do homem. Sua marca pode indicar um rastro humano, o que diferencia o

homem dos outros animais e também simboliza muitas coisas como o poder, a opressão, o medo, a técnica e as artes. A manifestação do homem por excelência.

Figura 82-Iberê Camargo, Medo, 1985. Óleo sobre tela, 65 x 92 cm.

Tão humana mão. Como nas pinturas rupestres da "Cueva de las Manos" , na Patagônia. A presença humana impressa na história.Como na passagem do conto "O Unicórnio":

É difícil diante do teu corpo, é muito difícil. Daqui a pouco eu terei o flanco repousado, daqui a pouco eu terei a boca aberta, os olhos sonolentos e estarei sujo como a humanidade inteira, sujo, de mãos abertas e preparadas para me oferecer à humanidade inteira. (HILST, 2003, p. 166)

O crítico Ronaldo Brito, também explica essa questão do corpo humano em Iberê:

Sintomaticamente algumas telas assumem mesmo o aspecto de inscrições rupestres, a testemunhar a perplexidade primitiva da fera humana. Nada, porém, mais distante de qualquer brutalidade tosca do que esse virtuosismo pictórico, talvez inédito na história da arte brasileira. Pois toda essa atmosfera sombria, póshecatombe nuclear, termina prontamente redimida pela intensidade do seu brilho estético -o que quer que ainda sobre de autêntico e positivo naideia de beleza que se encontra aqui. (BRITO, 2005, p. 227)

Figura 83 e 84 -Cueva de las Manos28

A série Hora é composta por quinze quadros. Neles pode-se observar a cabeça fragmentada, os símbolos recorrentes da memória de IberêCamargocomo os dados, carretéis, setas e principalmente as mãos.Tudo isso em um espaço fracionado:

Figura 85 -Iberê Camargo, Hora V, 1983. Óleo sobre tela, 95 x 212 cm

28 Crédito das fotos disponível em: < http://ourancientworld.com/Settlement.aspx?id=739> Acesso em 19/08/2018

Figura 86-Iberê Camargo, Hora VIII, 1984. Óleo sobre tela, 93 x 132 cm.

Figura 87-Iberê Camargo, Hora VI, 1984. Óleo sobre tela, 95 x 212 cm.

Figura 88-Iberê Camargo, Hora VII, 1984. Óleo sobre tela, 93 x 132 cm.

Nestas pinturas da série Hora, que são numeradas com números romanos, podese constatar a correspondência das pinturas com os textos de Hilst. O pintor trabalha em um fluxo de consciência, aplicando as tintas na tela, raspando e aplicando novamente. Observa-se também os signos utilizados por Camargo, que remetem à sua memória e ao seu corpo. Observa-se que em muitas pinturas ele se valeu do seu próprio autorretrato. Suas coisas, seu passado. Pode-se ver ali seus carretéis, seus dados, sua mão impressa na parede úmida terrosa da tela. Como em "Lázaro" de Hilda Hilst, Camargo toca seu passado com as mãos. Na série, os carretéis, brinquedos da sua infância longínqua, vem aqui se metamorfosear em ampulhetas e ossos. Em toda a série Hora, como no conto "Floema" de Hilst, vemos a fragmentação do corpo: cabeças, mãos, secções orgânicas.

Torna-se visível também a fragmentação do tempo e do espaço, pois tanto na escritora como no pintor não há representação de um espaço determinado ou um tempo específico. Em Hilst não se sabe quem fala, para quem fala, quem responde,

onde ou quando. Tudo é fragmentação e fluxo. Se o leitor não se arriscar a nadar contra a correnteza, é levado e dificilmente conseguirá se agarrar à algo. Em Hilst nada é dado ou de fácil compreensão, o tempo todo a escritora exige do lastro intelectual do leitor.No trecho inicial de "Floema":

KOYO, EMUDECI. Vestíbulo do nada. Até... onde está a lacuna. Vê, apalpa. A fronte. Chega até o osso. Depois a matéria quente, o vivo. Pega os instrumentos, a faca, e abre. Koyo, não entendes, vestíbulo do nada, eu disse, aí não há mais dor, aprende na minha fronte, o que desaprendeste. Abre. Primeiro a primeira, incisão mais funda, depois a segunda, pensa: não me importo, estou cortando o que não conheço. Koyo, o que eu digo é impreciso, não é, não anotes, tudo está para dizer, e se eu digo emudeci, nada do que eu digo estou dizendo. (HILST, 2003, p. 221)

Figura 89-Iberê Camargo, Grito, 1984. Óleo sobre tela, 132 x 93 cm

"Grito: bando de inúteis, corja porca" (HILST, 2003, p. 31) "Grito três vezes: Marta! Marta! Marta! Não me ouve. Rolam a pedra. Fecham a entrada. Tudo está terminado. É verdade. Tudo está terminado." (Idem, p. 116) "Lázaro grita. Um grito avassalador. Um rugido. Arregala os olhos e vê Marta. Ela está de pé, junto à cama. As duas mãos sobre a boca."(Idem, p. 140)

O grito. Nestas três passagens, protagonizadas pelo grito, temos três diferentes situações do grito. Na primeira o personagem se revolta, levanta e grita "corja porca!" O grito como símbolo de uma reação, o grito como um protesto.

O segundo grito, de Lázaro, é um grito de aflição, um grito de desespero e medo do desconhecido. O grito de um morto de dentro da sepultura quando esta se fecha e ninguém ouve. Porém o terceiro grito é um grito maléfico paralisante, um grito de horror extremo, um grito de um acordar de um pesadelo absurdo. Um rugido.

É preciso considerar a questão do grito, tanto no pintor quanto na escritora. Na pintura de Camargo, Grito (figura 89), pode-se observar a mesma composição das pinturas da série Hora: as mãos fragmentadas, a cabeça do pintor, porém não aparecem os símbolos usuais do carretel, dados, setas nem o X. Oque se apresenta é uma cabeça que grita. O fundo abstrato não pertence a nenhuma paisagem, funde-se à figura, ou melhor, às figuras, pois não há uma única figura, há uma reunião de fragmentos corporais de forma violenta, imersos em um vermelho escuro, sanguinolento e composto de pinceladas brutais. A pintura é composta praticamente de vermelho com alguns traços em branco, provavelmente feitos com a própria bisnaga da tinta, algumas nuances de azul violáceo e também traços de amarelo. O pretodatelaé uma tonalidade bem escurado vermelho, ou seja, um vermelho bem escuro impregnado de tinta preta. Como apresentei anteriormente, as cores nesta pintura funcionam como uma histeria. Uma sensação disposta a atingir o sistema nervoso do expectador.

O vermelho é uma cor que é universalmente considerada como símbolo fundamental do princípio davida, com sua força, seu poder e seu brilho, o vermelho cor de fogo e de sangue. (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2016, p. 944) O vermelho que representa o ventre, onde morte e vida se transmutam uma na outra. O vermelho escuro do sangue profundo que é escondido. O sangue escondido é a condição da vida. Espalhado, significa a morte. Segundo Chevalier e Gheerbrant, no dicionário de símbolos:

Não há povo que não tenha expressado-cada um à sua maneira-essa ambivalência de onde provém todo o poder de si, intimamente ligados, os dois mais profundos

impulsos humanos: ação e paixão, libertação e opressão; isso, as bandeiras vermelhas quetremulam ao vento do nosso tempo o provam! [...] O vermelho denota, entre as virtudes espirituais, o ardente amor por Deus e pelo próximo; entre as virtudes mundanas valentia e furor; entre os vícios a crueldade, o assassinato e a carnificina; entre as competições do homem, a cólera. A sabedoria dos bambaras diz que a cor vermelha faz pensar no calor, no fogo, no sangue, no cadáver, na mosca, nairritação, na dificuldade, no rei, naquilo que não se pode tocar, no inacessível. (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2016,p. 946)

Em Fluxo-floema também se faz presente o vermelho, a víscera, o sangue. Como o vermelho no conto "Floema" que se faz vida:

A garganta é um muito que me deste, se estás me ouvindo me entendes, a garganta é delicada, uns tons mais altos, outros mais escuros, é vermelho - clara, úmida, escorregadia, tudo escorrega para baixo, soubeste fazê-la muito bem, matéria delicada essa que canta com esse som, e pode cantar,às vezes te louva, mas a maior parte dos vivos que sabem da própria garganta não te louva [...] temos a cor da víscera, somos crus, abaixamos em vão nossas cabeças, tu disseste, pai, que a cabeça dos homens é antena, antena esfaimada de futuro. (HILST, 2003, p. 229)

Como tambémovermelho no conto "Fluxo" se faz morte:

(Ruiska) estás sozinho como um porco que vai ser sangrado, estás sozinho como um boi que vai ser comido, sabes como é o boi? Abrem a veia, deixam-no sangrar, enquanto isso todos conversam, amam, tu és um boi, Ruiska, e te imaginas homem, pedes todos os dias que te deem as mãos, suplicas, procuras o Deus, ele está aí mesmo no teu sangue, na tua natureza de porco, nesse chão escuro por onde escorrem os teus humores, no teu olho revirado, ai, acalma-te, preserva-te, estás em emoção, [...] o teu caminho terá um só destino, a morte, ela sim é grandiloquente, ela é rainha, chega a qualquer hora, oh, não te exaltes, recebe-a, tens mais ossos que carnes? (HILST, 2003, p. 70-71)

O vermelho na pintura Grito (figura 89) tende dos tons claros da carne viva, da força,para osprofundos vermelhos,escorridos pela terra, pelas entranhas da terra vermelha ferrosa,como o sangueda veia aberta.

Nas pinturas de Camargo e nos textos de Hilst, não se trata de reproduzir ou inventar uma forma ou uma cena específica, não há uma comunicação direta ou uma mímese. Tanto o pintor quanto a escritora procuram única e exclusivamentecaptar a força das coisas, das palavras e das cores. Gilles Deleuze, em seu livro Francis

Bacon: Lógica da sensação (2007), analisa a obra de Francis Bacon (1909-1992) por encontrar nopintor irlandês um exercício depensamento que pretende neutralizar a narração, a ilustração e a figuração. No livro, Deleuze situa Bacon na história da pintura destacando Cézanne como o pintor que mais se aproxima de Bacon, pela importância que asensação tem em suas obras.

Esse livro de Deleuze foi de grande valia para esta tese pois, além de conceituar a sensação na obra de Bacon, Deleuze estabelece uma aliança entre Bacon e literatos como Kafka, Artauld, Beckett, escritores muito próximos da poética hilstiana e da poética iberiana. Essa aliança entre pintura e literatura, proposta por Deleuze, aproxima ainda mais seus conceitos da pesquisa proposta por esta tese. Iberê Camargo cita Francis Bacon em sua entrevista à Lisette Lagnado, apesar de não reconhecer diretamente certa afinidade, pois Camargo não era afeito acomparações de seu trabalho com outros artistas. Segundo Lagnado(1994, p. 31) pode-se notar muitas correspondências entre os dois artistas, e apresenta características que aproximam sim, Camargo de Bacon. Afinal, como Iberê, Francis Bacon era um figurativo, que tem em seu trabalho figuras trágicas. Um artista pessimista que produziu uma obra repleta de carga dramática.

Deleuze explica em seu livro que a questão da separação das artes, no caso de alguma hierarquia, perde toda a importância. Segundo Deleuze, o que importa nas artes, seja na pintura, literatura, música e todas as outras modalidades criativas, é a captação das forças. E, para ele, a força nas artes está em relação estreita com a sensação. "É preciso que uma força se exerça sobre um corpo, na forma de uma onda, para que haja sensação." (DELEUZE, 2007, p. 30) Deleuze cita a célebre frase de Paul Klee: "não mais trazer o visível mas tornar visível." (Idem) É assim que a literatura deve tornar verbais as forçasnão verbais e a pintura, visíveis as forças invisíveis. É o que Camargo, Hilst, Bacon, Cézanne, Klee, Artauld, Kafka, Dostoiéviski e muitos outros artistas perseguiram ao longo de suas obras: o som de um grito, como pintálo, como escrevê-lo? Fazer ouvir o som das cores na música, como fazer ouvir o vermelho?

Segundo Deleuze, Bacon abre mão de pintar o horrível visível para pintar o grito. Pintar o grito,seria captar ou reter uma força invisível. Por isso pode-se aproximar

os procedimentos de Francis Bacon aos deIberê Camargo e de Hilda Hilst: nenhum deles vêrazão para pintar os horrores do mundo, pois sabem que a figuração visível é secundária na arte e tem cada vez menos importância. Para esses artistas, é importante para a expressão de uma sensaçãosair do figurativo, da ilustração e da narração factual. É Kafka, segundo Deleuze, "que fala em detectar as potências diabólicas do futuro que bate à porta. E cada grito as contém em potência." (Idem, p.32) Como nas pinturas de Camargoe nos textos de Hilst, há a escolha do grito ao invés do horror, a violência da sensação dos corposao invés daquela do espetáculo: "O meu corpo é precário, é pouco, estende um grito, lança matéria na minha semivida." (HILST, 2003, p. 239)

A imagem do corpo,nas pinturas de Iberê Camargo e nos textos de Hilda Hilst, é a imagem do precário, da "boa inabilidade" e da rejeição ao figurativo. É um embate contra a "pintura que só sabe pintar",segundo Artauld. Derrida(1998)explica esse pensamento de Artauld, que alinha-se com o pensamento de Deleuze acerca da sensação:

Esse ao mesmo tempo olho e ouvido faz da arte pictórica uma arte que transcende a pintura, "a pintura que só sabe pintar". Essa última expressão fala de uma certa literalidade da pintura; tem aqui um valor negativo que em outros lugares parece inverter-se. Mas seu sentido na verdade deve ser mudado. Para além desse fechamento secular de uma pintura que só sabe pintar, a pictografia que se dirige também ao ouvido torna-se o modelo de toda a arte, particularmente do teatro: "Digo em todo caso que essa pintura é o que o teatro deveria ser, se ele soubesse falar a língua que lhe pertence. [...]fazer a linguagem servir para exprimir o que ela não exprime habitualmente: é servir-se dela de maneira nova, excepcional e não costumeira, é dar-lhe suas possibilidades de abalo físico. (DERRIDA, 1998, p. 56)

Assim, a imagem do corpo em Camargo e Hilst, foge à literalidade, busca a expressão fora da técnica, mas na deformação. A deformação do corpo que busca abater a verdade sobre o corpo,a fim de tornar visível as forças que não o são.Tanto para o pintor quanto para a escritora, um grito se estende para além do horror espetacular e visível, um grito que emerge da matéria pastosa das tintas e das entranhas das palavras ditas sem sentido, sobre a nossa semivida, e postas ao sabor de um acaso dirigido num fluxo ininterrupto da memória que não pode ser mudada

ou apagada. Em Hilste Camargoa vida, ou a semivida, grita para a morte. Eambos, como em Francis Bacon, Beckett ou Kafka, quando representaram o horrível, a multidão, a prótese, a queda ou a ralé, também deram à vida um novo poder de rir extremamente direto: o riso grotesco. Os corpos que sorriem em Hilst e Camargo são corpos desesperados. A ironia toma o lugar do sorriso. Georges Minois, em seu livro História do riso e do escárnio (2003), demonstra que a ironia, ao longo da história,tem sido destrutiva:

no dualismo entre o inferior e o superior a ironia sabota o superior em nome das necessidades do inferior, e assim que o superior é abatido, um novo dualismo se instaura e a ironia retoma seu trabalho de sapa. Ela acaba por tornar tudo relativo: religião, Estado, razão, valores e opróprio homem. (MINOIS, 2003, p. 571)

Segundo Minois (2003), o princípio da ironia é o pessimismo. É uma questão individualdoser. Para o escritor, a ironia não é zombaria: no fundo, leva as coisas a sério, mas dissimula sua ternura. (Idem, p. 570)

O espírito moderno coincidecada vez menos com o mundo; ele não se "cola" mais ao real; ironiza sobre tudo, porque tudo é virtual, e a fronteira entre virtual e real está cada vez mais diluída. Assim, a atitude irônica torna-se quase obrigatória -questão de sobrevivência para o espírito humano, que deve destacar-se dessa nova vizinhança, para não ser absorvido por ela."Se tomássemos as coisas como elas realmente são, a vida moderna não comportaria mais nem absurdo nem ironia" escreve Witkin. Mas então seríamos devorados pelo mundo; a ironia é indispensável para nos manter distantes em relação ao meio, cada vez mais virtual, que nos circunda. Quem não é irônico em relação à internet será devorado por ela.(MINOIS, 2003, p. 571)

Hilda Hilst e Iberê Camargo são dois artistas que, na vida e na arte, tiveram uma postura bastante irônica em relação às regras de uma sociedade desigual e desumana. Ambos encararam, com ironia ácida e feroz, religião, Deus, valores sociais, a arte, e sobretudo o próprio homem. Tanto Hilst quanto Camargo, foram contundentes, virulentos e polêmicos. A postura dos dois perante a vida e a arte aparece de forma similar na maioria das entrevistas. Mostraram-se pessoas de personalidade forte, porém com um humor sagaz. Ambos diziam não suportar a

burrice e não hesitavam em responder a uma crítica. O riso grotesco, na obra de Hilste de Camargoé um riso irônico, o riso da Idiota (pintura de Camargo), o riso da caveira.

A imagem do corpo-caveira também é comum em Hilste em Camargo. No livro,o risoda caveira tem como objeto os dentes, uma metáfora recorrente em toda a obra da autora. Como na passagem: "o dente branco à mostra, o riso sempre." (HILST, 2003, p. 232)

Em outros livros da autora, a imagem dos dentes também se evidenciam como no conto "Com meus olhos de cão" (1986), do livro homônimo, onde o protagonista declama:

Dentes guardados. Não acabam nunca se guardados. Na boca apodrecem. Na caixinha de metal aquele dente lá, para sempre. [...] Vou pegar aquele meu dente na gaveta. Agora? Agora sim Amanda. (HILST, 1986, p. 19)

Amós, outro personagem que também tinha problemas com os dentes:

Amós passou a língua sobre as gengivas. Também deveria ir ao dentista, (claro que ele tem que ir) com a idade tudo vai piorando ele chegou a me dizer da última vez, quando foi mesmo? (HILST, 1986, p. 14)

Na crônica de Cascos & Carícias (1997), "Por que, hein?",Hilda termina com uma parábola-pergunta: "Por que os dentes caem quando estamos velhos, mas ainda vivos, e permanecem eternos nas nossas límpidas e luzidias caveiras? (HILST, 2007, p. 28)

Esta é, de certa forma, a questão central do último livro da escritora- Estar sendo. Ter sido (1997) - que, não por acaso, põe em cena um personagem às voltas com seus problemas dentários. Na figura do velho e decrépito Vittorio concentram-se os impasses que ela vem investigando desde Fluxo-floema (1970), mas com uma radicalidade que leva ao extremoa violência poética de sua interrogação da morte: "e que morrendo meio louco e aos poucos vai perder dentes e cabelo... " (HILST, 1997, p. 30) ou em outra passagem: "perguntei hoje ao Matias se tiram o ouro dos dentes quando se é cremado." (Idem, p. 47) Como explica Eliane Robert Moraes (1999)no seu artigo "Na medida estilhaçada":

Na iminência de ficar desdentado, o personagem fica impedido de acalentar até mesmo a derradeira esperança de permanecer através dos dentes; precipitado no vazio, ele depara com o oco da caveira, figura paradoxal da ausência que traduz, no plano humano, a alteridade absoluta do Cara Cavada. Tal é, pois, a ambiguidade excessiva que recobre os dentes: se, de um lado, eles representam a única possibilidade de eternizar a matéria, de outro, viver significa necessariamente deixá-los apodrecer. (MORAES, 1999, p. 124)

A caveira, o Cara Cavada, o que sorri sempre,está presente nas pinturas de Iberê Camargo e na obra de Hilda Hilst. Tanto para a escritora quanto para o pintor, a caveira, os dentes expostos, a face do monstro, adquirem uma conotação dúbia, como explica Moraes(2002):

Ela [a caveira] reúne numa mesma erupção o nascimento e a morte. Isso significa que, neste caso, a caveira não é apenas um símbolo fúnebre mas também, e ao mesmo tempo, uma evocação da vida: na qualidade de signo que identifica o gênero humano, ela constitui o imperecível, o que perdura do corpo mesmo depois da morte. Seria difícil encontrar melhor imagem para expressar a existência eterna, da matéria - ou, se quisermos, da coisa humana - assim como para sustentar, com tal poder de síntese, a tarefa dialética de desmentir e manter os traços da figura humana. (MORAES, 2002, p. 206)

Iberê Camargo e Hilda Hilst tinham em comum a marca da caveira, o estatuto da vida com a certeza da morte. A angústia de viver, como um ser para a morte. Ambos tinhamrelação estreita com a obra do pintor irlandês Francis Bacon. Em seu último livro Estar sendo. Ter sido (1997), a autora, como de costume, cita vários escritores e artistas, dentre eles Francis Bacon:

tu estavas no canto da sala com o copo de uísque na mão, naquele canto, aqui da sala onde temos o Gruber, o desenho da menina famélica (sempre detestei este desenho, detesto fome, pobreza, riscos negros num quadro, detesto Francis Bacon também, aqueles horrores que os pedantes gostam, se vissem alguém desfocado assim mijariam-se nas calças, mas ficam com ós, ais, belíssimo, não? e o horror ali, todo desfazido e nauseabundo). (HILST, 1997, p. 21-22)

Nota-se que,além de Bacon, Hilstcita o artista e gravador brasileiro Mário Gruber (1927-2011), que também tem uma obra marcada pelo expressionismo e pelo realismo social. O personagem fala do horror de Bacon, da cabeça desfocada, deformada. Fala da temática expressionista, da desigualdade social, da fome. Fala

também das pinceladas fortes de cor preta, ressaltando o desenho, comuns em Bacon e Camargo.

Parece que há uma ligação tripla entre Hilst, Camargo e Francis Bacon. E é exatamente por isso que podemos entender muitos aspectos dos procedimentos da escritora e do pintor brasileiro pelos pensamentos de Gilles Deleuze (2007) acerca da pintura de Bacon.

Deleuze fala do sorriso em Bacon, "que não vemos mais do que o sorriso abjeto." (DELEUZE, 2007, p. 9) Um sorriso, segundo Deleuze, para além do grito, que tem a mais estranha função de assumir o despedaçar-se do corpo. Para ele, Bacon sugere que se trate de um sorriso histérico. Sorriso abominável, a abjeção do sorriso. (Idem p. 15).

O riso da caveira, o Cara Cavada que sempre nos sorri lembrando da certeza da nossa finitude. O riso grotesco das Idiotas de Camargo, com o rosto retorcido e um esgar ao mesmo tempo torturado e ameaçador. Que se correspondem com aironia e o humor de mal gosto dos personagens de Fluxo-floema. Em Hilste Camargo,o traço mais marcante que nos remete a uma das essências do grotesco é o esgar do crânio nu. A caveira em Iberê e Hilda expressa isso. Como explica Paulo Ribeiro:

Ao substituir a "máscara habitual", que oculta um semblante vivo e que respira debaixo dela, a máscara se converte ela mesma no semblante do homem. [...] O crânio com seu esgar, motivo muito consistente para uma configuração do grotesco. (RIBEIRO, 2010, p. 331)

A imagem da caveiraé um signo importante tanto na obra do pintor quanto na da escritora. Na obra de Iberê Camargo, constato o aparecimento do "Eterno Sorriso" em 1983 na pintura Hora II.

A série Hora é caracterizada pela presença de signos memorialísticos do pintor, como os carretéis e os dados. E no caminhar da sequência das pinturas os signos foram transmutando em setas, cabeças, mãos eossos. Na pintura Hora II percebe-se a transmutação dos signos em crânios. Pode-se observar a presença de dois crânios: um em cima à esquerda, em tons azuis e na posição de 3/4. E o outro à direita, na parte inferior da tela, ao lado de uma cabeça que nos olha de frente. Em cima à

direita, percebe-se a presença de um carretel vermelho, pintado de forma quase abstrata. Ao que pude perceber nas pinturas de Iberê, do início de sua carreira até o final, esta é a primeira pintura na qual aparece a figura do crânio, imagem que tornou-se recorrente até os últimos trabalhos: "Minha pintura é um diálogo com a morte." (CAMARGO, op cit, LAGNADO, 1994, p.103)

Figura 90-Iberê Camargo, Hora II, 1984. Óleo sobre tela, 132 x 93 cm.

This article is from: