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4.1. O corpo político

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Particularmente, a imagem do corpo morto, finito, em fase de decomposição embora ainda vivo, o tempo-corpo, a velhice, a decrepitude, representados pela imagem da caveira,é a imagem do corpo recorrente em Hilste em Camargo. Ambos têm a memória como base de suas construções artísticas. A memória como uma arqueologia, que deve ser escavada com as mãos e com cuidado. Isso reflete a importância da tradição na obra desses dois artistas. A tradição que representa o passado, aquilo que não volta jamais. A morte.

Bem, parece-me que o tema mais constante, o que aparece mais em minha obra, é a problemática da morte. Quero dizer que ela esteve constante, presente, em toda minha poesia, em todos os homens e mulheres, meus personagens; todos eles, em muitos momentos, se perguntam ou meditam sobre a morte. Porque eles não estão conformados. Também eu não estou conformada com esse conceito da maioria das pessoas de que a morte é definitiva. (HILST, 2013, p.32)

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Em Iberê, a imagem da caveira tem como ponto de partida as pinturas da série de óleos Hora (1983), e é na tela Hora II que a imagem da caveira aparece mais explicitamente.Porém, na série de quatro óleos denominada Fantasmagorias, 19861987, a figura toma proporções mais radicais, e Iberê,no intuito de tomar o corpo e deformá-lo, apresenta figuras descarnadas e esqueléticas:

Nesses quatro quadros, além do crânio exposto como "máscara", levando ao estranhamento, são os esqueletos, com seu conteúdo macabro, que reiteram de maneira consistente a entrada de Iberê no grotesco modernista. O horror presente nessas telas é o indício de toda a posterior desfiguração do modelo. Elas são produtos dos seus pesadelos e temores, com os quais o homem-pintor se debatia num duelo absurdo. (RIBEIRO, 2010, p. 331)

4.1. O CORPO POLÍTICO

Gostaria de apresentar agora, um trabalho de Iberê Camargo que tem um procedimento peculiar em toda a sua obra.

No fim de 1983, o jornal Zero Hora de Porto Alegre, convidou vários artistas para realizarem uma exposição nas ruas da cidade. Os artistas deveriam produzir suas obras para seremexpostas em placas de outdoor.

A história mostra que tempos políticos nervosos não só cobram dos artistas alguma resposta e tomada de posição, como interrogam a própria arte sobre seu papel na sociedade. E em 1983 o Brasil estava em agitação com o movimento que buscava o fim da ditadura militar e as eleições diretas. O objetivo do projeto do jornal Zero Hora era o engajamento de um grupo de artistas, que levariam um pouco de arte às ruas de Porto Alegre.Entre os participantesestava Iberê Camargo, gaúcho reconhecido àquela altura como um dos grandes pintores brasileiros, que se reambientava em seu retorno ao Estado, depois de décadas vivendo no Rio de Janeiro.

O posicionamento político é uma marca comum nos trabalhos de Hilda Hilst e de Iberê Camargo. Ambos recusavam a desigualdade, a opressão e a corrupção. Bradavam contra a ignorância e a falta de educação. Entendiam a relação direta da exploração capitalista com a derrocada de um projeto de bem estar social. Entretanto, nem a escritora, nem o pintor, acreditavam em uma linha de fuga pela via da política partidária. Iberê produziu e publicou diversas charges em jornal com o pseudônimo Maqui:

Porque você assina charges com o pseudônimo Maqui, que remete à resistência francesana época da invasão alemã na segunda guerra mundial? Porque eu sou um indignado, que deseja um país melhor. Nunca fui omisso. Sou um homem da resistência, da denúncia, sou um maqui. Acho que a charge é um excelente veículo para expressar problemas do momento, comentar coisas que não teriam lugar na minha pintura, onde as questões são mais essenciais e menos factuais. Se Fernando Pessoa tinha seus heterônimos, por que eu não posso ter os meus? (CAMARGO, 2016, p.20)

Hilda também escreveu e publicou para o jornal Correio Popular, de Campinas, entre 1992 e 1995. Crônicas, geralmente publicadas aos domingos:

Ler aquelas crônicas da primeira metade dos anos 1990, especialmente no que diz respeito à sua indignação contra a roubalheira generalizada do governo e a insensibilidade venal e cruel dos políticos, é seguramente tão atual hoje quanto no tempo em que as escreveu. Quase digo que o que ela disse antes, apenas agora se

revela em toda a sua densidade e mau cheiro. Mas não era profecia, não, longedisso: é apenas continuidade cabal e aperfeiçoada do mesmo merdel de "quinto mundo". (PÉCORA, 2007, p. 18)

Assim, confirmo a presença marcante da política nas obras de ambos. Porém, nenhum deles apresenta uma posição panfletária ou partidária. Ambosapresentam a imagem do corpo-político bem particular e pessoal, marcada por uma descrença absoluta. "Obsceno não é o cu, mas as bombas de Napalm. As verdadeiras obscenidades, as políticas, ninguém toca nisso." (HILST, 2014, p.260)

O outdoor comemorativo de fim de ano, que Iberê pintou (fig. 91) para o projeto do jornal Zero Hora, foi um trabalho com características diferenciadas de toda a sua obra. Esse trabalho foi o que mais se aproximou de questões relativas à arte contemporânea.

Em primeiro lugar pela questãodo suporte. A obra foi concebida em uma placa de outdoor, que é um elemento da publicidade, uma contaminação intermidiática que é uma característicacontemporânea bem conhecida da pop art. Outra questão relativa ao suporte é quanto àefemeridade da obra. Ela tem um tempo de vida determinado, ela só existe enquanto ação. Este trabalho de Camargo se aproxima muito dos procedimentos das performances, modalidade artística que existe enquanto ato e, muitas vezes, só podemos conhecê-la através de registros de filmagens ou fotográficos. Como é o caso dessa obra do pintor, que foi toda registrada em fotografias. Porém, a pintura foi feita para ficar ao tempo, pintada em papéis de cartazes de outdoor. Quando acabaram os contratos de locação, foram arrancados. Esta questão é presente na arte contemporânea quando artistas questionam o mercado de arte, a arte como produto de bens de consumo e acumulação. A arte urbana dialoga com esse painel de Camargo. Em entrevista ao jornal Zero Hora a curadora do projeto dos outdooors e da exposição individual de Iberê Camargo "Diálogos no tempo" (2016), Angélica Moraes responde:

No projeto dos outdoors com trabalhos artísticos, como foi a participação de Iberê? O país vivia a ebulição da campanha das Diretas Já!, e os artistas plásticos gaúchos estavam fortemente envolvidos em manifestações e passeatas. Todos os artistas tiveram total liberdade de tema. A maioria fez trabalhos que aludiam à campanha das Diretas. Iberê já apoiava essa causa e usava um macacão dos postosde gasolina Ipiranga com o logo da empresa, nas costas, transformado por ele no slogan "Grito do Ipiranga Já". Mas sua primeira experiência em arte urbana tratou da paz mundial.

Ele pintou um trágico mural que remete ao holocausto nuclear e dialoga com a Criação de Adão, de Michelângelo, para a Capela Sistina. Creio que esse momento da vida de Iberê diz muito para os tempos atuais.29

Figura 91-Iberê Camargo, Sem título, 1983. Acrílica sobre papel, 900 x 300 cm.

Figura 9230

29 Disponível em: <https://gauchazh.clicrbs.com.br/cultura-e-lazer/noticia/2016/04/exposicao-resgataenvolvimento-de-ibere-camargo-com-a-agitacao-politica-dos-anos-1980-5757346.html> Acesso 23/08/2018.

30 Idem

Outra questão importante deste trabalho de Camargoem outdoor, é o diálogo com a tradição. A arte contemporânea é caracterizada, do ponto de vista histórico e criativo, por projetos artísticos desenvolvidos pelos artistas contemporâneos em diálogo com coleções históricas dos museus de arte antiga. Neste caso, Camargo, dialoga com seu grande mestre, o pintor da Capela Sistina.O que se vê,nesse dialogo de Camargo e Michelângelo, é uma tradução intersemiótica, ou também, uma reescrita criativa. De qualquer forma, a tradução, no sentido amplo de releitura, reescrita ou transcrição, aparece como grande diretriz da criação poética. E o recurso à tradição, como fonte para novas criações, vem sendo incansavelmente frisado pela crítica e pela criação pós-moderna. Como se os artistas contemporâneos quisessem tirar a poeira do passado das obras cânones clássicas, podendo assim reutilizá-las, transformando-as de tal forma que, em vez de objetos de contemplação, o objeto artístico torna-se objeto de pensamento.

O outdoor de Iberê Camargo é uma peça artística com grande carga política. Enquanto seus colegas inspiravam-se na temática das Diretas Já!, que era uma questão da sociedade brasileira no momento, Camargo tratou de questões mais essenciais do ser humano, das guerras, do armamento nuclear, das atrocidades capazespelo homem. Era a questão danatureza humana que importava: "O Brasil é contra o brasileiro. Somos antropófagos. [...] Deus tem seus erros. O principal deles foi criar o homem." (CAMARGO, 2016, p. 16) Ou em "O Unicórnio" quando o personagem narrador:

O genocídio, os requintes de crueldade, homens que estão comendo homens, mulheres de teta murcha sangrando, cadáveres de criancinhas, milhares de pessoas apodrecendo, opressão, sangue em todos os caminhos, é preciso responder com sangue, basta de palavras, mate-se, você, aí, mate-se, você com a boca entupida de palavras. (HILST, 2003, p. 191)

No outdoor de Camargoa imagem da caveira é presente de forma dominante, e as cores também são as características desta fase - o preto, o vermelho e o azul. O pintorusa a imagem de Michelângelo, da A criação de Adão, como uma crítica aum Deus que põe suas criações em um mundo brutal, onde todos os seres caminham para a morte. Camargo e Hilst tinham sérias críticas ao "Deus todo poderoso " que trata seus filhos como cobaias, diz o personagem do conto "O Unicórnio":

Então você acredita que Deus é o mal? E o sol, o mar, o verde, as estrelinhas? Olha, é assim: os homens não colocam as cobaias em caixas limpas, transparentes, cheias de comidinhas e de brinquedinhos? A um sinal as cobaias tocam os brinquedinhos, as luzinhas se acendem e as cobaias comem as comidinhas. É, isso é. Mas não é só isso. Não. Os homens injetam todos as doenças do mundo nas cobaias. Para salvar o homem. Então, minha velha, deus também faz isso conosco, só que as cobaias somos nós e existimos e estamos aqui para salvar esse Deus que nos faz de cobaias. Não, não. [...] acho que Deus se alimenta de todas as nossas misérias. (HILST, 2003, p. 157)

É assim o Deus do outdoor de Iberê Camargo. Um Deus que nos legou a angústia da morte. A finitude.

Figuras 93 e 94-Iberê pintando o outdoor comemorativo de Ano Novo no ateliê da Rua Lopo Gonçalves, Poto alegre, 1983. Fotos: Martin Streibel

Figuras 95, 96 e 97-Iberê Camargo, Estudos para outdoor comemorativo de Ano Novo, 1983.

A velhice, é também uma imagem do corpo comum em Hilst e em Camargo: "ah, Ruisis vai envelhecendo,[...] é, Ruisis envelhece rapidissimamente." (HILST, 2003, p. 43) ou: "Ruiska está velho sim, eu digo que está moço, está velho, uma fundura de

olhos, um vazio de carnes." (HILST, 2003, p. 46) Camargo, em sua obra, também exercita sua observação da figura humana. O artista construiu infinitas conotações para nos aproximar dessas humanidades. Como na série Desastre (1987), em que retratou carcaças de carros amontoados em um ferro velho. Iberê usou essas carcaças, objetos aparentemente inanimados, ou seja, sem alma,como uma metáfora do corpo: soturnas reflexões sobre a velhice e a obsolescência patrocinada pelo consumismo. Pode-se pensar que a série Desastre é uma (con)sequência da série Manequins, que também pensava a questão do corpo explorado pelo consumismo, a beleza fútil e pré-determinada.

No fim sobra tão pouco-diz.-Sabe o que sobra mesmo para nós velhos? É a certeza de que não há mais nada que se possa fazer para que não se seja tão obsessivo, tanta entrega ao que a gente faz na vida. A vida é cruel. A vida é miserável. Miserável como essa mão. (CAMARGO op cit RIBEIRO, 1996, p. 44)

Vem a história da finitude, da degradação do corpo. A carne acaba, e depois disso depois disso, nada. (HILST, 2014, p. 260)

Figura 98-Iberê Camargo, Sem título, da série Desastre, 1987. Grafite e lápis Stabilotone sobrepapel 21 x 31,7 cm.

Além das formas inanimadas para conotar a imagem do corpo, a escritora e o pintor também se valeram de um bestiário para indiciar o corpo e a alma humana. Como já apontei, ambos têm uma vasta lista de animais que habitam suas obras. Entretanto identifiquei o rato, o sapo e o cachorro como os animais comuns aos bestiários de Hilste de Camargo: "Os cães podem me comer o coração, eu vou matar esses cães, eu vou matá-los. Você tem um revólver? Uma faca? Um veneno?" (HILST, 2003, p. 155)

Ou mais adiante:

Eu tinha pensado em escrever a estória de um homem muito simples, um homem que nunca havia visto o mar, nem conhecido uma mulher. Ele era um carpinteiro. Ele não entendia o mundo, não entendia. E ele se apaixonou por uma mulher que sabia tudo sobre o mundo. A mulher fez uma porcaria com ele. [...] Ele começou a correr e chegou até a colina mais alta da cidade. Já era noite. Ele deitou-se sobre a terra, respirou e de manhã encontraram o corpo e vários cães ao redor. Os cães estavam comendo o corpo? Não, os cães não entendiam como era possível que um cão não tivesse pelos, nem corpo de cão. Depois os cães se deitaram em cima dele e ficaram ali até que o corpo apodrecesse. (HILST, 2003, p. 156)

Na imagem da figura 100observa-se um homemdeitado na diagonal do papel. Ele apresenta um corpo desgastado e velho, seus dentes aparecem deforma grotesca e sua boca semiaberta parece morta. As narinas aparecem como as narinas de um morto no caixão. Seu braço direito estende-se perpendicularmente e os dedos se abrem. À sua direita, um cachorro sentado olha seu corpo tranquilamente como se esperasse algo acontecer. Porém, à sua esquerda, vê-se outro cachorro que se aproxima sorrateiramente, como se espreitasse o momento de atacar. Os olhos do cãosugeremmaldade, o homem está inerte, entregue ao acaso.

Figura 99-Iberê Camargo, Sem título, 1991. Caneta esferográfica sobre papel, 23 x 34 cm.

A esquerda do desenho encontra-se uma figura feminina, agachada, nua, com os braços apoiados nos joelhos. Trata-se de uma figura grotesca, corpo de mulher e cabeça de gata. Essa figura representa a femme fatale, e seu sexo exposto frontalmente indica o grau de sexualidade dessa personagem. Uma pussycat, uma gatinha sexual e, ao dialogarmos este desenho com a passagem do texto de Hilst, podemos perceber que: "A mulher fez uma porcaria com ele." (idem); provavelmente este homem foi traído. Tanto o texto de Hilstquanto este desenho de Camargo, remetem à fatalidade feminina. Gilles Néret, em seu texto no livro Pussycats (2003) cita um trecho de Simone de Beauvoir do livro O segundo sexo: "O cio feminino é suave palpitação de um molusco; ela espreita como a planta carnívora, o pântano onde se afundam insetos e crianças; ela é sucção, ventosa, ela é resina e visgo..."(BEAUVOIR op cit NÉRET, 2003, p. 14)

E mais à frente:

Porque o sexo da mulher é igualmente para o homem essa gruta maléfica que leva tudo aos Infernos, segundo os gregos antigos, para quem a Morte era "oca e obscura como a mulher". (Idem, p. 13)

O rato também é uma imagem comum à obra de ambos. No livro, a escritora cita este animal em diversos momentos, algumas vezes em uma atmosfera abjeta: "olha aqui um rato, que fedor." (HILST, 2003, p. 53) Mas a imagem do rato em Hilst que mais dialoga com a imagem do rato em Iberê aparece na passagem do conto "O Unicórnio", quando a personagem narradora conta uma história para outra personagem. É a história de um rato que tentava subir num muro mas ele nunca conseguia,pois o muro era muito alto e as pedras do muro eram muito lisas. À noite, quando o rato dormia, cansado de tentar escalar o muro, sonhava que chegava ao alto e avistava a paisagem, as montanhas, os rios, as árvores, enfim, uma pequena parte de um mundo novo. (Idem p. 183) Esta passagem refere-se à peça de teatro escrita por Hilda Hilst em 1967 chamada Rato no muro (HILST, 2000, p. 61), e está presenteaté na sua poesia:

Os amantes no quarto Os ratos no muro A menina Nos longos corredores do colégio (HILST, 1970, p. 11)

Em Camargo, a imagem do rato também aparece de forma abjeta. No seu livro No andar do tempo (2012),eleescreve, em 1952,o conto "O rato",onde o personagem Terêncio acorda de um pesadelo onde sonha que está perdendo os dentes (mais uma vez, os dentes). Horrorizado, introduz os dedos na boca para fixá-los aos maxilares. Um guincho estridente o assusta, um rumor insuportável. Embora receoso, Terêncio caminha até ao banheiro, de onde vem o barulho. Descobre um ratão na banheira, debatendo-se na água ensaboada, suja, usada de véspera. Desesperado, o rato tenta subir, sem sucesso, pelas paredes escorregadias da banheira. Terêncio sente muito asco do rato,e de muitas maneiras tenta tirá-lo de lá. Depois de muito custo, e muito nojo, Terêncio consegue levar o rato para fora de sua casa e o despeja na rua:

...devolve o rato à cidade adormecida. O rato, estropiado, arrasta-se ao longo da sarjeta procurando um buraco para esconder-se. Terêncio o contempla. Depois o persegue, o alcança e salta enorme, pesado, com os dois pés sobre seu corpo molhado: um esguicho de sangue escapa do focinho, O asfalto tinge-se de vermelho, as vísceras escapam do ventre e da boca do rato esmagado. Terêncio sente palpitar debaixo dos pés aquela carne macia, peluda e quente. (CAMARGO, 2012, p.27)

Figura 100, 101, 102 -Iberê Camargo, ilustrações para o conto "O rato". 1990. Nanquim sobre papel, 21 x 31, cm cada.

Tanto o rato de Hilst quanto o rato de Camargo tentam subir desesperadamente por uma parede escorregadia.Ambos almejam uma mudança de ambiente que possa proporcionar uma vida melhor, e ambos,assim que conseguem, têm um fim trágico. Pode-se interpretar a imagem do rato como a imagem do ser humano que tenta desesperadamente uma vida melhor, sempre caminhandopara a morte.

O sapo também aparece nas pinturas de Camargo e também em Fluxo-floema, quando Ruiskadiz: "Vou mergulhando no poço. O olho encarnado do sapo no fundo do poço. No fundo do poço o olho encarnado do. Sapo no fundo do poço. Sapofundo. Que bonito sapofundo. Há cadáveres por aqui. Ah, isso há."(HILST, 2003, p. 43)

Fig.103-Iberê Camargo, À beira da da lagoa, 1988. Lápis Stabilotone sobre papel, 33,1 x 22 cm. Fig. 104 -Iberê Camargo, Ilustração para o conto"À beira da lagoa", 1988, tintade esferográfica e nanquim sobre papel, 33,4 x 22 cm.

O sapo, segundo Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, no seu Dicionário de Símbolos (2016), é um animal que traz em si o símbolo da feiura e do grotesco. Está representado pela noite e pela Lua. Segundo eles, sapo é a Deusa da Lua. O que se explica pela predileção do animal por recantos sombrios e úmidos. O sapo é um anunciador da chuva, por isso aquele que lhe fizer mal corre o risco de ser fulminado pelo céu. O sapo está em afinidade com o sexo da mulher, provocando, por ocasião do coito, a flacidez pós-ejaculatória do pênis. Além do simbolismo sexual, o sapo está relacionado com o conceito de morte e de renovação. Nas tradições europeias de magia, o sapo é considerado uma das formas do demônio. O sapo seria um espírito maléfico, responsável pelo fato da morte instalar-se na terra. (CHAVALIER; GHEERBRANT, 2016, p.803-804)

Identifiquei também,entre a obra da escritora e do pintor,algumas coincidências metafísicas. Não encontrei em lugar algum, referência sobre um possível encontro entreHilst e camargo, provavelmente nunca se conheceram. Viveram em épocas e lugares diferentes. Tinham um código de linguagem diferente, um verbal o outro

visual, apesar de Camargo se aventurar na escrita e Hilst na pintura. Porém,algumas ocorrênciassão comuns aos dois. Sabe-se que Hilsttem um potente trabalho na área da dramaturgia. Oito textos teatrais, finalizados entre 1967 e 1969 (Fluxo-floema foi escrito em 1970) compõem a produção da escritora nas artes dramáticas. Pela época, sua dramaturgia dialoga com o período ditatorial brasileiro. Elatrabalha com alguns arquétipos equestiona os limites humanos, a violência, a fé e a ausência de fé, diante de uma situação extremamente injusta. A peça O verdugo (1968), foi citada indiretamente no conto "O Unicórnio":

O verdugo. O verdugo deve se sentir muito sozinho, não? As noites devem ser compridas, será que ele não imagina que uma noite dessas vão matá-lo? Como serão os sonhos de um verdugo? Como será um verdugo quando come carne? Agora não existem mais verdugos. Não, agora somos todos verdugos. (HILST, 2003, p. 158)

Camargotambém tinha uma atuante presença nas artes dramáticas. A relação com a dramaturgia é uma face pouco conhecida de sua obra. No acervo da Fundação Iberê Camargo31 pude ver estudos de boca de cena e figurinos para o Balé Rudá, peça de Heitor Villa-Lobos jamais executada pelo compositor em vida. Além de um conjunto de oito painéis de 1960, criado a partir da lenda-conto "A Salamanca do Jarau", de Simões Lopes Neto. No curta-metragem Presságio (1992), de Renato Falcão, Camargodesenha o ator Manoel Aranha enquanto este vive um personagem da peça. No acervo da Fundação Iberê Camargo também consta os guaches criados pelo pintor para uma encenação de Luigi Pirandello – O Homem com a Flor na Boca , cuja atuação de Manoel Aranha, quando já atingido pelo HIV nos anos de 1990, levou Camargo à comovente performance em seu estúdio que pode ser visto no filme O Pintor (1995) de Joel Pizzini.

Uma série de guaches de 1986 ilustra a peça As Criadas, de Jean Genet, motivada pela montagem do grupo Ói Nóis Aqui Traveiz(intitulada As Domésticas).

31 http://iberecamargo.org.br/acervo/

No livro Fluxo-floema de Hilst a figura de Jean Genet aparece quando dois personagens conversam: "O Genet ...pois é, é o Genet. (HILST, 2003, p. 154) A obra de ambostrazem um diálogo com o teatro e as outras artes. A intermidialidade é um conceito que identifiquei nas obras do pintor e da escritora, a partir do diálogo de ambos com diferentes códigos de linguagem e a contaminação dessas linguagens em suas obras. Camargo, além do seu ofício de pintor, desenhista e gravador, também manuseava as letras com desenvoltura, como já visto aqui. Porém, o que não é tão conhecido,são os dotes plásticos de Hilda Hilst.

Com o advento da Flip(Hilda Hilst foia escritorahomenageada na Feira Literária de Paraty, 2018), foi montado no evento uma instalação chamada Casa Hilda Hilst, onde foram expostos desenhos e pinturas inéditos da escritora, trabalhos que foram parte essencial do processo criativo da autora.

Figura 10532 -Pintura de Hilda Hilst. Figura 106-Pintura de Hilda Hilst.

32 Fig. 105, 106, 107, 108: Disponível em:< https://gq.globo.com/Cultura/noticia/2018/07/casa-hilda-hilst-apresentadesenhos-ineditos-da-autora-na-flip-2018.html >

Figura 107-Pintura de Hilda Hilst. Figura 108-Desenho de Hilda Hilst.

As figuras 105 a 108 são trabalhos inéditos da escritora, que até então conservavam-se guardadas na Casa do Sol. Acredito que não seria inconveniência ou inadequação apontar evidentes correspondências entre esses trabalhos plásticos de Hilst e os desenhos de Camargo. As cores de Hilst são bem próximas da paleta do pintor -o azul, o vermelhoe o ocre. Os traços pretos marcam as formas e realçam os desenhos,como em Camargo. Nitidamente, podemosperceber a não importância da representação naturalista do modelo. É notável que nesses trabalhos de Hilst, como em seus textos, não há uma intençãonarrativa ou de uma comunicação direta com o expectador. O que ela busca nesses trabalhos plásticos é a sensação. Indiscutivelmente, o desenho em linhas,feito comcaneta esferográfica,se aproxima ainda mais da linguagem gráfica de Iberê Camargo.Podem ser apenas coincidências, mas que servem para marcar ainda mais as relações que identifiquei entre a obra de Hilda Hilst e de Iberê Camargo.

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