Solicitadoria e Ação Executiva | Estudos #9

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Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução

SOLICITADORIA E AÇÃO EXECUTIVA

ESTUDOS #9

DEZEMBRO 2022 – DEZEMBRO 2023

LABOR IMPROBUS OMNIA VINCIT

FICHA TÉCNICA

SOLICITADORIA E AÇÃO EXECUTIVA

ESTUDOS #8

dezembro 2022 – dezembro 2023

Ficha Técnica

Diretor

Francisco Serra Loureiro

Editora

Edite Gaspar

Colaboraram nesta edição

Anabela Susana de Sousa, Bárbara Rodrigues Pinto, Catarina Brígida da Silva Augusto, Cláudia Teixeira, Cristiano Coval Marques, Isabel Maria Rocha de Almeida, Iva Alberta Teixeira Faria, Juliana da Silva Cavadas, Luana Alexandra Costa Silva, Marco Rodrigues, Micaela Sofia Silva Pimentel, Nelson Filipe Gomes de Sousa, Patrícia Anjos Azevedo, Paula Liliana Moreira da Silva, Ricardo Medeiros Sousa, Tiago Vitória Carvalho, Vânia Morais Martins e Virgílio Félix Machado

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Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução

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ÍN DI CE

Nota introdutória 10 O estabelecimento da filiação na atribuição da nacionalidade portuguesa ......................13 Justiça Alternativa: O Solicitador enquanto mandatário na Mediação e nos Julgados de Paz .36 Concurso de Credores.....................................................................................49 O mandato sem representação..........................................................................65 Exoneração e Exclusão de Sócios .......................................................................79 Objeto possível da patente: estudo de caso no contexto europeu.................................97 Intervenção de terceiros no processo de execução ................................................ 113 A obrigação subjacente aos títulos de crédito e os seus requisitos no âmbito executivo..... 123 O Estado de direito democrático: da revolução de 1974 à CRP .................................. 135 Contrato de Mútuo Oneroso VS Negócios Usuários.................................................. 151 A alteração do contrato de sociedade, em especial o aumento e a redução de capital social ............................................................................................................. 162 Contrato de locação financeira e os seus efeitos 181
Nota introdutória

NOTA INTRODUTÓRIA

Nota introdutória

N

ota introdutória

Sendo uma das principais atribuições da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução colaborar na administração da Justiça, tem sido nosso objetivo diversificar essa mesma colaboração, nomeadamente através de diversos contributos que promovam um desenvolvimento técnico e intelectual de todos os profissionais desta Ordem, tornando-os cada vez mais preparados para o auxílio ao cidadão.

É assim objetivo desta oitava edição da coletânea "Solicitadoria e Ação ExecutivaEstudos" contribuir para um maior desenvolvimento e aperfeiçoamento profissional e intelectual das nossas profissões, agregando significativos contributos que fomentam o desenvolvimento de matérias jurídicas de relevo para o exercício das nossas profissões.

É já apanágio da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução a conservação destes contributos intelectuais, ambicionando que também as gerações vindouras os venham a conhecer, refletindo sobre os mesmos e criando, também elas, novas problemáticas e soluções.

Mais uma vez, e como em anteriores edições, contámos com trabalhos de diversos associados, bem como de estudantes de diversas instituições de Ensino Superior, os quais enriqueceram, de sobremaneira, esta nova edição e a quem muito agradecemos.

Esta coletânea enquadra-se plenamente nos desígnios avançados pela Ordem e, em particular, pelo seu Instituto de Formação Botto Machado, sendo um marco na consolidação da qualidade das nossas publicações que permite, indubitavelmente, um acréscimo qualitativo à formação inicial e contínua da nossa classe.

2º Vice-Presidente do Conselho Geral da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução

O estabelecimento da filiação na atribuição da nacionalidade portuguesa

Isabel Maria Rocha de Almeida

Mestrando em Solicitadoria na ESTG/P. Porto

Anabela Susana de Sousa

Professora Associada da Escola de Direito da Universidade do Minho

Virgílio Félix Machado

Professor Adjunto Convidado na Escola Superior de Tecnologia e Gestão na ESTG/P. Porto

RESUMO

Com este trabalho pretendemos estudar o estabelecimento da filiação como fundamento da atribuição da nacionalidade portuguesa originária ao abrigo do art.º 1 n. º1 al. c) da Lei da Nacionalidade, Estudaremos o estabelecimento da filiação, como questão prévia á atribuição da nacionalidade que importa resolver para que possa ser concedida a nacionalidade por atribuição, nos termos do art.º 1 n.º 1 al. c) da LN fazendo um estudo das diferentes leis da filiação no tempo.

ABSTRACT

With this paper we intend to study the establishment of affiliation as a basis for the original Portuguese nationality under the terms of art.º 1 n.º 1st paragraph c) of the Nationality Law.

We will study the establishment of affiliation, as a previous question that must be resolved so that nationality can be granted by establishment, under the terms of art.º 1 no.º 1 al. c) of LN making a study of the different laws of affiliation in course of time.

PALAVRAS- CHAVE: nacionalidade, atribuição; filiação, maior, menor,

SIGLAS

CC – Código Civil.

CRC- Código do Registo Civil

IRN, IP- Instituto de Registos e Notariado, Instituto Público

LN - Lei da Nacionalidade.

M.P.- Ministério Público.

RN – Regulamento da Nacionalidade

ABREVIATURAS:

al. - Alínea

art.º. - Artigo.

n.º - Número.

pág. - Página.

seg. - Seguintes

INTRODUÇÃO

O instituto da nacionalidade estudado no direito internacional privado faz parte integrante do direito interno de cada Estado. Ferrer Correia nas suas lições de direito internacional entende que “segundo princípio bem assente no direito internacional público, a regulamentação da nacionalidade é uma das matérias deixadas à competência de cada Estado “domaine réservé”. Pertence ao Estado e a ele só, determinar quais são os seus nacionais. Portanto o problema de saber se um individuo é nacional de certo Estado só a face das leis deste Estado pode resolver-se1

No direito português a “nacionalidade é um instituto regulamentado no direito interno, com relevância no direito internacional e que integra elementos de ordem privada e de ordem pública e que sendo matéria prevista na constituição, como direito fundamental, tem a sua regulamentação na legislação civil2” .

A nacionalidade ao ser entendida como um vínculo político que liga um indivíduo a um certo Estado, constitui um elemento do “estado das pessoas que é, por sua vez, o ponto de partida de numerosos direitos e obrigações 3 O vínculo da nacionalidade aparece como um vínculo jurídico que liga um individuo a uma realidade política, o Estado. Assim constituído, o vínculo em questão não pode deixar de ter uma natureza publicista, por interessar ao Estado a sua regulamentação com o fim de saber quem é a sua população e o que explica que seja lei de cada Estado, quem define, exclusivamente, quem são os seus nacionais4

O “Instituto da Nacionalidade” tem assumido cada vez mais importância a nível internacional, através da aprovação de convenções internacionais e de diversa legislação a nível europeu, veja-se como exemplo a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Convenção Europeia sobre a Nacionalidade e a Convenção para a Redução dos casos de Apatridia.

Saber qual a lei aplicável às relações de filiação tem assumido uma importância crescente, devido à constituição de cada vez mais situações plurilocalizadas, resultantes dos fenómenos migratórias a que Portugal tem estado sujeito, não só no sentido de receber cada vez mais migrantes vindos do estrangeiro, como também devido à saída de portugueses para o estrangeiro, fenómeno que sempre se verificou e que se tornou a

1 CORREIA, A. Ferrer “Lições de Direito Internacional Privado – Aditamentos”, Universidade de Coimbra, 1973, pág. 6.

2 BORGES, Garcia Fernanda Regina” O Registo da Nacionalidade”, Revista da Ordem dos Advogados, Homepage, Publicações , Revista, Ano 1952, Ano 12 - N.º 1 e 2 , Doutrina 1952, pág. 111 a 189 [Consulta efetuada em 21-082020] disponível “https://portal.oa.pt/comunicacao/publicacoes/revista/ano-1952/1952-ano-12-n%C2%BA-1-e2/doutrina/”.

3BORGES, Garcia Fernanda Regina” O Registo da Nacionalidade”, Revista da Ordem dos Advogados, Homepage, Publicações, Revista, Ano 1952, Ano 12 - N.º 1 e 2 , Doutrina 1952, pág. 111 a 189 [Consulta efetuada em 21-082020] disponível “https://portal.oa.pt/comunicacao/publicacoes/revista/ano-1952/1952-ano-12-n%C2%BA-1-e2/doutrina/”

4 RAMOS, Rui Manuel Moura Ramos, “Estudos de Direito Português da Nacionalidade”, 2.º edição,2019, Gestlegal, “Nacionalidade” pag.350.

intensificar nestes últimos anos. O legislador português, quanto a esta questão, optou pela lei do progenitor e não pela lei da nacionalidade ou residência do filho.

A aplicação da lei da nacionalidade do progenitor ou da nacionalidade comum da mãe e do marido desta, tal como está prevista no art.º 56.º, n.º 1 e n.º 2, 1ª parte, está de acordo com o espírito do sistema do legislador de 1966, valorizando a nacionalidade nas matérias de estatuto pessoal e com a necessidade de proteger a filiação que foi constituída de acordo com a lei mais próxima da família e os laços das famílias transnacionais de nacionalidade portuguesa com a ordem jurídica nacional.

Este trabalho propõe-se estudar tendo em conta os dois princípios basilares que estão subjacentes á concessão da nacionalidade, o “ius sanguinis” e o “ius solis um dos fundamentos da atribuição da nacionalidade portuguesa, ao abrigo do art.º 1.º n.º1 al. c) da LN , o estabelecimento da filiação, como questão prévia à atribuição da nacionalidade, pelo estudo das leis da filiação, que no tempo, regularam a questão de modo a compreender a sua evolução e as opções legislativas que em cada momento estiveram subjacentes aos requisitos de atribuição da nacionalidade portuguesa, por efeito de descender de um progenitor português.

FILIAÇÂO

Importante para a atribuição da nacionalidade portuguesa originária, ao abrigo do art.º 1 n. º1 al. c) da Lei da Nacionalidade é o conceito do estabelecimento da filiação. Para a resolução desta questão prejudicial importa aferir ou saber que normas vão analisar esta questão prévia, se as normas do próprio Estado que está a conceder a nacionalidade, se as normas de reenvio desse Estado. A doutrina tem entendido que deve ser a lei do Estado cuja nacionalidade esteja em causa, que deve resolver as questões prévias da nacionalidade.

A nacionalidade é relevante na ordem jurídica portuguesa, pois é o elemento de conexão chamado, em regra para regular as matérias de estatuto pessoal.

Enquadram-se no elenco das matérias de estatuto pessoal, o início e o termo da personalidade jurídica, os direitos de personalidade, o estado, a capacidade, as relações de família e as sucessões por morte.

As normas que se aplicam à constituição da filiação estão previstas atualmente no art.º 56.º e quanto à filiação adotiva, no art.º 60.º, ambos do Código Civil.

A “resposta intuitiva dessas questões prévias só poderá julgar-se com base em normas da legislação do próprio Estado cuja nacionalidade esteja em causa. Se assim não procedesse, deixaria de ser verdadeiro, (ou postergar-se-ia) o princípio segundo o qual é ao Estado que compete a definição dos pressupostos da atribuição e da perda da sua própria cidadania”5

5 CORREIA, Ferrer “Lições de Direito Internacional Privado”, Aditamentos, Nacionalidade, Capítulo I, Universidade de Coimbra, 1973, pág. 15.

Sendo o Estado sobreano no território e em relação aos seus nacionais é importante que cada Estado conheça quem são os seus nacionais e que os indivíduos reconheçam a que Estado estão juridicamente vinculados.

Devido á importância que a matéria da nacionalidade tem para o Estado foi desde de muito cedo defendido, pela maior parte dos Estados Europeus que deve ser a “lex patriae”, ou o principio da nacionalidade, que deverá reger a concessão da nacionalidade por se ter entendido que a lei da nacionalidade tem uma maior proximidade com os indivíduos nas relações pessoais que a lei do domicilio, por outro lado, existe um vínculo mais estreito dos indivíduos com a sua pátria e também na conveniência, que os estados de forte emigração têm em manter a união do Estado6

Como refere Ferrer Correia7 “Na perspetiva do legislador português, existe um conjunto de matérias que, pela natureza eminentemente pessoal que revestem, devem ser governadas (como dissemos acima) por uma lei que os indivíduos possam olhar como a sua lei, à qual possam considera-se ligados por algum vinculo verdadeiramente substancial e permanente.”

Álvaro da Costa Machado Vilela 8, no seu tratado “Elementar de Direito Internacional Privado” refere que “esta opção quer doutrinal , quer legal, pela lei da nacionalidade advém do facto de existirem três motivos a saber : necessidade de assegurar a estabilidade da situação jurídica do individuo que conhece melhor a sua lei nacional que a lei da residência que até pode mudar frequentemente , o segundo motivo o facto das leis de direito privado serem destinadas a regular, a garantir os interesses individuais e portanto a lei que melhor assegura esse interesse seja a lei da nacionalidade e o terceiro motivo por ser a lei que melhor protege a estabilidade e a permanência da personalidade por ser o Estado da Nacionalidade que está em melhor condições de zelar pela defesa dos direitos individuais dos seus cidadão”.

A atual lei da nacionalidade nada diz quanto a esta questão uma vez que resulta das convenções internacionais, dos princípios jurídicos geralmente aplicados e reconhecidos que em matéria de estatuto pessoal, que deve ser aplicada a lei da nacionalidade e não a lei da residência

Relacionado com esta questão temos assim a lei reguladora do “estatuto pessoal”. Entende-se por “estatuto pessoal” o conjunto das seguintes matérias: início e termo da personalidade jurídica, certos direitos de personalidade, estado, capacidade civil e relações de família.

6 CORREIA, Ferrer “Lições de Direito Internacional Privado”, Aditamentos, Lei Reguladora do Estatuto Pessoal, Capítulo I, Universidade de Coimbra, 1973, pág. 120 e 121.

7 Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Volume XLVIII, ano de 1972, pág. 421

8 Tratado Elementar (Teórico e Pratico) de Direito Internacional Privado, Livro I, Coimbra Editora, 1921 - 1922, pág. 421.

O conceito não é inequívoco e tanto pode ser utilizado para designar um conjunto de matérias ou de qualidades jurídicas das pessoas, como a lei que lhes é aplicável9 No entanto, o que se pretende com este conceito é definir um conjunto de matérias, que estão ligadas ao individuo e que devem ser submetidas a uma lei única que tenha relação com a pessoa, de modo a regular todas estas matérias de forma permanente e constante num contexto de relações plurilocalizadas.

Só com o Código Civil de 1966, Portugal passou a ter uma regulamentação ordenada de DIP, prevista nos artigos 56.º a 59.º e 61.º deste código.

Com a alteração do Código Civil pelo Decreto – Lei n.º 496/77, de 25 de novembro- foram alterados os artigos 56º, 57.º e o 60.º e foram revogados os artigos 58.º e 59.º10

As normas que se aplicam à constituição da filiação estão previstas atualmente no art.º 56.º11 e quanto à filiação adotiva no art.º 60.º12.

O legislador português optou pela lei do progenitor e não pela lei da nacionalidade ou residência do filho. Este regime tem vantagem de tornar certa a lei aplicável13 .

No entanto, esta solução não deixa de apresentar problemas quando temos situações que podem abranger a aplicação de mais do que dois ordenamentos jurídicos, como no caso de mulher casada ter um filho de outro que não o seu marido.

Pela dificuldade em aplicar a todas as situações de constituição de filiação a norma do n. º1 do art.º 56.º, a lei do progenitor, o legislador veio consignar algumas exceções a esta regra no n.º 2 do art.º 56.º e no art.º 61.º14 .

9 SILVA, Nuno Ascensão “Do Estatuto Pessoal - Unidade e Dispersão (Algumas Notas a Propósito das Comemorações dos 35 anos do Código Civil)”, Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da reforma de 1997, II Volume, Coimbra Editora, ano de 2006, pág. 551.

10 Conforme consta na nota 5 do preâmbulo do DL neste Titulo I as alterações consistiram: “No que respeita ao seu título I, as alterações restringem-se ao domínio do direito internacional privado, mais precisamente, às normas de conflitos de leis sobre relações entre cônjuges, convenções antenupciais e regime de bens, constituição da filiação, relações entre pais e filhos e adopção (artigos 52.º, 53.º, n.º 2, e 56.º a 61.º).Tais alterações visam fazer desaparecer, na escolha das conexões em que assenta a determinação da lei aplicável a relações privadas internacionais, qualquer discriminação entre marido e mulher e, bem assim, qualquer discriminação relativamente aos filhos nascidos fora do casamento. Algumas das soluções acolhidas - como a da escolha da lei em mais estreita conexão com a relação - fogem à linha até agora legislativamente consagrada entre nós, mas correspondem a orientação que hoje tende a ganhar o favor da melhor doutrina e das legislações projectos mais recentes.”

11 Art.º 56.º - Constituição da filiação- “1. À constituição da filiação é aplicável a lei pessoal do progenitor à data do estabelecimento da relação. 2. Tratando-se de filho de mulher casada, a constituição da filiação relativamente ao pai é regulada pela lei nacional comum da mãe e do marido; na falta desta, é aplicável a lei da residência habitual comum dos cônjuges e, se esta também faltar, a lei pessoal do filho.3. Para os efeitos do número anterior, atender-se-á ao momento do nascimento do filho ou ao momento da dissolução do casamento, se for anterior ao nascimento”.

12 Art.º60.º - Filiação adotiva- “1. À constituição da filiação adoptiva é aplicável a lei pessoal do adoptante, sem prejuízo do disposto no número seguinte.2. Se a adopção for realizada por marido e mulher ou o adoptando for filho do cônjuge do adoptante, é competente a lei nacional comum dos cônjuges e, na falta desta, a lei da sua residência habitual comum; se também esta faltar, será aplicável a lei do país com o qual a vida familiar dos adoptantes se ache mais estreitamente conexa. 3. As relações entre adoptante e adoptado, e entre este e a família de origem, estão sujeitas à lei pessoal do adoptante; no caso previsto no número anterior é aplicável o disposto no artigo 57.º.4. Se a lei competente para regular as relações entre o adoptando e os seus progenitores não conhecer o instituto da adopção, ou não o admitir em relação a quem se encontre na situação familiar do adoptando, a adopção não é permitida.”

13 SILVA, Nuno Gonçalo das Ascensão “ O estabelecimento da Filiação no Direito Internacional Privado Português, Boletim da Faculdade de Direito, 69 (1993), pág. 688.

14 Art.º 61.º - Requisitos especiais da perfilhação ou adopção- “1. Se, como requisito da perfilhação ou adopção, a lei pessoal do perfilhando ou adoptando exigir o consentimento deste, será a exigência respeitada. 2. Será igualmente respeitada a exigência do consentimento de terceiro a quem o interessado esteja ligado por qualquer relação jurídica de natureza familiar ou tutelar, se provier da lei reguladora desta relação”.

O princípio geral é que se aplica a lei do progenitor, mas sofre um desvio quando a filiação se estabeleça no âmbito do casamento dos progenitores. Assim, a regra do art.º 56.º n. º1 só se aplicará à filiação materna e paterna, se o pai não coincidir com o marido da mãe, ou se não houver casamento15 .

Quanto ao momento da conexão, a lei portuguesa estabeleceu que é a data do estabelecimento da relação, o que pode não coincidir com a data do nascimento, como sucede no caso do estabelecimento da filiação paterna em que o pai não é o marido da mãe. Neste caso, a lei que regerá a perfilhação ou o reconhecimento judicial será a lei em vigor à data da prática do ato.

Caso o estabelecimento da filiação seja no âmbito de um casamento, aplica-se o art.º 56º n.º 2, e a regra passa a ser a lei da nacionalidade ou residência comum dos cônjuges ou caso nenhuma destas seja determinável aplicar-se-á a lei do filho.

Quanto ao momento da conexão a lei, no caso do n.º 2 do art.º 56.º, considerou relevante a data do nascimento do filho ou da dissolução do casamento, se esta for anterior ao nascimento.

No âmbito de aplicação da norma previsto no art.º 56.º temos a constituição da filiação, os seus pressupostos e requisitos, a capacidade ativa para constituir a relação, a capacidade passiva, os meios de prova, as presunções de paternidade, a impugnação da paternidade, os prazos das ações e a legitimidade para as intentar.

Nos termos do art.º 36.º, será a lei do local que regerá as formalidades externas dos documentos 16

Pode acontecer que a lei designada competente pelo art.º 56.º não possa ser aplicada, por força das normas de reenvio e da exceção de ordem publica, previstas nos artigos 16.º e seguintes do CC, embora estas situações sejam em número muito limitado no âmbito do estatuto pessoal, em virtude das restrições que constam nos artigos 17.º n.º 2 e art.º 18.º n.º 2.

No âmbito do direito europeu, em vários acórdãos, nomeadamente nos acórdãos “Grunkin e Paul”17 o tribunal veio considerar que uma situação no domínio do estatuto pessoal, regularmente constituída ao abrigo do Direito de um Estado-Membro, diferente da

15 SILVA, Nuno Gonçalo das Ascensão “O estabelecimento da Filiação no Direito Internacional Privado Português, Boletim da Faculdade de Direito, 69 (1993) pág. 689.

16 SILVA, Nuno Gonçalo das Ascensão “O estabelecimento da Filiação no Direito Internacional Privado Português, Boletim da Faculdade de Direito, 69 (1993) pág. 696.

17 ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Grande Secção), 14 de outubro de 2008 “Direito de circular e permanecer livremente no território dos Estados Membros – Direito internacional privado em matéria de apelidos − Conexão exclusiva com a nacionalidade para a determinação da lei aplicável − Menor nascido e residente num Estado Membro e com a nacionalidade de outro Estado Membro – Não reconhecimento no Estado Membro da nacionalidade do nome dado no Estado Membro de nascimento e residência”, [Consulta efetuada em 27-12-2020], disponível em ”http://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf;jsessionid=986572400E38898D22FF60AE395910F9?text=&docid =69308&pageIndex=0&doclang=PT&mode=lst&dir=&occ=first&part=1&cid=1989941”.

nacionalidade do cidadão europeu, tem de ser reconhecida no seu Estado da Nacionalidade ainda que possa sempre ser admitida a exceção de ordem publica18 19 Como diz António Frada de Sousa20 “O estado civil, ou a filiação, por exemplo, não são elementos do estatuto pessoal de um individuo que requeiram menor continuidade e estabilidade do que o seu nome. Neste sentido, a circunstância de um Estado- Membro, por força do seu sistema de DIP, não reconhecer a um cidadão da União, um determinado status que ele regularmente tenha adquirido noutro Estado-Membro, de acordo com a lei aí considerada aplicável, por força das regras de conflitos de leis desse estado que aderiram á conexão da residência ou da nacionalidade, ser igualmente suscetível de entravar o exercício do seu direito de circular e permanecer livremente no território dos Estados –Membros, ao impor inconvenientes sérios ao cidadão em causa, decorrente de ser considerado, por exemplo, filho de determinada pessoa, num Estado, e não filho dessa pessoa noutro Estado, ou de ser casado num Estado e não ser noutro.”

Iremos em seguidamente analisar as normas do estabelecimento da filiação que importa atender aquando da atribuição da nacionalidade, nos termos do art.º 1 n.º 1 al. c) LN, para que esteja comprovado o fundamento da atribuição que é ser filho de um progenitor português.

1.1 Estabelecimento da maternidade

O estabelecimento da filiação, no direito português é regido pelo princípio da verdade biológica. Isto quer dizer que a verdade biológica, tem uma tradução fiel no plano jurídico.

Podemos assim dizer que o direito português tem uma preocupação em que a verdade biológica21, coincidia com a verdade jurídica22 .

A maternidade jurídica pode ser entendida como a decorrência de um facto biológico que é o parto23 .

18 SOUSA, António Frada de “A EUROPEIZAÇÃO DO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO-OS NOVOS RUMOS NA REGULAMENTAÇÃO DAS SITUAÇÕES PRIVADAS TRANSNACIONAIS NA EU”, Faculdade de Direito – Escola do Porto, maio de 2012, pág. 308.

19 Ainda sobre esta matéria ver Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 2818//19 YRLSB.8 de 09-07-2020 [Consulta efetuada em 10-01-2021], disponível em: “http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/89ce35d0287e12d7802585a8002edf25?OpenDocum ent”.

20 SOUSA, António Frada de “A EUROPEIZAÇÃO DO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO-OS NOVOS RUMOS NA REGULAMENTAÇÃO DAS SITUAÇÕES PRIVADAS TRANSNACIONAIS NA EU”, Faculdade de Direito – Escola do Porto, maio de 2012, pág. 309.

21 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 440/12.2TBBCL.G1.S1,1.º Secção [Consulta efetuada em 10-01-2021], disponível em:

“http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/24719b8c248e594e802580b9004dda46?OpenDocu ment”

22SOTTOMAYOR, Maria Clara, MONTEIRO, Leonor Valente, in Sottomayor, Clara (Coord.) “Código Civil Anotado, Livro IV, Direito de Família” Edições Almedina, S.A, ano de 2020, pag.592.

23 COELHO, F.M. Pereira Coelho, OLIVEIRA, Guilherme de, in Oliveira, Guilherme de (Coord.) “Estabelecimento da Filiação”, Petrony Editora, ano de 2019, pag.63.

O art.º 1796.º n.º 2 do CC consagra o princípio da taxatividade dos meios do estabelecimento da filiação, querendo com isto dizer que os vínculos do estabelecimento da filiação só se fazem nos termos previsto na lei24 .

A filiação materna decorre do nascimento “mater sempre certa es”, e estabelece-se nos termos dos artigos 1803.º a 1805.º do CC.

A declaração de nascimento não é uma declaração de vontade, mas uma declaração de ciência, porque resulta do nascimento podendo ser efetuada pela mãe ou por um terceiro, nos termos dos artigos 96.º e 96.º- A do CRC, e compete sucessivamente às pessoas indicadas no art.º 97.º do CRC25 .

A maternidade resulta do nascimento e como tal não necessita de um subsequente ato de perfilhação, quer para filhos de mulheres casadas, quer para filhos de mulheres solteiras26 .

A prova da filiação, nos termos do art.º 1802.º do CC, só pode fazer-se pelas formas estabelecidas na lei civil.

O nascimento, nos termos do art.º 1 do CRC é um facto sujeito a registo civil obrigatório. A prova do nascimento faz-se nos termos do art.º 211.º do CRC por meio de acesso à base de dados do registo civil ou através de certidão de nascimento, que pode ser emitida em papel ou através de meios eletrónicos 27 .

A maternidade é aferida à data do nascimento, mas o momento em que é declarado o nascimento no registo civil tem consequências quanto ao estabelecimento da mesma.” A lei serve-se de um critério de ordem temporal para automatizar, dentro do sistema de estabelecimento da maternidade por declaração, regimes diferentes quanto á eficácia constitutiva imediata do (vinculo de maternidade) dos vários tipos de declaração admissíveis”28 .

A lei distingue consoante o nascimento seja declarado à menos de um ano ou à mais de um ano sobre a data de nascimento nos termos dos artigos 1804.º e 1805.º do CC e dos artigos 113.º e 114.º do CRC.

24 Art.º 1796.º - Estabelecimento da filiação- 1. Relativamente à mãe, a filiação resulta do facto do nascimento e estabelece-se nos termos dos artigos 1803.º a 1825.º; 2. A paternidade presume-se em relação ao marido da mãe e, nos casos de filiação fora do casamento, estabelece-se pelo reconhecimento.

25 Art.º 97.º - A quem compete- “1 - A declaração de nascimento compete, obrigatória e sucessivamente, às seguintes pessoas e entidades: a) Aos pais ou a outros representantes legais do menor ou a quem por eles seja, para o efeito, mandatado por escrito particular; b) (Revogada.) c) Ao parente capaz mais próximo que tenha conhecimento do nascimento; d) Ao director ou administrador ou outro funcionário por eles designado da unidade de saúde onde ocorreu o parto ou na qual foi participado o nascimento; e) (Revogada). 2 - O cumprimento da obrigação por alguma das pessoas ou entidades mencionadas desonera todas as demais”.

26 COELHO, F.M. Pereira Coelho, OLIVEIRA, Guilherme de, in Oliveira, Guilherme de (Coord.) “Estabelecimento da Filiação”, Petrony Editora, ano de 2019, pag.66.

27 Artigo 211.º - Meios de prova- 1 - Os factos sujeitos a registo e o estado civil das pessoas provam-se pelo acesso à base de dados do registo civil ou por meio de certidão. 2 - Faz igualmente prova para todos os efeitos legais e perante qualquer autoridade pública ou entidade privada a disponibilização da informação constante da certidão em sítio da Internet, em termos a definir por portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça. 3 - A disponibilização de informação prevista no número anterior não pode ser efectuada nos casos previstos no n.º 4 do artigo 214.º e, nos casos a que se referem os n.os 2 e 3 do mesmo artigo, deve conformar-se com o preceituado em tais normas”. A Portaria n.º 181/2017, de 31 de maio criou a certidão online de registo civil, definindo e regulamentando o seu âmbito, condições de acesso, prazo de validade e emolumentos devidos.

28 CRAVEIRO, Inês Sítima, in Sottomayor, Clara (Coord.) “Código Civil Anotado, Livro IV, Direito de Família” Edições Almedina, S.A, ano de 2020, pág.621.

No nascimento ocorrido à menos de um ano, a maternidade declarada no registo civil considera-se estabelecida, nos termos do art.º 1804.º n.º 1 do CC e do art.º 113.º n.º 1 do CRC, querendo isto dizer que independente de quem declara o nascimento no registo civil, a maternidade está estabelecida, devendo apenas, caso não seja a mãe ou o marido da mãe os declarantes do registo, nos termos do n.º 2 do art.º 113.º, ser notificada a mãe, mediante notificação pessoal, sempre que possível 29 . No caso do nascimento ser declarado no registo civil decorrido um ano, ou mais de um ano, sobre o nascimento, a maternidade só ficará estabelecida se, nos termos do art.º 1085.º n.º 1 do CC e do art.º 114.º n. º1 30do CRC, for a mãe a declarante, estiver presente no ato ou nele se achar representada por procurador com poderes especiais. Fora dos casos previstos no n.º 1 destes dois artigos, a mãe deverá ser notificada pessoalmente, para no prazo de 15 dias vir declarar se confirma a maternidade, sob pena de ser havida como mãe. Se a mãe negar a maternidade ou não for possível notificá-la pessoalmente, porque já faleceu31, ou está em parte incerta, ficará sem efeito a menção da maternidade no assento de nascimento, devendo ser averbado ao assento a impossibilidade da notificação. Este procedimento é feito pelo Conservador dos registos que lavrou o assento de nascimento.

Caso fique sem efeito a maternidade declarada no registo, o Conservador deve igualmente averbar esse facto ao assento de nascimento, nos termos do art.º 115.º do CRC32 e ainda comunicar ao Ministério Publico essa circunstância.

29 Art.º 113.º - Nascimento ocorrido há menos de um ano – “1 - A maternidade mencionada no assento, se o nascimento declarado tiver ocorrido há menos de um ano, considera-se estabelecida.2 - O conteúdo do assento, salvo se a declaração for feita pela mãe ou pelo marido desta, é, sempre que possível, comunicado à mãe, mediante notificação pessoal, informando-a de que a maternidade declarada é havida como estabelecida. 3 - A notificação feita à mãe é averbada, oficiosamente, ao assento de nascimento.”

30 Art.º 114.º - Nascimento ocorrido há um ano ou mais- “1 - Se o nascimento tiver ocorrido há um ano ou mais, a maternidade indicada considera-se estabelecida se for a mãe a declarante, se estiver presente no acto do registo ou nele representada por procurador com poderes especiais ou se for exibida prova da declaração de maternidade feita pela mãe em escritura, testamento ou termo lavrado em juízo. 2 - Fora dos casos previstos no número anterior, o conservador deve, sempre que possível, comunicar à pessoa indicada como mãe, mediante notificação pessoal, o conteúdo do assento, para no prazo de 15 dias vir declarar em auto se confirma a maternidade, sob a cominação de o filho ser havido como seu. 3 - Se a pretensa mãe negar a maternidade ou não puder ser notificada, a menção da maternidade fica sem efeito. 4 - O facto da notificação, bem como a confirmação da maternidade, é averbado, oficiosamente, ao assento de nascimento.”

31 Sobre a questão de saber se a mãe já for falecida aquando da declaração de nascimento o oficial do registo civil deve proceder á notificação da mãe o Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República n.º 00000245, [Consulta efetuada em 14-01-2021], disponível em” http://www.dgsi.pt/pgrp.nsf/-

/59F5C52AB6B0049E802582960052E0CC” veio pronunciar-se no sentido de que “ … Se da própria decisão constar que a mãe já faleceu, o funcionário estará dispensado de proceder a uma inscrição que sabe antecipadamente ficara sem efeito, uma vez que não se poderá efectuar a notificação a que alude o n 2 do artigo 1805 do Código Civil. “

32 Art.º 115.º -Casos em que a menção fica sem efeito -1 - Nos casos previstos no n.º 3 do artigo anterior, o facto de a menção da maternidade ficar sem efeito é averbado oficiosamente e, sendo o registado menor, remetida ao tribunal certidão de cópia integral do assento de nascimento, acompanhada de cópia do auto de declarações, havendo-as.

2A remessa da certidão prevista no número anterior não tem lugar se, existindo perfilhação paterna, o conservador se certificar de que o pai e a pretensa mãe são parentes ou afins em linha recta ou parentes no 2.º grau da linha colateral.

3 - Das certidões extraídas do assento de nascimento, exceptuada a prevista no n.º 1, não pode constar qualquer referência à maternidade não estabelecida ou aos averbamentos que lhe respeitem.”

1.2 Estabelecimento da paternidade

Ao contrário da maternidade que resulta do nascimento, ou seja, a mãe é quem tem o parto e, portanto, não tem relevo se a mãe é casada ou solteira, no estabelecimento da paternidade o facto da mãe ser casada ou solteira tem impacto no estabelecimento da paternidade.

Durante muitos anos o facto de a mulher ser casada levava a que se considerasse como pai o marido mãe, de modo a legitimar a filiação, ainda que não correspondesse a filiação biológica.

Ainda hoje o nosso legislador, no art.º 1826.º 33do CC, faz presumir que o filho nascido ou concebido na constância do matrimonio da mãe tem como pai o marido da mãe “presunção pater is est quem núpcias demonstrant”.

Para a aplicação desta norma é necessário que o filho tenha sido concebido ou nascido na constância do matrimónio da mãe ainda que possa ter nascido já depois da dissolução do casamento.

A presunção de paternidade poder ser afastada, porque se trata de uma presunção “iuris tantum”34 .

Nos casos de nascimento de mãe casada a paternidade deve ser levada a registo por força da presunção de paternidade, devendo ficar a constar do assento de nascimento a paternidade do marido mãe, tal como estabelece o art.º 118.º do CRC35 e o art.º 1835.º do CC.

Como refere Guilherme de Oliveira “nos casos de nascimento de mãe casada, a paternidade estabelece-se por força de uma verdadeira presunção legal, que assenta sobre um juízo de probabilidade qualificada, fundado em regras de experiência comum”36 .

A presunção de paternidade não se aplica às situações em que o pai vive com a mãe em união de facto, nos termos da Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio, em virtude da lei estabelecer diferentes efeitos, ou antes diferentes direitos e deveres entre o casamento e a união de facto, nomeadamente, os unidos de facto não se encontram vinculados pelos deveres

33 Art.º 1826.º - Presunção de paternidade- 1. Presume-se que o filho nascido ou concebido na constância do matrimónio tem como pai o marido da mãe. 2. O momento da dissolução do casamento por divórcio ou da sua anulação é o do trânsito em julgado da respectiva sentença; o casamento católico, porém, só se considera nulo ou dissolvido por dispensa a partir do registo da decisão proferida pelas autoridades eclesiásticas.”

34 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 973/11.8TBBCL.G1.S1,1ª Secção [Consulta efetuada em 10-01-2021], disponível em:

“http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/c77b4bb82ef2248e80257d5500555d97?OpenDocu ment.”

35Art.º 118.º Menção obrigatória da paternidade- “1 - A paternidade presumida é obrigatoriamente mencionada no assento de nascimento do filho, sem prejuízo do disposto no artigo seguinte. 2 - Se o registo de casamento dos pais vier a ser efectuado posteriormente ao assento de nascimento do filho, e se deste não constar a menção da paternidade, deve ser-lhe averbada, oficiosamente, a paternidade presumida. 3 - A identificação do pai do registando é realizada pela indicação do nome completo, data de nascimento, estado, naturalidade, residência habitual, filiação e número de identificação civil”.

36 COELHO, F.M. Pereira Coelho, OLIVEIRA, Guilherme de, in Oliveira, Guilherme de (Coord.) “Estabelecimento da Filiação”, Petrony Editora, ano de 2019, pag.95.

conjugais do art.º1672.º do CC e portanto o legislador não considerou que exista um juízo de probabilidade qualificada que justifique a presunção de paternidade37 .

A presunção de paternidade do marido da mãe pressupõe o casamento, portanto, no caso de unidos de facto o estabelecimento da presunção seguirá os meios comuns como seja a perfilhação, a averiguação oficiosa ou o reconhecimento judicial38 .

Várias são as situações em que o legislador permite o afastamento da presunção da paternidade, como está previsto nos artigos 1828.º, 1829.º, 1832.º e 1834.º todos do CC.

A lei permite ainda que possa ser impugnada a paternidade, nos termos do art.º 1838.º e seg. do CC, quando esta não corresponda á verdade biológica.

Nos termos do art.º 119.º do CRC39, é possível que a mãe quando declare o nascimento possa logo afastar a presunção da paternidade, caso seja casada, e que o pai biológico possa no momento em que se lavra o assento de nascimento, fazer a perfilhação do filho.

Todas estas soluções pretendem fazer corresponder a paternidade jurídica, como princípio em matéria do estabelecimento da filiação, à verdade biológica40 .

Quando não se aplique a presunção da paternidade, o reconhecimento jurídico da paternidade faz-se pelo ato de perfilhação, que consiste numa manifestação de vontade de um individuo que declara que é progenitor de um filho41 42 .

A declaração de paternidade passa a constar do registo de nascimento, nos termos do art.º 120.º do CRC43 e considera-se a paternidade estabelecida com efeitos retroativos à data do nascimento.

A perfilhação é um ato pessoal e livre nos termos do art.º 1849.º 44do CC. Quanto à natureza desta figura a doutrina divide-se entre os autores que a entendem como uma declaração de vontade, e aqueles que a classificam antes como uma declaração de ciência. Guilherme de Oliveira entende que esta é uma “… declaração de ciência - o perfilhante declara que sabe que é o progenitor - e a lei faz desencadear os efeitos jurídicos que constituem o estatuto da paternidade…”45

37 PESSOA, Ana Raquel, in Sottomayor, Clara (Coord.) “Código Civil Anotado, Livro IV, Direito de Família” Edições Almedina, S.A, ano de 2020, pag.723.

38 COELHO, F.M. Pereira Coelho, OLIVEIRA, Guilherme de, in Oliveira, Guilherme de (Coord.) “Estabelecimento da Filiação”, Petrony Editora, ano de 2019, pag.92

39 Art.º 119.º- Afastamento da presunção de paternidade de filho de mulher casada – “1 - Se a mulher casada fizer a declaração do nascimento com a indicação de que o filho não é do marido, não é efetuada a menção da paternidade presumida, podendo, desde logo, ser aceite o reconhecimento voluntário da paternidade”.

40 PESSOA, Ana Raquel, in Sottomayor, Clara (Coord.) “Código Civil Anotado, Livro IV, Direito de Família” Edições Almedina, S.A, ano de 2020, pág.723.

41 COELHO, F.M. Pereira Coelho, OLIVEIRA, Guilherme de, , in Oliveira, Guilherme de (Coord.) “Estabelecimento da Filiação”, Petrony Editora, ano de 2019, pág.141.

42 Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Proc. 139/12.2T2AMD-B.L1-2, de20-05-2014 Consulta efetuada em 10-01-2021], disponível em “http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf//15C680974061F59C80257D8100582B42”.

43 Art.º 120.º - Indicação de paternidade não presumida- “A indicação de paternidade não legalmente presumida só é admitida quando haja reconhecimento voluntário ou judicial.”

44 Art.º 1849.º - Carácter pessoal e livre da perfilhação - “A perfilhação é acto pessoal e livre; pode, contudo, ser feita por intermédio de procurador com poderes especiais.”

45 COELHO, F.M. Pereira Coelho, OLIVEIRA, Guilherme de, in Oliveira, Guilherme de (Coord.) “Estabelecimento da Filiação”, Petrony Editora, ano de 2019, pág.142.

A perfilhação é um ato jurídico unilateral, não recetício, uma vez que não precisa de ser levada ao conhecimento do perfilhado para se tornar válida, sendo a pessoalidade uma sua caraterística, uma vez que não é possível ser feita pelos representantes legais do menor ou pelo acompanhante de maior incapaz, embora possa ser feita por procurador com poderes especiais46 .

O ato de perfilhar por não ser entendido como um negócio jurídico o perfilhante não necessita de ter capacidade negocial, razão pela qual tem capacidade para perfilhar algumas pessoas que não tem capacidade negocial, uma vez que o perfilhante apenas necessita de ter capacidade para entender e querer o ato que pretende praticar 47 48 .

O perfilhante precisa de ter idade igual ou superior a 16 anos, se for maior acompanhado é necessário que não tenha limitações para o exercício de direitos pessoais e enquanto maior não pode ter perturbação mental notória no momento da perfilhação, conforme estabelece o art.º 1850.º do CC49 .

A capacidade para perfilhar é aferida no momento da perfilhação. A forma da perfilhação está prevista no art.º 1853.º 50 do CC e pode fazer-se por declaração prestada perante oficial do registo civil, por testamento, por escritura publica e por termo lavrado em juízo. Ou seja, a perfilhação é um ato formal, porque tem que ser feita por uma das formas estabelecidas na lei, não sendo suficiente um simples documento particular. A exigência deste formalismo assenta em razões de certeza jurídica, de segurança e de facilidade de prova51,mas nesta exigência tal como refere Guilherme de Oliveira52 ”avulta o intuito de fomentar no espírito do perfilhante a consciência da importância do ato e a firmeza do juízo acerca da paternidade biológica…”

A perfilhação que não revista uma das formas previstas no art.º 1853.º CC é nula.

A perfilhação pode ser feita perante o funcionário do registo civil, nos termos do estabelecido na al. a) do art.º 1853.º do CC e se for feita no ato da declaração de nascimento integra o assento de nascimento, conforme disposto no art.º 102.º do CRC.

Caso o assento de nascimento já esteja lavrado, a perfilhação pode ser feita por declaração, em qualquer Conservatória de Registo Civil que será traduzida num assento de

46 MARQUES, J.P Remédio, in Sottomayor, Clara (Coord.) “Código Civil Anotado, Livro IV, Direito de Família” Edições Almedina, S.A, ano de 2020, pág.769.

47 COELHO, F.M. Pereira Coelho, OLIVEIRA, Guilherme de, in Oliveira, Guilherme de (Coord.) “Estabelecimento da Filiação”, Petrony Editora, ano de 2019, pág.144.

48 MARQUES, J.P Remédio, in Sottomayor, Clara (Coord.) “Código Civil Anotado, Livro IV, Direito de Família” Edições Almedina, S.A, ano de 2020, pág.775.

49 Art.º 1850.º - Capacidade – “1 - Têm capacidade para perfilhar os indivíduos com mais de 16 anos, se não forem maiores acompanhados com restrições ao exercício de direitos pessoais nem forem afetados por perturbação mental notória no momento da perfilhação. 2 - Os menores não necessitam, para perfilhar, de autorização dos pais ou tutores.”

50 Art.º 1853.º - Forma - “A perfilhação pode fazer-se: a) Por declaração prestada perante o funcionário do registo civil; b) Por testamento; c) Por escritura pública; d) Por termo lavrado em juízo.”

51 MARQUES, J.P Remédio, in Sottomayor, Clara (Coord.) “Código Civil Anotado, Livro IV, Direito de Família” Edições Almedina, S.A, ano de 2020, pág.785.

52 COELHO, F.M. Pereira Coelho, OLIVEIRA, Guilherme de, in Oliveira, Guilherme de (Coord.) “Estabelecimento da Filiação”, Petrony Editora, ano de 2019, pág.151.

perfilhação, nos termos do art.º 130.º do CRC53 e que contém os requisitos previstos nos artigos 125.º a 129.º do mesmo código, devendo ser averbada ao assento de nascimento já lavrado nos termos do art.º69.ºn. º1 al. b) do CRC.

Após o averbamento da perfilhação poderá ser lavrado um auto de alteração de nome do perfilhado, nos termos do nº 2 al. a) do art.º 104.º, para ser adotado o apelido do pai. A alteração de nome deverá ser averbada ao assento de nascimento nos termos do n.º 1 al. n) do art.º 69.º e poderá ser lavrado, na sequência do estabelecimento da filiação e da alteração de nome, um novo assento, nos termos do art.º 123.º do CRC.

A perfilhação pode ser lavrada por testamento, que se manterá sigilosa até à morte do perfilhante e será averbada ao assento de nascimento nos termos do já referido art.º 69.º do CRC. A perfilhação feita por testamento, no caso de o testador alterar ou revogar o testamento, não afeta a sua validade ou eficácia em virtude da irrevogabilidade prevista no art.º 1858.º do CC.

A perfilhação pode ser feita mediante escritura pública autónoma, a lavrar perante notário, ou ser inserta numa qualquer outra escritura, como seja numa convenção antenupcial, uma partilha em vida ou numa doação, e pode ainda ser feita por termo lavrado em juízo, na sequência de uma averiguação de paternidade, nos termos do art.º 1865.º n.º 3 do CC ou no seio de qualquer outra ação judicial 54 .

A perfilhação de filho maior carece do seu consentimento, nos termos do art.º 1857.º do CC, e até ao seu consentimento a perfilhação é considerada secreta e não pode ser averbada ao assento de nascimento do filho, conforme dispõe o art.º 131.º do CRC55. A perfilhação de maior é sempre válida, mas o assentimento do perfilhado maior é condição de eficácia.

A perfilhação pode ser feita a todo o tempo, antes ou depois do nascimento do filho ou depois da morte deste, nos termos do art.º 1854 do CC.

O estabelecimento da filiação só releva, para efeitos de atribuição de nacionalidade portuguesa, quando for estabelecida na menoridade do interessado, nos termos do art.º 14.º da LN.

Importante para a atribuição da nacionalidade, nos termos do art.º n. º1 al. c) é que a filiação seja estabelecida de acordo com a lei portuguesa e para isso importa fazer uma breve explanação das leis, que se aplicaram ao longo do tempo quanto ao estabelecimento

53 Art.º 130.º - Registo lavrado por assento- “1 - Ao registo de perfilhação é aplicável, com as devidas adaptações, o disposto nos artigos 125.º a 129.º; 2 - O assento de perfilhação deve mencionar ainda o assentimento do perfilhado, se for maior ou emancipado, ou dos seus descendentes, se for pré-defunto.”

54 COELHO, F.M. Pereira Coelho, OLIVEIRA, Guilherme de, in Oliveira, Guilherme de (Coord.) “Estabelecimento da Filiação”, Petrony Editora, 2019, pág.151.

55 Art.º 131.º- Assentimento do perfilhado- “1 - O assentimento a que se refere o n.º 2 do artigo anterior pode ser prestado, a todo o tempo, por declaração feita perante o conservador, que a reduz a auto, por documento autêntico ou autenticado, ou termo lavrado em juízo, sendo em qualquer dos casos averbado ao respectivo assento. 2 - O assento de perfilhação cuja eficácia esteja dependente de assentimento considera-se secreto enquanto este não lhe for averbado. 3 - Se o perfilhado ou seus descendentes vierem a ser notificados para dar o seu assentimento e o recusarem, o assento é cancelado oficiosamente com base em certidão comprovativa da recusa.”

da filiação materna e paterna, e que o Conservador na analise de um processo de atribuição de nacionalidade portuguesa tem que aferir porque é no momento do nascimento que em que é necessário aferir se está estabelecida a filiação.

Evolução do direito do estabelecimento da filiação

1.3.1. Nascimento ocorrido na vigência do Código Civil de 1867 ou Código de Seabra

O primeiro Código Civil português foi aprovado em 1867 tendo sido elaborado por António Luís de Seabra e Sousa e, portanto, conhecido pelo Código de Seabra e entrou em vigor em 22 de março de 1868, tendo sido revogado pelo Código Civil de 1966.

A matéria da nacionalidade estava regulada no art.º 18.º deste código, que estabelecia que eram considerados portugueses, de entre outros, os nascidos no estrangeiro que estabelecessem residência em território português, filhos de pai português ou filhos ilegítimos de mãe portuguesa.

A matéria da filiação estava prevista nos artigos 101.º a 136.º no Capítulo II. Da análise destes artigos, resulta que a filiação legitima resultava do casamento dos pais, estabelecendo a lei uma presunção de que o marido da mãe era o pai e só em casos muitos especiais tal presunção poderia ser afastada, como sucedia no caso dos artigos 102.º a 105.º.

A prova da filiação legitima fazia-se pelo registo de nascimento, ou na sua falta por qualquer outro documento autêntico e na sua falta pela posse de estado, conforme previa o art.º 114.º. O matrimonio posterior legitimava os filhos nascidos antes dele, nos termos estabelecidos no art.º 119.º.

Estava também prevista a perfilhação e a ação de investigação de paternidade ilegítima noa artigos 123.º a 133.º.

O primeiro Código de Registo Civil, aprovado em Portugal, em 20 de fevereiro de 1911, previa nos artigos 121.º e seguintes o registo de nascimento e a matéria de filiação a partir dos artigos 160.º a 170.º. O art.º 160.º consignava que não seria admitida declaração de maternidade, paternidade ou avoenga dos filhos ilegítimos, salvo quando o pai ou mãe fizessem pessoalmente a declaração e a assinassem. O art.º 162.º proibia a declaração de filiação que fosse contrária à filiação legitima, quando o filho tivesse nascido na constância do um matrimonio. O art.º 169.º regulava a perfilhação e as condições em que a mesma era admitida.

1.3.2. Nascimento ocorrido na vigência do Código de Registo Civil de 1932. Com o Código do Registo Civil de 1932, aprovado pelo Decreto n.º 22.018, de 22 de dezembro, a matéria da filiação ficou consignada nos artigos 260.º e 261.º. Nestes dois artigos continuava a fazer-se a distinção entre filiação legitima e ilegítima e a não permitir

a declaração de maternidade, paternidade ou avoenga dos filhos ilegítimos, salvo quando, a mãe ou o pai pessoalmente fizessem a declaração.

O art.º 262.º continuava a consignar a presunção de que o marido da mãe era o pai, no caso de o nascimento ter ocorrido na constância do casamento, pelo que independentemente de quem fosse o declarante do registo, a filiação materna e paterna ficaria estabelecida se o nascimento tivesse ocorrido na constância do matrimonio, exceto se o filho tivesse nascido dentro dos 180 dias seguintes á celebração do casamento ou nos trezentos dias subsequentes à separação judicial ou divórcio provisório.

A filiação relativamente a pais não casados, tal como no regime precedente, necessitava da intervenção direta da mãe e do pai, ou de procurador com poderes especiais.

1.3.3. Nascimento ocorrido na vigência do Código de Registo Civil de 1958. Com o Código de Registo Civil de 1958, aprovado pelo Decreto– Lei n.º 41.967, de 22 de novembro as normas do estabelecimento da filiação estavam previstas nos artigos 135.º a 147.º. Da sua análise verificamos não ter existido alteração substancial relativamente ao anterior código, uma vez que continuava a fazer-se a distinção entre filiação legitima e ilegítima, estabelecendo o art.º 135.º, que não seria admitida a registo declaração que contrariasse a filiação legitima que resultasse do casamento, consignando também a presunção de paternidade do marido mãe relativamente ao filho nascido na constância do matrimónio.

A declaração no registo civil da maternidade ou paternidade ilegítima só podia ser aceite quando fosse pessoalmente feita pela mãe, ou pelo pai, ou por intermédio de um procurador, com poderes especiais para o efeito, ou ainda mediante apresentação de documento legal comprovativo do reconhecimento, nos termos do art.º 136.º.

Estava também previsto neste diploma o registo de perfilhação e de legitimação por meio de assento, nos termos do art.º 141.º.

Durante a vigência deste Código de Registo Civil foi aprovada a Lei 2.098, de 29 de julho de 1959, que passou a regular toda a matéria da nacionalidade, deixando esta matéria de estar consignada no Código Civil, passando a ter regulamentação em diploma próprio.

O Código de Registo Civil foi alterado pelo Decreto-Lei n.º 43.101, de 2 de agosto, mas esta alteração não teve impacto na matéria da filiação.

1.3.4. Nascimento ocorrido na vigência do Código de Registo Civil de 1967

O Código de Registo Civil de 1967, foi aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47.678, de 05 de maio e entrou em vigor em 01 de julho de 1967. Este diploma tinha por base o Código Civil de 1966, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47.344, de 25 novembro de 1966.

O art.º 56, º do Código Civil determinava que para a aferição da regularidade do estabelecimento da filiação aplicava-se a lei pessoal comum da mãe e do marido desta e

na sua falta a lei da residência comum, ao tempo do nascimento do filho. Quanto á regularidade da filiação ilegítima a lei mandava aplicar a lei pessoal do progenitor á data do reconhecimento, nos termos do art.º 59.º do CC. No Código do Registo Civil a matéria da filiação estava prevista nos artigos 142.º a 165.º. Continuava a existir diferença entre a filiação legitima e ilegítima, como nos anteriores códigos, artigos 142.º, 145.º e 146.º, e a presunção de paternidade relativamente ao marido da mãe quanto aos filhos nascidos na constância do matrimonio. Relativamente a declaração ilegítima de maternidade de filhos de pais solteiros ou com outro estado civil a lei estabelecia diferenças consoante o nascimento tivesse ocorrido à menos ou mais de um ano da data da declaração de nascimento. Se o nascimento tivesse ocorrido à menos de um ano a declaração de paternidade só podia ser aceite se fosse feita pessoalmente pela pelo pai, ou mediante procurador com poderes especiais, ou mediante exibição de documento legal comprovativo do reconhecimento, caso contrário ficaria a constar do assento de nascimento que era filho de pai incógnito, art.º 145.º.

À declaração da maternidade aplicava-se o previsto no art.º 145.º, e caso o nascimento tivesse ocorrido à menos de um ano e a mãe não estivesse presente ou devidamente representada ou não fosse apresentado documento comprovativo do reconhecimento, o declarante do registo devia sempre que possível identificar a mãe e essa maternidade declarada era mencionada no registo, art.º 146.º.

Este Código do Registo Civil previu uma “declaração qualificada” para os casos em que a declaração de maternidade fosse feita por diretor de estabelecimento oficial de saúde ou de assistência em que tivesse ocorrido o parto, ou por médico que tivesse assistido ao parto, e caso o nascimento tivesse ocorrido à menos de um ano, a maternidade seria considerada estabelecida, nos termos do art.º 147.º.

Este Código foi alterado por diversos outros diplomas, mas que não tiveram impacto no estabelecimento da filiação56 .

1.3.5. Nascimento ocorrido após a entrada em vigor do código de Registo Civil de 1978

O Código do Registo Civil de 1978, foi aprovado pelo Decreto-Lei n.º 51/78, de 30 de março que consignou as alterações decorrentes do Código Civil em vigor, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 496/77, de 25 de novembro e que procedeu a profundas alterações à parte do direito de família, introduzindo profundas alterações no estabelecimento da filiação. A matéria do estabelecimento da filiação estava prevista nos artigos140.º a 163.º.

A partir da entrada em vigor do Código Civil de 1977 deixou de haver diferença entre filiação legitima e ilegítima deixando de estar consignado também no Código de Registo

56 Decreto-Lei n.º 49 054, de 12 de junho de 1969; Decreto-Lei n.º 249/77, de 14 de junho, Decreto-Lei n.º 419/74, de 7 de setembro

Civil esta diferenciação por estarem em causa princípios constitucionais de igualdade entre filhos nascidos dentro e fora do casamento, com a consequente eliminação de menções discriminatórias de filiação que tinham sido consignados na alteração ao Código Civil. A declaração de maternidade prestada no registo passou a ser considerada estabelecida, desde que o nascimento tivesse ocorrido à menos de um ano, nos termos dos artigos 140.º e 141.º.

Caso o nascimento tivesse ocorrido à mais de um ano a maternidade declarada só se considerava estabelecida se fosse a mãe a declarante, se estivesse presente no ato ou nele representada por procurador com poderes especiais, ou se fosse exibida prova da declaração de maternidade feita pela mãe em escritura, testamento ou termo lavrado em juízo. No caso de não se verificarem as condições elencadas, o conservador devia, sempre que possível, comunicar à pessoa indicada como mãe, mediante notificação pessoal, o conteúdo do assento, para no prazo de quinze dias a mãe vir declarar em auto se confirmava a maternidade, sob a cominação do filho ser considerado como seu. Se a pretensa mãe negasse a maternidade, ou não pudesse ser notificada, a menção da maternidade ficaria sem efeito.

No caso de a mãe ser casada, continuava a constar obrigatoriamente a paternidade presumida, ou seja, era pai o marido da mãe e como tal era obrigatoriamente levado a registo, nos termos do art.º 146.º.

Com este código passou a ser possível à mãe, afastar a presunção de paternidade, se no momento da declaração de nascimento, nos termos do art.º 147.º, mediante declaração prestada em auto pela própria, a mesma declarasse que o pai do filho não era o marido e uma vez remetida para o tribunal essa declaração, fosse decidido que o filho não tinha posse de estado em relação a ambos os cônjuges.

Relativamente ao estabelecimento da filiação paterna, o art.º 148.º estabelecia que a paternidade não legalmente presumida só seria admitida quando houvesse reconhecimento judicial ou voluntario.

1.3.6. Nascimento ocorrido após a entrada em vigor do Código de Registo Civil aprovado pelo Decreto-Lei n.º 131/95, de 06 de julho atualmente em vigor57 Relativamente ao Código do Registo Civil que atualmente está em vigor podemos dizer que o estabelecimento da filiação não é muito diferente do que estava estabelecido no domínio do anterior código.

57 Este Código já foi objeto de 31 alterações sendo a ultima a dada pela Lei n.º 49/2018, de 14/08, DL n.º 51/2018, de 25/06, Lei n.º 5/2017, de 02/03, Lei n.º 2/2016, de 29/02, DL n.º 201/2015, de 17/09; Lei n.º 143/2015, de 08/09; Lei n.º 90/2015, de 12/08; Lei n.º 23/2013, de 05/03:DL n.º 209/2012, de 19/09; Lei n.º 7/2011, de 15/03); Lei n.º 103/2009, de 11/09; Lei n.º 29/2009, de 29/06; DL n.º 100/2009, de 11/05; DL n.º 247-B/2008, de 30/12; Lei n.º 61/2008, de 31/10;Rect. n.º 107/2007, de 27/11; DL n.º 324/2007, de 28/09; Lei n.º 29/2007, de 02/08; DL n.º 53/2004, de 18/03; DL n.º 194/2003, de 23/08; DL n.º 113/2002, de 20/04; DL n.º 323/2001, de 17/12; Rect. n.º 20-AS/2001, de 30/11; DL n.º 273/2001, de 13/10; DL n.º 228/2001, de 20/08; DL n.º 375-A/99, de 20/09; DL n.º 120/98, de 08/05; Rect. n.º 6-C/97, de 31/03; DL n.º 36/97, de 31/01; Rect. n.º 96/95, de 31/07;(DL n.º 131/95, de 06/06.

A maternidade declarada considera-se estabelecida, nos termos do art.º 112.º58 e existe a obrigatoriedade de quem declara o nascimento, sempre que possível, indicar a mãe. No domínio deste código continua a haver diferenças consoante o nascimento tenha ocorrido à mais, ou menos, de um ano para o estabelecimento da filiação materna. Se o nascimento ocorreu à menos de um ano, a maternidade declarada considera-se estabelecida, independentemente de quem declare o nascimento, devendo neste caso o conteúdo do assento, salvo se a declaração for feita pela mãe ou pelo marido desta ser comunicado à mãe, mediante notificação pessoal, informando-a de que a maternidade declarada é havida como estabelecida.

A notificação feita à mãe é averbada, oficiosamente, ao assento de nascimento. No caso do nascimento ter ocorrido à mais de um ano, a maternidade só se considera estabelecida se for a mãe a declarante, se estiver presente no ato do registo59 ou nele estiver representada por procurador com poderes especiais, ou se for exibida prova da declaração de maternidade feita pela mãe em escritura, testamento ou termo lavrado em juízo.

Caso a declaração de nascimento não seja feita pela mãe, ou não se verifiquem os outros requisitos, o conservador deve notificar a pretensa mãe para confirmar a maternidade. Caso não seja possível a notificação, fica sem efeito a menção da maternidade.

Se a mãe for casada continua a presumir-se que o marido da mãe é o pai do filho e deve constar no assento de nascimento a lavrar a paternidade presumida, nos termos do art.º

118. º do CRC, mas a mulher casada, pode desde logo, afastar a presunção de paternidade por simples declaração verbal e o pai biológico poderá, no momento da declaração de nascimento, perfilhar o filho, conforme estabelece o art.º 119.º do CRC.

Relativamente ao estabelecimento da paternidade, o atual código continua no seu art.º

120.º a consignar que a indicação de paternidade não presumida só é admitida quando haja reconhecimento voluntário ou judicial.

Podemos assim concluir que, relativamente ao estabelecimento da filiação paterna e materna, a grande diferença foi introduzida pelo Código Civil de 1977 e consequentemente pelo Código do Registo Civil de 1978.

58 Art.º 112.º - Obrigatoriedade da declaração de maternidade – “1 - O declarante do nascimento deve identificar, quando possível, a mãe do registando. 2 - A maternidade indicada é mencionada no assento. 3 - A identificação da mãe do registando é realizada pela indicação do nome completo, data de nascimento, estado, naturalidade, residência habitual, filiação e número de identificação civil.”

59 Art.º 114.º Nascimento ocorrido há um ano ou mais – “1 - Se o nascimento tiver ocorrido há um ano ou mais, a maternidade indicada considera-se estabelecida se for a mãe a declarante, se estiver presente no acto do registo ou nele representada por procurador com poderes especiais ou se for exibida prova da declaração de maternidade feita pela mãe em escritura, testamento ou termo lavrado em juízo. 2 - Fora dos casos previstos no número anterior, o conservador deve, sempre que possível, comunicar à pessoa indicada como mãe, mediante notificação pessoal, o conteúdo do assento, para no prazo de 15 dias vir declarar em auto se confirma a maternidade, sob a cominação de o filho ser havido como seu. 3 - Se a pretensa mãe negar a maternidade ou não puder ser notificada, a menção da maternidade fica sem efeito. 4 - O facto da notificação, bem como a confirmação da maternidade, é averbado, oficiosamente, ao assento de nascimento.”

Para a concessão de nacionalidade por atribuição, ao abrigo do art.1 n.º 1 al. c) só a filiação estabelecida na menoridade do requerente, nos termos do art.º 14.º da LN, tem efeitos relativamente á nacionalidade, sendo aferida a maioridade pela lei sua lei pessoal, nos termos do art.º 29 do CC 60 Isto implica que, embora possa ser possível por averiguação oficiosa de maternidade ou paternidade ou por reconhecimento voluntario ser estabelecida a filiação já na maioridade de um individuo este reconhecimento não produz efeitos para a nacionalidade e, portanto, não pode ser concedida a nacionalidade por atribuição.61

Na análise de um processo de atribuição de nacionalidade portuguesa ao abrigo do art.º 1 n. º1 al. c) da LN é necessário que o Conservador verifique na certidão de nascimento estrangeira do requerente da nacionalidade portuguesa se a filiação, relativamente ao progenitor português, se constituiu de acordo com a lei da filiação vigente em Portugal á data do nascimento e ainda se o estabelecimento dessa filiação foi na menoridade do requerente, nos termos do art.º 14. º da LN, sob pena do processo ser indeferido por falta do fundamento de atribuição que é ser filho de progenitor português.

4 Conclusões

A nacionalidade ao ser entendida como um vínculo político que liga um indivíduo a um certo Estado, constitui um elemento do “estado das pessoas e que tem ligado a si um conjunto de direito e deveres.

O vínculo da nacionalidade aparece como um vínculo jurídico que liga um individuo a uma realidade politica, o Estado. O vínculo em questão não pode deixar de ter uma natureza publicista, por interessar ao Estado a sua regulamentação com o fim de saber quem é a sua população o que explica que seja lei de cada Estado, quem define, exclusivamente, quem são os seus nacionais62 .

A atribuição da nacionalidade a uma certa pessoa depende da resolução de um conjunto de questões prejudicais e de entre elas o estabelecimento da filiação.

60 Art.º 29.º - Maioridade- “A mudança da lei pessoal não prejudica a maioridade adquirida segundo a lei pessoal anterior.”

61 A jurisprudência tem-se pronunciado neste sentido conforme ver: Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul Proc. N.º 08816/12, Secção: CA- 2º JUÍZO de 06-06-2013, [Consulta efetuada em 10/01/2021], disponível em ”http://www.dgsi.pt/jtca.nsf/170589492546a7fb802575c3004c6d7d/6f300aca61edaa2380257b87005f1ac9?OpenDocu ment&Highlight=0,naturaliza%C3%A7%C3%A3o” [Consulta efetuada em 10/01/2021]; Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, Proc. N. 07640/11, Secção: CA - 2.º JUÍZO, de 13-10-2011, disponível em http://www.dgsi.pt/jtca.nsf/170589492546a7fb802575c3004c6d7d/79feff684f163c0d8025792e004f7a9b?OpenDocume nt”.

Neste sentido também o IRN,IP se pronunciou sobre matéria relacionada com o estabelecimento da filiação na sequencia de suprimento de omissão de registos; P.º CC 38/2015 STJ- CC de 25-02-2016,[Consulta efetuada em 10/01/2021], disponível em: “https://www.irn.mj.pt/IRN/sections/irn/doutrina/pareceres/civil/2016/pareceres-

civil/downloadFile/attachedFile_1_f0/12_2016-CC_38-2015-STJ-CC.pdf?nocache=1465470649.44”.

62 RAMOS, Rui Manuel Moura Ramos, “Estudos de Direito Português da Nacionalidade”, 2.º edição,2019, pag.350, Gestlegal, “Nacionalidade”.

Para a resolução desta questão prejudicial importa aferir ou saber que normas vão analisar estas questões, se as normas do próprio Estado que está a conceder a nacionalidade, se as normas de reenvio desse Estado.

A lei aplicável a esta questão previa só poderá ter por base as normas da legislação do próprio Estado cuja nacionalidade esteja em causa. Se assim não procedesse, deixaria de ser verdadeiro, o princípio segundo o qual é ao Estado que compete a definição dos pressupostos da atribuição e da perda da sua própria cidadania

As normas que se aplicam à constituição da filiação estão previstas atualmente no art.º 56.º e no art.º 60, ambos do Código Civil, por isso importa, aquando de um pedido de concessão de nacionalidade, ao abrigo do art.º 1. º n.º 1 al. c) da Lei da Nacionalidade, averiguar previamente se a filiação foi estabelecida de acordo com a lei portuguesa, em vigor ao tempo do nascimento.

O estabelecimento da filiação só releva, para efeitos de nacionalidade, quando for estabelecida na menoridade do interessado nos termos do art.º 14.º da LN

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Justiça Alternativa: O Solicitador enquanto mandatário na Mediação e nos Julgados de Paz

Justiça Alternativa: O Solicitador enquanto mandatário na Mediação e nos Julgados de Paz

Tiago Vitória Carvalho

Finalista da Licenciatura em Solicitadoria no Instituto Superior de Contabilidade e Administração de Lisboa

Pós-graduando em Direito das Crianças, Família e Sucessões no Centro de Investigação de Direito Privado da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Mediador Familiar

Justiça Alternativa: O Solicitador enquanto mandatário na Mediação e nos Julgados de Paz

Resumo: No presente artigo, é nosso desiderato destacar e enfatizar reflexões sobre o patrocínio judiciário por Solicitador em processos de Mediação e no âmbito dos Julgados de Paz. Cada vez mais, os meios extrajudiciais de resolução de conflitos apresentam-se como a primeira opção de Solicitadores para a solução de litígios dos seus constituintes. Por esse motivo, urge refletir a utilidade destes meios e a sua articulação com os Solicitadores.

Palavras-chave: Solicitadoria – Mediação – Julgados de Paz – Patrocínio judiciário – Resolução alternativa de litígios.

Sumário: 1. Nota introdutória. 2. Patrocínio judiciário por Solicitador no processo declarativo cível ante os tribunais judiciais. 3. Patrocínio judiciário por Solicitador em processos de Mediação. 4. Patrocínio judiciário por Solicitador nos Julgados de Paz. 4.1. O sentido e alcance do artigo 38.º da Lei dos Julgados de Paz. 4.2. No futuro, mais vale prevenir do que remediar?

Nota introdutória

No presente texto teremos como ponto de partida a destrinça entre as regras aplicáveis à representação das partes por Solicitador perante os tribunais judiciais, de um lado, e as regras aplicáveis em sede de Mediação e nos Julgados de Paz, do outro. Relativamente às primeiras, o espaço de atuação do Solicitador encontra-se balizado pelos criteriosos limites impostos pelo Código de Processo Civil português (de ora avante “CPC”), onde as suas disposições não deixam margens para dúvidas acerca dos moldes em que o patrocínio forense é exercido por este profissional. Quanto às segundas, veremos um marcado contraste no que concerne às limitações impostas pelo CPC, uma vez que a resolução alternativa de litígios desenhou um papel diferenciado para a atuação de mandatários atendendo às especificidades deste universo.

Cabe-nos fazer dois apontamentos acerca da intervenção do Solicitador na Mediação e nos Julgados de Paz. Concretamente, no que tange à Mediação, explorar-se-á a forma como o Solicitador e a Mediação se relacionam, e no caso dos Julgados de Paz, o antagonismo do patrocínio judiciário diante os tribunais judiciais; pois se no CPC estas regras são inteligíveis, na Lei dos Julgados de Paz o cenário é acinzentado.

Patrocínio judiciário por Solicitador no processo declarativo cível ante os tribunais judiciais

A abordagem ao tema impõe uma análise (ainda que breve) às normas vertidas no CPC referentes ao patrocínio judiciário1 no processo judicial cível declarativo (artigos 40.º a 52.º do CPC), uma vez que servirão de base à contraposição das regras que disciplinam a representação das partes no recinto da Mediação e dos Julgados de Paz.

À luz do disposto no artigo 40.º do CPC, é obrigatória a constituição de advogado:

1 Segundo os ensinamentos de Jorge Augusto Pais de Amaral, “O patrocínio judiciário consiste na assistência técnica prestada às partes por profissionais do foro.” – vd. Pais do Amaral, Jorge Augusto, Direito Processual Civil, Almedina, 2020, p.140. O patrocínio judiciário encontra-se constitucionalmente consagrado como um “elemento essencial à administração da justiça” (artigo 208.º da Constituição da república Portuguesa).

Nas causas da competência de tribunais com alçada, em que seja admissível recurso ordinário (regra geral, causas às quais seja atribuído um valor superior a 5.000,00 €)2;

Nas causas em que seja sempre admissível recurso, independentemente do valor3;

Nos recursos e nas causas propostas nos tribunais superiores4 .

Por seu turno, nas causas em que não seja obrigatória a constituição de advogado, o CPC concede aos Solicitadores espaço de intervenção nos tribunais judiciais. Resulta assim do artigo 42.º do CPC que, podem as próprias partes pleitear por si ou fazer-se representar por advogado estagiário ou por solicitador5. Dessa forma, nas raras situações em que é permitido fazê-lo, não querendo as partes pleitear por si próprias, apenas a profissionais do foro pode ser conferido o mandato judicial (cabendo à parte escolher entre fazer-se representar por advogado, advogado estagiário ou por solicitador). A impossibilidade de as partes fazeremse representar em juízo por terceiro que não seja profissional do foro, decorre da conjugação do artigo 136.º do Estatuto da Ordem dos Solicitadores e Agentes de Execução (daqui adiante “EOSAE”), artigo 66.º do Estatuto da Ordem dos Advogados (“EOA”), números 1 e 5 do artigo 1.º da Lei dos Atos Próprios dos Advogados e Solicitadores6 (“LAPAS”) e artigos 12.º e 15.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário7 (“LOSJ”).

Patrocínio judiciário por Solicitador em processos de Mediação

Como nos disse a Exposição de Motivos da Proposta de Lei que deu origem à Lei n.º 62/2013, de Organização do Sistema Judiciário: “Os tribunais judiciais são, certamente, o maior e mais importante recurso público da justiça, mas estão longe de ser a única instância de resolução de litígios. Como sabemos, existem outros meios alternativos de resolução de conflitos

2 Nos termos do n.º 1 do artigo 629.º do CPC, a admissibilidade de recurso ordinário verifica-se quando “a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal, atendendo-se, em caso de fundada dúvida acerca do valor da sucumbência, somente ao valor da causa”. Por sua vez, o artigo 44.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário), dispõe que em matéria cível “a alçada dos tribunais da Relação é de € 30 000,00 e a dos tribunais de primeira instância é de € 5 000,00”.

3 Os n.ºs 2 e 3 do artigo 629.º do CPC elencam essas causas.

4 A título de exemplo, veja-se a ação de indemnização contra magistrados – artigos 967.º e seguintes do CPC – e a ação de revisão de sentença estrangeira – artigos 978.º e seguintes do CPC.

5 Assim, o Solicitador por si, só pode exercer o mandato judicial nas ações declarativas até 5.000,00 €, podendo ainda, mesmo que seja obrigatória a constituição de advogado, fazer requerimentos em que se não levantem questões de direito (n.º 2 do artigo 40.º do CPC). É de ressalvar, que sobre a alçada do artigo 151.º do EOSAE, “nas audiências de julgamento, os solicitadores dispõem de bancada”

6 Lei n.º 49/2004, de 24 de agosto.

7 Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto

8 Algumas das considerações aqui vertidas serão esporádicas reminiscências do publicado em Carvalho, Tiago Vitória, A mediação familiar e o papel do Solicitador. In Revista Sollicitare – N.º 33 – 2022, p. 44.

8

criados pelo Estado ou pela própria sociedade, como os tribunais arbitrais, serviços de mediação ou julgados de paz.”.

Com efeito, nos meandros da mediação, a primeira questão sobre a qual nos debruçaremos será a respeito da constituição de mandatário; será esta, nalgum caso, obrigatória? Tal questão merece resposta em sentido negativo, ora vejamos.

Uma leitura e interpretação das normas que preveem a presença e representação dos mediados, leva-nos a concluir pelo carácter opcional da faculdade destes se fazerem acompanhar ou representar por advogado, advogado estagiário ou solicitador9 (salvas as exceções em que se prevê a inadmissibilidade de representação)10. De facto, esta posição do legislador é alvo de críticas11 , considerando-se insuficiente uma mera faculdade em detriment de uma constituição obrigatória de mandatário; da nossa parte, abster-nos-emos de influir sobre tais críticas.

Já quanto à faculdade das partes poderem ser representadas, isto é, que mandatários se substituam às mesmas, deixamos uma breve nota. À semelhança de outros autores12 , discordamos e desaconselhamos o uso de tal faculdade. O carácter pessoalíssimo da mediação deverá prevalecer, este é mister para alcançar o anseio de um procedimento de mediação.

“Os mediados têm de estar presentes nas sessões, partilhar os seus anseios, comunicar os seus interesses e permitir que o mediador resgate o diálogo e busque o consenso. Não se vislumbra como pode tal desiderato acontecer se as partes não estiverem presencialmente na mediação.”.

9 Veja-se: a Lei n.º 29/2013, de 19 de abril (Lei da Mediação), contempla no n. º1 do seu artigo 18.º que “As partes podem comparecer pessoalmente ou fazer-se representar nas sessões de mediação, podendo ser acompanhadas por advogados, advogados estagiários ou solicitadores”; na Portaria n.º 1112/2005, de 28 de outubro (Regulamento dos Serviços de Mediação nos Julgados de Paz), o n.º 1 do artigo 10.º diz- nos que “As partes têm de comparecer pessoalmente às sessões de pré-mediação e de mediação, podendo fazer-se acompanhar de advogado, advogado estagiário ou solicitador”; o Manual de Procedimentos e Boas Práticas do Sistema de Mediação Laboral, estabelece no n.º 1 do artigo 8.º que “As partes têm de comparecer pessoalmente às sessões de mediação, podendo fazer-se acompanhar, querendo, de advogado, advogado estagiário, solicitador ou outros assessores técnicos.”; a Lei n.º 21/2007, de 12 de junho (Lei da Mediação Penal) e a Portaria n.º 68-C/2008, de 22 de janeiro, com as alterações introduzidas pela Portaria n.º 732/2009, de 8 de julho, e pela Lei n.º 29/2013, de 19 de abril (Regulamento do Sistema de Mediação Penal), preceituam à luz do artigo 8.º e 7.º, respetivamente, que “Nas sessões de mediação, o arguido e o ofendido devem comparecer pessoalmente, podendo fazerse acompanhar de advogado ou de advogado estagiário.”; no que concerne à mediação administrativa, à luz do n.º 2 do artigo 87.º - C do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, as partes são notificadas para comparecer pessoalmente ou se fazerem representar por mandatário judicial com poderes especiais, sendo que, “A mediação processa-se nos termos previstos na lei processual civil e no regime jurídico da mediação civil e comercial, com as necessárias adaptações” (n.º 5 do artigo 87.º - C do Código de Processo nos Tribunais Administrativos); por último, nos domínios da mediação familiar entende-se que, o acompanhamento por mandatário é regulado pelo artigo 18.º da Lei n.º 29/2013, de 19 de Abril (Lei da Mediação), pese embora a alínea a) do n.º 2 do artigo 10.º da mesma lei – ou seja, “As partes podem comparecer pessoalmente ou fazer-se representar nas sessões de mediação, podendo ser acompanhadas por advogados, advogados estagiários ou solicitadores”.

10 Cfr. Gouveia, Mariana França, Curso de Resolução Alternativa de Litígios, Almedina, 2018, pág. 53. Ainda a respeito, a Lei da Mediação Penal (artigo 8.º), a Lei dos Julgados de Paz (artigos 38.º e 53.º em conjugação com o artigo 18.º da Lei da Mediação) e a Lei da Mediação (artigo 36.º) balizam a representação dos mediados.

11 Nomeadamente o parecer relativo à Proposta de Lei da Mediação pela Ordem dos Advogados Portugueses, disponível em http://app.parlamento.pt/ e noutros ordenamentos jurídicos: “L’Avvocatura ha altresi denunciato il ruolo marginale e subalterno riservato agli avvocati nel procedimento di mediazioni, laddove non è stata prevista l’obbligatorietà dell’assistenza técnica, che rimane, ad oggi, facoltativa.” Laura Bugati, “L’Avvocatura e la mediazioni”, in Quaderni di conciliazione, n.º 3, 2012, pág. 234.

12 Cfr. Lopes, Dulce e Patrão, Afonso, Lei da Mediação Comentada, Coimbra, Almedina, 2014 pág. 120 e 121; Cruz, Rossana Martingo, A mediação familiar como meio complementar de Justiça, Almedina, 2018, pág. 66; e Martín Diz, Fernando, Mediación en derecho privado: nuevas perspectivas práticas, pág. 9.

13 Cfr. Cruz, Rossana Martingo, O papel do advogado na mediação familiar – uma observação crítica à realidade portuguesa, in Revista Electrónica de Direito – outubro 2015 – n.º 3, pág.11.

13

Destarte, tal-qualmente pela leitura e interpretação das normas que contemplam a presença e representação dos mediados, podemos arrematar que a previsão de acompanhamento por Solicitador apenas não foi prevista na esfera da mediação penal, o que se compreende, porquanto o core da atividade profissional de um Solicitador não abrange o Direito e Processo Penal.

Decerto, a mediação como método de resolução alternativa de litígios (doravante “MRAL”), vem trilhando o seu caminho em Portugal paulatinamente. Este é um caminho alternativo à via judicial, mas é, concomitantemente, complementar à mesma. Essencialmente, a mediação prima pela comunicação e pelo seu ambiente flexível, maleável e sem juízos de valor, onde o mediador, privilegiando o acolhimento emocional, procurará a exteriorização da vontade e necessidades dos envolvidos, de modo a que os mesmos construam ativamente um acordo, acordo esse, que vá de encontro com aquela que será a melhor solução para as partes.

Infelizmente, para muitos dos cidadãos a mediação ainda não é de seu conhecimento, motivo pelo qual desconhecem as suas vantagens, assentes na eficácia, celeridade e proximidade que estimulam uma tramitação processual mais simplificada, menos custos, menor desgaste emocional e a oportunidade de os sujeitos optarem pela autocomposição dos seus conflitos. Aponta-se que um dos grandes entraves à mediação em Portugal seja a fraca adesão por parte de Advogados e Solicitadores à mesma14. Estes profissionais são detentores de um potencial capaz de alicerçar e alavancar a mediação no nosso ordenamento jurídico, pelo que, a sua adesão mostra-se crucial nesta missão. O cidadão comum não tem sequer a noção do que seja a mediação, o seu primeiro impulso na procura de uma solução para um dissídio será recorrer a um Advogado ou Solicitador (e consequentemente, a via tradicional de justiça).

O Solicitador é, por isso, o profissional possuidor de conhecimentos e ferramentas aptas ao encaminhamento do seu cliente para o método mais adequado e eficaz à resolução dos seus litígios. Nos tempos hodiernos, o cidadão está desacreditado na Justiça, pelo que, o facto de este poder socorrer-se de um profissional que lhe dê a conhecer alternativas às vias tradicionais, caracterizadas por morosos processos judicias que retraem e impelem o cidadão a não fazer valer os seus direitos, fomentará um novo olhar sobre a Justiça e desencadeará uma mudança de paradigma.

Porém, há que sublinhar e deixar claro que a mediação não se assemelha a um “elixir quimérico” capaz de sanar todo e qualquer litígio. Nem todos os casos são passíveis de mediação, nem se deverá reencaminhar cegamente para a mesma qualquer disputa sem que antes seja feita uma análise por parte do mandatário, de modo a aferir se a mediação será ajustada à contenda do cidadão. Destarte, como podemos depreender, o conhecimento da mediação (em si e das suas vantagens e desvantagens) por parte do Solicitador, é condição sine qua non para que esta possa ser apresentada ao cidadão pelo mesmo.

14 Esta resistência advirá de uma desconfiança enraizada no desconhecimento e receio de que o mandatário se possa tornar dispensável na mediação. Todavia, sublinhe-se que o Solicitador revela-se menos resistente que o Advogado.

Em todo o caso, é importante ressalvar que o Solicitador ao recorrer aos serviços de mediação, não estará a “perder” um potencial cliente, pelo contrário, ao elucidar e nortear o seu cliente para uma alternativa que o satisfaça (de uma forma eficiente e mais humanizada) terácomo resultado o seu retorno. Isto é, almejar e promover a satisfação dos clientes deverá ser a perspetiva a médio e longo prazo, pois dessa forma será plantada no cliente a crença de que o profissional é dotado dos saberes e mestria da melhor via a percorrer na busca de uma solução aos seus problemas, brotando assim, fortes chances do seu retorno15 .

Ademais, a mediação entre outros aspetos, revela-se vantajosa para os Solicitadores, pois uma causa que à partida, por conta das limitações impostas pelo CPC, tenha de ser dispensada e reencaminhada para um Advogado, não o será no domínio da mediação16 . Por conseguinte, sendo a mediação um MRAL, que opera baseando-se e privilegiando os interesses e não os direitos das partes, o carácter da intervenção do Solicitador no âmbito da mediação, deverá ser distinto daquele que presta ao abrigo do mandato forense, isto é, o Solicitador não representa o mediado, adota sim, uma postura e espírito conducente ao sentido da mediação, privilegiando a harmonia do processo em apanágio dos interesses dos mediados17. Esta postura (de salvaguarda) por parte do Solicitador, passa essencialmente, por entender que as personagens principais da mediação são os mediados, devendo intervir oportunamente (ou, aquando solicitação), sobretudo, no zelo pelos direitos inalienáveis dos mediados. A presença de um Solicitador prima por uma intervenção de arrimo ao cliente, munindo o mesmo de confiança e suporte no decorrer das sessões de mediação. O seu papel é indispensável à garantia dos interesses e direitos do mediado que acompanha, uma vez que, no desenrolar do processo de mediação, inevitavelmente, serão levantadas questões de direito que carecem de devido esclarecimento (antes, durante e após sessões de mediação) por parte de um profissional habilitado para o efeito18. Desta forma, é garantido que a vontade do mediado explanada no acordo de mediação será esclarecida e ponderada.

15 Subscrevemos integralmente os ensinamentos de Mariana França Gouveia (aplicáveis ao Solicitador) quando refere: “Sugerir a intervenção de um mediador não implica a diminuição de trabalho (e remuneração) para o advogado. Pelo contrário, a satisfação do cliente implica a médio prazo o seu retorno para a resolução de outros problemas, dos quais desistiria se o método judicial fosse o único disponível. A advocacia deve pensar em termos macro, de médio/longo prazo, de satisfação dos clientes e de rapidez e eficiência na resolução dos seus litígios.” Gouveia, Mariana França, Curso de Resolução Alternativa de Litígios, Almedina, 2018, cit., pág. 54.

16 Pressupondo uma prévia triagem ao conflito em que se ateste a mediação como uma via oportuna para a sua resolução. Segundo os ensinamentos de Rossana Martingo Cruz, no âmbito da mediação familiar, porém transversal a qualquer mediação: “Apesar de todos os seus benefícios, em determinadas conjunturas, a mediação familiar não será adequada. Quando o desacordo entre as partes atingiu um nível de conflituosidade tal (em que as posições cristalizaram), ou quando pretendem uma decisão externa que puna o outro e lhes ateste a razão. Quando o discernimento para uma solução autocompositiva já não seja alcançável, ou quando um dos mediados usa a mediação somente como um mero expediente dilatório, caberá ao advogado ou ao mediador (dependendo de quem consegue detectar atempadamente tais situações) não pugnar pelo encaminhamento das partes ou dar a mediação por terminada, caso esta já se tenha iniciado.” Cruz, Rossana Martingo, O papel do advogado na mediação familiar – uma observação crítica à realidade portuguesa, in Revista Electrónica de Direito – outubro 2015 – n.º 3, pág.13.

17 “O papel do advogado numa sessão de mediação é muito diferente daquele que desempenha em tribunal judicial ou arbitral. Desde logo, na mediação não é necessário convencer ninguém quanto aos factos ou ao direito: são as partes que têm o papel principal, não o advogado”. Gouveia, Mariana França, Curso de Resolução Alternativa de Litígios, Almedina, 2018, cit., págs. 52-53. Embora a autora apenas se refira à figura do Advogado, os seus dizeres são igualmente aplicáveis aos Solicitadores.

18 “Assim, para além de deverem ser eles próprios a indicar a mediação como via de resolução de conflitos aos seus clientes sempre que acharem adequada a sua utilização, os advogados podem participar no âmbito dos procedimentos de

É fundamental o crivo jurídico de um profissional apetrechado de conhecimentos sólidos do mundo jurídico capaz de prevenir que eventuais acordos corram o risco de não ser homologados. A título de exemplo, veja-se um caso de mediação familiar na alçada das denominadas “Empresas Familiares”, onde os laços familiares encontram-se diluídos nas relações societárias criando uma osmose propícia ao conflito. Neste sentido, não só serão levantadas questões relacionadas com o Direito da Família e Sucessões, como também, na esfera do Direito das Sociedades Comercias. Um mediador não jurista19 perante tal conjetura certamente não saberá até que ponto os acordos serão exequíveis, demandando-se, dessa forma, a presença de um profissional capaz de blindar o processo de mediação contra a carência de conhecimento do quadro jurídico da disputa submetida, evitando a admissão de acordos que ofendam direitos indisponíveis dos mediados e elucidando o que esses acordos representarão na esfera jurídica dos mesmos, dando assim lugar a uma mediação mais musculada.

Por último, fomentar a complementaridade entre mandatários e mediadores é uma peçachave para alcançar o patamar que se deseja para a mediação (que esta seja tida em conta com o mesmo grau de idoneidade e igualdade perante as demais vias de justiça), na justa medida em que, o mandatário ao conceber a mediação como a via mais adequada ao conflito do seu constituinte, do outro lado, o mediador elucida os mediados quanto à sua prerrogativa de se poderem fazer acompanhar por mandatário e a sua importância. Há que sublinhar, outrossim, que a presença de um mandatário nas sessões de mediação permitirá um controlo da atividade do mediador, quer em termos de competência como da ética e deontologia20 .

Patrocínio judiciário por Solicitador nos Julgados de Paz

Analisado como ficou os moldes em que patrocínio judiciário se processa na mediação, coloca-se a questão de saber como este se efetua nos Julgados de Paz. Ora, as regras de representação das partes em juízo nos Julgados de Paz encontram-se plasmadas no artigo 38.º da Lei n.º 78/2001, de 13 de julho (Lei dos Julgados de Paz – “LJP”), que dispõe:

“as partes têm de comparecer pessoalmente, podendo fazer-se acompanhar por advogado, advogado estagiário ou solicitador” (cfr. artigo 38.º, n.º 1)21;

mediação não apenas como técnicos (elaborando, por exemplo, pareceres sobre as matérias em litígio) mas também como assessores das partes (assistindo-os juridicamente ou representando-os, nos termos do n.º 1 do art.º 18).” Dulce Lopes e Afonso Patrão, Lei da Mediação Comentada, Coimbra, Almedina, 2014, págs. 124-125. Sendo o citado extensível aos Solicitadores.

19 Não se ignore que um mediador não necessita de ser licenciado em Direito ou Solicitadoria para o exercício da profissão. Todavia, sendo a sua formação nas ciências jurídicas, naturalmente tal será um plus, na medida em que saberá quais os acordos juridicamente inaceitáveis e evitará que as partes empreguem esforços não homologáveis.

20 Cfr. Gouveia, Mariana França, Curso de Resolução Alternativa de Litígios, Almedina, 2018, pág. 55- 56.

21 A norma prevê o acompanhamento e não a representação, segundo Cardona Ferreira: “É muito importante a presença pessoal das partes, desde logo para que exponham, com conhecimento completo, as situações e se viabilizem soluções pacificadoras; naturalmente, tratando-se de pessoas coletivas, comparecerão os respetivos representantes legais. Há que considerar, na medida do necessário, designadamente, os arts. 24.º, 25.º e 223.º do CPC e o art. 63.º desta lei”. Mais adianta: “(…) nada impede a sua representação por mandatário forense com poderes especiais para acordo, (art. 45.º, n.º

“a assistência é obrigatória quando a parte seja analfabeta, desconhecedora da língua portuguesa ou, por qualquer outro motivo, se encontre numa posição de manifesta inferioridade, devendo neste caso o juiz de paz apreciar a necessidade de assistência segundo o seu prudente juízo” (cfr. artigo 38.º, n.º 2)22;

é obrigatória “a constituição de advogado na fase de recurso, se a ela houver lugar” (cfr. artigo 38.º, n.º 3 e 62.º)23 .

Dessa forma, claro fica que o patrocínio forense não é obrigatório nos Julgados de Paz; só assim o será nas hipóteses do n.º 2 e 3 do artigo 38.º.

Nos bastiões dos Julgados de Paz vigora como princípio a aproximação da justiça aos cidadãos. Visa-se um processo imediato, desburocratizado, informal, orientado para uma busca de consenso. É desejado que os cidadãos participem e intervenham livre e ativamente na realização da justiça, pelo que só existe obrigação de serem assistidos por Advogado, no processo, apenas na fase de recurso.

Pelos ensinamentos de Cardona Ferreira: “É preciso compreender a essência dos Julgados de Paz. Estes são Tribunais, mais incomuns, diferentes, designadamente dos judiciais.”

“O que se deseja é a intervenção pessoal dos interessados, inclusive na procura de soluções. Nada impede que as partes sejam ouvidas como depoentes no decurso da audiência. Mas, antes disso, às partes compete dialogar, expor as suas razões e verificar se é possível em entendimento, ajudadas, ora pelo mediador, ora pelo Juiz de Paz (art. 2.º, n.º 1). Isto não impede que sejam assistidas por advogado, advogado estagiário ou solicitador e oiçam os seus conselhos e, daí, até poder resultar a viabilidade ou inviabilidade de prosseguimento de tais diligências. O que é consonante com o art. 20.º da CRP, mormente n.º 4.”24 .

De igual modo, quanto à competência em razão do valor e da matéria nos Julgados de Paz, também encontramos algumas particularidades. De facto, o âmbito de jurisdição dos Julgados de Paz está limitado às matérias taxativamente previstas no artigo 9.º e cujo valor não exceda os 15.000,00 euros (artigos 6.º, n.º 1, 8.º e 9.º, n.ºs 1, 2 e 3, da LJP).

O sentido e alcance do artigo 38.º da Lei dos Julgados de Paz

Pela análise do artigo 38.º da LJP poderá surgir a seguinte questão: Num Julgado de Paz, qual a legitimidade do Solicitador para o exercício do mandato forense no âmbito de uma ação cujo valor seja superior a 5.000,00 euros e inferior a 15.000,00 euros?

2 do CPC), embora, dadas as características dos Julgados de Paz e a pessoalidade desta representação (mais do que tecnicidade), admitimos que, se a parte estiver impedida de comparecer, pode fazer-se representar por terceiro não jurista, sem prejuízo da assistência por jurista.”. Cardona Ferreira, J. Octávio, Lei dos Julgados de Paz Anotada, Almedina, 2019, cit. pág. 170 e 172.

22 Esta assistência pressupõe a presença do próprio interessado, embora por técnico qualificado. O que se entende perfeitamente, o escopo da norma radica na preocupação do legislador em garantir que as partes ponderem, adequadamente, os seus interesses.

23 Ou seja, se a causa for suscetível de recurso ordinário tal não implicada a constituição de advogado, essa apenas é imposta se, efetivamente, for interposto o recurso.

24 Cardona Ferreira, J. Octávio, Lei dos Julgados de Paz Anotada, Almedina, 2019, cit. pág. 172.

Esta é uma questão que assoma vozes dissonantes25, havendo quem propugne a aplicação das limitações impostas ao mandato forense constantes dos artigos 40.º e seguintes do CPC por remissão do artigo 63.º da LJP26, e quem perfilhe o exercício do mandato forense despojado de tais limitações. Não partilhamos da posição que advoga as barreiras emergentes do CPC que mitigam a práxis do patrocínio judiciário27, uma vez que não faz jus à génese e aos princípios que devem nortear os Julgados de Paz.

Ora, será necessária uma interpretação sistemática28 para que não se reduza o alcance da norma a uma problemática: permitir que as partes possam intervir sozinhas em juízo, mas já não possam ser acompanhados por Solicitador.

Damos nota de um parecer da Ordem dos Advogados no seguimento do qual a “Juíza de paz proferiu despacho a julgar a irregularidade do mandato porquanto o Advogado-Estagiário não tinha competência para estar em juízo sem a presença do seu patrono, nos termos do art.º

196º do Estatuto da Ordem dos Advogados”29. Pese embora o fundamento invocado para tal irregularidade do mandato tenha sido nos termos do artigo 196.º do EOA, a posição adotada pela relatora vai de encontro com a nossa: “Isto é, se o ordenamento jurídico permite “o mais”, isto é, o cenário de maior liberdade possível de representação em juízo, em que a mesma é assegurada pelo próprio interessado, por que razão deve o mesmo ordenamento jurídico impedir “o menos”, isto é, o acompanhamento do interessado em juízo, por parte de um Advogado Estagiário?”30 31. Ou seja, a relatora lançou mão (e bem, diga-se) do argumento a maiori ad minus, a lei que permite o mais, também permite o menos.

Também Cardona Ferreira: “Mas, seja como for, nada impede a presença, designadamente, de advogados e de solicitadores, em quaisquer atos dos Julgados de Paz. Mais. A nosso ver, essa presença é desejável e desejada. Portanto, se os profissionais forenses entendem que é conveniente a sua presença são bem-vindos.”32 .

25 Esta é uma conclusão a que chegamos através da troca de pareceres com profissionais do foro, docentes das ciências jurídicas e pela análise da escassa doutrina que versa sobre a divergência em apreço.

26 Na parca doutrina, veja-se: José António de França Pitão e Gustavo França Pitão, Lei dos Julgados de Paz Anotada, Quid Juris, 2017, pág. 250.

27 Paulo Cortesão também não perfilha de tal posição: “Esta limitação não ocorre no âmbito dos Julgados de Paz, uma vez que a constituição de mandatário, como vimos, não é obrigatória, pelo que o Solicitador pode sempre intervir, independentemente do valor da ação. Se assim é, entendemos que fará todo o sentido prover a uma alteração legislativa, no sentido de possibilitar a atuação dos Solicitadores nas causas com um valor superior à alçada do tribunal de 1ª instância, até ao limite da alçada dos Julgados de Paz atualmente de 15.000,00€”. – vd. Granadeiro Cortesão, Paulo Miguel Antunes, Os Julgados de Paz versus os Tribunais Judiciais - as diferenças de organização e tramitação processual, Tese de Mestrado em Solicitadoria – Politécnico do Porto - Escola Superior de Tecnologia e Gestão, 2016, pág. 37.

28 Resulta do disposto no artigo 42.º do CPC que “nas causas em que não seja obrigatória a constituição de Advogado, podem as próprias partes pleitear por si e ser representadas por advogados estagiários e por solicitadores”. Assim, não sendo obrigatória a constituição de Advogado, a parte e o Solicitador poderão intervir.

29 Processo de Parecer nº: 4/PP/2021-G da Relatora Dra. Margarida Simões, disponível em: https://portal.oa.pt/media/134146/proc-parecer-n%C2%BA-4-pp-2021-g.pdf

30 Idem, cit., ponto 37 da página 13 do Parecer mencionado.

31 Note-se que pela conjugação do artigo 196.º, n.º 1, alínea a), do EOA, e do artigo 1.º, n.º 5, alínea a), da LAPAS, os Advogados Estagiários só se encontram habilitados a exercer o mandato forense nos mesmos termos que os Solicitadores se encontram habilitados a exercê-lo, ou seja, exclusivamente no âmbito de ações judiciais cujo valor não exceda os 5.000,00€.

32 Cardona Ferreira, J. Octávio, Lei dos Julgados de Paz Anotada, Almedina, 2019, cit. pág. 172.

Assim sendo, o Solicitador tem a possibilidade de intervir nas causas que corram termos num Julgado de Paz em que o valor da ação seja superior a 5.000,00 euros e inferior a 15.000 euros.

Nessa senda, o artigo 62.º, n.º 1 da LJP dispõe que as decisões proferidas nos Julgados de Paz cujo valor exceda metade do valor da alçada do tribunal de 1.ª instância (isto é, 2.500,01 euros por força do artigo 44.º da LOSJ) podem ser impugnadas por meio de recurso, a interpor para a secção competente do tribunal de comarca em que esteja sediado o Julgado de Paz. O preceituado no citado artigo faz-nos levantar outra questão: estará o legislador a reconhecer ao Solicitador a idoneidade e as valências necessárias enquanto mandatário em ações até 15.000 euros nos Julgados de Paz, mas não para interpor recurso de uma ação no valor de 2.500,01 euros? Esta é uma questão controversa, pois efetivamente o legislador previu taxativamente a necessidade de constituição de advogado para a interposição de recurso (cfr. n.º 3 do artigo 38.º da LJP). Tamanha questão proclama um olhar mais atento num futuro próximo, da nossa parte, deixamos o nosso parecer como contributo a varrer tal ambiguidade.

No futuro, mais vale prevenir do que remediar?

Somos aliados da ávida firmeza com que Cardona Ferreira defende a criação de Julgado de Paz de 2º grau ou de 2ª instância33, à semelhança da Turma Recursal dos Juizados Especiais brasileiros.34 De facto, enquanto o Julgado de Paz de 2.º grau não é criado, compreende-se que o Tribunal ad quem seja um judicial, pois os judiciais são Tribunais comuns, designadamente, em matéria cível (artigo 211.º, n.º 1 da Constituição da Républica Portuguesa)35 .

Ora, a composição de um Julgado de Paz de 2.º grau poderá ser tida como uma oportunidade (entre outras) de eliminar esta ambivalência alojada à figura do Solicitador – é reconhecida a sua aptidão e mestria enquanto mandatário em ações cujo valor ascenda até 15.000 euros, mas já não é apto o suficiente para recorrer de uma decisão no valor de 2.500,01 euros (ou mais). Dessa forma, no nosso entender, a criação de um Julgado de Paz de 2.º grau poderá ser a “porta” de entrada para a uniformização da figura do Solicitador nesta jurisdição, prevendo a obrigatoriedade de as partes constituírem Advogado ou Solicitador na fase de recurso (para a 2.ª instância do Julgado de Paz). Mais ainda, a jusante de tal alteração legislativa, também se deverá prover à alteração do artigo 38.º da LJP, com

33 (...) os Julgados de Paz não podem ser um sub-sistema incoerente com sua inserção intrínseca nos Meios Alternativos. Por isso me parece que deveriam vir a ter competência executiva, desde logo das suas próprias decisões (sem prejuízo da revisão geral do processo executivo), certa competência penal (sem aplicabilidade de penas de prisão) e estrutura recursória própria, além de possível alargamento de competência declarativa cível. A minha visão dos Julgados de Paz vai no sentido de os aproximar mais dos Juizados Especiais brasileiros que lhe serviram de paradigma.” - Cardona Ferreira, J. Octávio, “Julgados de Paz e os Litígios de Consumo” 4 Estudos de Direito do Consumidor (2002), pág. 85.

34 Sobre a temática vide - Russo, Álana Pereira, Julgados de Paz e Juizados Especiais Cíveis: Breve análise comparativa, in Revista da Faculdade de Direito e Ciência Política, N.º 11, 2018.

35 Cfr. Cardona Ferreira, J. Octávio, Lei dos Julgados de Paz Anotada, Almedina, 2019, cit. pág. 243.

o intuito de clarificar a atuação dos Solicitadores nas causas com um valor superior à alçada do tribunal de 1ª instância, até ao limite da alçada dos Julgados de Paz.

Alcançamos que tal criação e restruturação deverá ser precedida de consulta pela Ordem dos Solicitadores e Agentes de Execução, pois esta é a instituição que melhor saberá desmistificar uma visão exígua dos Solicitadores que, não raras vezes, paira sobre estes profissionais do foro.

Sentimos que o mundo jurídico deixa constatar que existe uma oposição e ceticismo (nem sempre velado), em relação aos Solicitadores. Esta postura parcamente tolerante ao reconhecimento da profissão advém, julgamos, do desconhecimento destes profissionais e do receio de promoverem a dispensa de outros operadores judiciários. Ousamos, inclusive, insinuar que a desconfiança é diretamente proporcional ao desconhecimento. É insofismável que o Solicitador é uma pedra angular da administração da Justiça, daí que se propugne a sua intervenção direta e coerente no âmbito da resolução alternativa de litígios, mormente, nos Julgados de Paz.

Considerações finais

Em suma, tudo visto e ponderado, claro ficou que o patrocínio forense por Solicitador na Justiça Alternativa obedece a regras distintas daquelas que regulam a via tradicional (tribunais judiciais). Desse modo, sendo a regra geral a não obrigatoriedade de constituição de mandatário, as partes que optem por fazê-lo, poderão escolher para o efeito um Solicitador.

Cada vez mais os profissionais do foro vão reconhecendo à mediação e aos Julgados de Paz as suas vantagens, havendo uma onda crescente destes profissionais com uma veia restaurativa do conflito. Dar a conhecer aos seus constituintes alternativas aos métodos tradicionais é primar por uma mudança de paradigma, devolvendo aos cidadãos a crença de uma Justiça confiável e eficaz.

A mediação e os Julgados de Paz não visam apenas o apoio à realização da justiça, desde logo, por comportarem uma vertente pedagógica enquanto sistemas para ensinar os cidadãos de forma pacífica a resolverem os seus conflitos pelos seus próprios meios, através do diálogo e da negociação, pois baseia-se na ideia de que a responsabilidade de resolver a contenda é dos próprios contendores, e não tanto para que os poderes públicos se subtraiam da sua responsabilidade de alcançar a paz social, mas de devolver aos cidadãos a competência na gestão dos seus próprios assuntos36 .

Em Portugal, a curtos passos, a mediação vai lutando pelo seu merecido destaque. Para tal, o legislador previu que esta possa contar com a ajuda de um profissional competente e com um contacto privilegiado com o cidadão comum. Com efeito, alvitramos que é indispensável

36
Cfr. Mejias Gómez, La mediación como forma de tutela judicial efetiva, Madrid, El Derecho Y Quantor SL, 2009, p. 37.

que a mediação seja capaz de dar uma resposta em conformidade com esse voto de confiança por parte do Solicitador.

Relativamente aos Julgados de Paz, a questão não está livre de controvérsia, existindo incongruências na forma como esta jurisdição concebeu e reconheceu o Solicitador. Na prática, a questão reconduz-se a saber se, o Solicitador poderá ser mandatário nas causas que corram termos nos Julgados de Paz até ao limite da sua alçada, atualmente de 15.000,00 euros, ou, a sua atuação é coartada até aos 5.000,00 euros por aplicação das regras constantes dos artigos 40.º e seguintes do CPC.

Salvo melhor entendimento, pelas já expostas razões, defendemos que, o Solicitador nos Julgados de Paz atua até ao limite da alçada desta jurisdição. Parece-nos que é essa a solução que resulta da lei e da doutrina dominante. Quantas vezes o intérprete e o aplicador das leis têm de harmonizar o que, ao que parece, se encontra desarmonizado…

Ainda assim, por aqui não fica a dúbia conceção deste profissional. Pois se por um lado entendeu-se que o Solicitador tem os conhecimentos necessários de Direito e as qualificações adequadas a acompanhar o seu constituinte até 15.000,00 euros, por outro, esses conhecimentos e qualificações já não são bastantes para a interposição de recurso de uma decisão que perfaça o valor de 2.500,01 euros.

Cremos que se deve proceder a uma uniformização e correção destas questões suscitadas. Quiçá, num futuro próximo, seja tida em conta a nossa reflexão aqui vertida.

Certo é, outrossim, que não queremos um cego apologismo ao Solicitador. Pretendemos sim, que se dissipe a forma como certas previsões legislativas camuflam a sua apreensão num ceticismo e antagonismo reacionários. Ademais, era e é, imperativo que ao abordar os MRAL, se refira à intervenção do Solicitador nos mesmos termos e idoneidade com que se enuncia o Advogado.

Bibliografia citada

Cardona Ferreira, J. Octávio, Lei dos Julgados de Paz Anotada, Almedina, 2019.

Cardona Ferreira, J. Octávio, Julgados de Paz e os Litígios de Consumo, 4 Estudos de Direito do Consumidor, 2002.

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Judiciais

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Concurso de Credores

Concurso de Credores

Prevalência do direito de retenção sobre o credor hipotecário na graduação de créditos

Nelson Filipe Gomes de Sousa

Jurista

Licenciado em Solicitadoria com aprovação nos exames de acesso à OSAE

Mestrando em Solicitadoria

Concurso de Credores |

Resumo

Na continuidade da promoção da coletânea “Solicitadoria e Ação Executiva – Estudos” proponho a elaboração e dinamização de um trabalho científico, que in casu, versa sobre o Concurso de Credores, mais concretamente: a prevalência do direito de retenção sobre o credor hipotecário, na graduação de créditos.

Estreio as minhas considerações, com o conceito de concurso de credores – reclamação de créditos, quer do ponto de vista jurisprudencial, quer da ótica doutrinal, interpretando a letra da lei.

Em segunda instância, referencio os pressupostos específicos da reclamação de créditos, abordando a ação de verificação e graduação de créditos onde retiro, que esta última, estruturalmente se demonstra controversa, entendendo a doutrina tratar-se de uma verdadeira ação declarativa, porém embebida e subordinada à ação executiva.

De seguida, direciono a atenção do leitor para o direito de retenção e as garantias reais, onde aludo ao facto de o direito de retenção evidenciar-se como um direito real de garantia que decorre ex lege, não existindo a necessidade de uma declaração judicial prévia, pois é reconhecido em sede de reclamação de créditos, no âmbito da ação executiva. Acresce que, lavro sobre o direito de retenção e a sua prevalência sobre a hipoteca, bem como no ponto ulterior teço críticas à redução da eficácia hipotecária, no plano executivo. Por conseguinte, e em penúltimo, empreendo uma análise jurisprudencial a um Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, onde me debruço sobre questões controversas, que são alvo de escrutínio, com o intuito primordial em problematizá-las no dito Acórdão. Por último, naquilo que são as conclusões finais, teço algumas considerações em relação ao Acórdão analisado no ponto 6, que me parecem perentórias e pertinentes, deixando uma opinião pessoal, no sentido de o direito de retenção não ter, necessariamente, que ser declarado ou reconhecido, previamente pelo Tribunal.

Palavras-Chave

Concurso de credores; Graduação de créditos; Direito de retenção; Hipoteca; Garantias reais

Considerações introdutórias

A prevalência do direito de retenção sobre a hipoteca, mesmo quando esta última é anterior e beneficia da competente publicidade legal – registo prévio, não constitui uma solução nada consensual, evidenciando-se cânones díspares.

O presente relatório, incide sobre o Concurso de credores – prevalência do direito de retenção sobre o credor hipotecário, na graduação de créditos, pelo que dedicar-se-á atenção à exposição da matéria que incide sobre a temática em apreço, escrutinando o

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Processo nº: 61/11.7TBAVV-B. G1. S1, cujo relator é: Rosa Tching, por forma a problematizar a questão controversa do mesmo. Porquanto, perfilha-se o entendimento de que o direito de retenção se caracteriza como um verdadeiro direito real - um direito absoluto, a todos oponível, revestindo-se como um meio coercivo ao cumprimento da obrigação, na medida em que o devedor, ou quem quer que porventura se haja tornado, entretanto proprietário do objeto, sabe que não pode exigir o mesmo senão mediante o simultâneo pagamento de quanto ao retentor é devido. Ora, reconhecido o crédito, o empreiteiro, que possui legitimamente a coisa, vê o aflorar do direito a reter a mesma, para pagamento do preço da obra, ficando investido de um direito real de garantia, dotado de eficácia erga omnes, e que lhe confere o poder de se fazer pagar pela coisa retida com prevalência sobre os credores que gozem de hipoteca, mesmo que registada anteriormente.

No sentido de aprofundar esta temática, dividi o trabalho em sete capítulos que compõem o corpo do texto, a saber: 1. Concurso de credores – Reclamação de créditos; 2. Pressupostos específicos da reclamação de créditos e a Ação de verificação e graduação de créditos; 3. O direito de retenção e as garantias reais; 4. O direito de retenção e a sua prevalência sobre a hipoteca; 5. Crítica à redução da eficiência da hipoteca, no âmbito do processo executivo; 6. Análise Jurisprudencial a um Acórdão; Conclusões Finais. Complementarei o ensaio com recurso a doutrina e jurisprudência, por forma a abarcar os entendimentos dos Autores, conjugando com o discorrimento dos Tribunais Portugueses. Somente para concluir, assumo como pretensão, responder de forma objetiva às questões que estão subjacentes à temática objeto de análise, sendo claro e simplista, para que o leitor se vislumbre na sua compreensão e sobretudo, pretendo esclarecer a questão controversa dirimida no Acórdão que examinarei, em momento ulterior.

Siglas e abreviaturas

A

AC – Acórdão

Al. - alínea

Art.º - artigo

C

CC – Código Civil

CPC – Código do Processo Civil

CRP – Código do Registo Predial

Concurso de credores – Reclamação de créditos

No âmbito de uma ação executiva, um determinado executado, regra geral, não tem somente um credor, tendo frequentemente vários: destaque-se os credores privados e credores públicos (Autoridade Tributária e Aduaneira, etc.…), podendo ainda ser convocado o cônjuge, para a execução. “Como se sabe, o fim da ação executiva é o de conseguir para o credor a mesma prestação, o mesmo benefício que lhe traria o cumprimento voluntário da obrigação por parte do devedor e, como este não pode ser compelido por aquele a realizar os atos necessários à satisfação do vínculo obrigacional, torna-se necessário, quando o devedor não cumpre, que a obrigação se torne efetiva, pelo valor que representa no seu património.”1

Ora, no processo executivo, persistem algumas fases, sendo esta nominada como “concurso de credores”, que consiste na transformação dos bens do executado em dinheiro, através do produto da sua venda, onde ulteriormente será alvo de distribuição pelos variados credores. Em boa verdade, constitui uma fase processual da ação executiva, onde há lugar à intervenção de variadas pessoas, para além do exequente e executado, com o intuito primordial de serem pagos pelos créditos insatisfeitos, tendo em conta a preferência ao seu redor, pelo que “a sua convocação faz-se sob a forma de citação (219-1), cuja falta ou nulidade tem o mesmo efeito que a falta ou nulidade da citação do réu (arts. 187 a 191), mas com restrições quanto à anulação derivada dos atos posteriores (art. 786-6).”2

O ordenamento jurídico português introduzira, por via do Nº1 do art.º 788º do Código de Processo Civil, doravante designado pela abreviatura CPC, a figura da Reclamação de créditos, no âmbito do Concurso de credores. Ela refere-nos que a reclamação dos créditos apenas pode ser exposta e apresentada, quando o credor “goze de garantia real sobre os bens penhorados”, o que nos demonstra “um nexo de ligação da garantia real aos bens que hajam sido efetivamente penhorados na execução.”3

Acresce que, também a Jurisprudência Portuguesa assim o tem entendido, basta atendermos ao seguinte: “Desde que seja titular de título executivo ou venham a obtê-lo nos termos previstos no artigo 792º do CPC, o credor cujo crédito está garantido por

1 In Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, processo nº 3141/18.4T8PBL-B.C1, datado a 05-11-2019, cujo relator é o seguinte: António Domingos Pires Robalo.

2 FREITAS, José Lebre de; – A Ação Executiva – À LUZ DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2013, Gestlegal, 7ª Edição, setembro 2017, Páginas 349 e 350.

3 DA COSTA RIBEIRO, Virgínio e Sérgio Rebelo; Prefácio de António Abrantes Geraldes – A Ação Executiva Anotada e Comentada, Coimbra, Almedina, 2015, Pág.450.

N Nº
- Número S

hipoteca está legitimado a reclamar o seu crédito no âmbito de uma execução onde foi penhorado o imóvel sobre o qual incide a sua garantia.”4

Porquanto, o prelecionado anteriormente, floresce em circunstância do positivado no art.º 786º da mesma consagração legal, tendo como ponto assente a venda dos bens em processo executivo, livres de ónus e/ou encargos que os onerem. “Esta delimitação do âmbito do concurso de credores dá-nos a finalidade que é visada com a sua convocação: visto que a penhora será, normalmente, seguida da transmissão dos direitos do executado, livres de todos os direitos reais de garantia que os limitam (art. 824-2 CC)”5

No que concerne, ao momento para a instauração do concurso de credores, no caso de estarmos perante um processo executivo comum, há lugar à instauração do dito concurso em momento posterior ao da penhora, logo de imediato. Além disso, o art.º 788º também prevê no seu Nº2 a concessão de um prazo de 15 dias para apresentação da dita reclamação, contando-se a partir da citação e que se assume como um prazo perentório, visto que no caso do credor não deduzir a sua reclamação dentro dos 15 dias, ser-lhe-á precludido o direito de ser pago pelo produto da venda dos bens objeto da penhora, pelo que atender-se-á ao Nº3 do art.º 139º do CPC, que enuncia que o “decurso do prazo perentório extingue o direito de praticar o ato.”

O prazo precedentemente analisado apenas tem aplicabilidade a credores citados, o que nos leva a referir que os credores que não foram citados para reclamarem os seus créditos, por desconhecimento, poderão fazê-lo até à transmissão dos bens penhorados - Nº3 desse art.º 788º do CPC. Esta disposição legal entra em coerência com o Nº5 desse disposto, pois prevê na sua redação que quem tenha obtido penhora sobre os mesmos bens, mas sob a alçada de outro processo executivo, fica esta sustada, nos termos do art.º 794º do CPC. Esta solução apresenta juízos justificativos, como sejam o facto dos bens objeto de venda em execução serem realizadas livres de quaisquer ónus ou encargos – art.º 824º do Código Civil.

Também o Nº6 do art.º 788º, exclui das aludidas exceções os privilégios creditórios dos trabalhadores – art.º 333º do Código do Trabalho, o que é compreensível, pois decorrem da prestação da atividade profissional, constituindo, muitas das vezes a única subsistência daquele agregado familiar. Cabe agora debruçarmo-nos sobre o nº7 do art.º 778º do CPC. Existe uma articulação com o art.º 792º do mesmo diploma legal, onde, em boa verdade há o estabelecimento de uma possibilidade do credor reclamar o seu crédito, mesmo não munido de um título executivo, fazendo-se aludir o art.º 716º do CPC. Por outro lado, o “n. º8 prevê uma regra de operacionalidade do próprio processo ao determinar que as

4 In Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, processo nº 2281/14.3T8PBL.E.C1, datado a 03-12-2019, cujo relator é o seguinte: Maria Catarina Gonçalves.

5 FREITAS, José Lebre de; – A Ação Executiva – À LUZ DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2013, Gestlegal, 7ª Edição, setembro 2017, Páginas 350 e 351.

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reclamações são autuadas num único apenso ao processo de execução, independentemente do momento temporal em que sejam apresentadas.”6 Pressupostos específicos da reclamação de créditos e a Ação de verificação e graduação de créditos

Aqui chegados, é relevante realçar que o acesso à reclamação de créditos é limitado e terá de obedecer a alguns pressupostos específicos. Ora vejamos: Em primeiro plano, o credor considera-se apto a apresentar reclamação de créditos, quando seja titular de um crédito que se afigure como uma obrigação certa, líquida e exigível: A obrigação é certa quando está qualitativamente determinada, e sendo uma obrigação de natureza pecuniária, está determinado que o seu valor e pagamento serão efetuados em moeda com curso legal no país – artigos 550º do CC ex vi art.º 714º e 715º do CPC; por outro lado, a obrigação deve ser líquida, o que significa que deve estar quantitativamente determinada: “ao credor que, no termo do prazo que tem para a reclamação, ainda não tenha obtido decisão que liquide a obrigação objeto de sentença genérica, tem de ser permitido, em aplicação analógica do art. 792-1, requerer que a graduação dos créditos, relativamente ao bem sobre o qual tenha garantia, aguarde a liquidação na ação declarativa”7 . Por último, a obrigação tem de ser exigível, quando se encontre já vencida ou, então, quando esse vencimento esteja dependente de uma simples interpelação ao devedor – art.º 777º Nº1 do CC. Contudo, “a inexigibilidade, por si só, não afasta a possibilidade de reclamação do crédito e exige que o seu titular faça uso dos meios legais para tornar tal crédito líquido e exigível, conforme se refere no n.º 7.”8

Acresce que, outra das exigências para aceder ao concurso de credores, é a existência de garantia real sobre os bens, objeto da penhora. Apenas o credor detentor de uma garantia real sobre os bens penhorados, tem o ónus de reclamar os seus créditos, na ação executiva, como ocorre com o penhor, hipoteca, privilégio creditório, direito de retenção, entre outros. Porém, esta exigência torna-se prejudicial para alguns credores, como ocorre com a ATA e a Segurança Social. Daqui subjaz, a necessidade em intentar-se ações executivas com o intuito de se obter a garantia da penhora, no entanto por vezes, sem sucesso. Isto porque, o princípio da legitimação de direitos, devidamente inculcado no art.º 9º do Código do Registo Predial vem dizer que: Não podem ser titulados factos de que resulte a transmissão de direitos ou constituição de encargos sobre imóveis sem que os bens estejam definitivamente inscritos a favor da pessoa de quem se adquire o direito ou contra a qual se constitui o encargo. Esta disposição é dirigida às entidades que titulam atos e tem em mente a atualização da situação jurídica e material dos prédios.

6 DA COSTA RIBEIRO, Virgínio e Sérgio Rebelo; Prefácio de António Abrantes Geraldes – A Ação Executiva Anotada e Comentada, Coimbra, Almedina, 2015, Pág.453. FREITAS, José Lebre de; – A Ação Executiva – À LUZ DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2013, Gestlegal, 7ª Edição, setembro 2017, Pág.365. 8 DA COSTA RIBEIRO, Virgínio e Sérgio Rebelo; Prefácio de António Abrantes Geraldes – A Ação Executiva Anotada e Comentada, Coimbra, Almedina, 2015, Pág.450.

Como último requisito específico da reclamação de créditos, temos o título executivo. Quanto ao discorrimento do título executivo, apenas pretendo realçar que um credor que não esteja munido do mesmo, é lhe facultada a prerrogativa de reclamar o seu crédito, dentro do prazo para a reclamação, por forma a que a graduação de créditos de certa forma “congele” até à sua efetiva obtenção, “em ação já pendente ou a propor no prazo de 20 dias (art. 792-7-a), sem prejuízo de o processo executivo prosseguir até à venda ou adjudicação dos bens penhorados e de se fazer entretanto a verificação dos restantes créditos (art. 792-6).”9 No que tange, à ação de verificação e graduação de créditos, verificamos que o concurso de credores corre por apenso à tramitação principal – ação executiva. No entanto, atendendo à estrutura, esta é controversa, quer no plano doutrinal, quer no plano jurisprudencial, pelo que se tem entendido tratar-se de uma verdadeira ação declarativa, embebida na execução ou um mero incidente da mesma. Os JUÍZES VIRGÍNIO RIBEIRO e SÉRGIO REBELO, entendem tratar-se de “uma verdadeira ação declarativa, de estrutura autónoma, embora funcionalmente subordinada à ação executiva.”10 De facto, também assumo esta posição, porque ao serem atribuídos poderes intrínsecos de uma parte principal aos credores reclamantes concedidos na execução, torna-se um argumento suficiente para figurar a reclamação de créditos como uma verdadeira ação declarativa e não um mero incidente.

De todo o exposto, resulta que estamos perante uma verdadeira ação declarativa autónoma

na medida em que não depende necessariamente da marcha da execução, embora haja situações em que a mesma contende com o seu destino, como no caso da extinção em que não opere o mecanismo previsto no n.º 2 do artigo 850.º, sendo apenas específica no que tange aos articulados, em que há uma limitação quanto ao seu número.11

Ainda na ação de verificação e graduação de créditos, levanta-se a questão da eficácia extra processual da sentença aí emanada, pelo que o caso julgado que aqui é produzido, apenas o é quanto ao reconhecimento do direito real de garantia. Também é de aditar que a intervenção do executado na lide, contribui para a produção do caso julgado, não se formando quanto à verificação dos créditos, mas sim quanto à sua graduação.

O direito de retenção e as garantias reais

O direito de retenção consiste na faculdade que tem o detentor de uma coisa de a não entregar a quem lha pode exigir, enquanto este não cumprir uma obrigação a que está

9 FREITAS, José Lebre de; – A Ação Executiva – À LUZ DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2013, Gestlegal, 7ª Edição, setembro 2017, Pág.363.

10 DA COSTA RIBEIRO, Virgínio e Sérgio Rebelo; Prefácio de António Abrantes Geraldes – A Ação Executiva Anotada e Comentada, Coimbra, Almedina, 2015, Pág.453.; ver também no mesmo sentido: FREITAS, José Lebre de; – A Ação Executiva – À LUZ DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2013, Gestlegal, 7ª Edição, setembro 2017, Pág.365.

11 Conforme José Alberto Dos Reis, Processo de Execução, ob. Cit., Volume 2, p. 267; Miguel Teixeira de Sousa, A Ação Executiva Singular, Lex, Lisboa, 1998, p. 338; CASTRO MENDES, Obras Completas, Edição da AAFDL, volume III, p.448, e Fernando Amâncio Ferreira, ob. Cit.p.233.

adstrito para com aquele.12 Ora, se o direito de retenção recair sobre um bem imóvel, existe uma equiparação efetiva à hipoteca, no entanto com preferência sobre esta última, contrariando aquela velha máxima: “Primeiro no registo, melhor no Direito”. Porquanto, o direito de retenção tem expressão legal, regime esse que aparece positivado nos artigos 754º e 755º do CC, traduzindo-se no direito que é conferido ao credor, que tem na sua posse uma coisa, seja ela móvel ou imóvel, e está obrigada a entregá-la a outrem (terceiro), tendo ainda a prerrogativa de a reter enquanto não lhe for satisfeito e sanado, aquilo que lhe é devido, mas em ligação com ela. Assim sendo, devem ter-se presentes os requisitos deste direito, o que leva a dissertar que é necessária ter a posse e vinculação da entrega de uma coisa; em segundo plano, a verificação da existência de um crédito exigível sobre o credor, a favor do devedor; e ainda deve permanecer uma ligação causal entre o crédito do detentor e a coisa, isto é, essa ligação tem como intuito o pagamento das despesas que o detentor efetuou sobre a mesma, ou quando aplicável, a respetiva indemnização dos prejuízos que esse detentor sofrera com a mesma, em razão desta: “debitum cum re junctum”.

Naquilo que é a posição assumida da jurisprudência no âmbito do direito de retenção, nota para o facto do direito de retenção tratar-se “de um direito real de garantia que decorre diretamente da lei, surgindo sem necessidade de prévia declaração judicial nesse sentido, e com eficácia erga omnes, permitindo ao retentor realizar o seu crédito através do produto da venda do objeto, com prioridade sobre os credores restantes, designadamente sobre outros credores que gozem de hipoteca mesmo que esta tenha sido registada anteriormente.”13

Podemos assim concluir, que o direito de retenção, para efeitos de concurso de credores e graduação de créditos, assume-se como um direito real de garantia, que surge e decorre ex lege, direito este que não tem de ser reconhecido, oficiosamente pelo Tribunal. Será então reconhecido, por via da reclamação de créditos, no âmbito de um processo executivo, invocando a respetiva garantia que decorre desse direito de retenção. Desde que o credor tenha um crédito relacionado, com a coisa retida, é lhe reconhecido o direito real de garantia, com eficácia erga omnes, atendível no concurso de credores, com a função de assegurar que o seu crédito será pago com preferência a outros credores.14

O direito de retenção e a sua prevalência sobre a hipoteca

A legislação portuguesa, mais especificamente o nº1 do art.º 759º do CC vem enunciar que:

“Recaindo o direito de retenção sobre coisa imóvel, o respetivo titular, enquanto não entregar a coisa retida, tem a faculdade de a executar, nos mesmos termos em que o pode

12 Consoante entendimento de Vaz Serra, Privilégios, no Bol. M.J. 64, Pág.62;

13 In Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo nº 61/11.7TBAVV-B.G1.AS1, datado a 16-05-2019, cujo relator é o seguinte: Rosa Tching;

14 Conforme Galvão Telles, “O direito de retenção no contrato de empreitada”, in “O Direito”, 119, 1987, páginas 20 e 27;

fazer o credor hipotecário, e de ser pago com preferência aos demais credores do devedor.” O nº2 dessa consagração legal, tem um maior alcance, quando disserta que o direito de retenção que verse sobre um bem imóvel, tem prevalência sobre a hipoteca, mesmo quando esta última tenha sido registada anteriormente.

A determinação da graduação de créditos, dá-se pela verificação de dois aspetos, tendo o primeiro aplicabilidade no art.º 822º do CC, que evidencia na sua epígrafe: a “preferência resultante da penhora” – resultando que o exequente adquire o direito de ser pago com preferência, pela penhora, em relação a qualquer credor que não seja possuidor de uma garantia real anterior; e o outro fator a ter em conta, será a prevalência entre as garantias reais, que aparecem inculcadas na nossa legislação subsidiária.

Nas palavras do Doutor RUI PINTO: “o titular do direito de retenção sobre coisa imóvel enquanto não entregar a coisa retida, tem a faculdade de a executar, nos mesmos termos em que o pode fazer o credor hipotecário, e de ser pago com preferência aos demais credores do devedor, prevalecendo neste caso sobre a hipoteca, ainda que esta tenha sido registada anteriormente (cf. art. 759.º, n. 1 e 2, CC)”15 .

Isto, no que diz respeito às regras especialmente previstas no CC, da prevalência entre as garantias. O direito de retenção não é mais do que um apanágio, oferecido pela lei ao credor, de continuar a detenção de uma coisa que estava obrigado a entregar a outrem, para além do momento em que deveria fazê-la. Como repercussões, a disposição legal supra referenciada, teve alguns impactos visto que mina a função efetiva da hipoteca. Incidindo-nos sobra a hipoteca, dizer o seguinte: Pese embora o art.º 686º do CC nos elucide que a mesma faculta ao credor o direito de ser pago “com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo”, o art.º 759º Nº 2 do CC, por seu turno, estabelece a exceção a essa regra, o que significa que no concurso de credores, naquilo que é a ordem de preferência da graduação de créditos, ter-se-á em consideração, o privilégio imobiliário especial, isto é o direito de retenção e só depois a hipoteca, quando esses direitos incidam sobre o mesmo imóvel, naturalmente. Assim sendo, “em face de concurso de créditos garantidos, respetivamente, por direito de retenção e por hipoteca, sobre a mesma coisa imóvel, o crédito que goza de direito de retenção é graduado com preferência sobre o crédito garantido por hipoteca.”16

O legislador consagrara assim, uma abolição ao princípio da prioridade do registo, previsto no art.º 6º do CRP. Segundo este, “o direito inscrito em primeiro lugar prevalece sobre os que se lhe seguirem, relativamente aos mesmos bens”.

Esta exceção faz florescer duas questões relevantes, a saber: uma primeira, reporta-se à concessão de uma preferência sobre a hipoteca, onde o legislador confere uma eficácia excecional, em relação, provavelmente, à principal garantia especial das obrigações, logo

15 PINTO, Rui – Manual da Execução e Despejo – Coimbra Editora, 1.ª Edição, agosto 2013, Pág.890. 16 In Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, processo nº 10078/2006-6, datado a 14-12-2006, cujo relator é o seguinte: Pereira Rodrigues;

após os privilégios imobiliários especiais – essa concessão pode justificar-se, a título primordial, pelo facto de aquele se encontrar barrado de recorrer à exceção de não cumprimento, atendendo à inexistência de uma relação sinalagmática. Há um esvaziamento económico do conteúdo da hipoteca, decorrente de promessas posteriores de alienação com tradição da coisa hipotecada. Este direito suplanta as finalidades compulsórias e de garantia, abalando pilares de estabilidade da habitação. Por outro lado, com esta prerrogativa, e no plano resgistral, o credor com direito de retenção do imóvel, acaba por estar mais protegido do que o adquirente de um direito real por força do contrato, que não registou a sua aquisição, e que também pode ter a posse do imóvel., consoante prevê o art.º 408º Nº1 do CC.

Também o Doutor LUÍS MENEZES LEITÃO, tece algumas críticas neste âmbito, pelo que alerta que a prevalência do direito de retenção em causa sobre a hipoteca consubstanciaria uma proteção mais forte que a do próprio comprador que adquirisse o seu imóvel onerado com uma hipoteca, caso em que lhe seria oponível.17

A confiança de que goza a hipoteca fora abalada, tendo colocado nas mãos do beneficiário um meio acessível de impedir o credor de fazer valer o seu direito de preferência.

Crítica à redução da eficiência da hipoteca, no âmbito do processo executivo Para muitos, não é credível o legislador conceder uma proteção mais ampla ao retentor face ao credor hipotecário, dotado de uma garantia constituída anteriormente, dado que os riscos da celebração de um contrato promessa de compra e venda, não são mais elevados do que os riscos decorrentes da celebração de um contrato de compra e venda em que há a transmissão definitiva da propriedade. Esta realidade abrira caminho a vicissitudes legais, nomeadamente, a casos de simulação negocial entre os promitentes. A concessão do direito de retenção ao promitente-comprador suscita forte controvérsia no seio doutrinário. Levantam-se questões fundamentais, como sejam: tutela manifestamente excessiva e injusta da posição do promitente-comprador face à do comprador. O primeiro, tem o direito de ser pago com preferência sobre o credor hipotecário, pelo que este último dificilmente consegue satisfazer o seu crédito; por outro lado, viabiliza a fácil simulação da celebração do contrato-promessa (que desprovido de eficácia real não seria objeto de registo), mediante a manipulação da sua veracidade por forma a prejudicar o credor hipotecário.18 Na prática, observa-se um total esvaziamento da garantia hipotecária, particularmente, em cenários de crise.

Autores como Brandão Proença, Pestana de Vasconcelos, Lebre de Freitas, Isabel Menéres Campos e Margarida Costa Andrade defendem que a compatibilização dos interesses em jogo a tutela do promitente - comprador e dos demais credores, bem como a segurança jurídica demanda a obrigatoriedade do registo do direito de retenção do promitente- -

17 LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes – Direito das obrigações – Volume I, 6.ª Edição, Almedina, Pág.245.

18 LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes – Direito das obrigações – Volume I, 2.ª Edição, Almedina, 2002, Páginas 231 e 232.

comprador e a sujeição dessa garantia à “regra prior in tempore”, em harmonia com o regime das hipotecas.19 Assim, a prevalência do direito de retenção sobre a hipoteca, tem vindo a originar um crescendo de contratos simulados, celebrados entre o devedor do credor hipotecário com terceiros, tendo em vista o esvaziamento da garantia hipotecária, pelo que o credor hipotecário se encontra à mercê do devedor, beneficiando este último, de uma tutela manifestamente exorbitante e injusta.

Análise Jurisprudencial ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Processo nº: 61/11.7TBAVV-B. G1.S1, cujo relator é Rosa Tching

O litígio que irei tratar, ocupa-se como foco principal, do “Concurso de credores no âmbito do processo executivo – reclamação de créditos, intrinsecamente do Direito de Retenção na esfera do contrato de empreitada”, tomando como núcleo fundamental um Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, Processo nº: 61/11.7TBAVV-B. G1.S1, cujo relator é: Rosa Tching20 . O assunto a dirimir versa sobre o direito de retenção concedido ao empreiteiro, enquanto o dono da obra não paga o preço da mesma; prevalência do direito de retenção sobre o credor hipotecário, na graduação de créditos. Do contexto normativo destaco os artigos 754º, 755º Nº1 f) e 759º Nº2, todos do CC; e ainda os artigos 615º Nº1 d), 724º Nº1 e) e 791º Nº4, todos do CPC.

Comentário: Da perspetiva jurisprudencial deste acórdão e do que resulta da situação que dirime, entendemos estar em causa uma interposição para o STJ, pelo facto do recorrente ter discordado da decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Guimarães, que reformulou a graduação de créditos da seguinte forma: em primeiro lugar o crédito exequendo e em segundo lugar o crédito do reclamante Banco DD, SA. Como tal, o Tribunal Superior, colheu os vistos do recurso, e delimitou o seu objeto, a saber: 1º - saber se o direito de retenção consagrado no art.º 755º Nº1, al. f) do CC, invocado pelo exequente no requerimento executivo, pode ser aí reconhecido para efeitos de concurso e graduação, com primazia sobre a hipoteca, com registo anterior, nos termos do art.º 759º Nº 2 do CC, mesmo quando não impugnado no apenso de reclamação de créditos; 2º- o reclamante tinha que ser notificado para impugnar, na reclamação de créditos que apresentou, o reconhecimento do direito de retenção invocado pelo exequente, existindo nulidade processual por omissão desse ato?; e por último saber se o acórdão recorrido padece da nulidade - art.º 615º, Nº1 d) do CPC.

19 Proença, José Carlos Brandão, “Para a necessidade de uma melhor tutela dos promitentes adquirentes de bens imóveis (máxime, com fim habitacional)”, CDP, n.º 22, abril/junho, 2008, p. 20; Vasconcelos, Luís Pestana de, “Direito de retenção, contrato-promessa e insolvência”, CDP, n.º 33, janeiro/março, 2011, p. 5; Campos, Isabel Menéres, “Concurso de credores e ação executiva”, Scientia Iuridica, n.º 298, 204, pp. 130 a 140; Freitas, José Lebre, “Sobre a prevalência, no apenso de reclamação de créditos, do direito de retenção reconhecido por sentença”, ROA, 2006, ano 66, vol. II (disponível em www.oa.pt).

20 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo nº 61/11.7TBAVV-B. G1.S1, datado a 16-05-2019, relator: Rosa Tching. Disponível em: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/682475ad41ca434b802583fd002f64ab?OpenDocume nt.

Ora, de imediato, fora abordada a matéria de facto. Mais tarde, direciona as suas atenções para a matéria de Direito, conceituando direito de retenção: previsão legal nos artigos 754º e 755º do CC: Em boa verdade, a doutrina tem entendido que o direito de retenção se caracteriza como sendo um verdadeiro direito real, um direito absoluto, a todos oponível e que reveste uma dupla natureza, apresentando-se, por um lado, como uma garantia real indireta, ou seja, como um meio de coerção ao cumprimento da obrigação, na medida em que o devedor, ou quem quer que porventura se haja tornado, entretanto proprietário do objeto, sabe que não pode exigir o mesmo senão mediante o simultâneo pagamento de quanto ao retentor é devido, sentindo-se, assim, compelido a efetuar o pagamento.21 In casu, estamos perante um contrato de empreitada e tal como dá conta o Ac. do STJ, datado a 29.01.2014 (processo nº 1407/09.3TBAMT.E1. S1), tem havido alguma controvérsia, em saber se o empreiteiro - credor do preço da obra - goza do direito de retenção relativamente a esta. Quer no plano doutrinal, quer no plano jurisprudencial, perfilha-se o entendimento de que o empreiteiro, mercê da sua específica posição perante o resultado da obra e a atitude possessória que exerce sobre ela, assume, perante a mesma, uma posição de privilégio garantístico de modo a poder reter a coisa – art.º 754º do CC, perante terceiros. Como repercussão, é introduzida uma exceção à hierarquia dos credores e ao próprio princípio da prioridade do registo, pois o empreiteiro adquire o direito de ser pago, preferencialmente, em relação a outros credores que gozem de hipoteca (que se assume como uma garantia especial das obrigações) mesmo registada anteriormente – 759º Nº2 do CC. Pese embora, o empreiteiro não ter a posse do imóvel típica do direito de propriedade, ele não a deixa de ter. Nas palavras do Doutor GALVÃO

TELES, “a partir desse momento, o sujeito passa a exercer o poder de facto no seu próprio interesse, porque é no seu interesse que retém a coisa. De mero detentor eleva-se a possuidor”22

Aqui chegados, a questão que se coloca é a de saber se o direito de retenção emergente deste crédito, em consonância com o art.º 754º do CC, carece de declaração prévia do tribunal - ação intentada para o efeito; ou se pode ser reconhecido, para efeitos de concurso e graduação de créditos, no processo de execução, por via da reclamação do crédito. A este respeito, figurando o direito de retenção como um direito real de garantia, que resulta ex lege – art.º 754º do CC, entendemos que o direito não tem, necessariamente, que ser declarado ou reconhecido, de forma prévia pelo tribunal, podendo ser reconhecido, para efeitos de concurso e graduação de créditos, no processo de execução, por via da reclamação do crédito e invocação da respetiva garantia decorrente do direito

21 Galvão Telles, “O direito de retenção no contrato de empreitada”, in, O Direito, 119, 1987, páginas 15 a 17.

22 Galvão Telles, “O direito de retenção no contrato de empreitada”, in, O Direito, 119, 1987, pág. 18.

de retenção – tem sido este o entendimento jurisprudencial nesta matéria, e que corroboro.

Assim, reconhecido o crédito, o empreiteiro, que possui legitimamente a coisa objeto da empreitada, vê o nascimento do direito a reter a mesma, para pagamento do preço da obra, ficando investido de um direito real de garantia, dotado de eficácia erga omnes, e que lhe confere o poder de se fazer pagar pela coisa retida com preferência sobre os credores que gozem de hipoteca mesmo que registada anteriormente. Caso o direito real de garantia estivesse reconhecido, por sentença - previamente, ou no caso de não haver esse reconhecimento antecipado, sempre que o exequente se arrogue um direito real de garantia que deva prevalecer sobre o credor reclamante, é manifesto o interesse deste credor em impugnar aquele direito - prazo de 15 dias, a contar da notificação. Caso se verifique falta de impugnação - art.º 789º Nº2 do CPC e desde que a verificação desse crédito e garantia não esteja dependente da produção de prova, terá como consequência ver reconhecida a sua existência – 791º Nº2 do CPC. Em segundo plano, o recorrente sustenta que deveria ter sido notificado, na reclamação de créditos ora apresentada, com o intuito de impugnar o reconhecimento do direito de retenção invocado pelo exequente, alegando nulidade processual. Releva ter presente o art. 786º Nº1 b) do CPC, que profere o seguinte: “Concluída a fase da penhora e apurada, pelo agente da execução, a situação registral dos bens, são citados para a execução» «os credores que sejam titulares de direito real de garantia, registado ou reconhecido, sobre os bens penhorados (…) para reclamarem o pagamento dos seus créditos”. Também o nº1 do art.º 789º do CPC, estabelece que “Findo o prazo para a reclamação e créditos, ou apresentada reclamação nos termos do nº 3 do artigo anterior, dela são notificados, pela secretaria do tribunal, (…), os credores reclamantes (…)”, estatuindo o nº 3 da presente disposição legal que «Também dentro do prazo de 15 dias, a contar da respetiva notificação, podem os restantes credores impugnar os créditos garantidos por bens sobre os quais tenham invocado também qualquer direito real de garantia, incluindo o crédito exequendo, bem como as garantias reais invocadas, quer pelo exequente, quer pelos outros credores». Por sua vez, reitero o preceituado no art.º 791º Nº 2 do mesmo diploma: “Se nenhum dos créditos for impugnado ou a verificação dos impugnados não depender de prova a produzir, profere-se logo sentença que conheça da sua existência e os gradue com o crédito do exequente, sem prejuízo do disposto no nº4”.

Ora, deste conjunto normativo não é visível que tivesse que ser feita notificação ao recorrente, na qualidade de credor reclamante, para impugnar, na reclamação de créditos que apresentou, o reconhecimento do direito real de retenção invocado pelo exequente.23 Mesmo na hipótese de se admitir a imposição legal dessa notificação (o que não acontece),

23 Neste sentido, ver Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo nº 9333/07.4TBVNG-A. P1.S1, datado a 07-102010, cujo relator é Fonseca Ramos, disponível em www dgsi.pt/stj.

estaríamos sempre perante uma nulidade prevista no art.º 195º Nº1 do CPC e que, por não ter sido arguida no prazo geral de 10 dias estabelecido no art.º 149º da mesma consagração legal, considerar-se-ia sanada. Num terceiro momento, o recorrente argui a nulidade do acórdão recorrido - 2ª parte da al. d) do nº 1 do artigo 615º, fundamentando a sua pretensão em factos que não foram alegados pelo Exequente, nem provados, violando o disposto nos artigos 724º al. e) e 5º Nº 1, e art.º 414º, todos do CPC; art.º 342º do CC. A al. d) do Nº1 do citado art.º 615º do CPC, tem aplicabilidade aos acórdãos da Relação, por via da norma remissiva do n.º 1 do art.º 666.º da mesma legislação, sendo nula a decisão quando o “juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”. Consubstancia entendimento pacífico, no panorama doutrinal e jurisprudencial, que tal efeito releva apenas as questões que diretamente contendam com a substanciação da causa de pedir, pedido e exceções que hajam sido deduzidas pelas partes ou que devam ser suscitadas oficiosamente.24 Em boa verdade, facilmente se conclui não estarmos perante a alegada nulidade do acórdão objeto de recurso, tendo o exequente alegado, oportunamente, todos os factos consubstanciadores do seu direito de retenção, que, por não terem sido impugnados, foram dados como assentes, contendo os autos todos os factos essenciais para a decisão a emanar.

Conclusão: Este Acórdão debruça-se sobre matérias controversas, e por isso, interessantes, sendo certo que: - o empreiteiro, mercê da sua específica posição perante o resultado da obra e a atitude possessória que exerce sobre ela, assume, perante a mesma, uma posição de privilégio garantístico de modo a poder reter a coisa, dotado de eficácia erga omnes.

Introduz-se uma exceção à hierarquia dos credores e ao próprio princípio da prioridade do registo, pois o empreiteiro adquire o direito de ser pago, preferencialmente, em relação aos credores beneficiários da hipoteca, mesmo registada anteriormente – 759º Nº2 do CC.

Pese embora, o empreiteiro não ter a posse efetiva do imóvel, típica do direito de propriedade, ele passa de detentor a possuidor do mesmo. O direito de retenção constitui um direito real de garantia, decorrente da lei - art.º 754º do CC, e que por isso não tem, necessariamente, que ser declarado ou reconhecido, previamente pelo tribunal, podendo ser reconhecido, para efeitos de concurso e graduação de créditos, no processo de execução, por via da reclamação do crédito.

Urge assim dissertar, em sede de conclusão, que não estamos perante a alegada nulidade do acórdão interposto, tendo o exequente alegado, oportunamente, todos os factos do seu direito de retenção, que, por não terem sido impugnados, foram dados como assentes,

24 Neste sentido, Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, in “Código de Processo Civil Anotado”, 2º volume, pág. 646; e entre muitos outros, o Acórdão do STJ de 11.02.2015 (proc. nº 1099/11) in Sumários, 2015, pág. 67.

possuindo os autos todos os factos para a tomada de decisão, tendo o recurso sido julgado improcedente e na minha ótica, a decisão mais acertada e ajustada.

Conclusões Finais

Neste momento, preleciona-se, em jeito de conclusão, que o concurso de credores constitui uma fase processual da lide executiva, onde intervêm várias pessoas, que vão além do exequente e executado, como pressuposto de serem pagos pelos créditos insatisfeitos, tendo em conta a preferência que os rodeia. Ora, a reclamação de créditos, considerar-se-á, exposta e apresentada, quando o credor goze de um direito real de garantia sobre o bem penhorado, havendo um nexo de ligação entre a garantia real e os bens que hajam sido objeto de penhora.

Procedendo a uma análise de todos os argumentos expostos, quando atendemos à ação de verificação e graduação de créditos, em boa verdade, configura-se como uma verdadeira ação declarativa autónoma, na medida em que não depende obrigatoriamente da marcha da execução.

Na minha perspetiva, não é de aceitar que o legislador conceda uma maior tutela ao retentor, face ao credor hipotecário, dotado de uma garantia constituída anteriormente, abrindo espaço a vicissitudes: casos de simulação negocial entre os promitentes, manipulando a veracidade negocial, com o intuito de prejudicar o credor hipotecário.

De facto, o Acórdão supra analisado, trata de um contrato de empreitada, onde tem havido alguma controvérsia, em saber se o empreiteiro, goza do direito de retenção relativamente a esta. Perfilha-se o entendimento de que o empreiteiro, mercê da sua específica posição perante o resultado da obra e a atitude possessória que exerce sobre ela, assume, perante a mesma, uma posição elevada, de modo a poder reter a coisa. Como repercussão, introduz-se uma exceção à hierarquia dos credores e ao próprio princípio da prioridade do registo, pois o empreiteiro adquire o direito de ser pago, preferencialmente, em relação a outros credores que gozem de hipoteca. Não obstante a situação que retrata o Acórdão, parece-me evidente que o direito de retenção constituindo um direito real de garantia, que resulta da lei, não tem, necessariamente, que ser declarado ou reconhecido, previamente pelo tribunal, podendo ser reconhecido, para efeitos de concurso e graduação de créditos, no processo de execução, por via da reclamação do crédito. A alegada nulidade do acórdão interposto barra no STJ, dado que o exequente alegou, oportunamente, todos os factos do seu direito de retenção, que, por não terem sido impugnados, foram dados como assentes, munindo os autos dos factos essenciais para a decisão emanada.

Bibliografia

CASTRO MENDES, Obras Completas, Edição da AAFDL, volume III;

DA COSTA RIBEIRO, Virgínio e Sérgio Rebelo; Prefácio de António Abrantes Geraldes – A Ação Executiva Anotada e Comentada, Coimbra, Almedina, 2015; FREITAS, José Lebre de; – A Ação Executiva – À LUZ DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2013, Gestlegal, 7ª Edição, setembro 2017; Galvão Telles, “O direito de retenção no contrato de empreitada”, in “O Direito”, 119, 1987;

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LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes – Direito das obrigações – Volume I, 2.ª Edição, Almedina, 2002, Páginas 231 e 232.

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Jurisprudência

Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, processo nº 10078/2006-6, datado a 14-12-2006, cujo relator é o seguinte: Pereira Rodrigues;

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo nº 9333/07.4TBVNG-A. P1.S1, datado a 07-10-2010, cujo relator é Fonseca Ramos;

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo nº 61/11.7TBAVV-B.G1.AS1, datado a 16-05-2019, cujo relator é o seguinte: Rosa Tching;

Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, processo nº 3141/18.4T8PBL-B.C1, datado a 05-11-2019, cujo relator é o seguinte: António Domingos Pires Robalo;

In Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, processo nº 2281/14.3T8PBL.E.C1, datado a 03-12-2019, cujo relator é o seguinte: Maria Catarina Gonçalves;

O mandato sem representação Iva Alberta Teixeira Faria Diretora da Licenciatura em Solicitadoria e Professora Adjunta no Instituto Politécnico do Cávado e do Ave Estudante de Doutoramento da Universidade do Minho O mandato sem representação Análise e comentários ao Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27 de janeiro de 2020, Proc. n.º 238/19.7T8PVZ.P1

Introdução

O acórdão que nos propomos analisar prende-se com a necessidade de uma compreensão eficaze clara da figura da representação nos negócios jurídicos, com especial enfoque no instituto do mandatosem representação e respetivas natureza, extensão e efeitos.

Sumário

- No mandato sem representação, a representação é imprópria ou mediata, por oposição a representação própria, por na primeira estar ausente atuação em nome de outrem, uma vez que o mandatário age em nome próprio, adquirindo os direitos e obrigações decorrentes dos atos que celebra,mas sendo obrigado a transferir para o mandante os direitos adquiridos e sendo este obrigado a assumiras obrigações contraídas pelo mandatário.

- Face ao ordenamento vigente, o mandatário torna-se titular do direito que adquiriu em direito próprio e deve transmiti-lo ao mandante por um novo ato. Este novo ato não reveste já a formade venda porque a sua causa é o mandato. A transferência da propriedade da coisa adquirida pelo mandatário ao mandante dá-se causa «solvendi obligationis mandati».

- Em caso de incumprimento pelo mandatário, ao mandante não assiste direito real dotado de sequela, mas simples direito a ação pessoal ou creditícia

- A dissolução do vínculo conjugal por divórcio faz cessar as relações patrimoniais entre os cônjuges e conduz à partilha do património conjugal. Uma vez dissolvida a comunhão e antes de se proceder à respetiva liquidação e partilha, cada um dos cônjuges passa a ter na sua esfera jurídica um direito indiviso, correspondente à respetiva meação nos bens que a integravam.

- Também os contratos firmados pelo casal antes de dissolvido o casamento mantêm a sua vigência, se não sobreviver qualquer facto extintivo dos respetivos vínculos, não sendo a dissolução dacomunhão motivo de extinção dos créditos e dos débitos dos ex-cônjuges.

- Assim sucede com o mandato sem representação estabelecido entre os cônjuges e terceiros durante a pendência do casamento e do qual emerge um direito de crédito que corresponde a um ativoque já existia no património dos ex-cônjuge e que pode por estes ser exercitado após terminarem as relações patrimoniais entre os cônjuges.

- Desse direito de crédito pode mesmo originar-se um direito de propriedade sobre coisa imóvel que, assim vem a integrar o ativo do extinto casal e, por essa via, carecerá de partilha.

Questão suscitada

O litígio em causa prende-se com uma ação declarativa intentada por um Autor contra três

Rés.A saber: a primeira Ré, uma herança aberta por óbito do sogro do Autor, falecido em 1

de janeiro de 2005; a segunda Ré, a viúva e cabeça de casal da Primeira Ré e a terceira Ré, ex-mulher do Autor e herdeira e filha do de cujus e da segunda Ré1 .

Assim, intentou o Autor ação declarativa pretendendo uma prestação de facto a cargo das Primeira e Segunda Rés, ou seja, obter a alienação de uma fração autónoma, de tipo T3, de um prédio em regime de propriedade horizontal que se encontra registada a favor do de cujus e da Segunda Ré por forma a que o referido imóvel fosse incluído no inventário e, posteriormente, fosse objeto de partilha dos bens comuns no âmbito de um processo ainda pendente2

Para o efeito, alegou que o Autor e a Terceira Ré, ainda na pendência do casamento, por meio de um documento, de 1 de janeiro de 2005, entregaram ao Autor da Herança (sogro) e à Segunda Ré (viúva) a quantia de € 150.000,00 (cento e cinquenta mil Euros) da qual estes se confessaram devedorese obrigando-se à sua restituição logo que lhe fosse solicitado. Mais alegou que tal valor se referia não a um simples mútuo, mas a uma atribuição de poderes para que os mesmos pudessem adquirir um imóvel (com o dinheiro do casal) com a obrigação de, em momento posterior, transmitirem a propriedade para o património do casal quando tal lhes fosse exigido,o que não veio a acontecer. Pretendia, pois, o Autor a suprarreferida prestação de facto que nasce do direito de crédito provindo do contrato celebrado na vigência do casamento.

O Tribunal de 1ª Instância entendeu que o negócio efetuado entre Autor e a Terceira Ré (sua ex-mulher) e os seus sogros foi um mandato sem representação e que, atendendo a que o dissolvido casal se encontrava perante uma situação de partilha subsequente a divórcio (sublinhado nosso), o imóvel não poderia integrar o património dos bens comuns do casamento dissolvido e integrar o inventário para separação de meações.

A representação: mandato versus procuração

O artigo 258.º do Código Civil estabelece que: «O negócio jurídico realizado pelo representante em nome do representado, nos limites dos poderes que lhe competem, produz os seus efeitos na esfera jurídica deste último» pelo que facilmente se pode compreender que o representante apenas pode agir, legitimamente, em nome do representado se possuir os

1 O Autor foi casado em a Terceira Ré entre 20 de junho de 1991, sob o regime de comunhão de adquiridos, e 2 de outubro de 2015, data em que foi decretado o divórcio do casal estando, no entanto, ainda pendente o processode partilha de bens comuns do casal.

2 Note-se que foi dado como provado, com relevância para a causa que: «5) Corre termos, sob o n.º de processo 1974/2016 no Cartório Notarial da Dra. F…, sito na Rua …, … – 1º, S/., …. – … Maia, inventário para partilha de bens comuns do dissolvido casal, no qual o aqui Autor exerce as funções de cabeça de casal».

poderes para o efeito ou, caso os não tenha, queo representado venha, em momento posterior ratificar o ato praticado, tornando-o eficaz3 .

O Código Civil distingue, atualmente e de forma clara, procuração e mandato ainda que durante algum tempo, a doutrina e a jurisprudência confundissem as duas figuras e considerassem que o poder de representação era um mero efeito do contrato de mandato, posição que foi abandonada sendo hoje «pacífica a cisão conceptual entre o ato jurídico de que emerge o poder representativo e os negócios que estão na base da relação entre representante e representado»4

Na verdade, a concessão de poderes de representação através de procuração, configurando em si um ato unilateral, nunca poderá ser considerada um mandato que é uma figura contratual e,consequentemente, bilateral, sic, «pelo mandato se constitui um vínculo, através do qual o mandatáriose vincula à prática de um ou mais actos jurídicos. Mas a procuração não tem o efeito de obrigar o representante a uma atividade de gestão: este fica simplesmente legitimado perante terceiros eautorizado ao desenvolvimento da gestão»5 .

A procuração, inserida da Divisão II – Representação voluntária, encontra consagração no artigo 262.º do Código Civil e configura um negócio jurídico unilateral e formal pelo qual uma pessoa exterioriza uma declaração negocial conferindo a outra, de forma voluntária, poderes de representação,sendo uma espécie de negócio abstrato6 .

O mandato, por seu lado, traduz-se numa figura contratual, modalidade do contrato de prestaçãode serviços, nominada e típica em que uma das partes, o mandatário, se obriga a praticar atos jurídicos por conta de outrem, o mandante, constituindo esta característica – a de o mandatário se obrigar a praticaratos jurídicos no interesse do mandante (sublinhado nosso) – a característica essencial do contrato de mandato.

3 A representação pressupõe, pois, a outorga de poderes de representação a outrem que resulta da procuração.

4 JOÃO NUNO CALVÃO DA SILVA, «Procuração (artigo 116.º do Código do Notariado e artigo 38.º do Decreto-Lein.º 76A/2006, de 29 de março» , Revista da Ordem dos Advogados, ano 67 – vol. II (2007), disponível em: https://portal.oa.pt/publicacoes/revista/ano-2007/ano-67-vol-ii-set-2007/doutrina/joao-nuno-calvao-da-silvaprocuracao-artigo-116%C2%BA-do-codigo-do-notariado-e-artigo-38%C2%BA-do-decreto-lei-n%C2%BA-76- a2006-de-29de-marco/, consultado em 28/12/2021.

5 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 14 de novembro de 2006 (Proc. n.º 06ª3592, Relator: João Camilo), disponível em: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/7a789cb90ecc9b2680257267005336b5?Open Document, consultado em 14/10/2022.

6 Neste sentido, CARLOS ALBERTO MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª Edição, Coimbra Editora, 2005, p. 399: «os negócios em que estas (as causas) não revelam, por poderem uma multiplicidade de funções e os efeitosdo negócio serem separados da sua causa, designam-se como negócios abstratos».

A confrontação entre os dois institutos leva à conclusão de que estes não se anulam7 uma vez que a procuração incorpora poderes de representação, ao passo que o mandato pode ou não envolver esses poderes8 , ou dito de outro modo, podemos ter representação sem mandato (casos de representaçãolegal, por exemplo) e podemos ter mandato sem representação.

No mandato com representação9 estaremos, então, perante uma representação própria para o que são indispensáveis dois requisitos para a produção do efeito típico que é «a inserção directa, imediata, do acto na esfera jurídica do representado (dominus negotii): a) que o representante aja em nome do representado (contemplatio domini); b) que o acto realizado caiba dentro dos limites dos poderes conferidos ao representante. Não se verificando este último requisito, só a ratificação pode tornar o negócio eficaz em relação ao representado (art.º 268.º, n.º 1)”»10 .

No mandato sem representação11 o mandatário não recebeu poderes para agir em nome do mandante, agindo antes em nome próprio, adquirindo os direitos e assumindo as obrigações decorrentesdos atos que celebra passando, assim, a ser titular dos direitos adquiridos por força dos atos que praticano exercício do mandato (proprietário jurídico) e estes direitos e obrigações entram na sua própria esferajurídica (e patrimonial) e não na esfera do mandante, embora seja, no entanto, obrigado a transferir parao mandante (proprietário económico) os direitos adquiridos e sendo este obrigado a assumir asobrigações contraídas pelo mandatário.

Em caso de incumprimento deste dever, pode o mandante acionar judicialmente o mandatário, efetuando o pedido correspondente ao incumprimento do acordado(transferência dos direitos e obrigações)12

7 Neste sentido, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de julho de 2007, (Proc. n.º 07A1465, Relator: JoãoCamilo):

«A procuração é um negócio incompleto, no dizer de Oliveira Ascensão – in Direito Civil, vol. II, pág.273, querendo com a mesma exprimir a ideia de que, em princípio, a procuração encontra-se sempre integradanum negócio global, não operando de um modo independente», disponível em: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/bb9b96ef460f3df98025730f0050a71d?OpenD ocument, consultado em 14/10/2022.

8 Veja-se o teor do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 10 de setembro de 2019 (Proc. n.º 1546/15.1T8CTB.C1.S1), Relator: Assunção Raimundo), onde pode ler-se: «igualmente seria imprescindível, para se concluir que a procuração estava associada a um contrato de mandato, que tivessem sido provados (alegados)factos que traduzissem que a procuração dos autos era um instrumento de concretização dum contrato de mandato,pelo qual o mandatário/procurador estava obrigado a praticar os atos jurídicos que tinham sido acordados, como vontade real das partes (art. 238º do Código Civil)», disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/c8cfcba83ccb532c802584720031b238?OpenDocument , consultado em 14/10/2022.

9 Consagrado nos artigos 1178.º e 1179.º do Código Civil.

10 PIRES DE LIMA E ANTUNES VARELA, Código Civil anotado, vol. I, 3.ª edição, 1987, pp. 239 e 240.

11 Consagrado no artigo 1180.º do Código Civil.

12 PAULO VIDEIRA HENRIQUES, Da Desvinculação Unilateral Ad Nutum, Coimbra Editora, 2001, p. 155. «a diferença entre mandato com representação e sem representação também tem reflexos na área do risco, pois que neste último quem suporta os riscos, jurídico-económicos, da insuficiência patrimonial do mandante é o mandatário e não os terceiros”.

O contrato de mandato não está sujeito a forma especial, vigorando, quanto à sua constituição, o princípio da consensualidade bastando-se, pois, por mera declaração verbal. Estamos, então, perante uma «situação típica de interposição real de pessoas para prática de umato jurídico, em regra, um negócio jurídico, sendo este ato alheio porque versa sobre interesses que nãopertencem à pessoa interposta ou mandatário, embora este seja o sujeito da eficácia do negócio e atue em nome próprio, mas por conta de outrem, uma vez que aqueles efeitos jurídicos se destinam ao verdadeiro interessado para quem a interposta pessoa os deve transmitir, na sua exata configuração jurídica ou, pelo menos, económica»13 Neste caso, o interposto é parte verdadeira no negócio14 e o mandato é conhecido dos terceirosque são destinatários destes, sendo, portanto, obrigado a transferir para o mandante os direitos adquiridosem execução do mandato (impondo-se ao mandatário a obrigação de providenciar pela transferência detais direitos para o mandante).

O mandato sem representação e a produção de efeitos na esfera jurídica do mandante O ponto fulcral da discussão é a projeção dos efeitos do ato objeto do mandato (no caso sub judice, a aquisição de um imóvel) na esfera jurídica dos mandantes, o que se concretizará por via de uma dupla transferência dos efeitos do ato, ou seja, terá de existir em primeiro lugar, uma transferência para a interposta pessoa fazendo recair todos os efeitos do ato sobre o mandatário15 – atuação em nomepróprio -; e, em segundo lugar, uma transferência desta para o dominus, por via de uma obrigação de, ulteriormente e por um novo ato e autónomo, transmitir esses efeitos para o mandante16 – atuação por conta de outrem. Esta tese da dupla transferência visa, portanto, a conciliação das duas atuações: em nome próprio e por conta de outrem.

E, diga-se ainda, que, caso seja intenção do mandatário cumprir os termos do mandato sem representação, a transmissão da coisa não se fará por meio de um contrato de compra e venda já que o contrato que lhe está subjacente é agora o contrato de mandato17

13 Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 27 de janeiro de 2022, (Proc. n.º 238/9.7T8PVZ.P1, Relatora:Fernanda Almeida, disponível em: http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/64d9b29c466c4c8f8025852f0052f6ad?OpenD ocument, consultado em 12/10/2022.

14 E não um sujeito simulado como na interposição fictícia. Neste sentido, cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de julho de 2018 (Proc. n.º 659/16.7T8VNG.S1, Relatora: Fátima Gomes, disponível em: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/53ead8cb0ce5656a802582c9003b9418?OpenDocument, consultado em 13/10/2022.

15 De notar que o mandatário passa a ser titular do direito de propriedade sobre os bens que adquire em execução do mandato sendo que, no entanto, tais bens não podem ser atacados pelos seus credores já que adquirem uma espécie de estatuto especial de património separado dada a posição jurídica do mandante não de proprietário propriamente dito, mas antes de credor de uma obrigação de transferência do bem estando subtraídos ao princípiopar conditio creditorum.

16 De referir que o mandante está obrigado a fornecer ao mandatário, nos termos do disposto no artigo 1167.º, alínea a) do código Civil, os meios necessários à execução do mandato, nomeadamente, provendo pelas suas despesas.

17 Causa solvendi obligationis mandati.

Vejamos, então, as possibilidades doutrinais que se nos deparam uma vez que esta não é uma questão d pacífica junto da doutrina portuguesa.

Fernando Pessoa Jorge18 entende que não há uma dupla transferência, tratando-se, antes, de uma transferência ou projeção imediatas19 não havendo necessidade de uma intermediação domandatário transferindo-se os efeitos diretamente para a esfera jurídica do mandante já que o mandato confere ao mandatário a legitimação de que necessita para celebrar o negócio de transmissão de que foi encarregue por meio do contrato não havendo aqui, portanto, qualquer venda de bens alheios20

No entanto, o mandato sem representação pode distinguir-se entre mandato sem representaçãopara adquirir e mandato sem representação para alienar sendo que no primeiro estáincluídoomandatopara adquirir previsto no artigo 1181.º do Código Civil do qual resultam efeitos meramente obrigacionais (não reais) no qual o mandatário assume uma obrigação de alienação mas não de venda uma vez que inexiste direito de sequela visto como um poder do titular de uma coisa de poder valer o seu direito sobre a mesma onde quer que esteja e mesmo que se encontre na esfera jurídica de outrem.

No que se refere ao mandato sem representação para adquirir, o legislador consagrou, nos artigos 1180.º e 1181.º do Código Civil, a tese da dupla transferência pelo que na eventualidade de o mandatário incumprir a sua obrigação de transferência dos bens para o mandante e sendo o mandatárioo verdadeiro e exclusivo proprietário dos bens objeto do contrato, o mandante não poderá lançar mão de uma ação de reivindicação dos bens adquiridos mas apenas e só uma ação pessoal relativa à obrigaçãode transferência assumida pelo mandatário.

Na senda desta distinção, surge a posição intermédia de Menezes Leitão21 que defende a dupla transferência do mandato para adquirir e a projeção imediata no mandato para alienar na qual existe umatransferência direta do mandante para o terceiro adquirente do bem alineado pelo mandatário.

18 FERNANDO PESSOA JORGE, O mandato sem representação, Tese de doutoramento, 1961, pp. 291 e 334.

19 MANUEL JANUÁRIO DA COSTA GOMES, Em tema de revogação do mandato civil, Almedina, Coimbra, 1989, pp.114 e 125 e 126: «uma vez que o mandato não constitui ato translativo, a transferência no mandato para alienar opera-se rect via do mandante para o terceiro. Daqui resultam, nomeadamente, as seguintes consequências: 1) o mandante pode, antes da prática do ato gestório (alineação), reivindicar a coisa em poder do mandatário, ao passoque na hipótese da dupla transferência só se poderia socorrer de uma ação pessoal; 2) o mandato não carece de qualquer forma ad substantiam para ser válido; 3) os credores do mandante podem penhorar acoisa e até impugnarpaulianamente a venda feita pelo mandatário, na medida em que estejam preenchidos os requisitos de procedênciadeste meio de conservação patrimonial».

20 No mesmo sentido, Pires de Lima e Antunes Varela que defendem o entendimento de que a venda de bens alheios só poderia vir a ser nula se o vendedor carecesse de legitimidade para o realizar, o que não acontecerá já que o mandato (ainda que sem representação) confere ao mandatário a legitimação necessária para celebrar o negócio.

21 LUÍS TELES DE MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. III – Contratos em especial, 7ª Edição, Almedina,2010, p. 462.

No entanto, neste caso, quando o mandante não cumprir a sua obrigação de transferir a coisa adquirida para a esfera jurídica do mandante não lhe assiste direito real dotado de sequela, mas simplesdireito a ação pessoal ou creditícia em execução do mandato. Por outro lado, no mandato sem representação para alienar, a legislação portuguesa é omissa sobre qual o caminho a seguir pelo que ambas as teses se consideram possíveis.

Ou estamos perante uma dupla transferência fiduciária que pressupõe a existência de um negócio fiduciário entre as partes, ou seja, o mandatário adquire propriedade do mandante com a obrigação de a retransmitir a terceiro e esta transferência prévia do mandante para o mandatário tem lugar mediante a celebração de um «negócio alienatório específico de execução do mandato»22 23. Se não ocorrer esta transferência prévia, considerar-se-á que o mandatário celebrou uma venda de bens alheios nos termos do artigo 892.º do Código Civil, invalidade que pode ser sanada pela aquisição do bem ao mandante – convalidação que o mandatário pode exigir ao abrigo do artigo 1182.º do Código Civil.

Ou perante a tese da dupla transferência instrumental ou simultânea em que a titularidade do mandatário possui natureza instrumental ao serviço da satisfação do interesse do mandante ficando, pois,a transferência sujeita à conditio iuris de retransmissão do bem a terceiro.

Para dar eficácia à tese da dupla transferência, tem-se dado especial atenção ao instituto da execução específica, sendo que alguns Autores entendem que o artigo 830.º do Código Civil se pode aplicar à obrigação de contratar decorrente do artigo 1181.º do Código Civil24 , enquanto outros rejeitamtal possibilidade25 uma vez não sendo o mandato um contrato com eficácia real não poderá o mandantereivindicar do mandatário a coisa (ou de terceiro para quem o mesmo entretanto a tenha transmitido), restringindo-se, nestes casos, ao argumento literal considerando que não existe qualquer correspondência na letra da lei que refere expressamente a promessa que legitime outro tipo de interpretação.

Na posição de António Menezes Cordeiro26, não existe qualquer impedimento em recorrer à execução específica nos casos de mandato sem representação e para adquirir podendo, pois, o mandante recorrer a Juízo para a declaração da existência da obrigação e,

22 MARIA JOÃO VAZ TOMÉ, Sobre o contrato de mandato sem representação e o trust, Revista da Ordem dosAdvogados, Ano 67, vol. III, 2007, disponível em https://portal.oa.pt/publicacoes/revista/ano-2007/ano-67-vol-iii- dez2007/doutrina/maria-joao-romao-carreiro-vaz-tome-sobre-o-contrato-de-mandato-sem-representacao-e-o- trust/, consultado em 14/10/2022.

23 Neste caso deverá aplicar-se o artigo 1184.º do Código Civil por via analógica por forma a que os bens que omandatário haja adquirido por meio de execução do contrato de mandato fiquem a salvo dos seus credores pessoais.

24 Neste sentido, VAZ SERRA, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 100, 194 que defende que o artigo 830.ºdo Código Civil se pode aplicar, por via de uma interpretação extensiva, ao presente caso por estarmos perante uma verdadeira obrigação de contratar com similitudes com a figura do contrato promessa e MENEZES CORDEIRO,Tratado de Direito Civil, tomo II, ano 2010 que também defende a aplicação do instituto especialmente nos casosem que o mandatário incumpra o seu dever de transmissão.

25 Neste sentido, cfr. ANTUNES VARELA, Das obrigações em geral, 4ª Edição, p. 82 e PIRES DELIMA E ANTUNES VARELA, Código Civil anotado, vol. III, 3ª Edição, p. 108.

26 ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português, I – Parte Geral, Tomo IV, Almedina Coimbra, 2005, p. 73.

concomitantemente, uma sentença que supra a falta de declaração negocial do mandatário e fá-lo por via de uma interpretação extensiva do artigo do artigo 830.º do Código Civil por forma a abarcar a obrigação de contratar e as consequências do seu incumprimento. Assim, várias são as soluções preconizadas e enquanto que parte da jurisprudência vai no sentidode não ser possível recorrer ao instituto de execução específica por forma a impor ao mandatário o cumprimento da obrigação de transferir os direitos adquiridos por via da execução do mandato27, não restará outra alternativa ao mandante que não a de intentar uma ação declarativa de condenação pelo no «cumprimento do dever omitido de emitir a declaração negocial de transferência para o mandante dos direitos que adquiriu em execução do mandato e bem assim que ao mesmo fosse aplicada uma sanção pecuniária compulsória adequada, dado estar em causa uma prestação de facere infungível»28 29 . Por sua vez, e favoravelmente à tese da aplicabilidade da execução específica à obrigação de contratar, a jurisprudência também se pronunciou no sentido de que sobre o mandatário em nome própriorecai a obrigação de alienar ao mandante o que houver adquirido por execução do mandato por meio deum novo negócio jurídico que, não sendo uma venda, é um «acto de alienação - uma modalidade alienatória específica30, cuja causa justificativa está no cumprimento de uma obrigação advinda do mandato para o mandatário, nas suas relações internas com o mandante. «Seria injustificável que a execução específica prevista no artº 830º do Código Civil, se limitasse às obrigações fundadas em contrato-promessa, já que, a sua razão de ser abrange as obrigações fundadas noutra fonte; em que nãohavendo uma prévia declaração negocial, há já uma obrigação de contratar ou emitir uma declaração devontade que pode ser tão carecida de execução como a resultante de contrato-promessa»31

«Na verdade, temos duas obrigações principais que nascem para o mandatário, sendo uma típicado contrato de mandato prestação de serviço – ver artigo 1154.º do CC, e a outra típica do contrato- promessa, ver artigo 830.º, 1 do CC. Aquele que resultar dos termos do acordo e esta obrigação de transmissão, ainda que não acordada, nasce do disposto no artigo 1181.º

27 De notar que no que a este aspeto diz respeito, Menezes Leitão, mesmo rejeitando a aplicação da execução específica, considera possível uma extensão analógica do artigo 830.º do Código Civil nos casos em que estejamosperante bens imóveis e existindo documento escrito, Ob. Cit, p. 464.

28 Neste sentido, cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 3 de junho de 2004, Proc. n.º 621/04-2; Relator:Bernardo Domingos, disponível emhttp://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/8b62b53f0288a6fa80257de1005746be?OpenD ocument, consultado em 10/10/2022.

29 CALVÃO DA SILVA, Cumprimento e sanção pecuniária compulsória, 2ª Edição, pp. 500 – 501.

30 A expressão modalidade alienatória específica é da autoria de GALVÃO TELLES, Parecer, Colectânea de Jurisprudência, VII. 3.º, p. 10.

31 Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 2 de novembro de 1999, Proc. n.º 0044841. Relator: RoqueNogueira, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/8b6536a127e822738025697a00361e96?Open Document, consultado em 12/10/2022.

do CC. Por este motivo, estamos perante um contrato que integra, em si, obrigações próprias de outros, embora sendo um contrato nominado e típico»32 .

O Tribunal da Relação do Porto decidiu julgar o recurso procedente e, em consequência, revogara sentença recorrida fundamentando essa decisão no facto de que o Tribunal a quo ter paralisado «os direitos do autor, não porque este não exista, mas porque não é exequível face ao estado de dissolução das relações patrimoniais entre os cônjuges».

Ora, a dissolução do vínculo do casamento por via do divórcio faz cessar as relações patrimoniais entre os cônjuges e objetiva a partilha do património comum pelo que, tendo concluído, como concluiu o Tribunal de primeira instância, que a relação que se estabeleceu entre os, à data cônjuges, Autor e Terceira Ré e terceiros (Autor da Herança) e Segunda Ré (viúva) se traduzia na figurado mandato sem representação e que do mesmo emergiu um direito de crédito que poderia dar origem ao direito de propriedade sobre o imóvel que passa a integrar o ativo do património comum do ex-casale que, portanto, é passível de partilha, não poderia a ação improceder pelo simples facto de que os mesmos estarem em fase de pendência de ação de partilha uma vez que os direitos contraídos aquando do matrimónio podem ser exercidos mesmos após terminarem as relações patrimoniais entre os cônjuges.

Considerações finais

A expressão “mandato sem representação” pode significar duas realidades distintas: por um lado, um contrato de mandato sem outorga de poderes de representação (sem procuração); ou, por outro, a prática dos atos jurídicos pretendidos com o contrato de mandato pelo mandatário por conta do mandante, mas em nome próprio.

Assim, o tema do mandato sem representação tem sido objeto de extensa discussão e problematização e irá, certamente, ser alvo de novas reformulações atenta a necessidade de uma interpretação cada vez mais atualista das normas jurídicas.

A solução de Menezes de Leitão, retro exposta, não nos parece verosímil já que nos casos em que o mandatário decida não cumprir com a sua obrigação de transferir a coisa que adquiriu por força eem execução do mandato apenas se resumiria a um direito de indemnização por perdas e danos considerando já que não assiste ao mandante qualquer direito real de sequela. Assim, e na sequência de tudo o que vimos de expor, consideramos, a par de Vaz Serra que a norma do artigo 830.º do Código Civil é passível de uma interpretação extensiva por forma a ser aplicável não apenas aos contratos-promessa (com os quais nos parece haver, desde logo, grande paralelismo) mas também a outras situações que possam ser abrangidas pelo espírito 32 Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26 de setembro de 2011, Proc. n.º 424/2001.P1, Relator: Soaresde Oliveira, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/3076b5685e1ba4698025795e0039b302?Open Document, consultado em 13/10/2022.

da lei com rigorosorespeito pelo artigo 9.º do Código Civil dando-se, assim, cabal tutela ao direito do mandante.

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Jurisprudência citada

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Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26 de setembro de 2011, Proc. n.º 424/2001.P1, Relator: Soares de Oliveira, [consultado em 13 de outubro de 2022].

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Exoneração e Exclusão de Sócios Ricardo Medeiros Sousa

Exoneração e Exclusão de Sócios

Solicitador

Lista de Abreviaturas e Siglas

Ac. Acórdão

al./als. alínea/alíneas

art./arts. artigo/artigos

CCiv. Código Civil (na falta de indicação diversa, de 1966)

CCom. Código Comercial (na falta de indicação diversa, de 1888)

cfr. confira

CIRE Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas

coord. coordenação

CRP Constituição da República Portuguesa

CSC Código das Sociedades Comerciais

DL Decreto-Lei

ed. edição

nº/nº(s) número/números

op. cit. opus citatum

p./pp. página/páginas

ss. seguintes

STJ Supremo Tribunal de Justiça

TRP Tribunal da Relação do Porto

v.g. verbia grata

vol. volume

1. Introdução

O presente trabalho versa sobre matéria respeitante aos institutos da exoneração de sócios e da exclusão de sócios. Tais institutos revelam-se bastante próximos em determinados aspetos embora com moldes de aplicação e fundamentos diferentes. Com este trabalho pretende-se transmitir o conhecimento suficiente para a consecução da correta compreensão destas figuras jurídicas na vida societária comercial, sabendo que também estão presentes no direito societário civil que não será, no entanto, foco da mesma atenção.

Ambos os institutos visam a saída do sócio da sociedade, ou seja, o principal efeito tratase da cessação da relação vinculativa entre o sócio e a sociedade pelo que, necessariamente o primeiro aspeto a ter em sentido será o estudo das suas dissemelhanças para a sua correta distinção. Não obstante a sua importância, tal distinção não será acompanhada de paralelismo para com outras figuras identificadas como sendo suas afins. Desde logo, como figuras circunjacentes ao âmbito de aplicação dos dois institutos surgem a transmissão das participações sociais e a amortização das participações sociais. São meios de cessação da qualidade de sócio, tal-qualmente a exoneração e a exclusão, e são meios instrumentais da exoneração e da exclusão. A dissolução de sociedade, por ser outro dos meios possíveis de realização dos institutos misteres do trabalho, como veremos ao longo do texto, e por da exoneração e da exclusão de sócio advir em regra apenas o fim da relação entre o sócio e a sociedade, mas por vezes também o fim da sociedade, mostra-se também importante um paralelismo nesta sede.

A abordagem teórica não faria sentido sem a perceção da aplicação prática dos institutos relativamente a cada tipo de sociedade comercial. Ao longo da análise das causas legais e estatutárias, das causas comuns e especiais a determinado tipo societário e do processo e seus efeitos, serão levantadas diversas questões que suscitam bastante controvérsia doutrinal a serem acompanhadas de breves comparações ao Direito italiano e ao Direito espanhol enquanto, respetivamente, ordenamento jurídico originário do direito comercial e ordenamento jurídico geograficamente mais próximo do português.

2. Noções

2.1. Exoneração de Sócio

A doutrina apresenta algumas noções do direito de exoneração diversificando entre noções de teor tendencialmente abstrato e noções mais pormenorizadas.Coutinho de Abreu (2017, p.381) define a exoneração do sócio como sendo “a saída ou desvinculação deste, por sua iniciativa e com fundamento na lei ou no estatuto, da sociedade”. Brito Correia (1993, p. 453) adota a noção de “saída do sócio da sociedade, por decisão unilateral dele e mediante o pagamento do valor da sua participação”. Para Paulo Olavo Cunha (2010, p. 347), “a

exoneração consiste no abandono unilateral do sócio da sociedade de que fazia parte, sem se fazer substituir, mediante uma contrapartida”. Sem desconsiderar as noções mais consensuais e tradicionais da doutrina portuguesa, será benigno, para uma perspetiva mais integral, enveredar por uma aceção mais detalhada. Neste sentido, seguiremos o raciocínio de Soares da Fonseca (2008, p. 24) em lobrigar o direito da exoneração dos sócios como o “direito societário, de natureza potestativa, irrenunciável e inderrogável, dirigido à extinção da relação societária e que se manifesta, perante a ocorrência de determinada situação legal ou estatutariamente prevista, na emissão de uma declaração receptícia de exoneração, e se efetiva plenamente com o reembolso do valor da participação social detida”.

2.2. Exclusão de Sócio

Coutinho de Abreu (2017, p.390) apresenta como definição de exclusão de sócio “a saída de sócio de uma sociedade, em regra por iniciativa desta e por ela e/ou pelo tribunal decidida, com fundamento na lei ou cláusula estatutária”. Brito correia (1993, p. 457) vislumbra-a como sendo “a saída do sócio da sociedade imposta por decisão unilateral desta”.

Tendo em conta os entendimentos de ambos os autores1, deparámo-nos com um direito potestativo da sociedade que terá lugar aquando de comportamento do sócio que ao violar as suas obrigações produz efeitos que prejudiquem o fim social. Assim, sempre que colocado em causa o interesse social, nos termos explicados adiante, a sociedade adquire a prerrogativa de excluir o sócio responsável pela conduta prejudicial à sociedade.2

3. Distinção de Figuras Afins

3.1. Exoneração e Exclusão

A existência de semelhanças nesta sede é tão robusta ao ponto de existir quem lobrigue o tema como subsistindo uma analogia conceptual (Cortés, 1999, p.33). Não invalida, no entanto, que as diferenças presentes pressupõem que é errático fundir a exoneração dos sócios com a exclusão destes.

A exclusão do sócio trata-se da sanção empregue pela sociedade por incumprimento de obrigações do sócio, portanto, e como bem lembra Coutinho de Abreu (2017, p. 390) o direito de exclusão “é atribuído pela lei ou (imediatamente) pelo estatuto social à sociedade”. Assim sendo, e enquanto direito potestativo da sociedade, a exclusão dá-se por decisão unilateral da sociedade contrastando neste aspeto com a exoneração onde releva a vontade do próprio sócio.Desta primeira grande dissemelhança entre as duas

1 Vide, neste sentido, o Ac. do STJ de 05-05-2015 (proc. 28/2001.E1.S1; relator Gabriel Catarino): “ o direito de exclusão de um sócio é um direito potestativo da sociedade”.

2 Vide, neste sentido, o Ac. do STJ de 05-05-2015 (proc. 28/2001.E1.S1; relator Gabriel Catarino): “a exclusão justifica-se quando o interesse social é posto em causa por um sócio que, por via da violação das suas obrigações, conduza a resultados ou efeitos que prejudiquem o fim social”.

figuras em apreço destaca-se desde logo que ambos os institutos colimam o fim da qualidade de sócio. Mas as parecenças não se findam tão celeremente, ora reflitamos: (i) ambos figuram direitos potestativos e voluntários (exoneração da pertença do sócio e a exclusão da sociedade); (ii) resultam numa dissolução parcial do contrato de sociedade; (iii) surtem por via extrajudicial nas sociedades com mais de dois sócios; (iv) e o reembolso da participação social calcula-se identicamente (Fonseca, 2008, p. 61).

Sem prejuízo da proximidade dos institutos, e como supra exposto, as diferenças entre ambos também são notórias e importantes a reter para uma correta e rematada perceção destes. Para tal urge como injuntivo a operação de uma disjunção entre os institutos por via do elenco das reais disparidades: (i) a exoneração obedece a declaração do sócio enquanto que a exclusão opera por deliberação social ou judicialmente; (ii) delimitam-se as razões de exoneração a comportamentos imputáveis à sociedade e a exclusão fundamenta-se em situações comportamentais prejudiciais do sócio para com a sociedade; (iii) a exoneração protege originalmente os sócios e a exclusão ampara a sociedade; e, (iv) nas sociedades constituídas por dois sócios a exoneração tem lugar em sede extrajudicial mas a exclusão dá-se, tradicionalmente, por via judicial (op. cit., pp.61-62).

Soares da Fonseca (2008, p. 61) elenca também como diferença a exoneração ser operante em todos os tipos de sociedades enquanto a exclusão não o é nas sociedades anónimas.

Claramente não seguimos o mesmo raciocínio como será demonstrado adiante quando nos preocuparmos com a exclusão de acionistas.

3.2. Outras Distinções Importantes a Concretizar

3.2.1. Exoneração, Exclusão e Transmissão da Participação Social Importa a principio recordar a definição de participação social ostentada por Coutinho de Abreu (2017, p. 195) “como o conjunto unitário de direitos e obrigações atuais e potenciais do sócio”. Já Olavo Cunha (2010, p. 351) sustenta a noção de “situação jurídica característica do sócio (seu titular) perante a sociedade, os outros sócios e terceiros, e identifica um bem jurídico, visto que é objeto de direitos e obrigações”.

A distinção coloca-se no âmbito da aquisição derivada das participações sociais, que advirá da transmissão inter vivos. Da exclusão, da exoneração e da transmissão das participações sociais decorre a extinção, total ou parcial, da qualidade de sócio, mas as distinções a operar são muitas.

Como bem alude Soares da Fonseca (2008, p.43), “o sócio que se exonera não tem por finalidade celebrar um negócio jurídico translativo”, tal-qualmente a sociedade que exclui o sócio. Como já houvera sido dito, nestas figuras pretende-se o termo da qualidade de sócio, originando a obrigação da sociedade de corresponder ao direito do sócio de reembolso da sua participação social. Na transmissão da participação social o cenário é bem distinto, primeiramente por se ter o objetivo de celebração de negócio jurídico

translativo e em segundo por ocorrer a aquisição da qualidade de sócio pelo adquirente, pois, o vazio deixado pelo sócio anterior terá de ser preenchido pelo adquirente (o que não é obrigatório de suceder nos dois outros institutos), (op. cit., p. 43).

3.2.2. Exoneração, Exclusão e Amortização da Participação Social

Segundo Brito Correia (1993, p. 453), e de forma sucinta, “a amortização consiste na extinção de partes, de quotas ou de ações”. São características transversais aos três institutos3, a extinção da participação social e o modo de cálculo do valor do reembolso da mesma. De acordo com Soares da Fonseca (2008, pp.58-59) a principal diferença revela-se na perspetiva de abordagem do problema, isto é, na exoneração a extinção da relação entre a sociedade e o sócio é da iniciativa deste, ao passo que na amortização e na exclusão do sócio a sociedade será o agente impulsor embora com fins díspares. Na amortização visa-se a extinção da participação social mas na exclusão (e na exoneração) o fim da relação societária que vincula a pessoa coletiva e o indivíduo.

Contrapõem-se então os interesses societários prevalecentes tanto na amortização como na exclusão aos interesses sociais prevalecentes na exoneração do sócio.

3.2.3. Exoneração, Exclusão e Dissolução

Raúl Ventura (2003, pp. 16-17) instrói a dissolução como traduzindo-se na “modificação da relação jurídica constituída pelo contrato de sociedade, consistente em ela entrar na fase de liquidação”, não se tratando, segundo o autor, de uma verdadeira extinção da sociedade. Já Menezes Cordeiro (2016, p. 1144) aborda a dissolução como o ato e o efeito da cessação da sociedade. Na distinção sub judice, e sem desestima por outras aspetos, bastará enfocar nas causas e efeitos endémicos de cada uma das figuras para o alcance de uma correta perceção da conexão entre elas.

Em primeiro lugar e relativamente às causas, o fundamento na exoneração e na exclusão do sócio constitui essencialmente fatos que se irão repercutir no âmbito pessoal do(s) sócios(s). “Já as causas de dissolução incidem sobre fatores comuns à sociedade”4 (Fonseca, 2008, p.44). Em segundo lugar, a dissolução surte a extinção da sociedade enquanto como efeito da exoneração e da exclusão ergue-se a saída/desvinculação do sócio da sociedade.

Como afirma Soares da Fonseca (op. cit., p. 45),” o direito de exoneração será, quanto muito, uma dissolução parcial da sociedade”. O mesmo raciocínio aplicar-se-á à exclusão do sócio da sociedade.

3 Excluindo-se a amortização de ações sem redução do capital social e sem extinção da participação social.

4 Falamos em causas de dissolução imediata (art. 141º CSC), causas de dissolução administrativa ou por deliberação dos sócios (art. 142º CSC) e causas de dissolução oficiosa (art. 143º CSC), cfr. Sónia Pinto (2019, p.233).

4. As Causas de Exoneração de Sócio

4.1. Causas Comuns

Não obstante ao regime próprio da exoneração de sócio variar consoante o tipo de sociedade comercial em questão, segundo Brito Correia (1993, p. 454), constata-se um agregado de casos de exoneração que são transversais aos diversos tipos de sociedades comerciais: (i) mudança de sede da sociedade para o estrangeiro (art. 3º, nº 6 do CSC); (ii) erro, dolo, coação e usura na constituição de sociedades por quotas e por ações (art. 45º, nº 1 do CSC); (iii) fusão de sociedades (art. 105º do CSC); (iv) transformação da sociedade (art. 137º do CSC)5; (v) prorrogação da sociedade (art. 161º, nº 5 do CSC); (vi) e sociedade dominada ou subordinada (arts. 490º, nº 5 e 499º do CSC). Apesar de tais casos estarem previstos na parte geral do Código das Sociedades Comerciais e de serem comuns a todos os tipos societários, alguns irão ser aplicados de forma especial a cada tipo de sociedade conforme se explica de seguida.

4.2. Nas Sociedades em Nome Coletivo (e em Comandita Simples)

Além de outros casos previstos na lei e no contrato, nas sociedades em nome coletivo o art. 185.º, n.º 1 do CSC vem prever outras situações que conferem ao sócio o direito à exoneração, aplicável subsidiariamente às sociedades em comandita simples (ex vi art. 474.º CSC).

A alínea a), do nº 1 do art 185º do CSC, consagra a exoneração ad nutum que encorpa dois requisitos (Fonseca, 2008, p. 217). O primeiro respeitante à duração da sociedade, onde concede ao sócio o direito à exoneração qualquer uma das seguintes situações: (i) a não fixação no contrato da duração da sociedade (vide art.15º do CSC); a fixação no contrato de uma duração por toda a vida de um sócio; (iii) fixação no contrato de uma duração superior a trinta anos. Como segundo requisito temos a vinculação do sócio à sociedade por um período igual ou superior a 10 anos. Seguindo o pensamento de Soares da Fonseca (2008, pp. 217-219) deveremos interpretar a norma de modo a não se tratar de requisitos cumulativos. Pois, como indica Videira Henriques (2001, p. 55), caso contrário, significaria a impossibilidade de exoneração de sócio vinculado à sociedade com duração entre dez e trinta anos.

Outro tipo de exoneração é o previsto na alínea b) do nº1 do art. 185º do CSC, a exoneração por justa causa. O art. 185º, nº2 do CSC vem enunciar os casos de justa causa sendo tal enunciação taxativa e não meramente exemplificativa, acompanhando Coutinho de Abreu (2017, pp. 384-385) e Brito Correia (1993, p. 455), isto apesar da possibilidade de previsão no estatuto casos de exoneração, “designados ou não de justa causa”, tornar a questão pouco relevante na prática (Abreu, 2017, p. 385). O conceito de justa causa6 trata-se de

5 Vide acórdão do STJ de 8 de janeiro de 2015 (proc.06B2866; relator: Ferreira Girão).

6 No Direito italiano a lei não define nem exemplifica a justa causa, cabendo à doutrina e jurisprudência tal função. Já no ordenamento jurídico espanhol não existe a figura da exoneração por justa causa. (Fonseca, 2008, pp. 221-222)

um conceito indeterminado, “apreensível de forma casuística” com algumas semelhanças com a justa causa empregue no Direito laboral (Fonseca, 2008, p. 223).

O sócio que pretenda a exoneração deverá comunicar por escrito7 tal intenção à sociedade, dentro de noventa dias (nos casos de justa causa) a contar desde o momento em que tomou conhecimento do fato que permite a exoneração (cfr. art. 185º, nº 3 do CSC). Apesar de o prazo de noventa dias dizer respeito aos casos de justa causa, tanto nos casos legais como nos contratualmente previstos em que não se defina prazo, não há nada que impeça a aplicação analógica ou pela via da interpretação e integração do pacto do prazo estatuído para os casos de justa causa (Cunha, 2011, pp. 100-101). De modo a que a sociedade consiga adaptar-se aos condicionalismos derivados da saída do sócio (Abreu, 2008, p. 385), “a exoneração só se torna efetiva no fim do ano social em que é feita a comunicação respetiva, mas nunca antes de decorridos três meses sobre esta comunicação” (art. 185º, nº 4 CSC).

Com a exoneração, o respetivo sócio perde a qualidade de sócio, mas passa a ter direito “ao valor da sua parte social, calculada nos termos previstos no art. 105º, nº 2, com referência ao momento que a exoneração se torna efetiva” (art. 185º, nº 5 do CSC). Tal direito do sócio será inoperante no caso de liquidação da sua parte social implicar uma situação líquida da sociedade inferior ao montante do capital social, tal liquidação seria mesmo ilícita (art. 188º, nº 1 CSC). Nesta situação poderá aplicar-se analogicamente o art. 186º, nº 5 do CSC (próprio da exclusão de sócio) de modo a ser conferido ao sócio a retoma ao direito aos lucros e à quota de liquidação até ser possível à sociedade efetuar o pagamento (Abreu, 2017, p. 385). Tratando-se de exoneração com fundamento em justa causa prevista nas alíneas a) ou b), do nº 2 do art. 185º do CSC o sócio que viu a liquidação da sua parte social proibida poderá vir a requerer a dissolução da sociedade (art. 195º, nº 1, alínea b) do CSC).

De acordo com Brito Correia (1993, pp. 455-456) da exoneração poderá derivar: (i) a aquisição de outro(s) sócio(s) ou por terceiro(s) da parte social do sócio exonerado (por transmissão entre vivos, art. 182º do CSC); (ii) a redução do capital social (arts. 187º; 194º, nº 1 e 94º a 96º do CSC); ou, a extinção da parte social mediante acréscimo correspondente do valor das outras partes sociais (art. 187º, nº1 CSC) ou mediante criação de uma ou mais partes sociais para imediata transmissão a sócios ou a terceiros (art. 187º, nº 2 CSC). Neste sentido, não é admitida a amortização das partes sociais “com extinção das participações, sem redução do capital, nem acréscimo do valor nominal das participações” (op. cit., p. 456).

7 Cfr. Brito Correia (1993, p. 455), por analogia com o art. 240º, nº3 do CSC. Em sentido diferente, Coutinho de Abreu (2017, p. 385) entende não haver exigibilidade de forma especial.

4.3. Nas Sociedades por Quotas

Enquanto que nas sociedades em nome coletivo (e em comandita simples) a exoneração surge como um direito potestativo extintivo, nas sociedades por quotas a exoneração configura-se em termos mais restritivos. Às situações legalmente e contratualmente previstas como conferentes do direito de exoneração o art. 240º, nº1 vem aditar ainda as seguintes situações em que exista voto contra do sócio que pretenda exonerar-se: (i) deliberação da sociedade no sentido de haver um aumento de capital a subscrever total ou parcialmente por terceiros; (ii) a mudança do objeto social; (iii) a prorrogação da sociedade; (iv) a transferência da sede para o estrangeiro; (v) o regresso à atividade da sociedade dissolvida; (vi) existindo justa causa de exclusão de outro sócio, a sociedade não tiver promovido deliberação no sentido de excluí-lo ou a sua exclusão judicial. Importa fazer um parenteses tanto em relação à transferência da sede da sociedade para o estrangeiro enquanto caso de exoneração comum e específico das sociedades por quotas, como em relação ao regresso de sociedade dissolvida à atividade. A questão que se coloca prende-se em compreender se nestes dois casos a norma do art. 240º, nº 1, al. a) do CSC, porque exige o voto contra do sócio, será especial em relação às normas dos arts. 3º, nº 5 e 161º, nº 5?8 Coutinho de Abreu (2017, p. 387) responde afirmativamente em relação à transferência da sede da sociedade para o estrangeiro mas negativamente no que toca ao regresso à atividade da sociedade. Na primeira situação, no art.240º, nº 1, al. a) passa a haver direito de exoneração apenas se o sócio votar contra, diferente do consagrado no art. 3º, nº 5 de ter também prerrogativa de se exonerar o sócio que se absteve ou não participou na deliberação (Cunha, 2011, p. 561). Na segunda situação, o âmbito de aplicação do art. 161º, nº 5 diz respeito a deliberação tomada ulteriormente ao início da partilha, ao passo que no art. 240º, nº 1 al. a) a partilha ainda não teve início (Abreu, 2017, p. 387).

Haverá ainda direito à exoneração quando esteja estatutariamente proibido a cessão de quotas, cujo exercício depende do término do prazo de dez anos após o ingresso do sócio na sociedade (art. 229º, nº 1 do CSC).

O art. 240º, nº 2 do CSC dispõe que para se proceder à exoneração exige-se de antemão que todas as quotas do sócio estejam inteiramente liberadas (vide neste sentido também o art. 232º, nº 3 CSC). O sócio deve comunicar a sua intenção de se exonerar mediante declaração escrita dirigida à sociedade, nunca depois de decorridos noventa dias após o conhecimento do facto constituinte do seu direito (art. 240º, nº 3 do CSC). Dentro do prazo de trinta dias, a contar desde o momento da receção de tal declaração, a sociedade deve decidir entre a amortização da quota (vide arts. 232º e ss, CSC), a aquisição pela própria sociedade (vide,art. 220º CSC) ou a aquisição por sócio ou terceiro (vide, art. 228º CSC)

8 No mesmo sentido que nós, vide Soares da Fonseca (2008, pp. 244-245). Em sentido divergente, Brito Correia (1993, p. 457, notas 35 e 36) fala em mera repetição.

(cfr. art. 240º, nº 4, in principio, CSC), sob a ameaça de dissolução por requerimento do sócio (vide art. 142ºCSC), (cfr. art. 240º, nº 4, in fine, CSC)9. Ao optar-se pela amortização da quota, a exoneração só se torna efetiva quando aquela for amortizada-extinta (Abreu, 2017, p. 388)10. Quando não sejam reunidos os requisitos exigidos no nº 1 do art. 236º do CSC para a amortização, o sócio pode requerer a dissolução da sociedade por via administrativa (art. 240º, nº 6 CSC). Nos casos de aquisição da quota (pela sociedade ou por sócio ou terceiro) o sócio será considerado exonerado só com a “efetiva aquisição da quota” (Cunha, 2011, p. 565)11. No caso de o adquirente não pagar tempestivamente a contrapartida, o sócio exonerado pode requerer a dissolução da sociedade por via administrativa (art. 240º, nº 7 CSC). Tal como sucede nas sociedades em nome coletivo, a contrapartida a que o sócio tem direito será paga nos nos termos do art. 105º, nº 2 com referência à data em que o sócio declare à sociedade a intenção de exoneração (art. 240º, nº 5, 1ª parte CSC)12. O pagamento será realizado em duas prestações a efetuar dentro de seis meses e um ano, respetivamente, após a fixação definitiva da contrapartida (art. 235º, nº 1, al. b) ex vi art. 240º, nº 5, 2ª parte, CSC).

4.4. Nas Sociedades Anónimas (e em Comandita por Ações)

O direito de exoneração vê nesta sede a sua versão mais restritiva. Quanto mais capitalista e aberta a sociedade13 mais protegida deverá ser a sociedade e, por isso mesmo, o Código não dispõe de normas especiais a prever a exoneração nas sociedades anónimas, e em comandita por ações (ex vi art. 478º CSC), pois a facilidade de transmissão das ações já aparenta uma real forma de saída da sociedade.14Assim, como casos de exoneração de sócio nas sociedades anónimas juntam-se aos já referidos comuns, aos diversos tipos societários, os previstos no contrato da sociedade.15 Assunto bastante discutido é o da hipótese de prever estatutariamente causas de exoneração de acionistas. Enquanto que no Direito italiano será admissível tal possibilidade, “exceto nas que façam apelo ao mercado do capital de risco”, no Direito espanhol a questão é notoriamente controversa (Fonseca, 2008, pp. 272 – 273).16 No ordenamento jurídico português, os defensores17 da não admissibilidade advogam que a natureza própria deste tipo societário aliada à fácil transmissão de ações, que constitui ela própria uma eficaz e eficiente exoneração do sócio, tornam o direito de exoneração dos acionistas revestido de uma natureza manifestamente excecional (Cunha, 2010, pp. 347-

9 Vide acórdão do STJ de 8 de janeiro de 2015 (proc.06B2866; relator: Ferreira Girão).

10 Aplicável também para a exclusão de sócio, assim como para a exoneração e exclusão de acionista.

11 Aplicável também para a exclusão de sócio, assim como para a exoneração e exclusão de acionista.

12 A esse respeito veja-se o acórdão do TRP de 2 de julho de 2012 (proc. 1753/05.5TBESP.P1; relator: Maria José Simões).

13 Vide definição de tipos doutrinais societários operada por Coutinho de Abreu (2017, pp. 75-78).

14 Neste sentido, Brito Correia (1993, p. 458) e Coutinho de Abreu (2017, p. 388).

15 “(…) desde que não infrinja normas legais imperativas (…)” (Abreu, 2017, pp. 388-389).

16 Brenes Cortés (1999, pp. 167-168) e Bonardell Lenzano/Cabanas Trejo (1998, p. 26) ostentam posições intermédias.

17 Entre outros, Paulo Olavo Cunha (2010, pp. 347-348) e Menezes Cordeiro (2007, p. 711).

348). Em sentido contrário18, ao qual nos coligámos, defende-se a admissibilidade tendo por base que a natureza excecional deste direito não impossibilita “que a sociedade preveja outras causas de exoneração” e que a autonomia da vontade é o princípio mister do direito societário (Fonseca, 2008, pp. 279-280).

4.5. Causas Estatutariamente Previsíveis

Como já aludido ao longo do documento, para além dos casos previsto na lei (de aplicação geral ou de aplicação especial a cada tipo de sociedade), o estatuto pode prever diferentes casos que conferem o direito potestativo do sócio se exonerar da pessoa coletiva.

Seguiremos Soares da Fonseca (2008, pp. 257-286) em decifrar um catálogo de causas estatutárias, subdividindo-as em típicas e atípicas. Como típicas teremos: (i) a transformação da tipicidade da sociedade (art. 137º CSC); (ii) A fusão e a cisão de sociedade (arts. 105º, nº1 e 120º CSC);19 (iii) e a transmissão dependente da vontade dos sucessores nas sociedades por quotas (art. 226º CSC). Como atípicas teremos as que preverem a exoneração estatutária do acionista.

Por fim, devemos ter em conta que há certas regras a respeitar com o fito de esses casos de exoneração serem integrais. Neste sentido Bonardell Lenzano & Cabanas Trejo (1998, pp. 91-93) vêm impor limites a serem acatados pelas cláusulas estatutárias de exoneração:

(i) compatibilidade com as normas legais de caráter injuntivo (v.g., art. 240º, nº 8 e 241º, nº 1, in fine, CSC); (ii) fundamentação causal (não se admite a exoneração do sócio por livre vontade); (iii) e ajuste aos princípios configuradores endémicos do tipo de sociedade.20

5. As Causas de Exclusão de Sócio

5.1. Nas Sociedades em Nome Coletivo (e em Comandita Simples)

A exclusão de sócio vem especialmente prevista para as sociedades em nome coletivo, e para as sociedades em comandita simples (ex vi art.474º CSC), no art. 186º do CSC. Tal como nos diz Carolina Cunha (2011, p. 104) deparámos aqui com situações que “contendem com a índole personalística, tributárias da importância da pessoa e património dos sócios na construção e condução da vida societária”. Mas antes de nos preocuparmos com o art. 186º do CSC, importa analisar os casos de exclusão previstos, fora do artigo, no CSC. Como primeira situação, surge o art. 181º, nº 5. Segundo esta norma o sócio quando utilize as informações obtidas de modo a prejudicar injustamente a sociedade ou outros sócios, para além de ser responsável por tais prejuízos, ficará sujeito a exclusão. Outra situação será o art. 196º, nº 2, que vem possibilitar à sociedade excluir o sócio cujo credor se oponha

18 Entre outros, Coutinho de Abreu (2017, pp. 388-389), Augusta França (1988, pp. 220-221)

19 O disposto nos arts. 105º, nº1 e 120º, não é indicativo suficiente forte de que se tratará de causa legal, pois, a exoneração dependerá sempre de cláusula estatutária. Neste sentido, entre outros, Soares da Fonseca (2008, pp. 262265), Coutinho de Abreu (2017, pp. 382-383). Em sentido contrário, entre outros, Brito Correia (1993, pp. 454 e ss.).

20 Cfr. Soares da Fonseca (2008, p. 283).

ao regresso à atividade da mesma. Analisados estes casos, cuidemos agora dos casos previstos no art. 186º, nº1, isto sem prejuízo de outros casos legais e estatutários de exclusão.

A primeira situação diz respeito à imputação de violação grave das obrigações do sócio para com a sociedade (art. 186º, nº 1, al. a), 1ª parte, CSC), sendo apresentado como exemplo na norma a proibição de concorrência prevista no art. 180º. Segundo Coutinho de Abreu (2017, p. 391) exige-se que o comportamento do sócio seja culposo e grave, gravidade essa que será apurada “atendendo à natureza da obrigação, à intensidade da violação e às consequências do incumprimento para a organização/funcionamento da sociedade”21. Ou seja, e por exemplo, tendo em sentido o objetivo da proibição da concorrência de evitar que o sócio aproveita a sua posição social para angariar clientes da sociedade ou ferir-lhe noutras relações desta com terceiros, não deverá ser qualificado como violação grave o exercício por parte do sócio de atividade que seja abrangida pelo objeto social da sociedade mas que não sendo por esta exercida (op. cit., p. 391). Brito Correia (1993, pp. 465-466) aponta algumas violações a ter em conta, para além da proibição de concorrência: (i) incumprimento culposo da obrigação de entrada; (ii) intromissão na gerência de sócio que não seja gerente; (iii) uso de bens próprios do património social com fito estranho aos da sociedade; (iv) violação culposa de deveres de gerente.

No art. 186º, nº 1, al. a), 2ª parte, confere-se o direito à sociedade de excluir o sócio destituído da gerência com fundamento em justa causa que consista em fato culposo suscetível de causar prejuízo à sociedade. Exige-se então dois requisitos: (i) a destituição com justa causa; (ii) e o comportamento culposo do sócio de onde resultem prejuízos para a sociedade.

A alínea b) do nº 1 do mesmo artigo vem consagrar as possibilidades de excluir o sócio acompanhado de maior por decisão judicial de acompanhamento e quando seja declarado insolvente. A primeira possibilidade de exclusão sustenta-se, desde logo, no fato de a pessoa ter sido considerada incapaz de governar a sua própria pessoa e o seu património e, logo, a sociedade não poderá ser obrigada a correr o risco de pessoa incapaz intervir na vida societária22. Na segunda possibilidade, o fundamento será não só a consecução da regra da responsabilidade (subsidiária mas solidária) dos sócios pelas dívidas da sociedade (cfr. o art. 175º, nº1 CSC), mas também a indisponibilidade em relação à massa insolvente do sócio enquanto efeito da declaração de insolvência (art. 81º, nº 1 do CIRE), (Cunha, 2011, p. 106). Acrescenta-se ainda, em ambos os casos, o afastamento de terceiros (acompanhante e administrador da insolvência) decorrente do intuitu personae do contrato de sociedade23 .

21 Também neste sentido, Brito Correia (1993, p. 465).

22 Cfr. Carolina Cunha (2011, pp. 105-106) e Brito Correia (1993, p. 473).

23 Cfr. Coutinho de Abreu (2017, p. 392) e Brito Correia (1993, p. 473).

Na alínea c) do mesmo número do art. 186º, constata-se a exclusão do sócio de indústria impossibilitado de prestar os serviços com que se obrigou para com a sociedade. Ao contrário do incumprimento de obrigação instituído no art. 186º, nº 1, alínea a), in principio, do CSC, não se exige o comportamento culposo e gravoso do sócio. Coutinho de Abreu fala em situação de deliberação de exclusão abusiva nos casos de sócio cumpridor exemplar da obrigação de indústria durante considerados anos (entre outros exemplos) (2017, p. 392). À primeira vista tenderíamos a discordar pois, por um lado a entrada de indústria obriga a uma execução continuada e indeterminada do sócio, e por outro lado a exclusão será o mero exercício de um direito da sociedade, no entanto, a conotação personalista da relação societária in casu leva-nos a concordar. A não ser que o contrato exija maioria elevada, a exclusão será deliberada por três quartos dos votos dos sócios (art. 186º, nº2, in principio, CSC), não podendo votar o sócio excluendo (cfr. art. 251º, nº 1, al. d) ex vi art. 189º, nº 1 CSC). A deliberação terá lugar nos noventa dias seguintes àquele em que algum dos gerentes tomou conhecimento do facto (art. 186º, nº 2, in fine, CSC). Na sociedade composta por apenas dois sócios a exclusão com fundamento nalgum dos casos contemplados nas alíneas a) e c) do nº 1 do art. 186º do CSC será decretada pelo tribunal (art. 186º, nº 3 do CSC). Assim, e a contrario sensu, não será obrigatório ser decretada pelo tribunal nos casos de acompanhante de maior, de declaração de insolvência do sócio (alínea b) do nº 1 do art. 186º do CSC) e de previsão estatutária.

O sócio excluído terá direito ao pagamento pela sociedade de contrapartida com valor da sua parte social, calculado nos termos do art. 105º, nº2, com referência ao momento da deliberação de exclusão (art. 186º, nº 4 CSC). Se tal pagamento não poder ser efetuado por colocar a situação líquida da sociedade inferior ao capital social (art. 188º CSC), o sócio em causa retoma o direito aos lucros e à quota de liquidação até lhe ser efetuado tal pagamento (cfr. art. 186º, nº 5).

Como bem elenca Brito Correia (1993, pp. 480-481) a exclusão do sócio realizar-se-á: (i) ou por extinção da parte social do sócio com redução do capital social (art. 187º, nº1, a contrario sensu, CSC); (ii) ou por extinção da parte social do sócio sem redução do capital social e com acréscimo proporcional do valor das demais partes sociais (art. 187º, nº 1 CSC); (iii) ou por extinção da parte social do sócio sem redução do capital social e com criação de uma ou mais partes sociais com valor nominal total igual ao da participação extinta, para imediata transmissão a sócios ou a terceiros (art. 187º, nº 2 CSC).

5.2. Nas Sociedades por Quotas

Encontram-se causas de exclusão de sócio nas sociedades por quotas “dispersas” pelo do Código das Sociedades Comerciais. O estudo nesta sede deverá necessariamente iniciar-se pelo art. 241º. No seu nº 1 constata-se o óbvio da possibilidade de haver exclusão com base

não só no código, mas também com base em comportamentos pessoais do sócio ou em casos estatutariamente fixados. Nestes últimos casos, serão aplicáveis os preceitos da amortização de quotas (arts. 232º e ss. ex vi art. 241º, nº 2 CSC) podendo, no entanto, ser previsto no contrato da sociedade valor ou critério para a determinação do valor da quota diferente do estatuído para a amortização de quotas (art. 241º, nº 3 CSC). Posto isto, comecemos então a considerar os casos de exclusão dispersos no CSC. O art. 204º vem estabelecer a exclusão de sócio remisso, ou seja, o sócio que não cumpriu pontualmente a obrigação de entrada em dinheiro (entrando em mora depois de interpolado pela sociedade, cfr. art. 203º, nº 3 CSC), que perde a favor da sociedade a quota e os pagamentos já realizados salvo se os sócios deliberarem limitar a perda à parte da quota correspondente à prestação não efetuada (art. 204º, nº 2, CSC). A sociedade poderá vender a quota em causa em hasta pública a não ser que os sócios decidam por deliberação a venda a terceiras por modo diverso (art. 205º, nº 1 CSC) Neste sentido, também será excluído o sócio que não efetuar as prestações suplementares a que se obrigou, sendo aplicável o regime previsto no art. 204º e no art. 205º (art. 212º, nº 1 CSC).

Note-se que resulta do art. 204º, nº 1 a possibilidade de perda parcial da quota, logo, o sócio manterá essa qualidade sendo titular então de uma quota de menor valor (Correia, 1993, p. 468) 24 .

O art. 214º, nº 6 do CSC vem prever, enquanto causa de exclusão, o uso por parte de sócio de informação obtida de modo a prejudicar injustamente a sociedade ou outros sócios.

Ainda a amortização compulsiva de quota (vide arts. 233º, nº 1 e 234º, nº 1 CSC) poderá ser encarada como uma verdadeira exclusão25. Tal causa será sempre uma causa estatutária e não legal.

No art. 242º prevê-se os casos em que a exclusão de sócio opera por decisão judicial. Como bem reforça Coutinho de Abreu (2017, p. 394) trata-se de “causa legal genérica de exclusão de sócios”.

Enquanto que nos casos de exclusão com base legal ou estatutária a exclusão opera por deliberação (arts. 246º, nº 1, al. c) e 241º, nº 2, que manda aplicar o art. 234º), na exclusão com fundamento no art. 242º, nº 1 do CSC, o meio pelo qual esta se produz será a decisão judicial, carecendo de deliberação dos sócios ulterior e posterior (art. 242º, nº 1, 2 e 3), (Abreu, 2017, p. 397).

De acordo com o nº1 do art. 242º do CSC existe a possibilidade de exclusão, por decisão judicial, do sócio que, por meio de comportamento desleal ou gravemente perturbador do funcionamento da sociedade, lhe tenha causado ou possa vir a causar-lhe prejuízos

24 Tendemos a concordar com Brito Correia (1993, p. 468) acerca da possibilidade de aplicação analógica às sociedades em nome coletivo.

25 Vide neste sentido, acórdão do TRP de 13 de setembro de 2018 (proc. 5147/17.1T8OAZ.P2; relator: José Manuel de Araújo Barros) e Coutinho de Abreu (2017, pp. 396-397).

relevantes. Pressupõe-se como requisitos26: (i) o sócio ser autor de comportamento considerado como desleal e/ou gravemente perturbador do corrente funcionamento da sociedade27; (ii) e prejuízos relevantes na sociedade derivados de tal comportamento. Dentro dos trinta dias posteriores ao transito em julgado da sentença, a sociedade irá decidir, por deliberação, se amortiza a quota do sócio excluído (devendo ser respeitado o estatuído no art. 225º, nº 3, 4 e 5, 1ª parte, ex vi art. 242º, nº 5 CSC), se a adquire ou se a faz ser adquirida por sócio ou terceiro (art. 242º, nº 3 CSC). O sócio terá o usual direito a contrapartida de valor da sua quota, calculada com referência à data da proposição da ação e pago nos termos prescritos para a amortização de quotas (arts. 232º e ss.)28, salvo estipulação estatutária em sentido distinto (art. 242º, nº 4 CSC)29 .

5.3. Nas Sociedades Anónimas (e em Comandita por Ações)

Tal como sucede na exoneração de sócio, o Código não se preocupa em especial com a exclusão de sócios de sociedades anónimas, e em comandita por ações (ex vi art. 478º CSC). Não obstante, será possível elencar alguns casos de exclusão de sócios em sede destes tipos de sociedade. Em concordância com Brito Correia (1993, p. 467) será admissível incorporar a violação grave e culposa de obrigações sociais nos fundamentos de exclusão de acionista, carecendo sempre de avaliação casuística30. O Código vai mesmo neste sentido ao consagrar a perda de ações a favor da sociedade em caso de mora da realização das entradas (art. 285º, nº 4 e 5 CSC) e ao permitir a amortização de ações sem consentimento do seu titular (art. 347º, nº 1 CSC). Tendemos a prosseguir Coutinho de Abreu (2017, p. 401) e Carolinha Cunha (2011, pp. 588-589) e a discordar de Daniela Baptista (2012, pp. 418 e ss.) acerca da aplicação analógica do art. 242º, nº1 do CSC, próprio das sociedades por quotas. Diferente de Daniela Baptista (op. cit., p. 420) entendemos serem motivos suficientes para tal aplicação analógica, a afinidade entre os dois tipos de organização societária e o respeito pelos princípios de igualdade de tratamento e de favorecimento da unidade e coerência do ordenamento jurídico-societário português pelo princípio da conservação, da conservação da empresa, do abuso de direito e da boa fé. Assim, a extensão teleológica da cláusula geral do art. 242º, nº 1 levar-nos-á à possibilidade de exclusão de acionista que com comportamento desleal ou gravemente perturbador do funcionamento da sociedade lhe cause prejuízos relevantes.

26 Vide neste sentido o acórdão do TRP de 13 de setembro de 2018 (proc. 5147/17.1T8OAZ.P2; relator: José Manuel de Araújo Barros).

27 Coutinho de Abreu (2017, pp. 394-395) aponta como exemplos, entre outros: “a apropriação ilícita de bens sociais”; “a revelação de segredos da organização empresarial da sociedade”; “atos de concorrência desleal contra a sociedade”.

Vide acórdão do STJ de 5 de maio de 2015 (proc. 28/2001.E1.S1; relator: Gabriel Catarino) que trata de situação de apropriação ilícita de quantias pertencentes à sociedade.

28 A amortização de quotas para a exclusão de sócio segue as mesmas regras que nos casos exoneração.

29 O tema já foi tratado aquando do estudo da exoneração de sócio que se rege da mesma forma. Vide acórdão do TRP de 2 de julho de 2012 (proc. 1753/05.5TBESP.P1; relator: Maria José Simões).

30 Segundo o autor incorpora-se neste âmbito a utilização abusiva de informações (op. cit., p. 471).

Por último, o dito acerca da consagração estatutária de causas de exoneração de acionista valerá também no âmbito da exclusão.

5.4. Causas Estatutariamente Previsíveis

Os limites elencados ex ante, aquando da estipulação de causas de exoneração de sócio, devem ser considerados como vigentes também para as causas estatutárias de exclusão. Porém, importa reforçar o cuidado em não redigir cláusulas genéricas porquanto o sócio, enquanto parte tradicionalmente ainda mais desprotegida e sensível em sede de exclusão, deverá estar resguardado de cláusulas que lhe dificulte a perceção dos moldes da sua possível exclusão31. Isto é, impede-se a “exclusão imotivada, discricionária ou ad nutum” (Cunha, 2011, p. 108)32, tal como já exposto aquando da exoneração.

6. Conclusão

Chegados a esta fase, conseguimos constatar que o exercício do direito, do sócio, de exoneração, bem como o exercício do direito, da sociedade, de exclusão de sócio confrontam-se como principais oposições, por um lado, os termos genéricos e indeterminados (v.g., justa causa, comportamento desleal) e, por outro lado, o silêncio da lei (v.g., possibilidade de causas estatuárias de exoneração ou de exclusão de acionistas). Tais circunstâncias não devem ser vislumbradas como impedimentos ao correto e eficaz aplique dos institutos da exoneração e da exclusão, mas sim como seus impulsionadores. Se a opção do legislador fosse por critérios mais taxativos, o elenco das causas de exoneração e de exclusão seria certamente menor conduzindo assim à não consideração de situações que acabam por prejudicar quem se pretende proteger e, assim, os institutos nem conseguiriam ser efetivamente empregues.

Ao prever casos especiais e casos comuns com certas implicações consoante o tipo de sociedade e ao tornar cada vez mais restritivo tanto o direito de exoneração do sócio quanto o direito de exclusão de sócio da sociedade consoante mais capitalista e aberta a sociedade, o legislador considerou a avaliação casuística como a fórmula a aproveitar. Por fim, não podemos ficar pelo plano de a exoneração visar proteger o sócio e de a exclusão visar proteger a sociedade. O legislador vai nesse caminho também para consequentemente sustentar a vida societária e naturalmente o comércio em geral.

31 Neste sentido, Coutinho de Abreu (2017, pp. 392-393 e 395).

32 O acórdão do STJ de 24 de outubro de 2006 (proc.06B2866; relator: Ferreira Girão) vem exigir a especificação dos fatos que fundamentam a exclusão.

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Jurisprudência

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Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 05-05-2015, proc. 28/2001.E1.S1, relator

Gabriel Catarino, consultado em:

http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/8336832b1c1c82ac802 57e3d003c8915?OpenDocument

Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 02-07-2012, proc. 1753/05.5TBESP.P1, relator

Maria José Simões, consultado em:

http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/3dc17275e732c492802 57a700037d497?OpenDocument&Highlight=0,exonera%C3%A7%C3%A3o,dos,s%C3%B3cios

Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 13-09-2018, proc. 5147/17.1T8OAZ.P2, relator José Manuel de Araújo Barros, consultado em: http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/8e9adf8ddd5ff895802 58324004a2fb2?OpenDocument&Highlight=0,exclus%C3%A3o,dos,s%C3%B3cios.

Objeto possível da patente: estudo de caso no contexto europeu

Solicitador

O Objeto possível da patente: estudo de caso no contexto europeu

Lista de Abreviaturas e Siglas

ADPIC/TRIPS Acordo sobre os Aspetos dos Direitos de Propriedade Intelectual com o Comércio/Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights

al./als. alínea/alíneas

art./arts. artigo/artigos

CDADC Código de Direito de Autor e dos Direitos Conexos

cfr. confira coord. coordenação

CPE Convenção sobre a Patente Europeia, em 5/10/1973

CPI Código da Propriedade Industrial (na falte de indicação diversa de 2018

CRP Constituição da República Portuguesa

Dec-lei/DL Decreto Lei

ed. edição

EUA Estados Unidos da América

IEP/EPO Instituto Europeu de Patentes/European Patent Office

INPI Instituto Nacional da Propriedade Industrial

n.º/n.º(s) número/números

OMC Organização Mundial do Comércio

OMPI/WIPO Organização Mundial da Propriedade Intelectual/World Intellectual Property Organization

op. cit. opus citatum

p./pp. página/páginas

ss. seguintes

UE União Europeia

USC-35 United States Code. Title 35.Patents (Patent Act de 1952 codificado)

v.g. verbia grata

vol. volume

1. Introdução

As patentes não só conferem prestígio aos seus detentores mas principalmente privilégios comerciais que em certos casos podem transformar um normal agente económico em um poderosíssimo influenciador de mercado. Assim, regista-se uma busca fervorosa dos empreendedores na procura da próxima invenção vanguardista que lhes garanta a posição mais favorável possível no mercado em que atuam ou pretendam atuar, onde a perceção

mais exata do objeto possível de patente será essencial para ganhar tempo aos concorrentes. Relevam então as questões presentes na temática do objeto possível de patente, passando pelas limitações e requisitos legalmente exigidos e pela distinção de figuras próximas que podem gerar dúvidas sobre aquilo que realmente a patente pode ter como objeto para proteger.

Neste sentido, é importante encetar por uma contextualização do trajeto da figura da patente, enquanto proteção legal de invenções, não só a nível nacional, percebendo também o modo como a legislação nacional cuidou ao longo das últimas décadas do objeto de patente, mas também a nível europeu.

Está mais do que definido o objetivo da criação da patente europeia com efeito unitário, aliás é um elemento inerente à senda dos Estados Unidos da Europa. Como premissa temos a CPE de 5 de outubro 1973 e mais recentemente o Regulamento (UE) n.º 1257/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho de 17 de dezembro de 2012, a Decisão 2011/167/UE do Conselho de 10 de março de 2011 que autorizou a cooperação reforçada no domínio da criação de patente unitária e o Acordo relativo ao Tribunal Unificado de Patentes de 19 de fevereiro de 2013. Atualmente já se regista a uniformização entre os vários países europeus nos parâmetros da noção de invenção patenteável e dos requisitos do objeto. Deste jeito, fará todo o sentido a análise de patente de invenção registada nos diversos países membros da UE.

Será também elementar estabelecer algum paralelismo para com o regime previsto nos EUA não só enquanto exemplo padrão de Estado Federal que nos permitirá perceber como é abordada a matéria numa Federação de sucesso, mas também como tentativa de vislumbrar se a nossa diferente abordagem ao objeto possível da patente pode ser uma das razões que nos leva a registar menos patentes do que os EUA.

2. Apontamento Histórico

2.1. Contextualização histórica

A apetência humana pela invenção é lhe inerente e natural pelo que o trajeto histórico das invenções é inseparável da evolução do Homem. Diferente será a proteção legal das invenções1. Tal como frisa Couto Gonçalves (2019, p. 39), a invenção e a sua proteção são matérias diferentes. Distinto da relação intrínseca entre a história das invenções e a história da humanidade, a cronologia da proteção legal, sistemática e autónoma das invenções não se confunde com aquelas tendo-se iniciado apenas no século XVIII. Nos primórdios a capacidade inventiva humana estava ao serviço não só do bem-estar mas essencialmente da sobrevivência da espécie humana2. Com o passar dos séculos as invenções vêm colimar principalmente a comodidade, a eficiência e o sucesso económico.

1 “(…) a história das invenções não coincide com a do direito das patentes” (Gonçalves, 2019, p. 39).

2 Couto Gonçalves aponta como exemplo os instrumentos de pedra polida imprescindíveis para o exercício da agricultura e da pecuária (2019, p. 39).

A Parte Veneziana de 1474 é considerada como a primeira lei geral sobre invenções3 e a Statute of Monopolies, lei inglesa de 1624, é encarada como a legislação pioneira em conferir o direito de exclusão sobre invenção4. Não obstante, as bases do sistema atual de patentes fundam-se com as modificações impostas primeiro pela revolução francesa e depois pela revolução industrial, especialmente durante o século XIX (Gonçalves, 2019, p. 40).

Até à revolução francesa, o poder régio francês reconhecia simplesmente um privilégio real de exploração ao autor sobre a invenção. Com a lei de 7 de janeiro de 1791, que versava sobre as descobertas úteis e a propriedade dos autores, estabeleceu-se que “toda a descoberta ou nova invenção, em todos géneros de indústria, é propriedade do seu autor” (op. cit., 2019, p. 40), abolindo-se, assim, o sistema medieval dos privilégios em prol do direito de propriedade do indivíduo inventor.

Com a revolução industrial origina-se uma panóplia de temáticas e problemáticas, inexistentes até então, principalmente no campo da prospeção económica e empresarial. O nascimento da indústria, da mecanização e da produção em massa concebeu a nova necessidade de combater a concorrência. Será por via da inovação que o empresário conseguirá ultrapassar os concorrentes e, desta forma, a exigência e o profissionalismo nesta sede serão cada vez maiores.

“O empresário começa a investir em inovação e passa a exigir o retorno do seu investimento” (idem, 2019, p. 41). Assim, dá-se o crescimento da preocupação em investigação e desenvolvimento que obsequeia novos dilemas ao sistema de patentes. O sistema de proteção legal das invenções terá de ser eficaz, racional e equilibrado na sua função de corresponder tanto aos interesses de exclusividade dos autores (cada vez mais profissionais) das invenções (cada vez mais complexas e menos industriais), como também aos interesses da comunidade em impor ao autor a divulgação da invenção patenteada e em assegurar o livre acesso à mesma aquando do término do período de proteção (idem, 2019, p. 41).

Neste aspeto atente-se ao facto de o leque destes interesses da comunidade abrangerem diferentes preocupações, consoante a época, dispersando dos tradicionais interesses económicos e empresariais5

Às invenções mecânicas sucederam as invenções químicas, a partir dos anos setenta do século XX surgiram as invenções biotecnológicas e nanotecnológicas e mais recentemente as tecnologias de informação e comunicação, as denominadas TIC (Marques, 2015, p. 812).

3 Estabelecia privilégios aos inventores de novas artes e máquinas por um período de 10 anos, cfr. Couto Gonçalves (2019, p. 40). Cfr. também Sousa e Silva (2019, p.45).

4 Reconhecia, por um período de 14 anos, o direito de uso exclusivo ao verdadeiro e primeiro inventor, cfr. Couto Gonçalves (2019, p. 40).

5 Couto Gonçalves aponta como exemplos “o papel que o direito de patentes pode ter no âmbito de políticas de proteção dos direitos humanos, das ciências da saúde e da biologia, do desenvolvimento, do ambiente” (2019, p. 41).

2.2. Evolução da legislação

O primeiro Código da Propriedade Industrial português foi regulado pelo Decreto n.º 30679, publicado em 24 de agosto de 1940. Dedicou os seus arts. 4º e 5º aos requisitos e limites do objeto possível de patente. Os requisitos exigidos no CPI atual são, grosso modo, os mesmo que se encontravam plasmados no CPI de 1940 ainda que a redação no antigo CPI era muito menos clarividente, caracterizada por um vocabulário muito típico da época.

Seguiu-se o CPI de 1995 regulado no DL nº 16/95 publicado em 24 de janeiro de 1995. A matéria respeitante ao objeto de patente encontrava-se nos arts. 47º e ss., apresentando-se numa abordagem muito mais contemporânea e próxima à forma como o CPI atual trata a mesma matéria. Isto decorre da influência da CPE de 1973, tendo o seu início de vigência na ordem internacional em 7 de outubro de 1977 e em Portugal a 1 de janeiro de 1992, aprovada para ratificação pelo Presidente da República em 31 de julho de 1991 pelo Decreto n.º 52/91, que pretendeu funcionar como um texto supra-legal do Direito nacional de patentes para a futura harmonização das legislações nacionais dos países europeus6. Foi com esta convenção que nasceu o EPO.

Importante influência também teve o TRIPS que em 1994, e com a criação da OMC, veio implementar o reforço normativo formal e material de todos os direitos de propriedade intelectual, tendo nascido assim a WIPO. O Presidente da República ratificouo pelo Decreto n.º 82-B/94 de 27 de dezembro.

O DL n.º 36/2003 de 5 de março publicou o CPI de 2003, dedicando à temática do objeto de patente os seus arts. 51º e ss. O Código passa a incluir as invenções biotecnológicas transcrevendo várias das soluções adotadas na Diretiva 98/44/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 6 de julho de 1998.

O CPI atual foi publicado pelo DL n.º 110/2018, de 10 de dezembro, não tendo introduzido alterações significativas no que diz respeito ao tema em apreço.

3. Conceitos Importantes a Apurar

É essencial ter a perceção de que invenção e patente são figuras próximas mas díspares, com funções e finalidades distintas embora complementares. Para haver patente terá de existir prévia invenção devidamente habilitada para ser protegida.

Diferente de invenção será uma descoberta. Esta não reúne os requisitos necessários para ser objeto da mesma proteção legal de que é a invenção.

6 A matéria da invenção patenteável e dos requisitos do objeto possível de patente vem tratada nos arts. 52º e ss. da CPE.

3.1. Patente

No site https://justica.gov.pt/ aborda-se a patente como um contrato entre o Estado7 e quem faz o pedido de onde resulta um direito exclusivo de produzir e comercializar uma invenção, tendo como contrapartida a sua divulgação pública8. Neste sentido vai Pupo Correia (2009, p. 329) ao definir patente de invenção como “um título de propriedade industrial, que comprova a atribuição ao seu titular do respetivo direito exclusivo, tendo por objeto uma invenção”.

A Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI/WIPO) é ainda mais precisa a apresentar a noção de patente enquanto “direito exclusivo garantido a uma invenção, que é um produto ou um processo que proporciona, em geral, uma nova forma de fazer algo, ou oferece uma nova solução técnica para um problema”9 .

A exclusividade de exploração da invenção, pelo inventor (art. 57º CPI), tem a duração de 20 anos (vide arts. 102º, n.º 1 e 100º do CPI), sendo o âmbito da proteção conferida pela patente “determinado pelo conteúdo das reivindicações, servindo a descrição e os desenhos para as interpretar” (art 98º, n.º 1 do CPI). Neste sentido vai também o art. 62º, n.º 1 do CPI ao impor como elementos a acompanhar o requerimento de pedido de patente (i) as reivindicações do que é considerado novo e que caracteriza a invenção; (ii) a descrição do objeto da invenção; (iii) os desenhos necessários à perfeita compreensão da descrição; (iv) e um resumo da invenção.

Os direitos que advêm da exclusividade assegurada ao inventor são de natureza anticoncorrencial pelo que se cria uma situação de monopólio1011. Tal situação temporária só se justifica na medida em que o inventor enriqueça o domínio público com conhecimento novo e não óbvio, findo o prazo de exclusividade (Silva, 2019, p. 54).

Como categorias de patentes temos a patente de produto e a patente de processo12(cfr. art. 50º, n.º(s) 1, in principio, e 2 do CPI). Couto Gonçalves (2019, p. 47) explica que nos referimos nas primeiras a entidades físicas (v.g., aparelho, máquina, substância, composição) e nas segundas a atividades do mundo físico (v.g., processo propriamente dito, método, uso).

7 Através da entidade administrativa do Instituto Nacional da Propriedade (INPI) e, a nível europeu, do Instituto Europeu de Patentes (IEP/EPO).

8 Vide in https://justica.gov.pt/Registos/Propriedade-Industrial/Patente/O-que-e-uma-patente

9 Vide in https://www.wipo.int/patents/en/

10 Cfr. Terence Prime (2000, p. 21). “(…) a patente não lhe garante qualquer espécie de remuneração, servindo apenas para criar condições especialmente propícias (tendencialmente monopolísticas) para que essa remuneração seja obtida”, (Silva, 2019, p. 54).

11 Milton Friedman (2002, pp. 121-128) opera a distinção entre monopoly in industry, monopoly in labor e governmentally produced monopoly In casu, deparámo-nos com situação própria do monopólio na indústria.

12 Cfr. Muir et. al (1999, pp. 254-256) e Couto Gonçalves (2019, p. 47).

3.2. Invenção

O United States Code (Title 35, §100 (a)) define o termo invenção como se tratando de invenção ou descoberta. Já a legislação portuguesa não se preocupa com a definição da invenção enquanto objeto primordial da patente13 .

Do art. 51º do anterior Código da Propriedade Industrial (atualmente revogado) Pupo Correia (2009, p. 328) retira a definição de invenção como sendo “o resultado de uma atuação criativa do espírito humano, consistente em um novo produto, ou um novo processo ou meio técnico para obtenção de produtos”. O art. 50º do atual CPI vem substituir o artigo sem tornar insuscetível a aplicação da noção apresentada pelo autor, embora tenha havido ligeiras modificação no texto do artigo. Apesar da inexistência de definição legal, à noção da autoria de Pupo Correia (2009, p. 328) acrescenta-se ainda a possibilidade de colher dos arts. 51º, n.º 1, 54º e 55º do CPI “a necessidade de a invenção corresponder a um conhecimento aplicado e de natureza técnica” (Gonçalves, 2019, p. 44).

O conceito que vem sendo utilizado na União Europeia sustenta-se no duplo requisito técnico ou de tecnicidade. Isto é, a invenção tratar-se-á de uma solução técnica para um problema técnico (Souza, 2015, p. 889). Entenda-se que “in this context "problem" is used merely to indicate that the skilled person is to be considered as faced with some task, not that its solution need necessarily involve any great difficulty” (decisão T 0641/00, EPO, 26 de setembro de 2002)14 .

A este conceito tradicional de invenção-técnica (technological arts) é aditado o conceito de invenção-útil (useful arts)15, que estende o conceito a criações com caraterísticas não estritamente técnicas. Assim, a invenção, sendo resultado da intervenção humana, deverá ser útil (destinar-se à solução de determinado problema) e possuir caraterísticas/qualidades técnicas (as suas qualidades não serão unicamente estéticas)16 .

Para poder ser patenteada deverá ainda respeitar os requisitos previstos na legislação17 Como categorias surgem as invenções de produto, que traduzem a realidade física das patentes de produto, e as invenções de processo, que descrevem os moldes de desempenho da atividade a que correspondem as patentes de processo.

13 A CRP aborda o direito à invenção enquanto direito, liberdade e garantia pessoal (cfr. art. 42º, n.º2).

14 European Case Law Identifier: ECLI:EP:BA:2002:T064100.20020926.

15 Segundo Couto Gonçalves (2019, p. 45) tal situação decorre, por um lado, das complicações impostas pelo surgimento dos novos e crescentes produtos da biotecnologia e da informática e, por outro lado, da influência do conceito norteamericano de invenção fundamentado na novidade e utilidade (cfr. § 101 USC-35).

16 Cfr. neste sentido, Couto Gonçalves (2019, pp. 44-45), Marina Souza (2015, pp. 889-891), Remédio Marques (2007, p. 232-233).

17 Os art.50º, nº 1 e 54º do CPI estatuem como requisitos de patenteabilidade a invenção ser nova, implicar atividade inventiva e ser suscetível de aplicação industrial.

3.3. Descoberta

Na estabilização do efetivo objeto da patente é susceptível a dúvida entre os conceitos de invenção (objeto da patente por excelência) e descoberta. O art. 51º, n.º 1, alínea a) do CPI vem estatuir que as descobertas não constituem invenções, logo, em regra não serão objeto de patente18 .

As invenções poderão ser produtos de uma sequência de descobertas, mas apenas se, com base nas descobertas, for desenvolvido um processo para isolá-las e obtê-las dos seus contornos (Muir, Brandi-Dohrn, Gruber, 1999, p. 118)19. Por maioria de razão, também será possível vislumbrar as invenções como meios instrumentais na pesquisa de descobertas20 .

Couto Gonçalves (2019, p. 47) instrói que “a descoberta é um estado de conhecimento teórico da realidade”, não transformado nem interferido na realidade prática, distinto da invenção que provoca uma transformação técnica na realidade. Ainda de acordo com Nikolaus Thumm (2000, p. 74) a existência natural de determinada substância significa que o item poderá ser descoberto mas não inventado. Neste sentido, é percetível que as descobertas surtem do entendimento humano dos fenômenos naturais.

4. O Objeto de Patente

A patente tem a invenção como o seu objeto por excelência., logo, facilmente se conclui que tudo o que não seja considerado como invenção será insuscetível de proteção conferida pela patente. Mas a invenção tão-somente não é garantia de ser patenteável porquanto a lei intimar ainda agregado de outros predicados cumulativos a respeitar.

O legislador não só estabelece os casos em que será admitida a patenteabilidade, como também casos onde não é de todo conferida a patenteabilidade e ainda outros em que a constância de certas situações tornam-os objeto possível de patente21 .

4.1. Objeto possível e seus requisitos

O art. 50º, n.º 1 do CPI estatui que podem ser objeto de patente as invenções novas (vide art. 54º, n.º 1 CPI), implicando atividade inventiva (vide art. 54º, n.º 2 CPI), se forem suscetíveis de aplicação industrial (vide art. 54º, n.º 4 CPI), mesmo quando incidam sobre um produto composto de matéria biológica, ou que contenha matéria biológica, ou sobre um processo que permita produzir, tratar ou utilizar matéria biológica22. Deste artigo retira-se desde logo os quatro grandes requisitos do objeto de patente: (i) ser invenção;

18 Diferente do que ocorre no EUA (§ 100, USC-35).

19 Cfr. também neste sentido Marina Souza (2015, p. 893).

20 Cfr. Couto Gonçalves (2019, p. 48).

21 Nos EUA não há restrições legais ao objeto patenteável, sendo as limitações estabelecidas por via judicial (Gonçalves, 2019, p. 48).

22 No USC-35, § 101 lê-se: “Whoever invents or discovers any new and useful process, machine, manufacture, or composition of matter, or any new and useful improvement thereof, may obtain a patent therefor, subject to the conditions and requirements of this title”. Note-se que há referência a processo mas não a produto.

(ii) a novidade; (iii) a implicação de atividade inventiva (iv) a suscetibilidade de aplicabilidade industrial.2324

Atendendo ao primeiro requisito, ser invenção, o n.º 1 do art. 51º do CPI exceptua da possibilidade de ser objeto (i) as descobertas25, assim como as teorias científicas e os métodos matemáticos; (ii) os materiais ou as substâncias já existentes na natureza e as matérias nucleares; (iii) as criações estéticas; (iv) os projetos, os princípios e os métodos do exercício de atividades intelectuais em matéria de jogo ou no domínio das atividades económicas, assim como os programas de computadores, como tais, sem qualquer contributo técnico; (v) e as apresentações de informação. O legislador vai neste sentido não pela sua, muita ou pouca, importância mas por se tratarem de realidades abstratas ou intelectuais e sem carácter técnico (Silva, 2019, p. 49).

No entanto, o n.º 2 do mesmo artigo26 consagra que apenas será excluída a patenteabilidade desses casos quando o objeto para que é solicitada a patente se limite aos elementos nele mencionados. Então, já poderá ser patenteado por exemplo, e respetivamente, (i) a utilização da nova propriedade de uma descoberta para fins práticos, novos dispositivos semicondutores e respetivos processos de fabrico e máquina calculadora construída para funcionar com um novo método matemático; (ii) o processo para a preparação de substância já existente na natureza; (iii) o meio de alcançar efeito estético com particularidades de ordem técnica; (iv) um dispositivo concebido para jogar ou realizar um projeto; (v) o suporte de informação, o processo ou o dispositivo, que revelam características técnicas, destinados à apresentação de informação (Gonçalves, 2019, pp. 48-57).

A exclusão da patenteabilidade de invenções relacionadas com programas de computador ou que utilizem software gera alguma controvérsia. Há quem entenda que a lei os exclui por estes não revestirem caracter técnico27 e existe também a tese de estes estarem excluídos por apenas serem precisamente programas de computador28. Entendemos optar pela segunda interpretação pois, como ensina Couto Gonçalves (2019, p. 53), o programa de computar é em síntese técnico tanto no plano estrutural como no funcional e no finalístico. Desta forma será patenteável29 o programa que não seja considerado como tal, isto é, quando achar-se “ao serviço de uma invenção programável que realiza um conjunto de tarefas predefinidas dirigidas a fenómenos tangíveis e não apenas de informação” (Gonçalves, 2019, p. 54).

23 Cfr. Terence Prime (2000, pp. 183-189).

24 É resultado desde logo do art. 52º, n.º 1 da CPE. Diferente do que ocorre nos EUA onde a novidade (USC-35, § 102), a originalidade (USC-35, § 103) e a utilidade (USC-35, § 101) são as grandes preocupações.

25 Como já referido anteriormente, nos EUA as descobertas são consideradas invenções (USC-35, § 100 (a)).

26 O art. 51º transpõe os n.º(s) 2 e 3 do art. 52º da CPE.

27 Cfr. neste sentido, Pedro Sousa e Silva (2019, pp. 50 e ss.).

28 Cfr. neste sentido, Couto Gonçalves (2019, pp. 49 e ss.).

29 Nada impede que seja cumulativamente protegido pelos direitos de autor previsos no CDADC.

É possível obter patente de invenções, quer se trate de produtos ou processos, em todos os domínios da tecnologia, desde que essas invenções respeitem o que se estabelece no n.º 1 do art. 50º (cf. art. 50º, n.º 2 CPI). Poderá ainda ser objeto de patente os processos novos de obtenção de produtos, substâncias ou composições já conhecidos (art. 50º, n.º 3 CPI). Tal como já referido anteriormente, aos requisitos (i) invenção, (ii) novidade, (iii) atividade inventiva, (iv) e aplicabilidade industrial, o art. 52º, n.º 130 acrescenta a exigência de a exploração comercial do bem dever respeitar a lei, a ordem pública, a saúde pública e os bons costumes. Ainda a mesma norma assinala que tal classificação não decorrerá pelo simples facto de ser proibida por disposição legal ou regulamentar, sendo então mais relevante a exploração ser contrária à ordem pública ou aos bons costumes (Gonçalves, 2019, p. 57).

4.2. Casos insuscetíveis e casos especiais de patenteabilidade

Na senda do exigido no n.º 1 do art. 52º do CPI, o legislador elabora um elenco exemplificativo de inventos não patenteáveis, no n.º 2 do mesmo artigo. São insuscetíveis de serem objeto de patente: (i) os processos de clonagem de seres humanos; (ii) os processos de modificação da identidade genética germinal do ser humano; (iii) as utilizações de embriões humanos para fins industriais ou comerciais; (iv) os processos de modificação de identidade genética dos animais que lhes possam causar sofrimentos sem utilidade médica substancial para o homem ou para o animal, bem como os animais obtidos por esses processos.

O art. 52º no seu n.º 3 vem ainda excluir de objeto possível de patente: (i) o corpo humano, nos vários estádios da sua constituição e do seu desenvolvimento, bem como a simples descoberta de um dos seus elementos, incluindo a sequência parcial de um gene, sem prejuízo do disposto no art. 53º, n.º 1, al. c); (ii) as variedades vegetais ou as raças animais, assim como os processos essencialmente biológicos de obtenção de vegetais ou animais e os vegetais ou animais obtidos exclusivamente através desses processos; (iii) os métodos de tratamento cirúrgico ou terapêutico do corpo humano ou animal e os métodos de diagnóstico aplicados ao corpo humano ou animal, podendo ser patenteados os produtos, substâncias ou composições utilizadas em qualquer desses métodos.

O CPI dedica ainda o art. 53º à consagração de casos especiais de patenteabilidade. Serão possivelmente patenteados:

substância ou composição no estado da técnica para a utilização num método citado na al. c) do n.º 3 do art. 52º, com a condição de que essa utilização, para qualquer método aí referido, não esteja compreendida no estado da técnica;

30 Tal como previsto no art. 53º, al. a) da CPE.

substância ou composição referida na alínea anterior para outa qualquer utilização específica num método citado na al. c) do n.º 3 do art. 52º, desde que essa utilização não esteja compreendida no estado da técnica; invenção nova, que implique atividade inventiva e seja suscetível de aplicação industrial, que incida sobre qualquer elemento isolado do corpo humano ou produzido de outra forma por um processo técnico, incluindo a sequência ou a sequência parcial de um gene, ainda que a estrutura desse elemento seja idêntica à de um elemento natural, desde que observada expressamente e exposta corretamente no pedido de patente, a aplicação industrial de uma sequência ou de uma sequência parcial de um gene;

invenção que tenha por objeto vegetais ou animais, se a sua exequibilidade técnica não se limitar a uma determinada variedade vegetal ou raça animal, sem prejuízo da al. b) do n.º 3 do art. 52º;

matéria biológica, isolada do seu ambiente natural ou produzida com base num processo técnico, mesmo que preexista no estado natural; invenção que tenha por objeto um processo microbiológico ou outros processos técnicos, ou produtos obtidos mediante esses processos.

A forma como as limitações da patenteabilidade são encaradas vai sempre variar consoante o passar do tempo. Pense-se que as preocupações da sociedade variam de geração em geração, o que coage à contingência de que o que seja permitido hoje não o ser no futuro e vice-versa. Nesta linha de pensamento, sublinha-se a Biologia e as Ciências Médicas enquanto temáticas onde se regista complexas ressalvas e distinções. Atente-se a título de exemplo no caso “ONCO-MOUSE/HARVARD”31 .

O caso “ONCO-MOUSE/HARVARD” deu azo, no final da década de oitenta e início da década de noventa, a um acesso debate acerca da sua patenteabilidade. Pretendia-se patentear na Europa ratos transgénicos com tumores cancerígenos criados pela Universidade de Harvard para o estudo do cancro. O pedido foi efetuado no IEP/EPO em 1989 mas a patente só foi concedida em 1992 depois de ultrapassadas várias etapas. Mesmo após tal concessão, foram interpostas várias oposições tendo o processo chegado ao fim em 2004 (Decisão T 315/2003, EPO, de 6 de julho de 2004). O debate girava em torno da ponderação entre o sofrimento dos animais e a utilidade médica. Se na época o caso foi conturbado, o futuro para este tipo de casos não se afigura nada brando. Muito pelo contrário, com o estreitamento das relações sentimentais dos humanos para com os animais os debates poderão chegar a um ponto onde a linha orientadora da exclusão ou inclusão da patenteabilidade ficará muito menos intransigente e mais difusa.

31 Patente EP0169672A1, que se encontra expirada desde 31 de dezembro de 2007.

Neste sentido, são então as invenções biotecnológicas as que oferecem os maiores desafios32. A Convenção sobre Diversidade Biológica33, adotada em 5 de junho de 1992 no Rio de Janeiro, define o termo “biotecnologia” no art. 2º como “qualquer aplicação tecnológica que utilize sistemas biológicos, organismos vivos ou seus derivados para a criação ou modificação de produtos ou processos para utilização específica”. A biotecnologia veio trazer perspetivas e paradigmas que os inventos comuns até então não motivavam, colocando-se em causa princípios ético-jurídicos tais como a visão da vida animal enquanto instrumento para os propósitos humanos, ideia que poderá resultar desde logo da possibilidade de a vida animal ser objeto de invenção34 .

Por fim, importa ainda abordar os restantes números do art. 53º. No n.º 2 define-se processo essencialmente biológico de obtenção de vegetais ou de animais como qualquer processo que consista, integralmente, em fenómenos naturais, como o cruzamento ou a seleção. O processo microbiológico é delimitado pelo n.º 3 enquanto qualquer processo que utilize uma matéria microbiológica, que inclua uma intervenção sobre uma matéria microbiológica ou que produza uma matéria microbiológica. O n.º 4 do artigo aborda matéria biológica quanto se tratando de matéria que contenha informações genéticas e seja autorreplicável ou replicável num sistema biológico.

5. Laser e Inteligência Artificial Para Salmões Mais Saudáveis

Analisaremos a invenção denominada por Stingray da autoria do norueguês Esben Beck, registada sob a patente EP2531022, que se trata de um método e dispositivo de desparasitação de peixes35. Em síntese, a invenção foi concebida especialmente para o controlo de salmões criados em viveiros na Noruega cujos métodos tradicionais de eliminação dos seus parasitas típicos, piolhos de salmão (salmon lice / lepeophtheirus salmonis), eram ineficazes e dispendiosos tendo então sido crido um robot que mata os tais parasitas por via de disparos de laser controlados pela sua inteligência artificial36 Esta análise vai no sentido da indagação do modo cujos requisitos legais (da CPE, mas que são coadunáveis com os previstos no CPI português, tal como referido anteiormente) exigidos para o objeto possível de patente são respeitados in casu. Para isto, é

32 Constituem invenções biológicas patenteáveis: os processos microbiológicos ou outros processos técnicos, ou produtos obtidos mediante esses processos (art. 53º, n.º 1, al. f)); as que incidam sobre vegetais ou animais não reconduzíveis a variedades vegetais ou raças animais ou não obtidos através de processos exclusivamente biológicos (art. 53º, n.º 1, al. d)); os processos não essencialmente biológicos de obtenção de vegetais ou animais (art. 52º, n.º 3, al b); as invenções sobre animais manipulados geneticamente desde que representem uma utilidade médica substancial (art. 52º, n.º 2, al. d)); as que incidam sobre material biológico genérico isolado ou purificado do corpo humano (art. 53º, n.º 1, al. c)). Cfr. Couto Gonçalves (2019. p. 67).

33 Foi aprovada para ratificação por Portugal pelo Presidente da República por via do Decreto n.º 21/93 de 26 de maio.

34 Nikolaus Thumm (2000, pp. 78-79) acrescenta ainda a questão do sofrimento do animal.

35 A invenção foi finalista não galardoada do European Inventor Award 2019, https://www.epo.org/newsevents/press/releases/archive/2019/20190507f.html

36 Vide abstract in, https://worldwide.espacenet.com/publicationDetails/biblio?FT=D&date=20110922&DB=&locale=en_EP&CC=WO&NR= 2011115496A1&KC=A1&ND=7

determinante o estudo das reivindicações37, da descrição38 e dos desenhos39 que circunscrevem o âmbito da proteção conferida pela patente (cfr. art. 69º, n.º 1 da CPE e art. 98º, n.º 1 do CPI).

Em primeiro lugar, e visto não existirem dúvidas acerca da inobservância de alguma das limitações de patenteabilidade, procura-se entender se a criação incorpora no conceito de invenção relevante para a patenteabilidade. Conforme o já anteriormente explicado, releva que a criação concentre uma solução técnica para um problema técnico e que possua qualidades técnicas. O problema técnico trata-se de o impacto que estes parasitas proporcionam ao alimentarem-se do sangue e muco dos salmões levando-os não só ao crescimento demorado mas também muitas vezes à sua morte. A indústria do salmão norueguesa ascende aos 6.4 bilhões de euros sendo os salmon lice capazes de causar um prejuízo anual de 500 milhões de euros, com um custo anual total em tratamentos de 1,5 bilhões40. A invenção visa resolver tal problema por meio de uma intervenção mais eficiente e menos intervencionista do que as anteriores. Ainda em relação às qualidades técnicas, os tratamentos tradicionais envolvem químicos tóxicos ou operam por fortes correntes de água sendo ambos não só prejudiciais para a saúde dos peixes como requerem muitos recursos (v.g., tempo, mão de obra). Assim, com o emprego do Stingray não há contaminação das águas dos viveiros e o processo de desparasitação é muito mais rápido (o laser mata cada parasita em apenas 7 milissegundos).

Seguir-se-á a constatação dos requisitos da novidade, da implicação de atividade inventiva e da suscetibilidade de aplicação industrial. Uma invenção será nova se não fizer parte do estado da técnica, sendo este constituído por tudo o que foi tornado acessível ao público antes da data do depósito do pedido de patente, in casu europeia, por uma descrição escrita ou oral, utilização ou qualquer outro meio (cfr. art. 54º, n.º(s) 1 e 2 da CPE e arts. 54º, n.º 1 e 55º, n.º 1 do CPI). Para a invenção implicar atividade inventiva é necessário que para um especialista da matéria em causa esta não resulte de maneira evidente do estado da técnica (cfr. art. 56º da CPE e art. 54º, n.º 2 do CPI). A suscetibilidade industrial diz respeito à possibilidade de a invenção ser fabricada ou utilizada em qualquer género de indústria ou na agricultura (cfr. art. 57º da CPE e art. 54º, n.º 4 do CPI).

No Stingray é usado um sistema com câmeras estéreo, geradores poderosos de lasers e espelhos que, conectados com o software, se movimentam rapidamente para direcionar os

37 Vide in

https://worldwide.espacenet.com/publicationDetails/description?CC=EP&NR=2531022B1&KC=B1&FT=D&ND=6&date= 20160511&DB=&locale=en_EP

38 Vide in

https://worldwide.espacenet.com/publicationDetails/description?CC=WO&NR=2011115496A1&KC=A1&FT=D&ND=7&d ate=20110922&DB=&locale=en_EP

39 Vide in

https://worldwide.espacenet.com/publicationDetails/mosaics?CC=WO&NR=2011115496A1&KC=A1&FT=D&ND=7&date =20110922&DB=&locale=en_EP

40 Cfr. https://www.epo.org/news-events/events/european-inventor/finalists/2019/beck.html

lasers. São utilizados algoritmos próprios e inteligência artificial que reconhece a presença dos parasitas.

Com esta breve e simplista explicação é percetível a reunião pela invenção dos requisitos da novidade, da atividade técnica e da aplicação industrial. Nos dois primeiros, a circunstância de até então não existir uso similar de lasers na base de dados do EPO e o facto de esta invenção operar um tratamento muito diferente aos tradicionalmente aplicados leva a constatar a presença de tais condições de patenteabilidade. Por fim, não será difícil o uso do robot para outras indústrias, desde logo para outras espécies de peixe ou para a agricultura, pois, tendo sido feito primeiro o experimento fora de água, não é descabida a aplicação do equipamento e do método para, por exemplo, o controlo de certas pragas próprias de produtos agrícolas que sejam cultivados em estufas.

Para termos uma análise completa, é necessário precisar a categoria da patente que analisámos. O robot enquanto equipamento físico faz-nos estar perante uma patente de produto (art. 50, n.º 2 e n.º 1 do CPI) mas como também estamos perante um método, a patente é simultaneamente de processo. Constata-se que estamos perante tecnologia marinha e que poderemos estar na presença de um caso especial de patenteabilidade considerando que para perceber os efeitos do laser no peixe e no parasita foi necessário um processo microbiológico para tirar as devidas conclusões científicas (cfr. art. 54º, n.º 4 in fine da CPE e art. 53º, n.º 1, al. f) in fine do CPI), remetendo assim para a área da biotecnologia.

6. Conclusão

É de real valor uma prudente e eficiente instituição das regras respeitantes às invenções enquanto objeto de patente, pois, enquanto ponto inicial do sistema das patentes será à sua volta que todo o sistema é desenvolvido.

É de se concluir pela complexidade da matéria do objeto de patente que obriga à constante atenção do legislador. Nesta sede a CPE regista algumas lacunas, especialmente relativamente às invenções da área da biotecnologia. É verdade que a Diretiva 98/44/CE do Parlamento Europeu e do Conselho se dedica a tal matéria mas será indispensável que toda as questões endémicas do objeto de patente estejam reunidas num só diploma, o mais atualizado possível.

Por um lado, as matérias merecedoras de atenção dos inventores aquando da sua disposição de patentear invenção vão se alterando consoante o tempo passe e consoante as mudanças que se registam na sociedade. Por outro lado, a restante comunidade “não inventiva” vem tendo exigências diferentes de tempos em tempos. Tais contextos tornam que o objeto deva ser híbrido o suficiente para abarcar todas as imposições e estar sempre atual, o que obriga ao legislador estar em constante alerta quanto ao risco de desatualização e desenquadramento do previsto na lei. Neste sentido, a postura mais

abstrata adotada pelo regime dos EUA faz com que este seja um sistema mais bem precavido para este tipo de imposições.

Um conjunto de requisitos legais mais abstrato e encarregar os tribunais de mais poder no sentido de lhes garantir maior participação na decisão de conferir patente a determinada invenção, parece ser, salvo melhor opinião, o melhor mecanismo para o alcance de decisões mais acertadas e atualizadas dado o pendor de avaliação casuística proporcionado pelo mecanismo.

No presente, as principais preocupações prendem-se com as invenções oriundas de software e da biotecnologia mas, no futuro, serão certamente outros tipos de invenções a levantar controvérsias. Assim sendo, a opção de fixar na lei os requisitos de modo taxativo e conciso faz com que a mesma mais rapidamente tenha de ser alterada de modo a se atualizar, o que constitui não só um obstáculo à segurança jurídica mas também, e consequentemente, um desencorajamento ao crescimento dos registos de patentes.

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Jurisprudência

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Decisão T 315/2003, EPO, de 6 de julho de 2004, consultada em https://www.epo.org/.

Intervenção de terceiros no processo de execução

Catarina Brígida da Silva Augusto

Cristiano Coval Marques

Luana Alexandra Costa Silva

Micaela Sofia Silva Pimentel

Paula Liliana Moreira da Silva

Finalistas da Licenciatura em Direito da Universidade Lusófona - Centro Universitário do Porto

Intervenção de terceiros no processo de execução

Agradecimento

À Sr.ª Prof.ª Doutora Ana Isabel Sousa Magalhães Guerra, docente de Processo Executivo na Universidade Lusófona – Centro Universitário do Porto, desejamos manifestar especial agradecimento pelo desafio proposto.

Resumo

Um dos incidentes da instância previstos no Código de Processo Civil é o incidente de intervenção de terceiros. Os incidentes de intervenção de terceiros são meios processuais atravésdos quais se opera o chamamento de um terceiro, que originalmente não figurava na ação como parte, para nela vir assumir a posição de parte, principal ou acessória. O Código de Processo Civil elenca oito incidentes de intervenção de terceiros. No processo de execução, o incidente deintervenção de terceiros deve ser analisado face às circunstâncias do caso concreto.

Palavras-chave: incidentes da instância; incidente de intervenção de terceiros; processo de execução

Abstract

One of the instance incidents provided for in the Code of Civil Procedure is the incident of third-party intervention. Incidents of third-party intervention are procedural means through which a third party is summoned, who originally did not appear in the action as a party, to assume the role of main or accessory party. The Code of Civil Procedure lists eight incidents of third-party intervention. No enforcement process or third-party intervention incident should be analyzed in light of the circumstances of the specific case.

Keywords: instance incidents; third-party intervention incident; execution process

1. Introdução

No âmbito das relações jurídicas em geral, a relação jurídica adquire uma estrutura triangular que estabelece como sujeitos da relação jurídica as partes e o tribunal. Nesta estrutura triangular,caraterística da relação jurídica-processual, as partes encontram-se numa posição de infra-ordenação em relação ao tribunal. Todavia, a caracterização da instância não se esgota na sua estrutura subjetiva, visto que é também elemento definidor da relação jurídica processual o objeto sobre o qual ela incide. Efetivamente, o início da instância verifica-se com a propositura da ação, prevista pelo artigo 259.º, n.º 1 do Código de Processo Civil1 . Esta origina a relação jurídica-processual, consagrando assim o princípio da instância, que corresponde à necessidade de um impulso da parte que vem provocar a sequência da tramitação processual. Desta forma, o tribunal não tem como função se fazer substituir dos interessados na procura da tutela judicial. Inicialmente, a propositura da causa abarca apenas alguns sujeitos da instância, assim sendo, o réu acaba por não ter conhecimento da existência da pendência de uma causa contra si. O artigo 259.º, n.º 2 do CPC, estabelece que a eficácia da propositura da causa é conferida pela citaçãodo réu, tornando, assim, naturalmente eficaz o início da instância. Por sua vez, o artigo 260.º do Código de Processo Civil, estabelece que esta citação do réu tem também a faculdade de tornar eficiente o princípio da estabilidade da instância. Após citado o réu, deve permanecer a mesma instância quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir, salvo as exceções previstas na lei. Assim, até ao termo da causa, devem ficar permanentemente verificados no processo os elementos (objetivo e subjetivo) da instância. Este princípio de direito processual não é alvo da devida atenção e cuidado por parte do legislador, que acaba por transmitir uma certa segurança ecerteza jurídica, criando uma crença nas partes de um possível desenlace da causa.

Contudo, o legislador acaba por admitir que, devido a possíveis modificações (objetivas e subjetivas) da lei, a permanência dos elementos da instância acaba por perder a sua forca (artigo 260.º do CPC). Este princípio fica sem aplicação prática, devido à existência das muitas exceções que se sobrepõem à regra geral.

Um exemplo de modificação subjetiva da instância, isto é, uma modificação relativa às partes, será o incidente de intervenção de terceiros (o tema focal desta conversa). É o próprio Códigode Processo Civil que prevê a possibilidade da existência deste incidente no artigo 262º, alínea b) do CPC2. Para além disso, os artigos 311.º a 350.º do CPC consagram a intervenção de terceiros como incidente da instância em especial.

A noção do conceito de incidente da instância não é uniforme nem consensual. Entendese, portanto, que incidente da instância é o meio processual através do qual se opera a

1 Doravante CPC 2 Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, Processo 177/18.9T8OHP-A.C1

modificação dos elementos da instância, seja uma modificação do objeto, seja uma modificação dos sujeitos. Tal modificação pode ser direta ou indireta. Será direta quando dela resulta uma efetiva modificação dos sujeitos ou do objeto da instância (como sucede, nomeadamente, nos incidentes de intervenção de terceiros (311.º - 350.º do CPC) ou no incidente de liquidação (358.º - 361.º do CPC). Por outro lado, será indireta quando não se produz qualquer modificaçãoformal nos elementos da instância, que permanecem os mesmos, mas se introduz neles uma mudança quanto à sua substância (como sucede, nomeadamente, nos incidentes de impedimento, escusa e suspeição dos juízes (115.º129.º do CPC) ou no incidente de verificação do valor da causa (296.º - 310.º do CPC).

O incidente processual, trata-se de um conceito tributário, pois a sua relevância dogmática debruça-se essencialmente sobre a aplicação de normas relativas a aplicação das custas processuais. Este Incidente abrange todos os possíveis acontecimentos considerados anormais, ou seja, que impeçam o ritual processual legalmente previsto na tramitação da forma processual,e que possam, eventualmente, afetar o normal desenvolvimento da lide (artigo 7.º, n.º 8 do Regulamento das Custas Processuais).

Intervenção de terceiros no processo civil

Os incidentes de intervenção de terceiros constituem meios processuais que procedem ao chamamento de um terceiro, vindo este, agora, representar a posição de parte principal ou acessória, mas que inicialmente não figurava como parte na ação.

A alteração das partes na pendência ação, que acaba por alterar os elementos originais e essenciais da causa, tem como justificação uma perspetiva de economia processual, em que o aditamento de novas partes na ação torna facultativa, e até mesmo dispensável, a propositura de novas causas, que venha colocar dentro do menor número de ações, o maior número de litígios.

A estes institutos preside também uma ideia de aproveitamento de atos processuais, na medida em que o chamamento de novas partes em processos pendentes permite, como se verá adiante, aproveitar os atos processuais já praticados nesses processos (em especial, aqueles já praticados pelas partes originárias), o que significa um ganho de produtividade e eficiência judiciária não negligenciável. Para além disso, os incidentes de intervenção de terceiros dão, também, atuação ao princípio da prossecução de uma decisão de mérito (ou princípio pro actione). Assim é quando o motivo determinante do chamamento do terceiro é a sanação da preterição do litisconsórcio necessário, evitando-se uma decisão formal de absolvição da instância e assegurando-se ao tribunal as condições necessárias para avançar para o conhecimento da questão de fundo. Já no caso dos incidentes de oposição, como se verá infra, o fundamento prevalecente é o da preservação da utilidade da decisão judicial a proferir no processo,

assegurando-se, na medida do possível, que ela abarcará e vinculará todos os potenciais interessados na relação material controvertida.

Os incidentes de intervenção de terceiro podem classificar-se de acordo com o critério da iniciativa do chamamento e de acordo com um critério da qualidade da intervenção que o chamado vai ter na causa em que é admitido a intervir3 . Em conformidade com a iniciativa do chamamento podem-se classificar em:

Incidentes de intervenção provocada, quando a iniciativa do chamamento parte dealguma das partes originárias;

Incidentes de intervenção espontânea, quando a iniciativa do chamamento parte, espontaneamente, do próprio terceiro que pretende ser admitido como parte na causa;

Incidente de intervenção oficiosa, quando, como sucede com a intervenção acessória do Ministério Público, o chamamento do terceiro decorre diretamente da lei, não dependendo nem da iniciativa de qualquer das partes primitivas, nem da solicitação do próprio interveniente.

Conforme o critério da qualidade da intervenção podem-se classificar em:

Incidentes de intervenção principal, quando o terceiro é chamado a intervir na causa na qualidade de parte principal, do lado do autor ou do réu (ou, no caso do incidente de oposição espontânea, a sustentar um interesse próprio no confronto quer do autor, quer do réu);

Incidentes de intervenção acessória, quando o terceiro é chamado a intervir na causa na qualidade parte acessória, numa posição de auxiliar de alguma das partes principais e a ela subordinada.

Articulando as duas classificações, é possível identificar os oito incidentes de intervenção de terceiros tipificados na lei:

• Incidente de intervenção principal espontânea;

• Incidente de intervenção principal provocada;

• Incidente de intervenção acessória provocada;

• Incidente de assistência;

• Incidente de intervenção acessória do Ministério Público;

• Incidente de oposição espontânea;

• Incidente de oposição provocada;

• Incidente de oposição por embargos de terceiros

3 Gramaxo Rozeira, Gustavo, DIMENSÃO ESTÁTCA DA AÇÃO

No que diz respeito ao incidente de oposição por embargos de terceiros, é duvidoso que, neste caso, estejamos perante um verdadeiro incidente de intervenção de terceiros, na medida em queo terceiro não será admitido a intervir na causa como parte. Embora, efetivamente, procure virao processo tutelar um interesse próprio, distinto dos interesses prosseguidos na ação pelaspartes principais. Intervenção de terceiros no processo de execução

A admissibilidade dos incidentes de intervenção de terceiro, no âmbito da ação executiva deve ser analisada em face das circunstâncias do caso concreto, com vista a apurar se, nessascircunstâncias, estão ou não verificados os respetivos pressupostos legais; se a intervenção tem ou não a virtualidade de satisfazer um qualquer interesse legítimo e relevante; e se a intervençãoimplica ou não com a estrutura e a finalidade da ação executiva4 .

Portanto, apesar de os incidentes de intervenção de terceiros se encontraren estruturados em função da ação declarativa, não haverá justificação para se considerarem legalmente inadmissíveis no âmbito das ações executivas, pelo que a sua admissibilidade terá de ser analisada em face das circunstâncias do caso concreto5 .

O incidente de oposição por embargos de terceiros

O incidente de oposição por embargos de terceiro é o incidente através do qual um terceiro, que veja ofendida a sua posse, ou um qualquer outro direito de que seja titular sobre certa coisa (por penhora ou qualquer outro ato judicial de apreensão ou entrega de bens), pode vir ao processo fazer valer a posição jurídica subjetiva de que se arroga titular (342.º, n.º 1 do CPC). Em boa verdade, porém, não obstante a qualificação que o legislador lhe atribui, este incidente processual não parece configurar um verdadeiro caso de incidente da instância, na medida emque o opoente não assume na causa a posição de parte, esgotando-se a sua intervenção numa pretensão de afastamento da medida judicial lesiva da sua esfera jurídica.

Com a entrada em vigor das alterações ao Código de Processo Civil introduzidas pelo DL 329- A/95, de 12-12, os embargos de terceiro deixaram de ser tratados como processo especial, passando a ser considerados como incidente de instância, na modalidade de intervenção de terceiros e, de entre este, de oposição6 .

Citando Salvador Costa, “(…) A estrutura dos embargos de terceiro é essencialmente caracterizada, não tanto pela particularidade de se consubstanciarem numa ação declarativa que corre por apenso à ação ou ao procedimento de tipo executivo, com a especificidade de inserirem uma subfase introdutória de apreciação sumária da sua

4 Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Processo 3419/05.TBTVD-C.L1-2

5 Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, Processo 9467/15.1T8VNF-A.G1

6 Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Processo 5651/06-2

viabilidade, mas, sobretudo, por a pretensão do embargante se inserir num processo pendente entre outras partes e visar a efetivação de um direito incompatível com a subsistência dos efeitos de algum ato judicial de afetação ilegal de um direito patrimonial do embargante. Apesar de regulados em sede de incidentes da instância, configuram-se como uma verdadeira ação declarativa, autónoma eespecial, conexa com determinado procedimento de tipo executivo. Através deles, agora relativamente desvinculados da posse, pode o embargante efetivar ou defender, para além da posse, qualquer direito de conteúdo patrimonial ilegalmente afetado pela diligência judicial de tipo executivo”7 Analisando pormenorizadamente, embargos de terceiro é o mecanismo processual à disposição de um terceiro com a principal função de impugnar ou paralisar qualquer ato judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens, nomeadamente a penhora, quando seja suscetível de ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência queesse terceiro exerça sobre o bem penhorado. Quando penhora ou qualquer ato judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o perímetro da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado deduzir o mecanismo processual embargos de terceiro (artigo 342.º, n.º 1, do CPC.

A posição de terceiro, no âmbito deste mecanismo, é determinada em função da respetiva posição processual porque só é terceiro quem não deve ser considerado parte na causa em que foi ordenada a diligência judicial fazer direito.

Os embargos de terceiro são processados por apenso à causa em que haja sido ordenado o ato ofensivo do direito do embargante (artigo 344.º, do CPC).

O prazo para apresentação dos embargos de terceiro é de 30 dias no seu máximo, a contar da data da efetuação da penhora ou da data em que o embargante teve conhecimento da mesma (344.º, do CCPC). Caso o embargante tivesse tido conhecimento da ofensa após esse prazo, entende-se o momento do conhecimento do ato ofensivo da posse ou do direito do embargante “um facto pessoal e subjetivo”8 .

É possível afirmar-se que os embargos de terceiro são um incidente declarativo do processo executivo. Este último caracteriza-se por uma sequência de atos e formalidades destinados a promover as diligências necessárias à cobrança coerciva de um direito de crédito, sendo o responsável pela prática da maioria dos atos do processo executivo o agente de execução. Nas palavras de Salvador Costa, “Os embargos de terceiro são, pois, instrumentalizados através de petição inicial, a que é aplicável o regime previsto no artigo 467.°. Assim, deve o embargantedesignar o tribunal, o número do processo, o juízo e a secção, indicar a forma de processo, ordinário ou sumário, conforme os casos, expor os factos e as razões de direito

7 Acórdão da Relação do Porto, de 24.11.87, CJ, Ano XII, Tomo 5 8 dos Reis, Alberto, Processos Especiais, vol I - reimpressão

que servem de fundamento aos embargos, declarar o valor destes, e pode logo arrolar testemunhas e indicar outros meios de prova”, sendo “A causa de pedir dos embargos de terceiro é a factualidade integrante do direito invocado, seja a posse, seja a propriedade, seja algum outro direito incompatível com a finalidade da diligência judicial que se pretende impugnar, bem como a factualidade integrante daquela diligência” e “Assim, tem o embargante que articular, a título decausa de pedir, os factos donde derive o direito ou a situação invocada legalmente incompatíveiscom a finalidade do ato judicial em causa”9

O agente de execução é a figura central do processo executivo, estando a seu cargo a prática da grande maioria dos atos executivos, particularmente, a penhora de bens e/ou penhora de vencimentos do executado. Este é um trabalhador particular que exerce funções públicas, sendo escolhido pelo exequente ou nomeado pela secretaria de entre a lista oficial de agentes de execução.

Para ser possível recorrer ao processo executivo, o credor terá de estar munido de um título executivo, onde devem estar definidos, com precisão, todos os elementos essenciais da dívida, existindo três tipos de processo executivo:

• Processo executivo de pagamento da quantia certa;

• Processo executivo de entrega de coisa certa;

• Processo executivo de prestação de um facto.

Têm legitimidade para apresentar embargos de terceiro aqueles que reunirem os seguintes requisitos:

forem terceiros, entendendo-se como tal todos aqueles que não forem partes no processo executivo, ou seja, não forem nem exequentes nem executados; e, exercerem sobre os bens penhorados, móveis ou imóveis, posse ou outro direito incompatível com a penhora. São direitos incompatíveis com a penhora todos aqueles que forem suscetíveis de impedir a realização da função da penhora, que é proceder à transmissão forçada de um bem, para afetar o produto da respetiva venda à satisfação do direito de crédito do credor exequente.

Assim, têm legitimidade para apresentar embargos de terceiro, nomeadamente:

• os terceiros que tiverem a propriedade plena sobre o bem penhorado;

• os terceiros que exercerem sobre o bem penhorado posse em nome próprio;

• os terceiros que exercerem sobre o bem penhorado uma posse em nome alheio, como, porexemplo, o locatário; e

9 Acórdão da Relação do Porto, de 24.11.87, CJ, Ano XII, Tomo 5

• os terceiros que exercerem direitos reais menores de gozo sobre os bens penhorados, na medida em que esses direitos extinguir-se-ão com a penhora (usufruto, uso e habitação)

Conclusão

O princípio da estabilidade da instância, segundo o qual, citado o réu, a instância, em regra,deve manter-se quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir, é excecionado, na sua vertente subjetiva, pela intervenção de terceiros, um dos incidentes da instância (artigos 260.º e 262.º, alínea b, do CPC)).

No que diz respeito à oposição mediante embargos de terceiro (342.º - 350, do CPC), é o meio processual adequado para defender os direitos de quem for ofendido na sua posse ou qualquer direito por um ato de arresto, penhora ou outro ato judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens.

Os atos lesivos da posse ou do direito de que o terceiro seja titular são o arresto,a penhora ou qualquer outro ato judicialmente ordenado de apreensão ou de entrega de bem. Permitindo-se, desse modo, que os direitos atingidos ilegalmente por esses atos possam ser invocados pelo lesado no próprio processo em que a diligência ofensiva tevelugar, em vez de o obrigar à propositura de ações possessórias ou de reivindicação.

O processo executivo tem como principal função a cobrança de uma dívida.

Para que possa dar início a um processo executivo tem de ter um título executivo, isto é, um documento que a lei considere suficiente para demonstrar que uma dívida existe, havendo váriosexemplos tais como:

• as sentenças de tribunais;

• os requerimentos de injunção onde tenha sido colocada uma fórmula executória;

• os documentos autenticados (como por exemplo, um notário) em que o devedor reconhece que a dívida existe;

• os títulos de crédito (como por exemplo, um cheque);

• as atas de assembleias de condomínio.

Em suma, o título executivo é a peça fundamental na ação executiva, pelo que éa análise daquele, que determina toda a restante tramitação processual.É necessário aqui referir que, com a entrada em vigor da Lei nº 41/2013 de 26 de junho passou a ser permitido a cumulação de execuções.

Nos termos do artigo 710º do CPC, se o título executivo for uma sentença, passa a ser possível a cumulação de todos os pedidos que tenham sido julgados procedentes, o que

constitui uma exceção á regra, segundo a qual não é possível cumular execuções, que sigam fins diferentes.

Referências bibliográficas

Gramaxo Rozeira, Gustavo, DIMENSÃO ESTÁTCA DA AÇÃOdos Reis, Alberto, Processos Especiais, vol I – reimpressão

Referências jurisprudenciais

Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, Processo 177/18.9T8OHP-A.C1 Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Processo 3419/05.TBTVD-C.L1-2 Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, Processo 9467/15.1T8VNF-A.G1

Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Processo 5651/06-2 Acórdão da Relação do Porto, de 24.11.87, CJ, Ano XII, Tomo 5

A obrigação subjacente aos títulos de crédito e os seus requisitos no âmbito executivo

Bárbara Rodrigues Pinto

A obrigação subjacente aos títulos de crédito e os seus requisitos no âmbito executivo
do 4.º ano da licenciatura em Direito na Universidade Lusófona
Aluna
do Porto

Resumo:

Intitulado “A obrigação subjacente aos títulos de crédito e os seus requisitos no âmbito executivo” este artigo elucida alguns aspetos relativos aos títulos executivos em geral, mas focando essencialmente nos títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, previstos na alínea c) do nº1 do art. 703º CPC, bem como a sua obrigação subjacente.

Os únicos títulos de crédito aos quais é atribuída força executiva são: o Cheque; aLetra; e a Livrança e serão tratados individualmente. Estes valem por si só, ou seja, nãoé necessário alegar a relação por detrás deles, no entanto, quando estes estão imperfeitos,para terem força executiva, é essencial demonstrar a relação que lhes deu origem.

Palavras-chave:

Título Executivo; Título de Crédito; Mero Quirógrafo; Relação Jurídica Subjacente.

Abstract

Entitled "The underlying obligation of credit titles and their requirements in the executive scope", this article elucidates some aspects related to executive titles in general,but focusing essentially on the credit titles, even if they are mere chirographs, foreseen inarticle 703, no. 1, paragraph c) of the CPC, as well as their underlying obligation.

The only credit titles that are enforceable are: the Check, the Bill of Exchange, and the promissory note, and they will be dealt with individually. These are valid by themselves, that is, it is not necessary to allege the relationship behind them. However, when they are imperfect, in order to be enforceable, it is essential to demonstrate the relationship that gave them origin.

Keywords

Executive title; Credit title; Mere chirograph; Underlying legal relationship

Resumo:

Intitulado “A obrigação subjacente aos títulos de crédito e os seus requisitos no âmbito executivo” este artigo elucida alguns aspetos relativos aos títulos executivosem geral, mas focando essencialmente nos títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, previstos na alínea c) do nº1 do art. 703º CPC, bem como a sua obrigaçãosubjacente.

Os únicos títulos de crédito aos quais é atribuída força executiva são: o Cheque;aLetra; e a Livrança e serão tratados individualmente. Estes valem por si só, ou seja, nãoé necessário alegar a relação por detrás deles, no entanto, quando estes estão imperfeitos, para terem força executiva, é essencial demonstrar a relação que lhes deuorigem.

Palavras-chave:

Título Executivo; Título de Crédito; Mero Quirógrafo; Relação Jurídica Subjacente.

Abstract

Entitled "The underlying obligation of credit titles and their requirements in theexecutive scope", this article elucidates some aspects related to executive titles in general,but focusing essentially on the credit titles, even if they are mere chirographs,foreseen in article 703º, nº. 1, paragraph c) of the CPC, as well as their underlying obligation. The only credit titles that are enforceable are: the Check, the Bill of Exchange,and the promissory note, and they will be dealt with individually. These are valid by themselves, that is, it is not necessary to allege the relationship behind them. However,when they are imperfect, in order to be enforceable, it is essential to demonstrate the relationship that gave them origin.

Keywords

Executive title; Credit title; Mere chirograph; Underlying legal relationship

Introdução:

O processo executivo é uma forma de garantir o princípio de acesso aos tribunais, nos termos do art. 2º, nº1 do CPC fazendo-nos crer que um dos princípiossubjacentes à ação executiva é o princípio do acesso ao direito.

Todo o processo executivo tem de ter por base um título executivo236, cujo conteúdo tem de conter uma obrigação coerciva alegadamente não cumprida e que determina o fim e os limites da ação executiva, nos termos do art. 10º, nº6 do CPC. Além de o título executivo ser conditio sine qua non da ação executiva também vale por si só, não sendo necessário recorrer ao processo declarativo para comprovar a existência do direito.

O título executivo circunscreve os limites da execução pois o credor não pode pedir mais do que aquilo que consta no título executivo237 . Nesse sentido, “o título tem uma “função garantística”, na medida em que protege o executado quanto à possibilidade de ser demandado em sede executiva por uma quantia superior à que resulta do próprio título”238 . Será irrelevante tudo aquilo que o exequente alega no requerimento executivo,uma vez que a obrigação exequenda deve estar consubstanciada no próprio título executivo, por isso, o objeto da execução tem de corresponder ao objeto da situação prevista no título239 .

No art. 703º, nº1 do CPC é possível encontrar uma enumeração dos títulos executivos que podem fundamentar uma ação executiva. Este artigo obedece aoprincípio da tipicidade e taxatividade e, por isso, não permite às partes atribuírem forçaexecutiva a um documento que não esteja reconhecido pela lei como título executivo, ou o inverso. De entre as espécies de títulos executivos é possível encontrar a referênciaaos títulos de crédito, ainda que constituam meros quirógrafos240 .

Títulos de crédito:

No exercício da sua atividade comercial, os comerciantes medievais, viajavampor vários locais do mundo para “aprovisionarem mercadorias destinadas arevenda”241 e, havendo receio de que pudesse existir um saque havia a necessidade de criar forma de “trocar os vários tipos de moeda que circulavam”242 .

O título de crédito constitui um documento que tem por base uma relação cartular que incorpora direitos literais, autónomos e abstratos que assentam numa ordem ou promessa de pagamento que permite ao titular exercer esses direitos apresentando apenas o título executivo, sem a necessidade de alegar a relação jurídicasubjacente243 .

236 Art. 10º, nº5 do CPC

237 GONÇALVES, Marco Carvalho, Lições de Processo Executivo, 2022, p. 63

238 MONTESSANO, Luigi/ARIETA, Giovanni, Diritto processuale Civile, vol III, 3ª ed., p.10. Citado em GONÇALVES, Marco Carvalho, Lições de Processo Civil Executivo, 2022, p. 63.

239 FREITAS, José Lebre de/ALEXANDRE, Isabel, Código de processo civil anotado, vol. I, p. 55.

240 Art. 703º, alínea c) CPC.

241 ANTUNES, José A. Engrácia, Os títulos de crédito – Uma introdução, p. 51. Citado em: BIRRA, Helena Alexandra Marques & PASSOS, Márcia, Os títulos Executivos – Elenco do Art. 703º do CPC e a forma de processo aplicável, 2019, p.35. Dissertação no âmbito do Mestrado em Solicitadoria.

242 FERREIRA, Juliana De Oliveira Carvalho Martins, Títulos de Crédito: Conhecendo a Teoria Geral, p. 1.

243 GONÇALVES, Marco Carvalho, Lições de Processo Civil Executivo, 2022, pp. 94 e 95

Os títulos de crédito são os únicos documentos negociais particulares244 cuja exequibilidade não foi eliminada com a reforma do CPC em 2013. Especificamente, osúnicos documentos particulares a ter força executiva são: a Letra de Câmbio, a Livrança e o Cheque. A força executiva que lhes é atribuída relaciona-se com a necessidade de garantir a segurança do tráfego jurídico e de se favorecer a utilização dostítulos de crédito como meios de pagamento no domínio das transações comerciais245 . Para constituírem títulos de crédito é necessário o cumprimento de certos requisitos previstos em legislação especial, nomeadamente na Lei Uniforme dos Cheques246 (LUC) e na Lei Uniforme das Letras e Livranças247 (LULL).

Letra de Câmbio

Este título consiste numa ordem dada por alguém a uma certa pessoa para que pague uma certa quantia a um terceiro sujeito, à ordem do sujeito que emite a ordem. A relação que suscita a emissão desta letra envolve 3 sujeitos: O sacador, que emite aletra;o sacado, que aceita a letra; e o tomador, aquele a favor de quem a letra deve ser paga248. Assim, um sacador emite uma ordem de pagamento ao sacado para que pague ao tomador. Este tomador tem 3 opções: pode optar por ficar com a letra e cobrá-la na data em que se vence; pode endossá-la a um terceiro para cumprir uma determinadaobrigação pecuniária tenha com terceiro; ou pode descontá-la imediatamente junto de uma instituição bancária249 .

Ainda que na maioria das vezes a relação cambiária seja de natureza trilateral, poderá, em alguns casos, assumir natureza bilateral250 e nesse contexto haverá uma coincidência entre a pessoa do sacador e do tomador.

Quanto aos requisitos formais, o art. 1º da LULL prevê certos requisitos cujo não cumprimento implica que a letra não produza efeitos, Nomeadamente, a existência da palavra “letra” no próprio texto do título251; o mandato para pagar uma determinada quantia; o nome do sacado; a época do pagamento252; a indicação do lugar onde o pagamento deve ser feito253; o nome dotomador; indicação da data e lugar

244 Com exceção dos documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva – art. 703º, nº1, al. d) CPC

245 SASSANO, Francesca, Manuale Pratico dell’Esecuzione Mobiliare e Immobiliare, p. 30. Cfr, no mesmo sentido, CORDEIRO, António Menezes, Tratado de Direito Civil Português, I – parte geral, tomo I, 3ª ed., Almedina, Coimbra, 2011, p. 471. Citados em: GONÇALVES, Marco Carvalho, Lições de Processo Civil Executivo, 2022, p. 95

246 Estabelecida pela Convenção de Genebra em 19 de março de 1931, ratificada em Portugal pelo Decretonº 23.721, de 29 de março de 1934. Lei nº28/82 de 15 de novembro (diploma legal que regula a Organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional. - Repete a publicação, inserindo, agora, a referenda ministerial).

247 Lei Uniforme Relativa às Letras e Livranças – estabelecida pela Convenção de Genebra em 7 de junhode 1930, aprovada em Portugal pelo DL nº 23 721, de 29 de março de 1934, ratificada pela Carta de Confirmação e Ratificação, no suplemento do “Diário do Governo” nº144, de 21 de junho de 1934

248 GONÇALVES, Marco Carvalho, Lições de Processo Civil Executivo, 2022, p. 96. Exemplo: A fornecea B determinadas mercadorias que B se dispõe a pagar no prazo de 6 meses. Para o efeito, B entrega a A uma letra de câmbio, dando a C uma ordem para que este pague a A a quantia titulada por essa letra.

249 BIRRA, Helena Alexandra Marques & PASSOS, Márcia, Os títulos Executivos – Elenco do Art. 703º do CPC e a forma de processo aplicável, 2019, p. 40

250 GONÇALVES, Marco Correia, Lições de Processo Civil Executivo, 2022, p. 97. Exemplo: A fornece determinadas mercadorias a B e para pagamento deste fornecimento, A emite uma letra de câmbio a B, dando ordem para que quando se vença a obrigação, B pague o preço devido por esse fornecimento.

251 ANTUNES, José A. Engrácia, Os Títulos de Crédito – Uma Introdução, p. 58 – visa assegurar a certezae segurança jurídicas. Citado em: BIRRA, Helena Alexandra Marques & PASSOS, Márcia, Os títulos Executivos – Elenco do Art. 703º do CPC e a forma de processo aplicável, 2019, p. 40.

252 Art. 33º e ss da LULL

253 Art. 4º da LULL

onde a letra é passada; e assinatura do sacador.

Livrança

A livrança é o título de crédito pelo qual o devedor (subscritor) promete “pagar uma determinada quantia pecuniária a uma outra pessoa ou à ordem dela”254 . Segundo Marco Carvalho Gonçalves, diferente do que acontece com a letra e o cheque, a livrançanão envolve uma ordem dada a alguém a favor de um terceiro, mas sim diretamente umapromessa de pagamento.

Por exemplo, A deve a B a quantia de 10 000€. A pode entregar uma livrança aB,através da qual promete pagar-lhe essa quantia na data acordada entre as partes, empregando a seguinte fórmula “Por esta livrança, pagarei a Vª Exª ou à sua ordem …”255 A livrança envolve apenas duas pessoas, sendo o credor designado de “tomador”ou “beneficiário” e o devedor por “subscritor”.

Os requisitos formais das livranças, previstos na LULL, têm de ser cumpridos para que ela seja válida256. Nomeadamente: a palavra “livrança” tem de estar inserida no texto do título e expressa na língua em que foi redigido o título; a promessa pura e simples de pagar uma determinada quantia; a época do pagamento; indicação do lugaronde se deve fazer o pagamento; o nome da pessoa a quem ou à ordem de quem se efetua o pagamento; a indicação da data e lugar onde se passou a livrança; e ainda a assinatura do subscritor257 . São aplicáveis às livranças as disposições relativas às letras, com as necessárias adaptações258 .

Cheque

O cheque enquanto meio de pagamento consiste numa ordem dada por uma pessoa(sacador) a um banco (sacado) para pagar determinada quantia ao sacador. No entanto, o titular da contatem de ter provisão no momento em que põe a circular chequessobre essa mesma conta de forma a que o banco possa cumprir a ordem de pagamentoprevista naquele título de crédito.

Por exemplo, A deve a B 10 000€ e para cumprir a sua obrigação, A entrega a B um cheque através do qual dá ao banco C uma ordem para que este pague a quantiadevida a B. A tem de assegurar que a quantia de 10 000€ se encontra disponível porquesó assim será possível que o banco cumpra a ordem que lhe foi dada259 .

O art. 1º da LUC prevê vários elementos que têm de estar preenchidos para queocheque possa

254 GONÇALVES, Marco Correia, Lições de Processo Civil Executivo, 2022, p. 105

255 GONÇALVES, Marco Correia, Lições de Processo Civil Executivo, 2022, p. 105

256 Artigos 75º a 78º da LULL

257 GONÇALVES, Marco Correia, Lições de Processo Civil Executivo, 2022, p. 105

258 Artigo 77º da LULL

259 GONÇALVES, Marco Correia, Lições de Processo Civil Executivo, 2022, p. 109

produzir efeitos. Nomeadamente, a palavra “cheque” tem de constar dopróprio título; tem de estar previsto o mandato de pagar uma quantia; o nome de quemdeve pagar o cheque; o lugar onde deve ser efetuado o pagamento; a indicação da datae do lugar da emissão do cheque; e ainda a assinatura de quem passa o cheque.. No entanto, a falta de algum dos requisitos pode ser suprida até ao momento do pagamento260 .

Para que o cheque possa valer enquanto título de crédito, a LUC prevê que o cheque deve ser apresentado a pagamento no prazo de 8 dias a contar da data da sua emissão261. Além deste requisito, se existirem processos executivos contra o sacador, endossantes ou outros coobrigados, estes prescrevem passados 6 meses após o termo do prazo de apresentação, segundo o art. 25º e art. 27º da LUC262 .

Segundo Marco Carvalho Gonçalves, o art. 5ºda LUC, prevê a legitimidade ativa que varia consoante esteja previstaacláusula “àordem” ou “não à ordem” pois,nocasodeestarprevista a primeiracláusula, vai ser permitido ao beneficiário transmitir o cheque através de endosso, contrariamente, caso esteja prevista a segunda cláusula apenas vai permitir ao beneficiário transmitir o cheque através de umacessão ordinária, nos termos do art. 14ºda LUC263 . Quanto à legitimidade passiva, irá vigorar a regra da solidariedade, para com o portador do cheque, de todas as pessoas obrigadas em virtude desse mesmo documento264 . Se o cheque for apresentado a pagamento e a conta não tiver a quantia devida, o cheque será devolvido por falta de provisão. Mesmo que se trate de um cheque pré- datado, nada impede que seja apresentado antes da data estipulada pois “o cheque é umtítulo pagável à vista, prevalecendo assim sempre a data da apresentação sobre a data da emissão”265, mas neste caso, se vier devolvido por falta de provisão não constituiráum título executivo porque o valor devido só teria de estar disponível na data previstano cheque. Em certos casos o cheque assume uma função de garantia de cumprimento de uma determinada obrigação e “se o executado pretender colocar em causa a força executiva de um cheque com função garantística tem de alegar essa função e ainda quea relação que se pretende garantir com esse título não se extinguiu nem foi modificada266

Título de Crédito enquanto mero quirógrafo

Para valer enquanto título de crédito perfeito é necessário que este não se encontre prescrito267 e que tenha sido apresentado em tempo certo268 .

260 Art. 2º da LUC

261 O prazo começa a contar no primeiro dia seguinte ao indicado no cheque como data de emissão (art.29ºe 56º LUC)

262 BIRRA, Helena Alexandra Marques & PASSOS, Márcia, Os títulos Executivos – Elenco do Art. 703º do CPC e a forma de processo aplicável, 2019, p. 43.

263 BIRRA, Helena Alexandra Marques & PASSOS, Márcia, Os títulos Executivos – Elenco do Art. 703º o CPC e a forma de processo aplicável, 2019, p. 43.

264 Art. 44º da LUC

265 ANTUNES, José A. Engrácia, Os Títulos de Crédito – Uma introdução, p.119. Citado em: GONÇALVES, Marco Carvalho, Lições de Processo Civil Executivo, 2022, p. 112.

266 GONÇALVES, Marco Carvalho, Lições de Processo Civil Executivo, 2022, p. 113.

267 LOPES-CARDOSO, Eurico, Manual da Ação Executiva, pp. 57 e 58. Citado em: GONÇALVES, Marco Carvalho, Lições de Processo Civil Executivo, 2022, p. 113.

268 O cheque tem de ser apresentado a pagamento no prazo de 8 dias após a data da sua emissão, nos termosdo art. 29º da LUC.

Analisando o que Marco Carvalho Gonçalves nos diz, na vigência do CPC anterior269 a doutrina e a jurisprudência dividiam-se quanto à exequibilidade de um título de crédito que não respeitasse as formalidades devidas ou que se encontrasse prescrito. Uma determinada corrente doutrinária270 defendia que não valia como título executivo, ao passo que uma outra parte da doutrina e da jurisprudência271 sustentava que o título de crédito continuava a valer enquanto título executivo, mesmo prescrito ou sem formalidades legais, mas enquanto mero quirógrafo da obrigação e desde que no requerimento executivo, ou no próprio título, constasse a relação jurídica subjacente àsua emissão. O novo CPC272 pôs termo à divergência doutrinária e jurisprudencial estabelecendo efetivamente que esses títulos têm força executiva, ainda que meros quirógrafos273 39. Neste caso o título de crédito é reconhecido como um documento particular não autenticado, independentemente da data em que foi assinado, desde que os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo. No entanto, quando o título de crédito esteja prescrito e se baseie num negóciojurídico cujo contrato que lhe deu origem é nulo por vício de forma, não poderá valer como título executivo, sendo esta posição apoiada pelo acórdão do Tribunal da Relação do Porto, processo nº 4568/13.3TBMAI-A.P1274 .

Quando a execução se fundar num título de crédito tem de ser sempre apresentado o original, o que antes não acontecia, pois, o anterior art. 810º, nº 6 permitiaque se enviasse uma cópia. Atualmente, o envio de uma cópia do título não leva à recusa do requerimento executivo pela secretaria, no entanto, nos termos do art. 724º, nº 5 do CPC, se houver notificação do juiz para que seja enviado o título original é estabelecido um prazo de 10 dias para isso, caso contrário, pode extinguir-se a execução.

Preenchimento abusivo

Coloca-se ainda a questão de saber se é possível que um título de crédito emitidoem branco ou cujo preenchimento tenha sido abusivo constitui ou não um título de crédito. Neste contexto, Ferrer Correia275 refere que quem emite um título em branco pode atribuir à pessoa a quem o entrega o direito de preencher esse título como entender, mas respeitando certos

269 DL n.º 329‐A/95, de 12 de dezembro

270 CUNHA, Paulo Olavo, Cheque e Convenção de Cheque, pp. 242 a 247. Citado em GONÇALVES, Marco Carvalho, Lições de Processo Civil Executivo, 2022, p. 115.

271 Ac. STJ, de 04.05.2017, proc. nº 440/13.5TBVLN-A.G1.S1 – “II – Os cheques, como meros quirógrafos, constituem títulos executivos, nos termos do art. 46.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil/1961, ainda que sem identificação do beneficiário, desde que o exequente seja também credor do executado na relação jurídica subjacente ou causal à emissão dos cheques”.

272 Lei nº 41/2013, de 26 de junho

273 Ac. TRP, de 02.12.2021, proc. Nº 3767/20.6T8MAI-A.P1 – “I - A letra que se encontre prescrita perde a natureza cambiária, para passar a constituir mero documento particular, quirógrafo da dívida causal ou relação substantiva que está na base da sua emissão, constituindo meio próprio para o reconhecimento dessa dívida pré-existente.

II - De acordo com o disposto no art.º 703º, nº. 1, al. c) do CPC, a letra prescrita pode, enquanto quirógrafo, constituir título executivo contra os avalistas do aceitante, desde que os factos constitutivos da relação subjacente, não constando da própria letra, sejam alegados no requerimento executivo”.

274 Ac. TRP, de 25.01.2016, proc. nº 4568/13.3TBMAI-A.P1 – “Um cheque que se encontre privado da sua eficácia cambiária, por prescrição da obrigação cartular, e que titule um contrato de mútuo, nulo por vício de forma, não pode servir como título executivo”.

275 CORREIA, A. Ferrer, Lições de Direito Comercial, p. 484. Citado em GONÇALVES, Marco Carvalho, Lições de Processo Civil Executivo, 2022, p. 121

termos porque ninguém subscreve um documento embranco para que a pessoa a quem o transmite faça dele o uso que entender.

O preenchimento do título emitido em branco depende do cumprimento de um pacto de preenchimento. Este pacto é um documento no qual as partes do negócio cambiário definem os termos ou as condições a que o título deve obedecer no seu preenchimento, nomeadamente, condições relativas ao montante, à data de vencimentoou ao lugar de pagamento desse título. Este acordo não está sujeito a forma e pode serexpresso ou tácito276 . Quando o preenchimento do título não coincida com essas convenções que as partes estabeleceram entre si277 43 considera-se que o preenchimentoé abusivo. Isto acontece quando é definida uma data de vencimento diferente da que tinha sido acordada entre as partes, ou uma quantia superior à definida no pacto de preenchimento.

Se o executado demonstrar a existência de um pacto de preenchimento e que otítulo de crédito foi preenchido de forma abusiva então este não terá força executiva. No entanto, se no título executivo for previsto um valor superior ao montante efetivamente em dívida esse preenchimento abusivo originará apenas aextinçãoparcialda execução na quantia em excesso e valerá como título executivo.

Conclusão

O título de crédito, seja Cheque, Letra ou Livrança, enquanto título executivo irá titular uma obrigação e quando se encontra perfeito descola da relação jurídica subjacente e vale pelo que lá consta sem ser necessário referir a razão da sua criação. Mas, estando prescrito, com rasuras ou sem provisão, pode mesmo assim ter força executiva com a condição de que na causa de pedir se fundamente e explique a relaçãojurídica que esteve na origem do título. Do ponto de vista do executado, a relação jurídica subjacente, quando indicada no requerimento executivo vale como forma de defesa pois é através dessa relação queé possível perceber se, por exemplo, houve algum tipo de coação para emissão do cheque, coisa que não é possível através da relação cartular. Por esse motivo, éimportante que haja um certo interesse da parte do executado em que essa relação sejaalegada.

Já do ponto de vista do exequente, se este apresenta a pagamento um cheque, por exemplo, e o mesmo é devolvido por falta de provisão, interessa-lhe alegar a relação jurídica subjacente de forma a demonstrar o que deu origem à emissão do cheque etodos os factos essenciais

276 Definição dada pelo ac. TRC, de 14.09.2020, processo nº 913/19.6T8CVL-A.C1 – “2. Por sua vez, o pacto de preenchimento pode definir-se como o acto pelo qual as partes no negócio cambiário ajustam os termos ou as condições em que deve vir a ser posteriormente completado o título de crédito, definindo a obrigação cambiária, ou seja, as condições relativas ao seu conteúdo, nomeadamente no que concerne ao montante, à data do seu vencimento ou ao lugar de pagamento. 3- Acordo de preenchimento que não está sujeito a forma, podendo ser expresso (por escrito ou acordo verbal) ou tácito.”

277 Ac. TRC, de 14.12.2020, processo nº 4161/18.4T8PBL-A.C1 – “1. Quem emite ou subscreve uma livrança em branco atribui àquele a quem a entrega o direito de a preencher em determinados termos que, por regra, são definidos através de um acordo ou contrato - o pacto de preenchimento - pelo qual se definem os termos em que a obrigação cartular irá ficar definida, no que respeita, designadamente, à fixação do seu montante e data de vencimento (…) 4. Se não há violação do pacto de preenchimento, numa livrança em branco, o prazo de prescrição de três anos previsto no art.º 70º (ex vi do art.º 77º), da LULL, conta-se a partir da data de vencimento que venha a ser aposta no título pelo respectivo portador, coincida ou não com o incumprimento do contrato (vencimento da obrigação) subjacente.”

que comprovam o seu direito. Assim, mesmo que o título de crédito seja um mero quirógrafo, é admissívelque possa ser utilizado pelo exequente para intentar uma ação executiva.

Referências Bibliográficas:

BIRRA, Helena Alexandra Marques & PASSOS, Márcia, Os Títulos Executivos – Elenco do Art. 703º do CPC e a Forma do Processo Aplicável, 2019. [Dissertação de mestrado para obtenção do grau de mestre]. Escola Superior de Tecnologia e Gestão do Politécnico do Porto.

Disponível em: DM_HelenaBirra_MSOL_2019.pdf (ipp.pt)

GONÇALVES, Marco Carvalho, Lições de Processo Civil Executivo, 2022. Edições Almedina SA.

FERREIRA, Juliana De Oliveira Carvalho Martins, Títulos de Crédito: Conhecendo a Teoria Geral, p. 1.

Disponível em: TEORIA GERAL DOS TÍTULOS DE CRÉDITO (newtonpaiva.br)

FREITAS, José Lebre de/ALEXANDRE, Isabel, Código de processo civil anotado, vol. I, p. 55.

Jurisprudência

- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 04 de maio de.2017, processo nº 440/13.5TBVLN-A.G1.S1

Disponível em: Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (dgsi.pt)

- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 02 de dezembro de 2021, processo nº 3767/20.6T8MAI-A.P1

Disponível em: Acórdão do Tribunal da Relação do Porto (dgsi.pt)

- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 25 de janeiro de 2016, processo nº 4568/13.3TBMAI-A.P1

Disponível em: Acórdão do Tribunal da Relação do Porto (dgsi.pt)

- Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 14 de dezembro de 2020, processo nº 4161/18.4T8PBL-A.C1.

Disponível em: Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra (dgsi.pt)

- Acórdão do Tribunal da Reação de Coimbra, de 14 de setembro de.2020, processo nº 913/19.6T8CVL-A.C1.

Disponível em: Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra (dgsi.pt)

Legislação

- Lei nº 43/2013, de 26 de junho (Código de Processo Civil).

- DL nº 329/A, de 12 de dezembro (Código de Processo Civil de 1995)

- Lei uniforme relativa aos Cheques – estabelecida pela Convenção de Genebra em 19 de março de 1931, ratificada em Portugal pelo Decreto nº 23.721, de 29 de março de 1934. Lei nº28/82 de 15 de novembro (diploma legal que regula a Organização, funcionamentoe processo do Tribunal Constitucional. - Repete a publicação, inserindo, agora, a referenda ministerial) (Lei Uniforme Relativa aos Cheques)

- Lei Uniforme Relativa às Letras e Livranças – estabelecida pela Convenção de Genebra em 7 de junho de 1930, aprovada em Portugal pelo DL nº 23 721, de 29 de Março de 1934, ratificada pela Carta de Confirmação e Ratificação, no suplemento do “Diário do Governo” nº144, de 21 de Junho de 1934

O Estado de direito democrático: da revolução de 1974 à CRP

Marco Rodrigues

Mestrando em Solicitadora ESTG-IPP

Doutorando em Ciências Jurídico-Criminais na UPT

Patrícia Anjos Azevedo

Doutora em Direito pela FDUP

Professora Adjunta ESTG-IPP

O Estado de direito democrático: da revolução de 1974 à CRP

Resumo: A história constitucional portuguesa encontra-se marcada por diversas circunstâncias condizentes com os circunstancialismos políticos, sociais e económicos de cada época. O documento legislativo mais relevante de cada ordenamento jurídico moderno é, efetivamente, a respetiva constituição, podendo afirmar-se o seguinte: “Considerada “lei fundamental” ou, mais enfaticamente, “lei das leis”, a Constituição (…), tem funcionado como instrumento de luta política e teórica em torno dos sistemas de poder.”1 . Ora, e neste contexto, este nosso contributo trata, ainda que resumidamente, a relação entre a revolução de abril de 1974 e a Constituição da República Portuguesa de 1976. Prosseguimos o nosso contributo com uma análise da originalidade e das principais características da Constituição da República Portuguesa de 1976, o seu conteúdo e fontes, as revisões constitucionais, as revisões constitucionais e o sistema de governo, o Estado de Direito democrático, os direitos fundamentais dos cidadãos e os órgãos de soberania.

A revolução de 1974 e a CRP

A Constituição da República Portuguesa de 1976 surge como Constituição pósrevolucionária, numa reação do Direito incitada pela revolução do 25 de abril de 1974. A ideia de Direito revelou-se nas proclamações e atos do Movimento das Forças Armadas, com consagração formal no Programa que declarou destituídos os titulares dos órgãos políticos do regime deposto2. A legitimidade revolucionária teve também por referência a Declaração Universal dos Direitos do Homem3 .

“Das proclamações difundidas no próprio dia 25 de Abril de 1974 e do Programa do Movimento das Forças Armadas logo constou o anúncio público da convocação, no prazo de doze meses, de uma Assembleia Nacional Constituinte, eleita por sufrágio universal, directo e secreto, segundo lei eleitoral a elaborar pelo futuro Governo Provisório (…) e se estabeleceu que «logo que eleitos pela Nação a Assembleia Legislativa e o novo Presidente da República… a acção das Forças Armadas será restringida à sua missão específica de defesa da soberania nacional»”4 .

O Programa do Movimento das Forças Armadas previa algumas regras fundamentais aplicáveis ao processo de elaboração de uma nova Constituição, a saber: o prazo máximo de doze meses para a eleição da Assembleia Constituinte; o sufrágio universal, direto e secreto; a plenitude do poder constituinte a esta Assembleia; a não previsão de sujeição da Constituição a qualquer forma de sanção ou referendo; a brevidade do período de

1ALVES, Jorge Fernando, A lei das leis Notas sobre o contexto de produção da Constituição de 1911, In Revista da Faculdade de Letras – História – Porto, III Série, vol. 7, 2006, p. 169. Consultado em 13/10/2022, disponível em: https://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/3410.pdf

2 MIRANDA, Jorge, Manual de Direito Constitucional: Tomo I – Preliminares; o Estado e os sistemas constitucionais, 7.ª ed., revista e atualizada, Coimbra Editora, 2003, p.331.

3 MIRANDA, Jorge, Manual de Direito Constitucional: Tomo I – Preliminares; o Estado e os sistemas constitucionais, 7.ª ed., revista e atualizada, Coimbra Editora, 2003, p. 332.

4 IDEM, p. 332.

interregno constitucional; o caráter transitório ou provisório das instituições políticas que exercessem o poder5 .

Sem prescindir, convém referir que ocorreram três circunstâncias particulares que marcaram o processo até à Constituição, a saber: (i) a turbulência dos dois anos entre a revolução e a Constituição, condicionada pela descompressão política e social após a queda de um regime autoritário que vigorou durante 48 anos, a descolonização dos territórios africanos e a luta pelo poder; (ii) os desvios verificados relativamente ao Programa do Movimento das Forças Armadas; (iii) o pluralismo partidário que se manifestou na Assembleia Constituinte, sem que houvesse maioria de qualquer partido ou coligação, sendo que cada um dos seis partidos apresentou o seu próprio projeto de Constituição6 .

Daqui resultou uma Constituição que reagiu ao ambiente político e social; a limitação da ação da Assembleia Constituinte; o confronto ideológico; bem como a índole de compromisso do texto votado, com base no princípio democrático7 .

A Constituição da República Portuguesa de 1976 representa o Direito Constitucional português atual, tratando-se da mais vasta e mais complexa de todas as Constituições portuguesas. Apresenta como grandes fundamentos o da democracia representativa e o da liberdade política. Tendo em vista o regime autoritário que caiu com a revolução de abril de 1974, trata-se de uma Constituição fortemente vocacionada para a defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos e dos trabalhadores e para a divisão do poder. Procurou-se enriquecer o conteúdo da democracia, designadamente mediante manifestações efetivas do princípio da igualdade, da participação e intervenção e da socialização8 .

A Constituição de 1976 trata-se de uma Constituição-garantia e, simultaneamente, de uma Constituição prospetiva9. É também uma Constituição compromissória, traduzindo um compromisso histórico10 .

“(…) em face da sistematização adoptada em 1976, torna-se incontestável a opção pelo pensamento constitucionalista, liberal e democrático, em contraste com as concepções marxistas: os direitos fundamentais vêm antes da organização económica. O elemento subjectivo afirma-se na parte I: a pessoa perante a sociedade e o Estado, o primado dos direitos da pessoa na ordem constitucional. O elemento objectivo consta das partes II, III e IV. O Estado como comunidade aparece nas partes I e II, o Estado como poder nas partes III e IV. As normas das três primeiras partes são normas substantivas, sejam de fundo, de competência ou de forma. As da parte IV são normas adjectivas ou de garantia”11 .

5 IDEM, p. 338.

6 IDEM, pp. 333-334.

7 MIRANDA, Jorge, Manual de Direito Constitucional: Tomo I – Preliminares; o Estado e os sistemas constitucionais, 7.ª ed., revista e atualizada, Coimbra Editora, 2003, pp. 334-335.

8 IDEM, p. 353.

9 IDEM, p. 353.

10 IDEM, p. 354.

11 IDEM, pp. 354-355.

“A aprovação da Constituição da República Portuguesa em 2 de abril de 1976, juntamente com a revisão da plataforma de entendimento entre o Movimento das Forças Armadas (mfa) e os partidos políticos (Pacto mfa-Partidos), de 26 de fevereiro desse ano – que se revelaria indispensável para a própria Constituição – representam o princípio do fim do processo de transição para a democracia em Portugal.”12 .

A originalidade e as principais características da CRP de 1976

Conteúdo e fontes

A natureza compromissória da Constituição da República Portuguesa de 1976 encontra-se bem assente nas suas quatro partes13 .

Mais concretamente, o tratamento dos direitos fundamentais repousa na consagração de direitos, liberdades e garantias e de direitos económicos, sociais e culturais, num Estado Social de Direito. Quanto à organização económica, esta processase em três setores distintos – público, cooperativo e privado –, numa equilibrada concorrência entre as empresas, verificando-se uma tensão entre o reconhecimento da iniciativa privada e o desenvolvimento da propriedade social14. Já no tocante à organização política, temos o seguinte: a unidade do Estado e a autonomia político-administrativa dos Açores e da Madeira e do poder local; a democracia representativa e a democracia participativa; a eleição do Presidente da República e da Assembleia da República por sufrágio universal e direto; a relação entre o Presidente da República, a Assembleia da República, o Governo e o Conselho da Revolução, este último enquanto órgão radicado na legitimidade revolucionária15 .

A fiscalização da constitucionalidade incumbe aos Tribunais, ao Conselho da Revolução e, ainda, à Comissão Constitucional. Compreende-se aqui a fiscalização da constitucionalidade por ação, omissão, abstrata, concreta, preventiva, sucessiva, concentrada e difusa16

No tocante às fontes, observe-se que os direitos, liberdades e garantias e a democracia política resultaram da convergência PS-PPD-CDS, o socialismo resultou da convergência PS-PPD-PCP, os aspetos coletivistas resultaram da convergência PS-PCP, o sentido personalista adveio da convergência PPD-CDS; os direitos sociais, a autogestão e a planificação democrática resultam das ideias do PS; a valorização do Parlamento, as autonomias regional e local e as garantias jurisdicionais devem-se sobretudo ao PPD; as nacionalizações, a reforma agrária e as organizações populares de base surgem do PCP;

12 FONSECA, Ana Mónica, A Constituição de 1976 – A visão de Bona. In Relações Internacionais, março de 2016, p. 11. Consultado em 13/10/2022: https://repositorio.iscte-iul.pt/bitstream/10071/11971/3/RI49_02AMFonseca.pdf

13 MIRANDA, Jorge, Manual de Direito Constitucional: Tomo I – Preliminares; o Estado e os sistemas constitucionais, 7.ª ed., revista e atualizada, Coimbra Editora, 2003, p. 356.

14 IDEM, p.356.

15 IDEM, p. 356.

16 IDEM, p. 357.

finalmente, a Declaração Universal dos Direitos do Homem e a iniciativa privada foram mais realçadas pelo CDS17 .

Acresce a influência da Constituição de Bona no tocante às regras sobre direitos, liberdades e garantias, sendo as Constituições italiana e alemã, ambas do pós-guerra e do pós-fascismo, as que mais se aproximam da portuguesa, no que concerne a essas matérias. Sem prescindir, refira-se que, no tocante aos direitos económicos, sociais e culturais, a Constituição de 1976 apresenta semelhanças com as Constituições marxistas-leninistas. A nacionalização das empresas nos setores básicos da economia advém das Constituições dos Estados Sociais de Direito. A questão da institucionalização dos partidos surge também nas constituições italiana, alemã federal e francesa. O desenho da figura e das competências do Presidente da República e das relações entre Governo e Parlamento surge dos países de parlamentarismo e de semipresidencialismo. A sobrevivência do Conselho da Revolução justifica-se pelo papel das Forças Armadas na Turquia nos primeiros anos em que vigorou a Constituição de 1961. A Comissão Constitucional encontra congéneres nos tribunais constitucionais e no Conselho Constitucional francês. O Provedor de Justiça equivale ao Ombudsman da Suécia. A autonomia regional surge por influência italiana. As organizações populares de base correspondem às organizações sociais de leste e às instituições sociais de base da Revolução peruana de 1968. A fiscalização da constitucionalidade por omissão encontra a sua base na Constituição jugoslava18

“Não pouco abundantes (…) são os traços das Constituições portuguesas anteriores quer perduram. A Constituição de 1976 restaura a legalidade democrática, reafirma a democracia política (liberal, pluralista), reabre o Parlamento, mas não repõe a ordem liberal individualista; o seu intervencionismo social e económico, mesmo se de rumo oposto, só pode cotejar-se com o da Constituição de 1933; e não faltam os institutos que ou vindos de longe ou vindos de 1933 são recebidos ou consagrados.”19 .

Aqui chegados, refiram-se alguns dos traços originais (ou, pelo menos, relativamente originais) da Constituição de 1976: (i) o dualismo dos direitos liberdades e garantias e dos direitos económicos, sociais e culturais; (ii) a constitucionalização de novos direitos e a vinculação das entidades privadas aos direitos, liberdades e garantias; (iii) a receção formal da Declaração Universal dos Direitos do Homem; (iv) a perspetiva universalista, equiparando-se os direitos de portugueses e estrangeiros; (v) o apelo à participação dos cidadãos, associações e grupos nos procedimentos legislativos e administrativos; (vi) o tratamento das eleições, partidos, grupos parlamentares e direito de oposição; (vii) a preocupação com os mecanismos de controlo recíproco entre órgãos e a consagração constitucional da figura do Provedor de Justiça; (viii) o

17 MIRANDA, Jorge, Manual de Direito Constitucional: Tomo I – Preliminares; o Estado e os sistemas constitucionais, 7.ª ed., revista e atualizada, Coimbra Editora, 2003, p. 357.

18 IDEM, pp. 357-358.

19 MIRANDA, Jorge, Manual de Direito Constitucional: Tomo I – Preliminares; o Estado e os sistemas constitucionais, 7.ª ed., revista e atualizada, Coimbra Editora, 2003, p. 358.

semipresidencialismo, o sistema de governo parlamentar e o sistema diretorial; (ix) no sistema de fiscalização da constitucionalidade, com competência de decisão para todos os tribunais, recurso para a Comissão Constitucional e, mais tarde, para o Tribunal Constitucional20 .

A Constituição da República portuguesa de 1976 refere o Estado democrático e, após a revisão de 1982, o Estado de Direito democrático, baseado na soberania popular. A soberania é una e indivisível e reside no povo, sendo que o poder político pertence ao povo. A Assembleia da República trata-se da assembleia representativa de todos os cidadãos portugueses, sendo que os deputados representam todo o país e não apenas os círculos eleitorais pelos quais são eleitos21 .

Relativamente à fiscalização da constitucionalidade, refira-se que a Constituição de 1976 apresenta uma preocupação vincada no sentido da garantia constitucional. Contempla-se a fiscalização preventiva da constitucionalidade, a fiscalização abstrata a posteriori ou sucessiva, bem como a fiscalização da constitucionalidade por omissão22 .

“A Constituição de 1976 é a mais vasta e a mais complexa de todas as Constituições portuguesas – por receber os efeitos do denso e heterogéneo processo político do tempo da sua formação, por aglutinar contributos de partidos e forças sociais em luta, (…), é uma Constituição muito preocupada com os direitos fundamentais dos cidadãos e dos trabalhadores e com a divisão do poder.”23

As revisões constitucionais

A 1.ª revisão constitucional aconteceu em 1982. A propósito do que marcou esta 1.ª revisão constitucional, destaque-se o seguinte: a redução das expressões ideológicas vindas de 1975; o aperfeiçoamento dos direitos fundamentais; a extinção do Conselho da Revolução; o repensar das relações entre o Presidente da República, a Assembleia da República e o Governo, bem como a criação do Tribunal Constitucional24. Esta revisão constitucional incidiu principalmente na organização do poder político e na fiscalização da constitucionalidade dos atos jurídico-públicos, visando a democratização do sistema político português25 .

Por seu turno, a 2.ª revisão constitucional, ocorrida em 1989, centrou-se fundamentalmente na organização económica26. Esta revisão constitucional reformulou

20 IDEM, p. 359.

21 IDEM, p. 362.

22 MIRANDA, Jorge, Manual de Direito Constitucional: Tomo I – Preliminares; o Estado e os sistemas constitucionais, 7.ª ed., revista e atualizada, Coimbra Editora, 2003, p. 374.

23 MIRANDA, Jorge, A Constituição e a Democracia portuguesa, 2019, p. 2. Consultado em 13/10/2022, disponível em: https://a25abril.pt/wp-content/uploads/2019/01/01.01-Jorge-Miranda.pdf

24 MIRANDA, Jorge, Manual de Direito Constitucional: Tomo I – Preliminares; o Estado e os sistemas constitucionais, 7.ª ed., revista e atualizada, Coimbra Editora, 2003, p. 383.

25 GOUVEIA, Jorge Bacelar, Manual de Direito Constitucional: I – Teoria do Direito Constitucional, 6.ª ed., Almedina, 2016, p. 656.

26 MIRANDA, Jorge, Manual de Direito Constitucional: Tomo I – Preliminares; o Estado e os sistemas constitucionais, 7.ª ed., revista e atualizada, Coimbra Editora, 2003, p. 389.

ainda alguns instrumentos respeitantes à organização do poder político, designadamente aperfeiçoando o seu funcionamento27. Como pontos fundamentais da 2.ª revisão constitucional, destaquem-se os seguintes: supressão das menções ideológicas que ainda restavam; aprofundamento de alguns direitos fundamentais, sobretudo dos direitos dos administrados; supressão da regra da irreversibilidade das nacionalizações posteriores ao 25 de abril de 1974; reformulação parcial do sistema de atos legislativos; introdução do referendo político; modificação de algumas das alíneas da disposição referente aos limites materiais da revisão constitucional28

Já a 3.ª revisão constitucional, que aconteceu em 1992, foi potenciada pela assinatura do Tratado de Maastricht, já que se verificava a desconformidade de algumas das suas cláusulas com algumas das normas constitucionais29. Esta 3.ª revisão constitucional consistiu fundamentalmente no seguinte: inclusão, na norma relativa às relações internacionais, da possibilidade de convencionar o exercício em comum dos poderes necessários à construção da União Europeia; possibilidade de atribuição, em condições de reciprocidade, de capacidade eleitoral a cidadãos de países membros da União Europeia residentes em Portugal na eleição de deputados por Portugal ao Parlamento Europeu; possibilidade de adoção de uma eventual moeda única europeia; previsão da competência do Parlamento para acompanhar e apreciar a participação de Portugal no processo de União Europeia; distinção entre revisão constitucional ordinária e revisão constitucional extraordinária (a primeira, tratando-se daquela que pode ser efetuada ao fim de cinco ou mais anos após a última revisão ordinária; e a segunda podendo realizar-se a todo o tempo, com o voto favorável de quatro quintos dos deputados em efetividade de funções)30 .

Por seu turno, e relativamente à revisão constitucional de 1997 (4.ª revisão constitucional), esta não possui um tema principal nem assenta em qualquer dilema ou polémica que tivesse dividido a doutrina ou a opinião pública31. Esta revisão trouxe fundamentalmente o seguinte: desenvolvimento da matéria dos direitos fundamentais e das correspetivas incumbências do Estado; acentuação do papel da iniciativa privada dentro da organização económica; desconstitucionalização de diversos aspetos do sistema político; reforço de mecanismos de participação dos cidadãos; desenvolvimento dos poderes das regiões autónomas e das autarquias locais; aumento dos poderes formais da Assembleia da República e aumento do número de matérias que exigem maioria qualificada de aprovação; reforço do papel do Tribunal Constitucional32 .

27 GOUVEIA, Jorge Bacelar, Manual de Direito Constitucional: I – Teoria do Direito Constitucional, 6.ª ed., Almedina, 2016, p 659.

28 MIRANDA, Jorge, Manual de Direito Constitucional: Tomo I – Preliminares; o Estado e os sistemas constitucionais, 7.ª ed., revista e atualizada, Coimbra Editora, 2003, p. 389.

29 IDEM, p. 395.

30 IDEM, pp. 396-397.

31 GOUVEIA, Jorge Bacelar, Manual de Direito Constitucional: I – Teoria do Direito Constitucional, 6.ª ed., Almedina, 2016, p. 662.

32 MIRANDA, Jorge, Manual de Direito Constitucional: Tomo I – Preliminares; o Estado e os sistemas constitucionais, 7.ª ed., revista e atualizada, Coimbra Editora, 2003, p. 400.

Por sua vez, podemos referir que a 5.ª revisão constitucional, ocorrida em 2001, foi a primeira revisão extraordinária da Constituição da República Portuguesa de 197633. Foi desencadeada pelo tratado constitutivo do Tribunal Penal Internacional, assinado em Roma, em 1998. Nesta 5.ª revisão constitucional pretendeu-se fundamentalmente permitir a ratificação desse tratado34. Além disso, definiu-se o estatuto dos sindicatos de polícia35 . Assistiu-se também à diminuição de algumas garantias dos cidadãos consideradas excessivas, designadamente suavizando-se a garantia da inviolabilidade do domicílio36 . Inclui-se, no texto constitucional, o português como língua oficial, o que simbolicamente foi importante, mas redundante, pois já existia norma constitucional costumeira nesse sentido37 .

Mais tarde, a revisão constitucional de 2004 (6.ª revisão constitucional) diz respeito a quatro tópicos fundamentais, a saber: o aumento dos poderes das regiões autónomas; a posição do Direito português com o Direito da União Europeia; a regulação efetiva da comunicação social; a limitação republicana do exercício dos cargos públicos38 .

Já a revisão constitucional de 2005 (7.ª revisão constitucional) foi aprovada no âmbito da assunção de poderes extraordinários de revisão por parte da Assembleia da República39. O único motivo que justificou esta revisão constitucional foi o de permitir a ratificação do Tratado Constitucional Europeu (v.g., Constituição Europeia)40 .

As revisões constitucionais e os sistemas de Governo

O sistema de Governo de 1976 foi moldado com a preocupação de evitar os vícios do parlamentarismo de assembleia previsto na Constituição de 1911 e da concentração de poder prevista na Constituição de 1933, observando-se o caráter pós-revolucionário da Constituição de 197641 .

Neste contexto, na Constituição de 1976 optou-se por um sistema semipresidencial, desde logo, e nomeadamente, pela necessidade de compensar ou equilibrar o Conselho da Revolução; bem como pela dificuldade de instauração de um governo parlamentar após 50 anos sem Parlamento democrático42. O Presidente da República passou a ser eleito por sufrágio direto e universal43 .

33 GOUVEIA, Jorge Bacelar, Manual de Direito Constitucional: I – Teoria do Direito Constitucional, 6.ª ed., Almedina, 2016, p. 678.

34 MIRANDA, Jorge, Manual de Direito Constitucional: Tomo I – Preliminares; o Estado e os sistemas constitucionais, 7.ª ed., revista e atualizada, Coimbra Editora, 2003, p. 410.

35 GOUVEIA, Jorge Bacelar, Manual de Direito Constitucional: I – Teoria do Direito Constitucional, 6.ª ed., Almedina, 2016, p. 679.

36 IDEM, p. 679.

37 IDEM, p. 679.

38 IDEM, p. 685.

39 IDEM, pp. 688-689.

40 IDEM, p. 689.

41 MIRANDA, Jorge, Manual de Direito Constitucional: Tomo I – Preliminares; o Estado e os sistemas constitucionais, 7.ª ed., revista e atualizada, Coimbra Editora, 2003, p. 366.

42 IDEM, p. 366.

43 IDEM, p. 367.

A Constituição passou a contemplar quatro órgãos de soberania (na versão originária, Presidente da República, Conselho da Revolução, Assembleia da República e Governo; hoje, Presidente da República, Assembleia da República, Governo e Tribunais); atribuíram-se ao Presidente da República os poderes de promulgação e de veto e os poderes de declaração do estado de sítio e do estado de emergência; sujeitaram-se a referenda ministerial apenas certos atos do Presidente da República; atribuiu-se à Assembleia da República o primado da função legislativa; configurou-se o Governo enquanto órgão de condução da política geral do país; consagrou-se a eleição direta do Presidente da República, em data nunca coincidente com a da eleição dos deputados; configurou-se a eleição dos deputados à Assembleia da República segundo o sistema proporcional e o método de Hondt, com candidaturas reservadas aos partidos; sujeitou-se a Assembleia da República a dissolução pelo Presidente da República, cumpridos determinados requisitos44

Destaque-se ainda que um dos aspetos mais inovadores da Constituição de 1976 se prende com a consideração da democracia como democracia descentralizada, especialmente no tocante à descentralização territorial45. Destarte, entre os princípios fundamentais, temos o da autonomia das autarquias locais e o da descentralização democrática da administração pública, considerando-se os Açores e a Madeira como regiões autónomas dotadas de estatutos político-administrativos próprios46 .

“O Estado Português continua unitário (…), sem embargo de ser também descentralizado – ou seja, capaz de distribuir funções e poderes de autoridade por comunidades, outras entidades e centros de interesses existentes no seu seio. Descentralizado na tríplice dimensão do regime político-administrativo dos Açores e da Madeira, do poder local ou sistema de municípios com outras autarquias de grau superior e inferior e ainda de todas aquelas medidas que possam caber na «descentralização democrática da administração pública» (…).”47 .

A Constituição de 1976 trouxe alguma estabilização política, mas tal não significou que se tenha encontrado um consenso constitucional no país, aliás, o debate à volta da Constituição foi muito intenso, especialmente em 1980. O debate aqui em causa prendeuse com o sentido normativo fundamental da Constituição; o seu caráter definitivo ou transitório; os limites materiais de revisão constitucional; e o modo de se efetuar a primeira revisão48 .

44 IDEM, pp. 367-368.

45 MIRANDA, Jorge, Manual de Direito Constitucional: Tomo I – Preliminares; o Estado e os sistemas constitucionais, 7.ª ed., revista e atualizada, Coimbra Editora, 2003, p. 372.

46 IDEM, p. 372.

47 IDEM, p. 373

48 IDEM, p. 375.

O Estado de Direito Democrático

Conforme prevê o art.º 2.º da Constituição da República portuguesa de 1976, a República portuguesa é um Estado de Direito democrático.

A dimensão enquanto Estado de Direito encontra-se, designadamente, na consagração do princípio da constitucionalidade; no controlo judicial da constitucionalidade de atos normativos; no princípio da legalidade da administração; no princípio da responsabilidade extracontratual do Estado e demais entidades públicas; no princípio da independência dos juízes; nos princípios da proporcionalidade e da tipicidade; no regime garantístico dos direitos, liberdades e garantias; no direito de acesso aos tribunais; e na reserva de lei em matéria de restrição de direitos, liberdades e garantias49 .

A faceta enquanto Estado democrático surge na consagração da legitimação do exercício do poder, que radica na soberania popular, o que se traduz no exercício do direito de voto, através do sufrágio universal, igual, direto e secreto e na participação democrática dos cidadãos na resolução de problemas nacionais no âmbito dos poderes local e regional50 .

Contudo, “Não basta enumerar, definir, explicitar, assegurar só por si direitos fundamentais; é necessário que a organização do poder político e toda a organização constitucional estejam orientados para a sua garantia e a sua promoção. (…);é necessário estabelecer um quadro institucional em que esta vontade se forme em liberdade e em que cada cidadão tenha a segurança da previsibilidade do futuro.” 51 .

Os Direitos Fundamentais dos Cidadãos

Os princípios gerais em matéria de direitos e deveres fundamentais encontram-se plasmados nos art.ºs 12.º a 23.º da CRP.

De uma forma mais concreta, o art.º 12.º refere-se ao princípio da universalidade; o art.º 13.º ao princípio da igualdade; o art.º 14.º aos portugueses no estrangeiro; e o art.º 15.º aos estrangeiros, apátridas e cidadãos europeus. No tocante ao âmbito e sentido dos direitos fundamentais, temos o art.º 16.º da CRP. De acordo com o n.º 1 desta disposição, os direitos fundamentais consagrados na CRP não excluem quaisquer outros que constem das leis e das regras aplicáveis de direito internacional.

O art.º 17.º da CRP é sobre o regime dos direitos, liberdades e garantias; sendo que o art.º 18.º do mesmo diploma se refere à força jurídica dos preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias. O art.º 19.º da CRP retrata a suspensão

49 CANOTILHO, José Joaquim Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª ed., Almedina, 2003, pp. 230231.

50 IDEM, p. 231.

51 MIRANDA, Jorge, A Constituição Portuguesa,(sd), p. 680. Consultado em 13/10/2022, disponível em: https://portal.oa.pt/media/134338/jorge-miranda.pdf

do exercício de direitos, referindo-se ao facto de que os órgãos de soberania não podem, conjunta ou separadamente, suspender o exercício de direitos, liberdades e garantias, salvo em caso de estado de sítio ou de estado de emergência, declarados na forma prevista na Constituição (n.º 1).

Já o art.º 20.º da CRP prevê o acesso ao direito e a tutela jurisdicional efetiva, que se trata de assegurar a todos o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, sendo ainda que a justiça não pode ser negada por insuficiência de meios económicos (n.º 1).

O art.º 21.º da CRP consagra o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública.

Por sua vez, o art.º 22.º refere a responsabilidade das entidades públicas, prescrevendo a responsabilidade civil do Estado e das demais entidades públicas.

A figura do provedor de justiça encontra-se prevista no art.º 23.º da CRP. Seguidamente, a CRP dedica um título aos direitos, liberdades e garantias.

Nesse título, e como direitos, liberdades e garantias pessoais, temos o direito à vida (art.º 24.º); o direito à integridade pessoal (art.º 25.º); outros direitos pessoais (art.º 26.º); o direito à liberdade e à segurança (art.º 27.º); as normas referentes à prisão preventiva (art.º 28.º); as normas relativas à aplicação da lei criminal (art.º 29.º); os limites das penas e das medidas de segurança (art.º 30.º); o habeas corpus (art.º 31.º); as garantias de processo criminal (art.º 32.º); a expulsão, extradição e direito de asilo (art.º 33.º); a inviolabilidade do domicílio e da correspondência (art.º 34.º); a utilização da informática (art.º 35.º); a família, casamento e filiação (art.º 36.º); a liberdade de expressão e informação (art.º 37.º); a liberdade de imprensa e meios de comunicação social (art.º 38.º); a regulação da comunicação social (art.º 39.º); o direito de antena, de resposta e de réplica política (art.º 40.º); a liberdade de consciência, de religião e de culto (art.º 41.º); a liberdade de criação cultural (art.º 42.º); a liberdade de aprender e ensinar (art.º 43.º); o direito de deslocação e emigração (art.º 44.º); o direito de reunião e de manifestação (art.º 45.º); a liberdade de associação (art.º 46.º); e a liberdade de escolha de profissão e acesso à função pública (art.º 47.º).

No que respeita aos direitos, liberdades e garantias de participação política, contam-se: a participação na vida pública (art.º 48.º); o direito de sufrágio (art.º 49.º); o direito de acesso a cargos públicos (art.º 50.º); as associações e partidos políticos (art.º 51.º); e o direito de petição e de ação popular (art.º 52.º).

Passemos aos direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores. Neste contexto, refira-se o seguinte: a segurança no emprego (art.º 53.º); as comissões de trabalhadores (art.º 54.º); a liberdade sindical (art.º 55.º); os direitos das associações sindicais e contratação coletiva (art.º 56.º); e o direito à greve e proibição do lock-out (art.º 57.º).

Seguidamente, a CRP apresenta um título referente aos direitos e deveres económicos, sociais e culturais (art.ºs 58.º e ss).

Quanto aos direitos e deveres económicos, a CRP consagra os seguintes: o direito ao trabalho (art.º 58.º); os direitos dos trabalhadores (art.º 59.º); os direitos dos consumidores (art.º 60.º); a iniciativa privada, cooperativa e autogestionária (art.º 61.º); e o direito de propriedade privada (art.º 62.º).

Temos ainda os direitos e deveres sociais, onde constam: a segurança social e solidariedade (art.º 63.º); a saúde (art.º 64.º); a habitação e urbanismo (art.º 65.º); o ambiente e qualidade de vida (art.º 66.º); a família (art.º 67.º); a paternidade e a maternidade (art.º 68.º); a infância (art.º 69.º); a juventude (art.º 70.º); os cidadãos portadores de deficiência (art.º 71.º); e a terceira idade (art.º 72.º).

Nos direitos e deveres culturais, enunciam-se os seguintes: educação, cultura e ciência (art.º 73.º); ensino (art.º 74.º); ensino público, particular e cooperativo (art.º 75.º); universidade e acesso ao ensino superior (art.º 76.º); participação democrática no ensino (art.º 77.º); fruição e criação cultural (art.º 78.º); e cultura física e desporto (art.º 79.º).

A sistematização de um texto constitucional é, sobretudo, questão de ordem política e axiológica. Em face da sistematização adotada em 1976, torna-se incontestável a opção pelo pensamento constitucionalista, liberal e democrático, em contraposição com as conceções marxistas, ou seja: os direitos fundamentais vêm antes da organização económica (Miranda, 2007).

A organização política do Estado

Nesta matéria, o art.º 108.º da CRP prescreve que o poder político pertence ao povo, sendo exercido nos termos da Constituição. Já o art.º 109.º é sobre a participação política dos cidadãos.

Os órgãos de soberania encontram-se enunciados no art.º 110.º da CRP, e são os seguintes (n.º 1 do art.º 110.º da CRP): Presidente da República, Assembleia da República, Governo e Tribunais. O art.º 111.º proclama a separação e interdependência dos órgãos de soberania.

Por sua vez, o art.º 112.º da CRP reporta-se aos atos normativos.

Os principais atos normativos são, normalmente, atos unilaterais, que consistem numa declaração de um poder público (como é o caso da Constituição, dos atos legislativos e dos regulamentos, editados no âmbito do poder administrativo); mas também podem ser atos bilaterais ou plurilaterais, quando resultem da conjunção de várias declarações de poderes públicos (como é o caso das convenções internacionais).

No âmbito dos atos normativos, temos os atos legislativos, que são declarações de normas jurídicas, que traduzem a manifestação de opções políticas primárias.

Os atos legislativos nacionais podem revestir a forma de Lei (da Assembleia de República), Decreto-Lei (do Governo) ou Decreto Legislativo Regional (das Assembleias

Legislativas das Regiões Autónomas) – cfr. art.ºs 112.º, n.º 1; 166.º, n.º 3; 198.º, n.º 1; e 227.º, n.º 4, todos da CRP.

Há matérias expressamente reservadas à competência legislativa da Assembleia da República, o que significa que essas matérias apenas poderão ser reguladas por Lei da Assembleia da República, como é o caso das matérias contempladas nos art.ºs 161.º e 164.º (reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República), ambos da CRP. Ressalve-se o caso particular das matérias constantes no art.º 165.º da CRP, que apresenta o elenco de matérias pertencentes à reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, o que implica que, sobre essas matérias, a competência legislativa incumbirá a este órgão de soberania, salvo autorização ao Governo. Tal significa que também poderemos ter Decretos-Leis do Governo que versem sobre as matérias do art.º 165.º da CRP (como, por exemplo, em matéria de criação de impostos e sistema fiscal e regime geral das taxas e demais contribuições financeiras a favor das entidades públicas), desde que devidamente autorizado para tal, pela Assembleia da República, nos termos de uma Lei de autorização legislativa, que não se trata de um “cheque em branco”, devendo definir o objeto, o sentido, a extensão e a duração da autorização, a qual pode ser prorrogada (cfr. n.º 2 do art.º 165.º da CRP).

Existe também uma competência legislativa reservada ao Governo, isto é, o Governo tem competência exclusiva em matéria da sua organização e funcionamento –art.º 198.º, n.º 2 da CRP.

No que toca ao poder legislativo, e nos termos do art.º 227.º da CRP, as Regiões Autónomas (através das respetivas Assembleias Legislativas) podem: legislar no âmbito regional em matérias enunciadas no respetivo estatuto político-administrativo e que não estejam reservadas aos órgãos de soberania; legislar em matérias de reserva relativa da Assembleia da República, mediante autorização desta, com exceção das previstas nas alíneas a) a c), na primeira parte da alínea d), nas alíneas f) e i), na segunda parte da alínea m) e nas alíneas o), p), q), s), t), v), x) e aa) do n.º 1 do art.º 165.º; desenvolver para o âmbito regional os princípios ou as bases gerais dos regimes jurídicos contidos em lei que a eles se circunscrevam.

Além disso, e nos termos do art.º 112.º da CRP, as leis e os decretos-leis têm igual valor, sem prejuízo da subordinação às correspondentes leis dos decretos-leis publicados no uso de autorização legislativa e dos que desenvolvam as bases gerais dos regimes jurídicos (n.º 2).

Têm valor reforçado, além das leis orgânicas, as leis que carecem de aprovação por maioria de dois terços, bem como aquelas que, por força da Constituição, sejam pressuposto normativo necessário de outras leis ou que por outras devam ser respeitadas (n.º 3).

Os decretos legislativos têm âmbito regional e versam sobre matérias enunciadas no estatuto político-administrativo da respetiva região autónoma que não estejam

reservadas aos órgãos de soberania, sem prejuízo do disposto nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 227.º - cfr. n.º 4 do mesmo art.º 112.º da CRP.

A CRP contém ainda, no seu art.º 113.º, os princípios gerais de direito eleitoral; no art.º 114.º a previsão dos partidos políticos e do direito de oposição; e no art.º 115.º o referendo, que se trata da consulta popular.

Quanto aos órgãos colegiais, temos o art.º 116.º da CRP; no art.º 117.º regula-se o estatuto dos titulares de cargos políticos, destacando-se no art.º 118.º o princípio da renovação, que proíbe o exercício a título vitalício de qualquer cargo político de âmbito nacional, regional ou local.

Por seu turno, o art.º 119.º é sobre a publicidade dos atos.

As normas referentes ao Presidente da República encontram-se plasmadas nos art.ºs 120.º a 140.º da CRP; a figura do Conselho de Estado encontra-se regulada nos art.ºs 141.º a 146.º; a Assembleia da República surge nos art.ºs 147.º a 181.º; as normas constitucionais respeitantes ao Governo encontram-se previstas nos art.ºs 182.º a 201.º; finalmente, os Tribunais estão regulados nos art.ºs 202.º a 224.º, disposições que incluem o estatuto dos Juízes e questões referentes ao Ministério Público.

A partir do art.º 225.º a CRP trata a matéria das Regiões Autónomas; seguindo-se o poder local (art.ºs 235.º a 265.º).

Seguidamente, a CRP dedica um título à Administração Pública (art.ºs 266.º a 272.º).

A matéria da defesa nacional encontra-se prevista nos art.ºs 273.º a 276.º da CRP.

Órgãos de soberania

Os órgãos de soberania previstos na CRP são quatro, a saber: Presidente da República, Assembleia da República, Governo e Tribunais (cfr. art.º 110.º, n.º 1 da CRP).

O Presidente da República representa a República Portuguesa, garante a independência nacional, a unidade do Estado e o regular funcionamento das instituições democráticas e é, por inerência, Comandante Supremo das Forças Armadas. Trata-se de um órgão singular eleito por sufrágio direto e universal (cfr. art.ºs 120.º e 121.º da CRP).

A Assembleia da República é o parlamento nacional, que representa todos os cidadãos portugueses, sendo os 230 deputados eleitos por sufrágio direto e universal (art.ºs 147.º e 148.º da CRP). Os Deputados são eleitos por círculos eleitorais geograficamente definidos na lei, a qual pode determinar a existência de círculos plurinominais e uninominais, bem como a respetiva natureza e complementaridade, por forma a assegurar o sistema de representação proporcional e o método da média mais alta de Hondt na conversão dos votos em número de mandatos – art.º 149.º, n.º 1 da CRP. Os Deputados representam todo o país e não os círculos por que são eleitos – art.º 152.º, n.º 2 da CRP.

O Governo é o órgão de condução da política geral do país e o órgão superior da administração pública (art.º 182.º da CRP), sendo os seus membros (Primeiro-Ministro, Ministros, Secretários de Estado e Subsecretários de Estado) nomeados pelo Presidente da República, nos termos do art.º 187.º da CRP, e tendo em conta os resultados das eleições para a Assembleia da República.

Os Tribunais abrangem os Tribunais Judiciais (tribunais de Comarca, da Relação e Supremo Tribunal Administrativo) e os Tribunais Administrativos e Fiscais (Tribunais Administrativos e Fiscais de primeira instância, Tribunais Centrais Administrativos – Norte e Sul – e Supremo Tribunal Administrativo) – cfr. art.º 209.º da CRP. Além destes, existem – ou podem existir – tribunais especializados, tais como tribunais marítimos, tribunais militares, tribunais arbitrais e julgados de paz. Existe ainda o Tribunal de Contas e o Tribunal Constitucional (art.º 223.º, n.º 1 da CRP).

Ressalve-se que, nos primeiros três órgãos de soberania aqui apresentados, a separação de poderes não é estanque. Por exemplo, o Presidente da República exerce funções políticas (em sentido estrito), mas também participa no procedimento legislativo, através da promulgação (ou do veto – político ou por inconstitucionalidade) – cfr. alínea b) do art.º 134.º e art.º 136.º, ambos da CRP. A Assembleia da República exerce funções legislativas e pratica atos políticos concretos. O Governo acumula funções legislativas, governativas e administrativas – art.ºs 197.º a 199.º da CRP.

Apenas os Tribunais se encontram limitados ao exercício da função jurisdicional, ainda que determinados poderes do Tribunal Constitucional se aproximem do exercício da função legislativa (num sentido negativo), como é o caso da declaração de inconstitucionalidade – n.º 1 do art.º 282.º da CRP.

Conclusões

Aqui chegados, podemos concluir que a Constituição da República Portuguesa de 1976 se trata de uma Constituição pós-revolucionária, na sequência da revolução do 25 de abril de 1974. A ideia de Direito revelou-se na ação do Movimento das Forças Armadas, sendo que a legitimidade revolucionária teve também por referência a Declaração

Universal dos Direitos do Homem

A Constituição da República Portuguesa de 1976 representa o Direito Constitucional português atual e apresenta como grandes fundamentos o da democracia representativa e o da liberdade política. Trata-se de uma Constituição fortemente vocacionada para a defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos e dos trabalhadores e para a divisão do poder, tendo-se procurado fomentar o incremento do conteúdo da democracia.

O tratamento dos direitos fundamentais repousa na consagração de direitos, liberdades e garantias e de direitos económicos, sociais e culturais, num Estado Social de Direito. A organização económica processa-se em três setores distintos, a saber: público,

cooperativo e privado. No tocante à organização política, temos o seguinte: a unidade do Estado e a autonomia político-administrativa dos Açores e da Madeira e do poder local; a democracia representativa e a democracia participativa; a eleição do Presidente da República e da Assembleia da República por sufrágio universal e direto; a relação entre o Presidente da República, a Assembleia da República, o Governo e o Conselho da Revolução, este último enquanto órgão radicado na legitimidade revolucionária. Os órgãos de soberania previstos na CRP são quatro, a saber: Presidente da República, Assembleia da República, Governo e Tribunais, sendo que o Estado assenta num sistema de governo semipresidencial.

Referências Bibliográficas

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GOUVEIA, Jorge Bacelar, Manual de Direito Constitucional: I – Teoria do Direito Constitucional, 6.ª ed., Almedina, 2016.

MIRANDA, Jorge, Manual de Direito Constitucional: Tomo I – Preliminares; o Estado e os sistemas constitucionais, 7.ª ed., revista e atualizada, Coimbra Editora, 2003.

Webgrafia

ALVES, Jorge Fernando, A lei das leis Notas sobre o contexto de produção da Constituição de 1911. In Revista da Faculdade de Letras – História – Porto, III Série, vol. 7, 2006, pp. 169-180, consultado em 13/10/2022:

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FONSECA, Ana Mónica, A Constituição de 1976 – A visão de Bona. In Relações Internacionais, março de 2016, pp. 11-26, consultado em 13/10/2022:

https://repositorio.iscte-iul.pt/bitstream/10071/11971/3/RI49_02AMFonseca.pdf

MIRANDA, Jorge, A Constituição e a Democracia portuguesa. (2019), consultado em 13/10/2022: https://a25abril.pt/wp-content/uploads/2019/01/01.01-Jorge-Miranda.pdf

MIRANDA, Jorge, A Constituição Portuguesa. (sd). p. 680. Consultado em 13/10/2022, disponível em: https://portal.oa.pt/media/134338/jorge-miranda.pdf

Contrato de Mútuo Oneroso VS Negócios Usuários

Contrato de Mútuo Oneroso VS Negócios Usurários

Vânia Morais Martins

Solicitadora

Licenciada em Solicitadoria

Pós-Graduada em Direito Registral e Notarial

Mestranda em Solicitadoria

Cláudia Teixeira

Solicitadora

Licenciada em Solicitadoria

Pós-Graduada em Direito Registral e Notarial

Mestre em Solicitadoria Especialização em Agente de Execução

Sumário: I - Resumo. II – CONTRATO DE MÚTUO; 1. NOÇÃO E ASPETOS GERAIS;

2. OBJETO DO MÚTUO; 3. FORMA DO MÚTUO; 3.1 Nulidade por Falta de Forma;

4. MÚTUO ONEROSO E MÚTUO GRATUITO; 5. EFEITOS DO CONTRATO DE MÚTUO; 5.1 Generalidades; 5.2 Transferência de Propriedade – O Caráter Real Quoad Constituionem;

5.3 Obrigações do Mutuário; 5.3.1 A Obrigações de Juros; 6. PRAZOS; EXTINÇÃO DO CONTRATO DE MÚTUO. III – NEGÓCIOS USURÁRIOS; 1. NOÇÃO E ASPETOS GERAIS; 2. A ANULABILIDADE.

I Resumo:

O Contrato de Mútuo é um contrato nominado, típico, unilateral - não sinalagmático e real quoad constitutioned, encontrando-se regulado no nosso ordenamento jurídico nos artigos 1142º e seguintes do Código Civil. No que concerne aos negócios usurários, veremos que é necessário que exista o preenchimento de pressupostos para que estes se verifiquem, nomeadamente, a fragilidade de uma das partes e o desequilíbrio entre a prestação paga e a prestação mutuada.

Assim, em primeira instância iremos abordar o Contrato de Mútuo onde irão ser abordados os pontos inerentes, começando pela noção e aspetos gerais que alberga o contrato em apreço, bem como as demais características que o compõem e caraterizam.

Posteriormente, porque é nosso entendimento que o Contrato de Mútuo e Negócios Usurários estão “paredes meias”, expomos a noção e aspetos gerais dos Negócios Usurários começando por, singelamente, clarificar o que são, o que daí advém e ainda as consequências intrínsecas aos negócios quando concretizados nestes moldes.

II- Contrato de Mútuo NOÇÃO E ASPETOS GERAIS

O Mútuo encontra-se consagrado no nosso ordenamento jurídico, tem qualificação própria, pelo que, está firmado na lei, mormente, no art.º 1142 do CC e seguintes, constando que o “ mútuo é o contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade”.

Nas palavras de José Carlos Gouveia Rocha1 , o Contrato de Mútuo “é um contrato translativo da propriedade e do risco da coisa emprestada, que tem sempre por objeto dinheiro ou outras coisas fungíveis e onde prevalece a presunção de onerosidade”, ao referenciado acresce ainda que “a propriedade da coisa mutuada transfere-se para o mutuário, que é obrigado a devolver coisa idêntica ou equivalente”.

Por estar preceituado na lei e lhe ter sido atribuída uma denominação asseveramos que, o Contrato de Mútuo é um contrato nominado e típico.

O Contrato de Mútuo, é ainda qualificado como um contrato unilateral - não sinalagmático2, real quoad constitutionem3, podendo o mesmo ser oneroso ou gratuito, como infra será, mais detalhadamente, abordado.

Os intervenientes do indicado contrato denominam-se por Mutuante sendo aquele que cede a coisa e Mutuário sendo aquele que recebe a coisa.

OBJETO DO MÚTUO

Os mútuos mais comuns têm por objeto dinheiro ou outra coisa fungível4 .

A fungibilidade da coisa, a que a lei se refere no art.º 1142 do CC, é na possibilidade de a coisa mutuada ser suscetível de ser trocada no momento da restituição por outras do mesmo género e qualidade.

Significa pois que, a coisa a restituir pode não ser a mesma que lhe foi mutuada, uma vez que, a coisa mutuada passa a ser propriedade do mutuário5 e porque, no caso de coisa fungível perecível, pode essa coisa deixar de subsistir.

Nos termos e fundamentos do art.º 208 do CC, as coisas fungíveis, normalmente são coisas consumíveis, embora tal não tenha de ocorrer obrigatoriamente, dado que, existem coisas fungíveis que não são consumíveis6 . Sucintamente, a fungibilidade relaciona-se com a possibilidade da restituição em igual género, ou seja, a restituição poderá ser díspar, porém, a coisa a restituir terá de coincidir economicamente com a coisa entregue pelo mutuante inicialmente.

1 ROCHA, José Carlos Gouveia “Manuel Teórico e Prático do Notariado”, p. 195, Edições Almedina, 1.ª Edição, 1996.

2 Não existe uma dependência recíproca entre os intervenientes, ou seja, apenas o mutuário tem a obrigação de restituir a coisa mutuada.

3 Impõe a necessidade de entrega de dinheiro ou outra coisa fungível.

4 Cfr. Art.º 207 do CC “São fungíveis as coisas que se determinam pelo seu género, qualidade e quantidade, quando constituam objecto de relações jurídicas.”

5 Neste sentido, FERREIRINHA, Fernando Neto, “Manual de Direito Notarial-Teoria e Prática”, pp. 678- 679, Edições Almedina, 2.ª Edição, 2019.

6 A título de exemplo os produtos industriais estereotípicos. Neste sentido LEITÃO, Luís Manuel Menezes de, “Direito das Obrigações-Volume III-Contratos em Especial”, p. 398, Edições Almedina, 7.ª Edição, 2010.

FORMA DO MÚTUO

Estabelece o nosso Código Civil, mais concretamente o art.º 1143, que o Contrato de Mútuo pode ser celebrado por Documento Particular Autenticado, Escritura Pública ou Documento Particular.

O que distingue a forma a adotar é a quantia refletiva no Contrato de Mútuo. Vejamos, se a quantia mutuada for superior a 25.000,00€, o mesmo carece de ser celebrado por Documento Particular Autenticado ou Escritura Pública. Porém, quando mutuada quantia superior a 2.500,00€ e até 25.000,00€, é exigível documento escrito assinado somente pelo Mutuário. Porém, e tal como convencionado no já referido art.º 1143 do CC, é imperativo que o mesmo assinado pelo Mutuário, ou seja, neste caso em concreto, é vedado o recurso à assinatura a rogo.7

Por último, abaixo do valor de 2.500,00€, o mútuo não carece de forma especial, podendo ser celebrado de qualquer modo, inclusive verbalmente. No entanto, quando os juros envolvam valores superiores à taxa legal é imprescindível documento escrito8 com a convenção desses juros entre o mutuante e o mutuário. Acresce ao exposto, especificidades de forma escrita e menções especiais relativamente a certos mútuos, mormente no Crédito ao Consumo9 .

Face ao predito10, o contrato alvo de investigação é um negócio consensual ou formal consoante o valor.

3.1 Nulidade por Falta de Forma

Na contingência da forma legalmente exigida não for cumprida e de acordo com o art.º

220 do CC “a declaração negocial que careça da forma legalmente prescrita é nula, quando outra não seja a sanção especialmente prevista na lei”.

Ou seja, tal como nos indica o legislador o contrato que não cumpra o requisito formal está ferido de nulidade11 .

A consequência inerente à falta da formalidade imposta obriga à restituição por parte do mutuário de tudo o que tiver sido prestado.

7 A contrário, vide artigo 373, n.º 1 do CC.

8 Cfr. Art.º 559, n.º 2 do CC.

9 Cfr. Art.º 12 do DL 133/2009 de 2 de junho.

10 Neste sentido vide Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, n.º 12277/15.2T8LSB.L1-1, consultado em www.dgsi.pt em 06/10/2021.

11 Importa mencionar “a nulidade de negócio jurídico não constitui motivo de suspensão ou interrupção da prescrição, conforme resulta da interpretação a contrario do disposto nos arts. 318º a 327º, do C. Civil, sendo certo que o regime da prescrição é inderrogável (art. 300º, do C. Civil) e a renúncia da prescrição só é admitida depois de haver decorrido o prazo prescricional (art. 302º, n.º 1, do C. Civil).” – Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 07/03/2019, Processo n.º 876/18.5T8BRG.G1 consultado em www.dgsi.pt em 14/10/2021.

Tal preceito, ocorre em consequência do disposto do art.º 289 n.º 1 do CC e não por via do enriquecimento sem causa.12

MÚTUO ONEROSO E MÚTUO GRATUITO

Tal como precedentemente já indicado, o contrato em alvo de observação poderá revestir caráter oneroso ou caráter gratuito.

Anteriormente, a lei unicamente permitia que o mútuo tivesse cariz gratuito. Quando tal não se verificasse e fosse convencionado qualquer tipo de remuneração (juros), o mesmo convertia-se num contrato de usura.

Face ao antedito, atualmente, observando que o mútuo no quotidiano é um contrato frequente e maioritariamente oneroso por estarem intrínsecos juros ao mesmo, entendeu o legislador que era desajustado, pensamento este que acompanhamos, a conversão para um contrato de usura. Pelo que, nos dias de hoje, é admitida a qualificação de contrato de mútuo gratuito ou contrato de mútuo oneroso.

No entanto, a usura ou melhor dizendo os negócios usurários são também parte integrante da nossa análise, pelo que, será no capítulo subsequente versado com maior exatidão e veremos em que conjunturas é que estes dois negócios se tocam. No que concerne ao mútuo oneroso importa referenciar o explanado no art.º1145 do CC. Ora, no seu n.º 1, é atribuída a faculdade de as partes entre si convencionarem uma remuneração, sendo este o ponto fulcral para a onerosidade ou não do contrato em questão.

Entende Luís Manuel Teles de Menezes Leitão13 que, quando o mútuo verse ou não sobre dinheiro, mas são convencionados juros entre as partes existe espontaneamente a constituição de um mútuo oneroso. Contudo, e em sentido contrário Pires de Lima e Antunes Varela14 afirmam que, em traços gerais, se o mútuo tiver por objeto coisa fungível que não seja dinheiro, a presunção de onerosidade é afastada, sendo o contrato naturalmente gratuito, uma vez que não versa sobre obrigações pecuniárias.

Em súmula, somos apologistas do entendimento de Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, ou seja, o Contrato de Mútuo reveste caráter oneroso sempre que estejam inerentes juros, quer a coisa mutuada verse sobre obrigações pecuniárias quer a coisa mutuada verse sobre outra coisa fungível.

12 Cfr. Art.º 473 n.º 1 do CC-Enriquecimento sem Causa “Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou”.

13 Vide LEITÃO Luís Manuel Menezes de, “Direito das Obrigações-Volume III-Contratos em Especial”, p. 395, Edições Almedina, 7.ª Edição, 2010

14 Neste sentido LEITÃO Luís Manuel Menezes de, “Direito das Obrigações-Volume III-Contratos em Especial”, pp 395, nota de rodapé n.º 768, Edições Almedina, 7.ª Edição, 2010

EFEITOS DO CONTRATO DE MÚTUO Generalidades

Com a celebração do Contrato de Mútuo ocorre a transmissão da propriedade da coisa para o mutuário15 e consequentemente um efeito obrigacional de restituição da coisa ao mutuante.16

Na casualidade de se tratar de um mútuo oneroso para além da obrigação da restituição acresce a obrigação de pagamento dos juros correspondentes por parte do mutuário.

Transferência da Propriedade - O Caráter Real Quoad Constitutionem

Por o mútuo se tratar de um contrato real, o mesmo exige a tradição da coisa para se constituir, não sendo bastante o contrato entre as partes17 .

A tradição não implica somente a transmissão da posse mas também a transmissão da propriedade, independentemente do uso ou não por parte de quem recebe, isto é, o mutuário.

Ora, é nosso parecer que sem a entrega da coisa mutuada, ou seja, a falta de tradição, não existe Contrato de Mútuo.

Neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça18 , “sendo o contrato de mútuo um contrato real quod constitutionem, isto é, um contrato que só se completa com a entrega da coisa, e não tendo havido qualquer entrega, então tal "contrato" é nulo por falta de objecto, nos termos do art. 280º do CC”.

Neste prosseguimento, o contrato em análise destina-se a assegurar a aquisição dos bens pelo mutuário pois, só desse modo poderá o mesmo dispor da coisa.

Importa referir o exposto no art.º 1305 do CC, uma vez que, a transmissão da propriedade ao mutuário produz efeitos meramente jurídicos para que ao mesmo seja possível o gozo e fruição pleno e exclusivo do direito sobre a coisa mutuada mesmo que, a final ao mutuário lhe seja imposta a obrigação de restituição, não lhe sendo permitido invocar a seu favor a impossibilidade objetiva do cumprimento19 .

15 Vide Art.º 1144 do CC.

16 Cfr. Art. 1142 do CC.

17 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 25/01/2011, Processo n.º 4033/05.2TVLSB.L1.S.1, consultado em www.dgsi.pt em 14/10/2021.

18 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13/02/2007, Processo n.º 07A079, consultado em www.dgsi.pt em 20/10/2021.

19 De referenciar o consagrado no art.º 1149 do CC-Impossibilidade de Restituição “Se o mútuo recair em coisa que não seja dinheiro e a restituição se tornar impossível ou extremamente difícil por causa não imputável ao mutuário, pagará este o valor que a coisa tiver no momento e lugar do vencimento da obrigação”.

Concluímos pois, que a tradição da coisa é um elemento constitutivo do contrato. Não obstante, este caráter real quoad constitutionem do mútuo, concisamente agora versado, é alvo de vasta discussão doutrinal.

Obrigações do Mutuário

A obrigação do mutuário versa, essencialmente, pela reversão de outro tanto do mesmo género do que já foi recebido ao mutuante. Esta obrigação está intrínseca, quer no mútuo oneroso, quer no mútuo gratuito. Tem como desígnio o equilíbrio de posições das partes aquando a conclusão do negócio.

A Obrigação de Juros

Outra obrigação que recai ao mutuário, tratando-se logicamente de mútuo oneroso, é o pagamento de juros, nos termos e para os efeitos do art.º 1145, n.º 1 do CC. Os juros inerentes revestem um caráter acessório, sendo o capital mutuado a obrigação principal. Não obstante a estipulação de juros, os diferentes pagamentos são autónomos, em outros termos, é facultada ao mutuário a faculdade de ceder ou extinguir um deles singularmente.20

PRAZOS

No que se refere à estipulação de prazo para restituição da coisa mutuada e nas palavras do já indicado, Luís Manuel Teles de Menezes Leitão “no contrato de mútuo a estipulação de um prazo aparece como essencial ao próprio contrato”21 .

Ainda assim, podem as partes não estipular qualquer prazo para a sua restituição. Neste último caso, o prazo de vencimento no mútuo gratuito é de 30 dias após o mutuante lhe exigir. No mútuo oneroso qualquer das partes pode por termo ao contrato denunciando com, pelo menos, 30 dias de antecedência.22 Porém, existe uma exceção a esta regra, quer se trate de mútuo oneroso quer de mútuo gratuito. Pois que, e atentando o disposto no art.º 1148, n.º 3 do CC, quando em causa estejam empréstimos de cereais e outros produtos rurais, o empréstimo presume-se feito até à colheita seguinte de produtos semelhantes.

EXTINÇÃO DO CONTRATO DE MÚTUO

Várias são as causas que podem extinguir o Contrato de Mútuo.

20 Cfr. Art.º 561 do CC.

21 Vide LEITÃO Luís Manuel Menezes de, “Direito das Obrigações-Volume III-Contratos em Especial”, p. 411, Edições Almedina, 7.ª Edição, 2010.

Cfr.

22 1148 n.º 1 e 2 do CC.

A primeira e a mais óbvia é o decurso do prazo. Vencido o mesmo terá o mutuário de fazer a restituição da coisa mutuada extinguindo-se desta forma o aludido contrato.

Permite o art.º 1147 do CC que, o mutuário efetue o cumprimento antecipado da obrigação estabelecida, contudo, tal conduta não implica a não satisfação de juros por inteiro.

Contudo, a insolvência do mutuário, perda de garantias prestadas23, falta de pagamento de alguma prestação24 na contingência de ter sido essa a forma de pagamento convencionada, a falta de pagamento de juros25 nos mútuos onerosos e a prescrição26 são outras das causas que culminam da extinção do contrato em apreço.

Importa expor que, nacasualidade do mutuário não conseguir efetuar a restituição devida, quando o mútuo recaia sobre dinheiro, não origina a extinção do mútuo, dado que, neste caso a perda do género jamais se verificaria.

Analogamente, no caso de o mútuo não recair sobre dinheiro, pois a restituição poderá não ser possível por causa imputável ao mutuário, a mesma não se extingue.Terá este último a obrigação de pagar o valor que a coisa teria no momento do seu vencimento27 .

III - NEGÓCIOS USURÁRIOS

NOÇÃO E ASPETOS GERAIS

Estamos perante uma situação de usura quando existe um desequilíbrio entre a prestação e a contraprestação28 .

Indica o nosso ordenamento jurídico que as taxas de juros legalmente concebíveis são, respetivamente, de 3% ou 5% de juros anuais, conforme haja ou não garantia real29, pelo que, estamos perante o desequilíbrio mencionado quando os juros estipulados entre as partes excede os limites legalmente impostos.

Estamos perante negócios usurários quando uma das partes por ter conhecimento da fragilidade e necessidade imediata da outra parte, de forma intencional e consciente e para seu próprio benefício, tenta obter um ganho maior ao que é legalmente admissível (desproporção manifesta entre as prestações). Este negócio para se qualificar como usurário, terá de, cumulativamente, preencher os dois pressupostos supra referidos.

Neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães indica que “I- Para concluirmos que estamos perante um negócio usurário (art. 282º, n.º 1, do C. Civil),

23 Vide Art.º 780 do CC.

24 Cfr. Art.º 781 do CC

25 Cf. Art.º 1150 do CC.

26 Neste sentido, vide Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, 07/03/2019, Processo n.º 876/18.5T8BRG.G1, consultado em www.dgsi.pt em 14/10/2021.

27 Cfr. Art.º 1149 do CC.

28 Neste sentido, ROCHA, José Carlos Gouveia “Manuel Teórico e Prático do Notariado”, p. 198, Edições Almedina, 1.ª Edição, 1996.

29 Cfr. Art.º 1146, n.º 1 do CC.

devem encontrar-se preenchidos requisitos objetivos (benefícios excessivos ou injustificados), assim como requisitos subjetivos (a exploração consciente de situações de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter).”30

Embora o dito supra, recorrentemente, vários são os negócios onde as aludidas taxas em muito se ultrapassam.

Acontece que, e no nosso entendimento, considerando a atual conjuntura, associada à situação pandémica, este tipo de negócios aumentaram de forma exponencial, pelo que, importa abordar algumas das temáticas que os mesmos albergam.

Com as restrições de acesso à banca, que são tendencionalmente crescentes, o recurso a mútuos particulares acaba por ser o caminho mais simples e frequente de obter dinheiro “fácil”. Porém, acaba também por ser onde os negócios usurários mais se sucedem.

Tal circunstância advém por a fiscalização neste tipo de mútuos ser parca, existir uma fragilidade financeira e mental de uma das partes e a outra tenta por esta via retirar um benefício excessivo dessa mesma fragilidade.

A ANULABILIDADE

Ao mútuo com juros excessivos não é aplicável a nulidade consagrada no art.º 281 do CC, dada a exceção prevista no art.º1146, n.º 3 também do CC, onde estipula que quando as partes acordam aplicar juros superiores aos admitidos legalmente veem os mesmos a serem reduzidos para os máximos, de 3% ou 5%, conforme exista ou não garantia real tal como já referenciado, ainda que, seja outra a vontade dos contraentes. Trata-se claramente de uma norma imperativa e de uma nulidade parcial31 Quando aos juros excessivos se somar a exploração de “necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter de outrem, obtiver deste, para si ou para terceiro, a promessa ou a concessão de benefícios excessivos ou injustificados”32 é permitida anulação ou a modificação do negócio, consoante as partes assim o entenderem ou acordarem33 .

Embora exista abertura por parte do legislador com esta exceção, tal não obsta que sejam aplicados os art.os 282 a 284 do mesmo diploma.

É propósito do indicado no art.º 282 do CC evitar um injusto locuplemento do mutuante à custa do mutuário, causando a anulabilidade por usura.

30 Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, 01/02/2018, Processo n.º 1646/16.0T8VCT.G1, consultado em www.dgsi.pt em 06/10/2021.

31 Cfr. Art.º 292 do CC.

32 Cfr. Art.º 282, n.º1 do CC.

33 Neste sentido, art.º 283 do CC.

A anulabilidade, não torna o negócio no seu todo inválido, mas sim, permite a modificação do mesmo para juízos de equidade34, não prejudicando a subsistência do mútuo. Entendeu o legislador não anular o negócio alvo de usura no seu todo, e desvincular as partes do negócio, invocando por um lado uma situação de inferioridadee fragilidade por parte do mutuário, mas também evitar o aproveitamento excessivo e desmedido na celebração do negócio por parte do mutuante, cujo entendimento acompanhamos afincadamente.

Em síntese, duas são consequências exequíveis da ilicitude/usurária estipulação de juros, a primeira é a modificação/redução dos juros ao máximo fixado na lei e a segunda é a anulabilidade do contrato, “significando as opções do art. 282.º do C. Civil que o lesado, se o desejar, pode livrar-se do negócio através da anulação; mas se o preferir, pode manter o negócio depois de este, corrigido o desequilíbrio, ficar expurgado da injustiça interna que o inquina (assim como pode deixar o negócio como está, renunciando à arguição da anulabilidade ou confirmando-o)”35 .

O prazo de um ano para requerer a anulabilidade36 começa a contar desde a cessação da situação de inferioridade. Quando cessa o vício do contrato, entendem Carlos Mota Pinto, João de Castro Mendes e Luís Carvalho Fernandes,37 que a parte lesada, consegue reunir as condições para exercer e invocar o seu direito de anulação. No adrego de num prazo de um ano o lesado não arguir a anulabilidade este vê o seu direito caducar.

CONCLUSÃO

Em primeira instância e, achamos nós que é um dos pontos fulcrais a reter, é o facto de o mútuo oneroso não versar unicamente sobre obrigações pecuniárias, circunstância essa que vulgarmente no quotidiano se associa.

Um outro ponto fundamental é a forma a adotar na celebração do Contrato de Mútuo, pois este coloca em causa a validade do mesmo. Uma temática que é ainda de elevada importância, é a existência ou não da tradição da coisa para o negócio se considerar concretizado. Ora, como é de fácil perceção no desenvolvimento do até então exposto, é nosso entendimento que, sendo o Contrato de Mútuo um contrato real, terá de,

34 Cfr. Art.º 283 do CC.

35 Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 03/11/2020, Processo n.º 1602/19.7T8CTB.C1, consultado em www.dgsi.pt em 23/10/2021.

36 Vide art.º 287 n.º 1 do CC.

37 Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 01/02/2018, Processo n.º 1646/16.0T8VCT.G1, consultado em www.dgsi.pt em 06/10/2021.

obrigatoriamente, ocorrer a entrega da coisa mutuada, pois só dessa forma o mutuante impulsiona a obrigação da entrega por parte do mutuário da mesma ou em igual género. No que pertence à ligação entre o Contrato de Mútuo Oneroso e os Negócios Usurários, seguimos que estes se encontram maioritariamente “paredes meias”, na medida em que, consideramos nós, é neste tipo de contrato que este tipo de negócios tem maior incidência, daí fazer todo o sentido versar sobre estes dois conteúdos em conjunto. De ressalvar e enaltecer o nosso legislador por acautelar a equidade neste tipo de negócios e dispor de duas normas legais suscetíveis de aplicação aquando a verificação, cumulativa, dos requisitos objetivos e subjetivos.

Prudentemente, o legislador exige o preenchimento destes dois requisitos de forma cumulativa, pois que, se assim não o fosse, entenderíamos nós que, estaria a acautelar em demasia o mutuário em deterioração do mutuante e colocaria em causa a equidade supra mencionada.

Veja-se, e a título exemplificativo, no caso de um mutuante imprudente, depois do negócio concretizado chegar à conclusão que foi um mau negócio, mas que ainda assim, fê-lo de forma consciente. Tentaria, certamente, desvincular-se do mesmo por, hipoteticamente, se encontrar em situação de inferioridade. Em suma, consideramos que ao elaborar um Contrato de Mútuo devem as partes ter em conta vários aspetos, acautelando-se, reciprocamente, para dirimir qualquer questão futura, nomeadamente a anulabilidade ou modificação do contrato inicialmente concretizado ou até a nulidade do mesmo apor este não revestir a forma legalmente exigida tal como acima já referido.

Destarte, é essencial a informação, a transparência, a consciência, o não aproveitamento e singularmente o bom senso e boa-fé, para evitar vícios no negócio.

Palavras-chave: Anulabilidade, Mutuante, Mutuário, Obrigações Pecuniárias, Usura.

BIBLIOGRAFIA

Obras:

FERREIRINHA, Fernando Neto, “Manual de Direito Notarial-Teoria e Prática”, Edições Almedina, 2.ª Edição, 2019.

LEITÃO, Luís Manuel Menezes de, “Direito das Obrigações-Volume III-Contratos em Especial”, 7.ª Edição, Edições Almedina, 2010.

NETO, Abílio, “Código Civil Anotado – 15.ª Edição Revista e Actualizada”, 15.ª Edição, Edição Ediforum, Edições Jurídicas, Lda, abril, 2006.

ROCHA, José Carlos Gouveia “Manuel Teórico e Prático do Notariado”, Edições Almedina, 1.ª Edição, 1996.

Legislação: Código Civil

Código Civil Anotado

Jurisprudência:

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Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 07/03/2019, Processo n.º 876/18.5T8BRG.G1, disponível online em:

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Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, 01/02/2018, Processo n.º 1646/16.0T8VCT.G1, disponível online em:

http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/-/5F26FBD92B8F30448025823C0035BE88

Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, n.º 12277/15.2T8LSB.L1-1, disponível online em:

http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/ad600878db59d33080 2582d0003dead0?OpenDocument

Webgrafia: www.dgsi.pt www.pgdlisboa.pt

Lista de Siglas e Abreviaturas

Art.º - Artigo

CC – Código Civil

CCom- Código Comercial

Cfr. – Conforme

N.º - Número

P- Página

Pp- Páginas

STJ – Supremo Tribunal de Justiça

A alteração do contrato de sociedade, em especial o aumento e a redução de capital social

Juliana da Silva Cavadas

Licenciada em Solicitadoria e Administração – ISCAC

Mestre em Solicitadoria do ramo de Empresas - ISCAC

Aprovada no Estágio de Solicitadores – 2020/2021

A alteração do contrato de sociedade, em especial o aumento e a redução de capital social

LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

Art. – Artigo

CC – Código Civil

CP – Código Penal

CSC – Código das Sociedades Comerciais CSCom – Código das Sociedades ComerciaisDr.º - Doutor

I.R.N – Instituto dos Registos e Notariado

n.º - Númerop.- Página pp.- Páginas

R.O.C – Revisor Oficial de Contas

S.N.C – Sistema de Normalização Contabilística

ss. – Seguintes

TGSI - Tabela Geral do Imposto de Selo

“A maior recompensa pelo nosso trabalho não é o que nos pagam por ele, mas aquilo em que ele nos transforma”

INTRODUÇÃO

O presente estudo irá debruçar-se no Direito da Sociedades Comerciais. Pretendo com a sua elaboração cingir-me nos aspetos fulcrais da alteração do contrato, e nas modificações do capital socialnomeadamente no aumento e redução do capital social, encontrando-se o mesmo dividido em cinco capítulos.

No primeiro capítulo é abordado o tema do capital social, visto ser o ponto fulcral do presente trabalho, uma vez que está incluído nas duas modalidades que irão ser desenvolvidas.

O segundo debruça-se sobre alteração do contrato em consequência do aumento ou da redução,uma vez que estas duas operações acarretam este efeito. No terceiro capítulo, elucida a primeira modalidade, motivo de alteração do contrato de sociedade, nomeadamente o aumento de capital, onde é sintetizado todo o seu procedimento, como as suas finalidades, as diferentes formas de aumento do capital, bem como o devido registo que deve ser obrigatoriamente efetuado, para ser válido. O quarto capítulo, disciplina a redução do capital, que é efetuada por vários motivos, ou porexistir excesso de capital e não ser necessário ou para cobrir prejuízos da sociedade. Sendo, também abordado todos os trâmites desta modalidade de forma resumida de forma a se perceber todo o seu processo.

CAPÍTULO I – CAPITAL SOCIAL

Em primeiro lugar, importa definir de acordo com o artigo 1.º n.º 2 do CSC, que as Sociedade Comerciais detêm “por objeto a prática de atos de comércio e adotem o tipo de sociedade em nome coletivo, de sociedade por quotas, de sociedade anónima, de sociedade em comandita simples ou de sociedade em comandita por ações”.

O capital social surge diversificadas vezes referenciado nas normas legais. Das tentativas constantes de definir capital social passam sempre por ser considerado “cifra é representativa da soma dos valores das entradas dos sócios”1 de acordo com FERRER CORREIA2 . Podemos assim, considerarque o capital social se traduz num valor monetário dos bens entregues pelos sócios à sociedade, com o fim de dotar a mesma de meios financeiros necessários à constituição do património social. As participações dos sócios devem ser devidamente avaliadas e somadas de forma a atingirem um dado valor.

Nesta abordagem é pertinente citar o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa3 , de 1302-

1 Na perspetiva de ABREU COUTINHO, no seu manual de “Curso de Direito Comercial- Volume II” o capital social caracteriza-se como “a cifra representativa da soma dos valores nominais das participações sociais fundadas em entradas em dinheiro e/ou em espécie”. Este autor caracteriza especificamente como são feitas a entradas ao contrário de FERRER CORREIA.

2 FERRER CORREIA, “Lições de Direito Comercial”, Vol. II, Sociedades Comerciais. Doutrina geral, Coimbra, 1968;

3 Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Proc. n.º 446/2006-7, de 13-02-2007 relator: Maria do Rosário Morgado, disponível in: http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/e6e1f17fa82712ff80257583004e3ddc/0213b6059a a 309 5e 802 572 9500403774?OpenDocument

2007, (relator: Maria do Rosário Morgado), em que Oliveira Ascensão, “afirma que capital social é, como, uma figura misteriosa, pois embora exprima tendencialmente o valor do investimento inicial realizado, a partir daí, embora o seu valor se possa manter inalterado, o valor do património varia diaa dia. Também Ferrer Correia chama a atenção para a distinção a fazer entre património social e capital social Segundo este Professor, capital social é a cifra representativa da soma das entradas dossócios e serve de base para o cálculo dos resultados da exploração, dos lucros e perdas e ainda para adistribuição dos lucros aos sócios; património social é o valor do ativo, descontado o passivo(sublinhado nosso).

Preceitua o artigo 9.º n.º 1, alínea f) do CSC4 que o capital social deve constar obrigatoriamentedo contrato (pacto social) de qualquer tipo de sociedade, aquando da sua constituição, percebendo-se assim, que é um elemento essencial. Este é tendencialmente estável e cuja variação, a existir, não decorredo desenvolvimento do objeto social, mas através da deliberação dos sócios para esse efeito.

Por conseguinte, o capital social desempenha várias funções, seja ao nível interno, como critério de definição das posições jurídicas dos sócios ou na função de produção, seja no domínio externo, particularmente como função de garantia de credores (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto5 , de 11-04-2019 (relator: Maria Cecília Agante)) importantes para a sociedade comercial, permitindo assegurar um conjunto de requisitos necessários para o início e para o prosseguimento do objeto social, no qual é a razão da sua existência. De ressalvar, que o capital social é livremente fixado, mas o legislador exige valores mínimos consoante o tipo ou forma jurídica da sociedade6 . Por isso mesmo, como já referido, torna-se obrigatóriaa menção do montante do capital social no contrato de sociedade, pela sua extrema importância nas funções que desempenha, uma vez que o capital da sociedade é a obtenção de resultados que permite o retorno e a melhor remuneração possível do capital investido: a organização – regula os direitos e deveres dos sócios em conformidade com as suas participações sociais; a produção – assegura e existência de meios para o desenvolvimento da sociedade e por fim, a garantia dos credores: o capitalsocial é um valor abstrato de referência que, delimita a eficácia de certas regras que funcionam como garantias para os direitos e interesses de terceiros – a lei procura conseguir que o capital permaneça intacto, ou seja, que o património líquido não desça abaixo do valor do capital social.

4 Artigo 9.º n.º 1, alínea f) do CSC: “Do contrato de qualquer tipo de sociedade devem constar: O capital social,salvo nas sociedades em nome coletivo em que todos os sócios contribuam apenas com a sua indústria”;

5 Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, Proc. n.º 2224/17.2T8AVR.P1, de 11-04-2019, Relator: Maria CecíliaAgante, disponível in: http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e802 57cda00381fdf/122ed 82bbaf3a9f e8

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6 No que concerne às Sociedades Anónimas, o capital mínimo é de 50 000€, de acordo com o artigo 276.º n.º

5 doCSC. Já nas Sociedades por Quotas o valor do capital social é livremente fixado pelos sócios, contudo o valor mínimo da quota não pode ser inferior a 1€ por cada sócio – artigo 201.º do CSC;

A sua importância é tão relevante que a não inclusão do capital social no contrato de sociedade, como já referido, ser um elemento essencial no contrato sociedade, constitui um vício que determina a sua nulidade não sanável.

Concluindo, podemos ressalvar que o capital social é fulcral no Direito Societário, uma vez que possui funções de garantia, produção ou financiamento. É, no entanto, preciso sublinhar a inexistência de unanimidade do conceito de capital social. No caso das sociedades comercias, a sua modificação é efetuada principalmente através do aumento ou da redução, que são “operações” sujeitas a procedimentos especiais reguladas no Capítulo VIII no Código das Sociedades Comerciais, mais concretamente nos artigos 85.º a 96.º, como teremos oportunidade de comprovar ao longo do desenvolvimento do presente estudo.

CAPÍTULO II – ALTERAÇÕES DO CONTRATO SOCIAL

O artigo 405.º do CC estabelece o princípio geral da liberdade contratual, na qual as partes possuem a faculdade de fixar livremente o conteúdo do contrato, celebrando o mesmo, de forma diferente de acordo com o previsto neste código ou incluir neste as cláusulas que lhes aprouver, desde que respeitem os limites da lei.

Particularidade do contrato de sociedade

O contrato de sociedade comparativamente a outros contratos apresenta uma particularidade. Enquanto, que os contratos impõem a concordância de todas as partes envolventes, como por exemplo:contrato de compra e venda; o contrato de sociedade instituiu, legalmente, o princípio do maioritário,isto é, permite alterações contratuais por vontade da maioria. Contudo, quanto à possibilidade de introduzir alterações no contrato de sociedade pela vontadeda maioria sofre algumas exceções. É, assim, necessário o consentimento de todos os sócios quando esteja em causa, uma das seguintes situações: o agravamento da responsabilidade dos sócios; ou a atribuição de efeito retroativo a alterações contratuais.

A alteração do contrato social

As alterações estruturais da sociedade comercial são equacionadas fundamentalmente, tendo emconta a modificação do contrato de sociedade. Em conformidade com as regras gerais os contratos devem ser pontualmente cumpridos sendo aplicáveis aos contratos de sociedades os princípios de Direitodas Obrigações, segundo os quais se admite a extinção ou modificação dos contratos por mútuo consentimento dos contraentes – artigo 406.º n. º1 do CC7 .

7 Expressa MENEZES CORDEIRO no “Código das Sociedades Comerciais Anotado” que “nos termos do n.º 1,e tendo em conta o 406.º do CC, cabe aos sócios a deliberação das alterações ao contrato de sociedade. No entanto, o legislador permitiu que em casos especialmente previstos, a competência para a deliberação das

Nos termos do artigo 85.º n.º 1 do CSC, a alteração do contrato de sociedade, quer por modificação ou supressão de alguma das suas cláusulas quer por introdução de nova cláusula, só podeser deliberada pelos sócios, e em determinados casos pode até pertencer a outro órgão8 . Nesta abordagem, PUPO CORREIA9 esclarece, que no caso de sociedade abra-se uma exceção muito nítida àquele princípio, já que se consagra a modificabilidade do contrato por deliberação dos sócios, o quepode implicar uma não convergência da vontade unânime dos outorgantes do contrato: isto, ou por não serem já os mesmos os sócios originais (por entrada de novos sócios ou saída de outros), ou por a lei ou o contrato permitirem uma deliberação por maioria. Uma vez que em regra, o contrato de sociedade apresenta natureza plurilateral, com múltiplas partes. Portanto, uma das questões que se coloca é saber se será necessária a anuência de todos os sóciospara que a alteração do contrato da sociedade tenha lugar, cuja as regras variam consoante o tipo de sociedade, assim, no caso da sociedade em nome coletivo10 no que tange à alteração do contrato de sociedade a decisão deve ser tomada por unanimidade, nos termos do artigo 194.º do CSC.

Na sociedade por quotas11 a alteração do contrato tem que ser aprovada por votos correspondentes, no mínimo, a ¾ dos votos correspondente ao capital social ou por número mais elevadoexigido pelo contrato de sociedade, como tipifica o artigo 265.º do CSC. No que respeita, por outro lado, à sociedade anónima12 é necessário um quórum determinado para que a assembleia possa deliberar sobre o tema em questão13 . Devem estar presentes ou representados os acionistas que detenham, pelo menos ações correspondentes a 1/3 do capital – artigo 383.º n. º2 do CSC, ou sem segunda convocação, a assembleia pode deliberar seja qual for o número de acionistas presentes ou representados e o capital por eles representado (n.º 3). A deliberação quer em primeira quer em segunda convocação deverá ser tomada por maioria de 2/3 dos votos dos presents como prevê o artigo 386.º n.º 3 do CSC, salvo se, na segunda convocação, estes representarem pelomenos metade do capital, bastando a maioria dos votos emitidosartigo 386.º n.º 4 do CSC.

Por fim, quanto à sociedade comandita14 as deliberações sobre a alteração do contrato de sociedade devem ser tomadas unanimemente pelos sócios comanditados e por sócios alterações ao contrato fosse cumulativamente atribuída a outro órgão”, p. 291; corroborando este entendimento,Raúl Ventura refere que “o contrato de sociedade, só por si só, não pode atribuir competência, cumulativa a outroórgão social, para alteração dele próprio; pode porém, utilizar as permissões excecionais da lei, para o fazer”- “Alterações do Contrato de Sociedade” – Comentário ao Código das Sociedades, 2.º edição, 1996, p. 41.

8 Outro órgão enquadra-se por exemplo, a gerência, que prevalece no caso da Sociedade por Quotas.

9 CORREIA, Miguel J. A. Pupo, Direito Comercial – Direito da Empresa, 12.º edição, revista e atualizada, Lisboa: Ediforum, 2011, p. 185.

10 Regulada no CSC do artigo 175.º a 196.º;

11 Tipificada do artigo 197.º ao artigo 270.º -G do CSC;

12 Definida no diploma em análise do artigo 271.º ao 464.º;

13 RAMIREZ, Paulo, “Apontamentos de Direito Comercial”, Coimbra, 2010;

14 Expressa do artigo 465.º ao artigo 545.º do CSC;

comanditários querepresentem, pelo menos, 2/3 do capital possuído por estes, exceto se o contrato de sociedade prescindirda referida unanimidade ou aumente a mencionada maioria – artigo 476.º do CSC. Em regra, a alteração do contrato deve ser formalizada a escrito, como veremos seguidamente. Todavia, a alteração do contrato de sociedade não pode ter efeito retroativo, exceto nas situações em que lhes for atribuído unanimidade, e apenas quanto as relações entre os sócios, como elucida o artigo 86.º n. 1 do CSC. Seguindo este artigo, o seu n.º 2, estabelece a proteção dos sócios, no caso da alteraçãodo contrato envolver aumento das prestações a ele impostas pelo contrato, esse aumento é ineficaz paraos sócios que não tenham dado consentimento à deliberação.

Alteração formal do contrato de sociedade

Na anterior legislação15 do CSC, a deliberação da alteração do contrato devia necessariamente ser reduzida a escritura pública16, como comprova a expressão do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 16-05-2002, (relator: Sousa Inês): “o disposto no art.º 88º do Cód. das Soc. Com. reforça (…) na medida em que determina que o capital considera-se aumentado a partir da celebração da escritura pública”, contudo esta alteração também poderia ocorrer em ata notarial, desde que não estivesse em causa um aumento de capital – texto originário do antigo artigo 85.º n.º 3 do CSC.

Todas as modificações do contrato de sociedade correspondem a alterações formais, pese embora, nem todas estejam sujeitas ao regime jurídico que a lei estabelece no seu artigo 85.º do CSC. Atualmente, a alteração do contrato de sociedade deverá apenas ser “reduzido a escrito”(artigo 85.º n.º3 do CSC), considerando-se tal requisito preenchido em princípio com a simples ata da deliberação (artigo 85.º n.º4 do CSC). A ata, apenas não será suficiente, se a lei ou o contrato de sociedade exigirem outro documento – in fine do artigo 85.º n.º 4. Nesta situação, de ata de deliberação não será o suficiente,nos termos do disposto do n.º 5 do mesmo citado artigo, deve qualquer membro da

15 Redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 36/2000, de 14 de março (revogado), enunciava no n.º 3 que “a alteração do contrato de sociedade deliberada nos termos dos números anteriores deve ser consignada em escritura pública, a não ser que:

a) A deliberação conste de ata lavrada por notário e não respeite a aumento de capital;

b) A deliberação conste de ata lavrada pelo secretário da sociedade e não respeite a alteração do montante do capital ou do objeto da sociedade”;

16 Continuando na anterior legislação, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 16-05-2002, Proc. n.º 02B1328, Relator: Sousa Inês cita que “a alteração no contrato de sociedade interessa a todos os sócios, tenhamou não participado na deliberação, e interessa ao público em geral, sendo importante que um instrumento dotadode fé pública fixe o tempo e o conteúdo da alteração”, disponível in: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce

6ad9dd8b9 8 0 2 56b 5f 0 03fa814/87bfa9c2f9f4a0ba80256bc600352b12?OpenDocument. O Decreto-Lei n.º 76 – A/2006, de 29 de março, adotou medidas de simplificação e eliminação de atos e procedimentos registrais e notariais em matéria de Direito das Sociedades, vindo a eliminar este requisito da forma.

administração, praticar os atos necessários à alteração do contrato, com a maior brevidade e sem dependência de especial designação pelos sócios.

Toda alteração efetuada no contrato de sociedade está sujeita a registo (artigo 3.º n.º 1 , alínea r) do CRCom), mediante transcrição17 (artigo 53.º - A do CRCom, a contrario), devendo o seu pedido ser feito no prazo de dois meses a contar da data em que tiverem sido titulados – artigo 15.º n.º 2 do CRCom, bem como a publicidade18 (artigo 166.º do CSC19 e artigo 70.º n.º1, alínea a) do CRCom). A publicidade, nos dias de hoje, é feita em sítio na Internet de acesso público (n. º2), sendo promovida pela Conservatória no prazo de 5 dias a contar do registo – artigo 71.º n.º 1 e 2 do CRCom.

CAPÍTULO III – AUMENTO DO CAPITAL

Enquadramento jurídico

O aumento do capital, vem regulado no CAPÍTULO VIII, Secção II, previsto nos artigos 87.º a93.º do CSC. Trata de ser uma operação que as sociedades comerciais realizam quando o capital da empresa se torna insuficiente para as suas necessidades20” .

Neste seguimento, para ajudar a entender o intuito do aumento de capital social julgo que seja pertinente citar o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa21, de 28-10-2008, (relator: Rui Moura):“o aumento de capital das sociedades comerciais ocorre quando elas não dispõem de capitais próprios suficientes para prosseguir a sua atividade, em termos adequados, ou se encontram em situação económica difícil para o fazer com os capitais de que dispõem; ainda quando a sociedade dispõe de meios suficientes para realizar a sua atividade e se propõe integrá-los no seu capital para lhes conferirestabilidade (….)”

O aumento do capital implica formalmente a substituição da cifra estatuária, nominal do capitalsocial, na qual se institui um novo valor que a sociedade pode não poder dispor, nem reduzir, sob pena de a sua própria existência ser colocada em causa. Em primeiro lugar, o legislado do CSC parte do princípio de que o aumento de capital pressupõeque este terá de ser deliberado por um órgão da sociedade. As deliberações dos sócios só podem ser provadas, com a apresentação da respetiva ata de assembleia, ou quando sejam admitidas deliberações por escrito, pelos documentos de onde elas constem, em face dos artigos 54.º e 63.º n.º 1 e 4 ambos do CSC.

No artigo 87.º encontramos elencados os requisitos de conteúdo para que a deliberação deaumento de capital seja válida. Tem, pois que “mencionar expressamente”:

17 O registo por transcrição consiste na extração dos documentos apresentados, dos elementos que definem a situação jurídica das entidades sujeitas a registo comercial, informação retirada do Instituto de Registo e Notariado:Registo Comercial, disponível in: https://irn.justica.gov.pt/ ;

18 O artigo 70.º do CRCom elenca os atos em que a publicação dos mesmos é obrigatória;

19 Artigo 166.º do CSC: “Os atos relativos à sociedade estão sujeitos a registo e publicação nos termos da lei respetiva”.

20 Doutor José Dias Marques, “Modificação dos Pactos Sociais”, Revista da Ordem dos Advogados, p. 170;

21 Acórdão do Tribunal da relação de Lisboa, de 28-10-2008, Proc. n.º 7648/2008-1, Relator: Rui Moura, disponível in: http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/e6e1f17fa82712ff80257583004e3ddc/3a4e8b2591fb65398025

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“a) A modalidade do aumento do capital;

O montante do aumento do capital;

O montante nominal das novas participações;

A natureza das novas entradas;

O ágio, se o houver;

Os prazos dentro dos quais as entradas devem ser efetuadas, sem prejuízo do disposto noartigo 89.º;

As pessoas que participarão nesse aumento”

Modalidades de aumento de capital

Refere o artigo 87.º n.º 1, alínea a) do CSC que o aumento do capital, ocupa-se de duas modalidades, nomeadamente:

Incorporação de reservas, que se traduz na incorporação no capital de meios já existentes nasociedade, ou seja, na transformação de reservas em capital – artigos 91.º a 93.º do CSC. Subscrição de novas entradas22, que se traduz num acréscimo de meios para a sociedade (poderá ou não originar entrada de novos sócios), e por isso faz aumentar o ativo – artigos 87.ºa 90.º do CSC. Podendo estas novas entradas serem efetuadas em dinheiro ou em espécie.

Aumento do capital por incorporação de reservas

A competência para o aumento de capital por incorporação de reservas reside maioritariamente,nos sócios (artigo 85.º n.º 1), à exceção na última parte prevista no artigo enunciado “salvo quando a lei permita atribuir cumulativamente essa competência a algum outro órgão”. Esta exceção apenas se refere ao aumento de capital por entrada em dinheiro enunciado no artigo 456.º n.º1 do CSC. Note-se que o aumento de capital por incorporação de reservas, regulado no artigo 91.º e ss. do CSC, consiste na utilização de meios que a sociedade já dispõe e que, pela incorporação no capital, adquirem estabilidade, elevando a medida da sua responsabilidade e tornando mais exigente os respetivos resultados. Segundo a doutrina, as reservas podem ser classificadas em reservas obrigatórias (resultam da lei ou dos estatutos) e reservas livres (criadas por deliberação dos sócios).

Contrariamente, OLAVO CUNHA, considera três tipos de reservas23 . Não estabelecendo a lei a ordem pela qual as mesmas devemser incorporadas. Na perspetiva deste autor24 , devem ser incorporados primeiramente as reservas legais,em que só depois de estas estarem

22 Relativamente a esta modalidade de aumento do capital social por novas entradas deve em este ser mencionadaa natureza da mesma, nomeadamente se é entrada em dinheiro ou entradas em espécie;

23 São as Reservas Legais (obrigatória ou especiais), Reservas estatutárias e reservas Livres, elencadas no manualde “Direito das Sociedades Comerciais”, CUNHA, Paulo Olavo, 5.º Edição, Coimbra: Almedina, 2015, p. 847.

24 CUNHA, Paulo Olavo, “Direito das Sociedades Comerciais”, 5.º Edição, Coimbra: Almedina, 2015, p. 848.

esgotadas se (deve) recorrer a reservas livres existentes, a “deliberação deve mencionar expressamente: as reservas que serão incorporadas”

artigo 91.º n.º 4, alínea c) do CSC. Contudo, para o aumento de capital por incorporação de reservas, existem um conjunto de requisitos que devemos atender. A sociedade só pode aumentar o capital por incorporação das reservasdisponíveis para efeito25 – artigo 91.º n.º 1 CSC. Este aumento de capital só pode ser deliberado “depois das contas depois de aprovadas as contas do exercício anterior” (artigo 91.º n. º2). No caso de já ter decorrido “mais de seis meses sobre essa aprovação, a existência de reservas a incorporar só pode seraprovada por um balanço especial, organizado e aprovado nos termos prescritos para o balanço anual”(artigo 91.º n. º2, in fine), do qual resulta a sua existência – e se encontrarem “vencidas todas as prestações do capital, inicial ou aumentado”(n.º3, in fine), para que o mesmo possa ser alterado, ou seja, aumentado.

Atente-se que o aumento de capital por incorporação de reservas deve ser deliberado pelos sócios, sendo necessária uma maioria de ¾ . Também no mesmo artigo, o n.º 4, enumera que a deliberação deve mencionar expressamente:

“a) A modalidade do aumento do capital;

O montante do aumento do capital; As reservas que serão incorporadas no capital”.

Aumento do capital por novas entradas

A doutrina distingue o aumento de capital por novas entradas como um “reforço quantitativo do património da sociedade26”. Enuncia OLAVO CUNHA27 , que o aumento de capital por novas entradas é aquele que proporciona verdadeiramente novos meios à sociedade, dotando-a de capitais que,até então, não dispunha. Deste modo, como supra citado, o aumento de capital por novas entradas podeser feito em dinheiro ou em espécie. Aumento por entradas em dinheiro

Se a sociedade deliberar que o aumento de capital seja total e imediatamente realizado, o dinheiro correspondente terá que ser entregue na mesma data da deliberação, devendo tal facto constar em ata. No aumento de capital por novas entradas pode ser efetuado pelos sócios ou para admissão de novos sócios.

As entradas em dinheiro apresentam uma nuance face às entradas em espécie, na medida em que dão origem ao direito de preferência dos sócios (artigo 87.º n.º 2 do CSC).

25 No entender de MENEZES CORDEIRO no “Código das Sociedade Comerciais Anotado”, as reservas disponíveis para o efeito, abrangem quer os montantes expressamente contabilizados como reservas, e dentro destes mesmo a reserva legal, quer os montantes que, não estando contabilizados como reservas, sejam suscetíveisde distribuição por vontade dos sócios, o conceito é mais jurídico-societário;

26 SOARES, Maria Ângela Bento, “Aumento do Capital”, Coimbra: Almedina, p. 239;

27 CUNHA, Paulo Olavo, “Direito das Sociedades Comerciais”, 5.º Edição, Coimbra: Almedina, 2015, p. 843;

3.2.2.2. Aumento por entradas em espécie

Uma das formas de realizar o capital de uma sociedade é através das entradas em espécie28 Consigna o artigo 26.º n.º 1 do CSC, que as entradas em espécie devem ser totalmente efetuadas antes de se encontrar concluída a deliberação de aumento de capital ou de ser emitida a declaração de que asmesmas estão realizadas, ou seja, devem estar prescritas para constituição de sociedade.

Neste entendimento, é pertinente citar o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça29, de 29-11- 2012, (relator: Orlando Afonso), referindo que “o Código das Sociedades Comerciais exige, por um lado, que as entradas em espécie (bens diferentes de dinheiro) sejam integralmente liberadas no momento do capital social (ou da constituição da sociedade) não sendo possível o diferimento da sua realização (arts.26.º e 89.ºn.º1 do CSC) e, por outro lado, que estas entradas sejam objecto de uma avaliação por parte de um revisor oficial de contas sem interesses na sociedade (art.28.º n.º1 do CSC)”.

Em termos doutrinários, sobre a aplicação do artigo 28.º do CSC, de acordo com MENEZES

CORDEIRO: “o objeto nas entradas em espécie lidamos com quaisquer direitos patrimoniais suscetíveis de penhora – 20.º alínea a) –E que não consistam em dinheiro. Podem consistir: na propriedade sobre móveis ou imóveis; ou qualquer outro direito de gozo, real, ou pessoal,sobre coisas; e, em direitos sobre bens imateriais, como patentes, licenças, técnicas de produção, marcas, insígnias ou Know-how”. Como referido, tratando-se de entradas em espécie solicita-se a intervenção de um ROC que deve elaborar um relatório sobre esses bens ou direitos, não só descrevendo os bens ou os direitos e identificando os titulares, mas também proceder à sua avaliação de forma a determinar se os valoresencontrados atingem o valor nominal da parte de capital que o sócio deve realizar.

Eficácia interna do aumento de capital

O aumento de capital tem eficácia interna na data da deliberação ou a partir da declaração escritasubscrita por qualquer administrador de que as novas participações já se encontram realizadas30 - artigo88.º n. º 2 do CSC, embora só produza os seus efeitos perante terceiros com o registo.

28 Na perspetiva dos sócios as entradas em espécie são uma forma de obter a desejada participação no capital semdependerem de dinheiro vivo, utilizando, somente, os bens que possuem;

29 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça , de 29-11-2012, Proc. n.º 2765/08.2TBPNF.P1.S1, Relator: Orlando Afonso, disponível in: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b9802

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30 Ressalva-se o facto de até à entrada em vigor do Decreto-Lei nº 76-A/2006, de 29 de março, que o capital socialse tornava eficaz, entre os sócios, com celebração da escritura pública;

Assim, o capital social considera-se aumentado desde que da respetiva ata da assembleia geral conste: quais as entradas já efetuadas pelos sócios; e, declaração de que, por lei ou pelo contrato, não éexigida a realização de outras para o capital estar integralmente realizado.

Registo do Aumento de Capital Como enunciado, no Capítulo II – Alteração do Contrato da Sociedade, o aumento de capital está sujeito a registo obrigatório na Conservatória do Registo Comercial (artigo 3.º n.º 1, alínea r) do CRCom) bem como a publicação obrigatória (artigo 70.º n.º 1, alínea a) do CRCom).

A cada alteração do contrato de sociedade devem ser apresentadas, para arquivo, versões atualizadas e completas do texto do contrato alterado (pacto social atualizado e ata de deliberação) e a lista dos titulares das participações sociais, com os respetivos dados de identificação - artigo 59.º n.º 2 do CRCom. Tratando-se de aumento de capital por entradas em espécie é necessário para além dos documentos enunciados, o relatório resultante da avaliação do revisor oficial de contas. No que concerne ao aumento de capital por incorporação de reservas os documentos necessários para proceder ao registosão o balanço que serviu de base à deliberação, caso este não se encontre depositado na conservatória –artigo 93.º n.º 1 do CSC, além disso, ainda é necessário a declaração do órgão de administração e de fiscalização, quendo exista, de não ter conhecimento de que, no período compreendido entre o dia a quese reporta o balanço que serviu de base à deliberação e a data em que esta foi tomada, haja ocorrido diminuição patrimonial que obste ao aumento de capital. O custo do registo é de 225,00€ como disciplinao artigo 22.º

2.4.1 do Regulamento Emolumentar dos Registos e Notariado – D.L n.º 322-A/2001, de 14de dezembro.

CAPÍTULO IV – REDUÇÃO DO CAPITAL Enquadramento

A redução do capital, prevista nos artigos 94.º, 95.º e 96.º do CSC, é outra forma de alteração do contrato de sociedade, consistindo, na substituição do montante do capital por um montante inferior.RAÚL VENTURA31 salienta que o montante do capital é elemento essencial do contrato de sociedade e, portanto, a redução do capital altera o contrato.

Tanto mais que o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto32, de 11-04-2019, (relator: Maria Cecília Agante), refere que a redução do capital social representa uma variação negativa e implica umaalteração estatutária traduzida na substituição do montante do capital social ínsito ao contrato da sociedade, vigente no momento deliberativo, por um montante inferior. Como o capital subscrito poderáser excessivo para os negócios que a sociedade se

31 VENTURA, Raúl, “Alterações do Contrato de Sociedade” – Comentário ao Código das Sociedades, 2.º edição,1996, p. 314;

32 Acórdão do Tribunal da Relação do Porto , de 11-04-2019, Proc. n.º 2224/17.2T8AVR.P, Relator: Maria Cecília Agante disponível in: http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e71216 57f91e80257cda00381fdf/ 122ed82bbaf3a9fe 80 2583fd00475bd9?OpenDocument;

propõe a efetuar, fazendo, assim, todo o sentido, reembolsar parcialmente aos sócios as quantias que não são necessárias, ou que dado ao êxito alcançadoe aos objetivos por atingir passaram a ser supérfluas.

Na redação inicial do CSC dos três artigos que consagravam a redução do capital - 94.º a 96.º - podiam extrair-se duas regras fundamentais: primeiramente, a decisão de reduzir o capital era sempre vinculada a um objetivo; e em segundo, apenas era dispensada a autorização judicial para a redução docapital quando o fim proposto fosse a da cobertura de prejuízos.

Entretanto o Decreto-Lei n.º 8/2007, de 17 de janeiro, alterou este regime, com o fundamento que a obrigatoriedade de tal autorização torna o processo desnecessariamente moroso e complexo, suprimindo a exigência da autorização judicial em caso de redução por exuberância ou por outra finalidade especial, alterando consequentemente, os artigos 95.º e 96.º do CSC. Dispensado, a autorização judicial para a realização de qualquer uma delas.

No seguimento desta alteração MENEZES CORDEIRO33 declara, que “no sistema em vigor, as duas regras supra referidas foram alteradas: permanece a primeira já que a redução é sempre vinculada (94.º), mas deixa de ser necessária a intervenção judicial em qualquer dos casos (95.º), a menos que os credores assim o requeiram (96.º)”. Para que se entenda, atualmente o regime de redução de capital, os tópicos seguintes sintetizarão o procedimento do mesmo.

Requisitos especiais da Convocatória

A convocatória para a Assembleia Geral em que se pretenda deliberar a redução do capital socialdeve mencionar expressamente: a redução planeada, mencionando a sua finalidade (se é destinada àcobertura de prejuízos, a libertação de excesso de capital ou outra finalidade especial); a sua forma (diminuição do valor nominal das participações ou reagrupamento ou extinção de participações); e, no caso de não incidir sobre todas a participações, quais serão as visadas (artigo 94.º do CSC).

Finalidades da redução do capital

São várias as finalidades que a operação de redução de capital visa alcançar, conforme preceituao artigo 94.º n.º 1 do CSC, que nestes termos, visa a cobertura de prejuízos, a libertação de excesso de capital ou uma finalidade especial.

Da cobertura de prejuízos34

33 CORDEIRO, António Menezes, “Código das Sociedades Comerciais Anotado”, Almedina, 2009, p. 311. 34 Também pode ser designado por Compensação de Perdas;

Para que os sócios possam deliberar a redução do capital por perdas, torna-se imprescindível o conhecimento, a existência e o montante destas35 . No decorrer da atividade da sociedade, se esta apurar prejuízos, estes devem ser neutralizados pelas reservas. No entanto, quando o valor dos prejuízos acumulados excede o valor das reservas, acarretará a uma interferência com o capital social, pois o valordo capital próprio pode encontrar-se abaixo do valor do capital social. Se esta situação ocorrer deve-se reduzir o valor do capital social de forma a que o seu valor se adapte a valor do património líquido. Pretende-se restabelecer a correspondência entre o valor do capitale valor do património efetivamente existente.

Da libertação de excesso capital

A libertação de excesso de capital surge quando o mesmo é excessivo ou exuberante36 para a empresa, ou seja, quando o mesmo é excessivo relativo às necessidades decorrentes da atividade prosseguida, ou por ter sido inicialmente mal calculado ou ser demasiado relativamente à atividade queé exercida37. Ora, sendo o mesmo excessivo e improdutivo, a lei admite a sua redução nos termos do artigo 94.º n. º1, alínea a) do CSC. No entendimento da doutrina de OLAVO CUNHA38 e RAÚL VENTURA39 , esta operação não deve acarretar nenhum prejuízo para os sócios. Com efeito de por detrás desta redução poder estar uma finalidade que os beneficia, como em particular: a atribuição diretaaos sócios das importâncias libertadas, ou seja, distribuição direta dos bens; a extinção de obrigações de entrada; e, a criação de reservas livres que, no futuro, venham a ser necessárias à atividade da sociedade.

No concernente, a esta última alínea, COUTINHO ABREU40 , não concorda tal finalidade, tantomais, considera que “diferentemente da jurisprudência e doutrina italiana (…) – tem sido entendido que não é admissível a redução do capital por exuberância, quando os fundos libertados pela reduçãose mantenha na sociedades a título de reservas, porquanto isso evidencia que, afinal, aquele “capital”ainda é necessário à sociedade”.

Outras finalidades da redução do capital

35 RAÚL VENTURA, “Alterações do Contrato de Sociedade” – Comentário ao Código das Sociedades, 2.º edição, 1996, p. 338

36 «Excessivo» e «exuberante» são termos relativos – refere RAÚL VENTURA, “Alterações do Contrato de Sociedade”

Comentário ao Código das Sociedades, 2.º edição, 1996, p. 335;

37 Dentro deste entendimento, MENEZES CORDEIRO, defende que a comparação da redução por excesso de capital deve ser feita entre o capital social e situação líquida existente, em que se esta for superior ao capital sociale à reserva legal, pode assim, ser realizada a dita operação – “Código das Sociedades Comerciais Anotado”;

38 CUNHA, Paulo Olavo, “Direito das Sociedades Comerciais”, 5.º Edição, Coimbra: Almedina, 2015, p. 847;

39 VENTURA, Raúl, “Alterações do Contrato de Sociedade” – Comentário ao Código das Sociedades, 2.º edição,1996, p. 320;

40 ABREU, Jorge Manuel Coutinho, Código da Sociedades Comerciais em Comentário, Volume II (artigos 85.º a174.º), Coord, J.M. Coutinho de Abreu, 2.º edição, Coimbra: Almedina, 2015, pp. 123 e 124.

Para além das duas finalidades enunciadas anteriormente, a redução do capital poderá visar outras finalidades, que deverão, também, constar na convocatória para a assembleia geral.

Extinção das obrigações de entrada

De acordo com o artigo 27. º do CSC a obrigação de entrada é a principal obrigação da sociedadenão sendo permitido à sociedade exonerar o sócio do cumprimento desta obrigação. Assim, a redução de capital poderá servir para extinção de obrigação de entrada, quando tenha havido diferimento daquelas e relativamente às partes diferidas e não pagas. As entradas diferidas a extinguir podem serrelativas à constituição da sociedade ou a um aumento de capital.

Na sequência de uma amortização por quotas

A redução do capital pode surgir na sequência de uma amortização por quotas, quando o capitalda própria sociedade possui um valor menor à soma do capital social e da reserva legal41 artigo 236.º n. º1 do CSC.

Possibilitar a cisão da sociedade

Segundo a doutrina, cisão é a operação pela qual uma sociedade se divide para dar origem a duas ou mais sociedades. A redução do capital pode tornar-se necessária para permitir a cisão simples de uma sociedade. Determina o artigo 123.º n. º1, alínea a) do CSC, que não é possível a operação cisão,se o “valor do património da sociedade cindida se tornar inferior à soma das importâncias do capital social e da reserva legal e não se proceder, antes da cisão ou juntamente com ela, à correspondente redução do capital social”.

Vigorando, assim, o princípio da integridade do capital visando a lei assegurar que após a operação, o capital da sociedade cindida se mantem intacto.

Condicionalismos

à redução do capital

Limites à redução do capital

Por força das alterações introduzidas ao artigo 95.º do CSC, pelo artigo 11.º do Capítulo II, do Decreto-Lei n.º 8/2007, de 17 de janeiro, a redução do capital só poderá ocorrer desde que a situação líquida da sociedade não fique inferior: a 20% do novo capital, ou seja, o capital social após a redução42(artigo 95.º n.º 1 do CSC); e, a um montante inferior ao mínimo legal estabelecido no CSC. para o respetivo tipo de sociedade.

41 Reserva Legal - é uma proteção do capital social. Nas sociedades anónimas a reserva legal equivale à quinta parte do capital social, ou seja, 20% do capital social. Nas sociedades por quotas a reserva legal não pode ser inferior a 2.500 euros. Conceito retirado do I.R.N, “Registo Comercial”, disponível in: https://irn.justica.gov.pt/;

42 O mesmo dizer, proibição de redução do capital se a situação líquida não ficar a exceder o novo valor do capitalem, pelo menos, 20%.

Redução do capital social sujeita a deliberação de aumento de capital

Em suma, a redução do capital para um montante inferior ao mínimo legal só pode ser deliberadase tal redução ficar expressamente condicionada à efetivação de aumento do capital para montante igualou superior àquele mínimo, a realizar nos 60 dias seguintes àquela deliberação – artigo 95.º n.º 2 do CSC.

Redução com transformação

É igualmente permitido deliberar a redução do capital a um montante inferior ao estabelecido neste Código para o respetivo tipo de sociedade, caso esta seja necessária para o estabelecimento dos regimes de reestruturação preventiva previstos no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas

- artigo 95.º n.º 3 e n.º 4 do CSC.

Manutenção da obrigação de liberação do capital social

O facto de haver redução do capital social não exonera os sócios das suas obrigações de liberação do capital (artigo 95.º n.º 5 do CSC), no caso de haver entradas diferidas e não realizadas, salvo se a redução do capital social for feita expressamente com esse propósito.

Operação Harmónio

A Operação Harmónio ou “Operação Acordeão” é a operação que os franceses designam, expressamente, por coup d’accordéon43 , e traduz-se na realização de uma redução de capital para cobriras perdas e assim poderem ser distribuídos lucros – e logo de seguida proceder ao aumentar de capital.

Deste modo, esta operação compreende dois momentos distintivos, primeiramente, a redução do capital é utilizada para sanar os prejuízos acumulados, ou excesso de liquidez. O segundo momento diz respeito ao aumento de capital através da emissão de novas entradas de capital ou incorporação de reservas subscritas pelos próprios acionistas ou pelos novos acionistas.

A regra do CSC é que as deliberações de redução de capital a um montante inferior ao mínimolegal são nulas. Todavia, esta regra é excecionada pelo disposto do artigo 95.º n.º

2 do diploma em análise, em que é permitida a redução do capital social a um montante inferior ao mínimo legal desde que essa redução fique expressamente condicionada à efetivação de aumento de capital a realizar nos 60 dias seguintes à deliberação da redução para montante igual ou superior àquele mínimo.

43 Operação Harmónio possui expressão francesa porque esta solução é adotada em Portugal, mas proveniente dedoutrina francesa.

O legislador, declara, que ao não serem cumpridas as condições enunciadas anteriormente, a deliberação será nula por violação de norma legal imperativa ex vi artigo 56.º n.º 1 do CSC.

Registo Comercial

Quanto ao registo comercial da redução do capital, o mesmo está sujeito a registo obrigatório, por transcrição na Conservatória do Registo Comercial (artigo 3.º n.º 1, alínea r) e 15.º do CRCom). Sendo a sua publicação também obrigatória (artigos 116.º a 168.º CSC e artigo 70.º do CRCom). A cada alteração do contrato de sociedade devem ser apresentadas, para arquivo, versões atualizadas e completas do texto do contrato alterado (pacto social atualizado e ata de deliberação) e a lista dos titulares das participações sociais, com os respetivos dados de identificação - artigo 59.º n.º 2 do CRCom. Tendo o emolumento de 225,00€ como disciplina o artigo 22.º, 2.4.1 do Regulamento Emolumentar dos Registos e Notariado – D.L n.º 322-A/2001, de 14 de dezembro.

Tal como acontece no aumento do capital, o incumprimento da obrigação de registar dá lugar a instauração de um procedimento contraordenacional, ficando, assim, a sociedade sujeita ao pagamento de coimas que podem variar consoante o capital ou o período do incumprimento.

CONCLUSÃO

Findo o estudo a que me propus realizar, importa, assim, concluir, que o capital social é um dos elementos centrais na nossa vida societária. Das suas funções que tendem a ser atribuídas ao capital social destacam-se as funções de organização, produção e de garantia de credores.

No que concerne à alteração do contrato de sociedade, para cada tipo de sociedade deve ser respeitado e estipulado o disposto na lei quanto ao capital social mínimo. Outro ponto, fulcral é que a alteração deve ser efetuada de forma escrita, em regra apresentada pela ata da respetiva deliberação ou em casos excecionais é exigido outro documento que a lei ou o contrato social assim o obriguem. Concluindo, quanto aos temas centrais, nomeadamente, ao aumento e à redução do capital, importa referir que o primeiro poderá ser realizado, como pudemos ver ao longo do trabalho, por incorporação de reservas ou novas entradas (dinheiro ou em espécie); quanto ao segundo, a redução, pode ocorrer por diversas finalidades, mas mais frequentemente, por perdas irreparáveis ou por o capital ser excessivo e relação ao objeto da sociedade.

BIBLIOGRAFIA

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TRIBUNA DA RELAÇÃO DO PORTO

Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, Proc. n.º 2224/17.2T8AVR.P1, de 11-04-2019. Relator: Maria CecíliaAgante. Disponível in: http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e802 57cda00381fdf/122ed 82bbaf3a9f e8 02583fd00475bd9?OpenDocument [consultado em 22/10 /2022]

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Contrato de locação financeira e os seus efeitos

Contrato de locação financeira e os seus efeitos

Ricardo Medeiros Sousa

Solicitador

Lista de Abreviaturas e Siglas

Ac. Acórdão

al./als. alínea/alíneas

art./arts. artigo/artigos

CCivil Código Civil

cfr. confira

coord. coordenação

Dec-lei/DL Decreto Lei

ed. edição

EUA Estados Unidos da América

n.º/n.º(s) número/números

op. cit. opus citatum

p./pp. página/páginas

proc. processo

RGICSF Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras

RJCLF Regime Jurídico do Contrato de Locação Financeira

ss. seguintes

TRL Tribunal da Relação de Lisboa

TRP Tribunal da Relação do Porto

v.g. verbia grata

vol. volume

iii

Introdução

No presente trabalho ocupámo-nos com o estudo do contrato de locação financeira, mormente os seus principais efeitos no foro jurídico dos seus intervenientes. O leasing tal como o conhecemos surgiu nos EUA no século XIX tendo-se expandido para a Europa na 2ª metade do século XX, primeiramente na Inglaterra. Em Portugal, o leasing apresenta-se nos finais da década de 70 sendo o DL nº 135/79, de 18 de maio, que regulava as sociedades de locação financeira, e o DL nº 171/79, de 6 de junho, que regulamentava o contrato de locação financeira, os primeiros diplomas legais a versaram sobre este tipo de financiamento. Atualmente o Regime Jurídico do Contrato de Locação Financeira encontra-se previsto no DL n.º 149/95, de 24 de junho. Ainda como importantes diplomas temos o DL n.º 298/92, de 31 de dezembro que consagra o Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, o DL n.º 72/95, de 15 de abril, que regula as sociedades de locação financeira e ainda o DL n.º 186/2002, de 21 de agosto, que cria as instituições financeiras de crédito.

A locação financeira demonstra-se como um modo de financiamento a que as pessoas singulares e as pessoas coletivas recorrem, de forma assinalável, para a prossecução de objetivos que de outra forma seriam mais “onerosos” de alcançar dado os riscos envolvidos mas que com o leasing são atenuados.

Enquadramento Geral

A locação financeira desenvolve-se no foro do Direito Bancário1, mormente no Direito Bancário Material que compreende as normas jurídicas reguladoras da atividade desenvolvida pelas instituições de crédito e sociedades financeiras2, incluindo o conjunto diversificado de atos e operações que estes se encontram legalmente habilitados a desenvolver (Antunes, 2011, p. 77). Neste sentido, o contrato da locação financeira será não só um contrato comercial mas também um contrato bancário, mais especificamente um contrato de financiamento3 .

Seguindo o raciocínio de Pupo Correia (2009, p. 544) de classificar as operações bancárias (vide art. 4º do RGICSF, que elenca as operações permitidas aos bancos) em: i) fundamentais ou acessórias, consoante o objeto seja dinheiro ou prestações de serviços; e ii) em ativas, passivas ou neutras, consoante a instituição financeira se coloque numa posição de credor, de devedor ou nenhuma das duas; a locação financeira, enquanto contrato de financiamento, tratar-se-á tendencialmente de operações bancárias acessórias

1 Engrácia Antunes (2011, pp. 76-77) apresenta a noção tradicional de Direito Bancário como o “conjunto de normas jurídicas que têm por objeto nuclear a regulação dos intermediários creditícios e da respetiva atividade”.

2 Os tipos de instituições de crédito e os tipos de sociedades financeiras vêm estatuídos, respetivamente, nos arts. 3º e 6º do RGICSF a que se acrescentam as instituições financeiras de crédito (DL n.º 186/2002, de 21 de agosto).

3 Engrácia Antunes (2011, pp. 83 e ss.) aponta como principais categorias de contratos bancários: O contrato de conta bancária, os contratos de crédito, os contratos de financiamento, os contratos de garantia e os contratos de pagamento.

e neutras dado que o banco “limita-se a disponibilizar determinados serviços ou operações financeiras sem disponibilização monetária, não assumindo assim qualquer posição credora” (Antunes, 2011, p. 112). O leasing caracteriza-se por conceber um formato de financiamento eficaz e rápido, “permitindo o aumento da capacidade de endividamento da empresa, sem afetar a sua capacidade de obtenção de empréstimos, proporcionando a cobertura total do investimento e ainda a total dedutilidade das prestações a pagar” (Pizarro e Calixto, 1995, p. 15).

A título de acrescento interessa assinalar que, para além do leasing, surgem como contratos de financiamento4 a cessão financeira (factoring), a titularização de créditos (securitization), a monetarização de créditos (forfaiting) e o financiamento de projeto específico (project finance), sem prejuízo da existência de outros menos relevantes5 .

Noção e Características do Contrato de Locação Financeira

A princípio realça-se, desde logo, o facto de depararmo-nos com um contrato nominado e típico, encontrando-se regulado no DL n.º 149/95, de 24 de junho6 .

O art. 1º do RJCLF define locação financeira como o contrato através do qual uma das partes se obriga, mediante retribuição, a ceder à outra parte o gozo temporário de uma coisa, móvel ou imóvel, adquirida ou construída por indicação desta, e que o locatário poderá comprar, decorrido o período acordado, por um preço nele determinado ou determinável mediante simples aplicações dos critérios nele fixados. Desta noção podemos retirar um agregado de elementos basilares7: (i) é um contrato comercial; (ii) é um contrato bancário, de financiamento8; (iii) incide sobre coisas móveis ou imóveis; (iv) enquanto partes temos o locador, quem cede o gozo temporário da coisa, e o locatário, a quem é cedido o gozo temporário da coisa; O objeto, podendo se tratar de coisa móvel ou imóvel, terá de consistir em bem que seja suscetível de ser dado em locação (cfr. o art. 2º, n.º 1 do RJCLF). Nesta sede, Rui Pinto Duarte9 (2012, p. 93) levanta a questão da susceptibilidade de coisas incorpóreas serem objeto de locação financeira, respondendo favoravelmente. Será, portanto, importante catalogar determinados requisitos a serem observados em sede do objeto possível. Seguindo o estudo de Pizarro e de Calixto (1995, pp. 18-19), embora discordando quanto à exigência da materialidade: (i) suscetibilidade de ser alvo de relações patrimoniais; (ii) não ser coisa fora do comércio (vide art. 202º, n.º 2 do CCivil); (iii) de propriedade privada (vide arts. 1302º, 1303º e 1305º do CCivil); (iv) móveis ou imóveis (vide arts. 204º, n.º 1 e

4 Também comummente designados por contratos financeiros, cfr. Pizarro e Calixto (1995) e Pupo Correia (2009, pp. 542 e ss.).

5 Cfr. Engrácia Antunes (2011, p. 112).

6 Aponta-se ainda como sendo relevantes o DL n.º72/95 de15 de abril (que regulaas sociedadesde locação financeira) e aConvenção de Ottawa de 1988 (relativa aos contratos internacionais). Cfr. neste sentido, Engrácia Antunes (2011, p. 114).

7 Cfr. em sentido próximo, Pizarro e Calixto (1995, pp. 17-18).

8 Apresentará então obrigatoriamente características próprias e transversais aos contratos bancários, tais como a formalidade e tratarse de contrato de adesão. Cfr. neste sentido Engrácia Antunes (2011, pp. 81-82) e Gravato Morais (2006, pp. 67-69).

9 Cfr. também Rui Pinto Duarte (2015, pp. 251-252).

205º, n.º 1 do CCivil); (v) genéricos ou específicos; (vi) não consumíveis (vide art. 207º do CCivil a contrario sensu ).

Como sujeitos do contrato teremos então o locador e o locatário. O primeiro tratar-se-á de banco, de sociedade de locação financeira ou de consórcios constituídos por estas entidades enquanto habilitadas a exercer a atividade de locação financeira e ainda de instituições financeiras de crédito (vide arts. 7º do DL nº 72/95, de 15 de abril, 1º do DL nº 186/2002, de 21 de agosto, que no seu art 4º revoga o art. 4º do DL nº 72/95, de 15 de abril, e 23º do RJCLF). No Ac. do TRL de 27 de setembro de 2018 (proc. 125302/16.4YIPRT.L1-8; relator: Luís Mendonça) é explicado que as sociedades de locação financeira terão de revestir a forma de sociedades anónimas, dependendo a sua constituição, assim como das restantes entidades habilitadas a este tipo de financiamento, de autorização do Banco de Portugal que mediante Portaria conjunta com o Ministério das Finanças fixa os requisitos exigidos (v.g., o capital social mínimo previsto na Portaria nº 95/94, de 9 de fevereiro, republicada pela Portaria nº 335/2013, de 15 de novembro). Relativamente à posição de locatário, não se regista quaisquer restrições à assunção de tal qualidade10. Surge ainda o fornecedor/fabricante/distribuidor/vendedor enquanto terceira entidade mas que não merecerá a qualificação de sujeito/parte11 .

O art. 3º, n.º 1 do RJCLF estabelece a celebração dos contratos de locação financeira por documento particular como forma mínima exigida12

Não existindo cláusula a prever o prazo, o contrato de locação financeira considera-se celebrado pelo prazo de 18 meses ou de 7 anos, consoante se trate de bens móveis ou de imóveis (art. 6º, n.º 3 do RJCLF).

Por fim, importa uma abordagem, ainda que ténue, às modalidades de locação financeira. Será tarefa difícil a criação de um elenco numerus clausus das modalidades do contrato de locação financeira, pelo que valerá a exposição dos entendimentos de alguns autores sobre esta temática. Gravato Morais (2006, pp. 30 e ss.)13 aponta como modalidades da locação financeira: (i) a locação financeira mobiliária e imobiliária (consoante o objeto seja bem móvel ou imóvel); (ii) a locação financeira de bens corpóreos e de bens incorpóreos (consoante incida sobre bens corpóreos ou bens incorpóreos); (iii) a locação financeira para consumo e empresarial (consoante seja celebrado por consumidor ou por empresa); (iv) a locação financeira de amortização integral e de amortização parcial (consoante os pagamentos realizados pelo locatário cubram a totalidade ou parcialmente o investimento do locador com a aquisição do bem); (v) a locação financeira restitutiva (o proprietário vende o bem a uma instituição de crédito sendo em seguida celebrado entre os mesmos

10 Cfr. neste sentido, Gravato Morais (2006, p. 63). Pizarro e Calixto (1995, pp. 22-23) que expõem que o leasing é normalmente utilizado por profissionais liberais e, principalmente, por empresas (v.g., industriais, comerciais, agrícolas).

11 Cfr. neste sentido, Pizarro e Calixto (1995, pp. 22-23), Rui Pinto Duarte (2012, pp. 89-93) e Gravato Morais (2006, p. 64).

12 Cfr. neste sentido, Engrácia Antunes (2011, p. 115) e Gravato Morais (2006, p. 70). A formalidade é característica típica dos contratos bancários.

13 Cfr. em sentido próximo, Engrácia Antunes (2012, p. 518).

contraentes um contrato de locação financeira); (vi) a locação financeira de bens objeto de restituição (o locatário não exerce a faculdade de compra do bem dando-o novamente em locação financeira). Rui Pinto Duarte (2012, p. 87), por sua vez, acrescenta a modalidade da locação financeira internacional, quando as operações de leasing põem em contacto empresas de países diferentes.

Efeitos Decorrentes do Contrato de Locação Financeira

4.1. A Posição do Locador

O art. 9º, n.º 1 do RJCLF aponta, de modo exemplificativo, como obrigações do locador (i) adquirir ou mandar construir o bem a locar; (ii) conceder o gozo do bem para os fins a que se destina; (iii) vender o bem ao locatário, caso este queira, findo o contrato. Para além destas obrigações e dos direitos e deveres gerais consagrados no regime da locação (arts. 1022º e ss. do CCivil) que não se mostrem incompatíveis com o RJCLF, assistem ainda ao locador os direitos de (i) defender a integridade do bem, nos termos gerais do direito; (ii) examinar o bem, sem prejuízo da atividade normal do locatário; (iii) fazer suas, sem compensações, as peças ou outros elementos acessórios incorporados no bem pelo locatário (cfr. o art. 9º, n.º 2 do RJCLF).

O locador não responderá pelos vícios da coisa locada ou pela sua inadequação face aos fins do contrato, salvo o disposto no art. 1034º do CCivil (art. 12º do RJCLF). Assim, e conjugando os arts. 12º e 9º, n.º 1, al. b) do RJCLF, coloca-se a questão da responsabilidade do locador pela entrega da coisa locada. Ora, a lei nada diz em relação à obrigação de entrega da coisa mas, a exoneração do locador de responder pelos vícios da coisa locada (art. 12º) e o estatuído no art. 13º levam a uma resposta negativa quanto à responsabilidade do locador pela entrega da coisa locada.

Tal como ensina Gravato Morais (2006, p. 121), devemos entender que só existe cumprimento do contrato pelo vendedor quando seja respeitado o duplo requisito – entrega e conformidade. Daqui retira-se, mutatis mutandis, que o locador não será responsável pela entrega da coisa tal como não o é pelos vícios da mesma (art. 12º). Ainda do art. 13º retira-se que, implicitamente, “o locador não responde pelo incumprimento do dever de entrega, doutra sorte o locatário não teria necessidade de ter ao seu dispor a possibilidade de se dirigir ao vendedor” (op. cit., p. 121)1415 .

14 Cfr. em sentido próximo, Rui Pinto Duarte (2015, pp. 249-250). Rui Pinto Duarte (2012, p. 113) lembra que o locador financeiro “está remetido a uma função meramente financeira, limitando a sua intervenção à prestação de fundos para a operação”. Vide neste sentido o Ac. do TRP de 18 de dezembro de 2018 (proc. 15038/16.8T8PRT.P1; relator: Maria Cecília Agante): “o locador restringe a sua intervenção a aceitar o que o locatário lhe propõe, contrapondo-lhe, então, as condições de concessão do crédito”.

15 Isto sem prejuízo de o locador estar obrigado a contratar nos termos e segundo as indicações definidas pelo locatário, sob pena deste recusar pagar as rendas ou resolver mesmo o contrato, segundo Gravato Morais (2006, p. 76). Assim o locador, ao contrário do que acontece em sede dos vícios de facto, responsabiliza-se pelos vícios jurídicos ou de direito.

4.2. A Posição do Locatário

No art. 10º, n.º 1 do RJCLF, inspirando-se no 1038º do CCivil, estatui-se um elenco exemplificativo das obrigações do locatário. Tal como acontece em todas as formas de arrendamento, a principal obrigação do locatário é o pagamento das rendas (Pizarro e Calixto, 1995, p.19). Estas rendas são rendas em sentido financeiro16, onde se reflete o preço suportado pelo locador com a aquisição da coisa e outros encargos, os juros relativos ao capital investido pelo financiador (para o alcance do seu lucro) e ainda os riscos associados ao crédito (Morais, 2006, p. 81). Rui Pinto Duarte (2012, p. 97) distancia-as das rendas da locação comum entendendo que se assemelham às prestações de uma dívida (no sentido do art. 781º do CCivil).

Para além das normais obrigações de um arrendatário (v.g., conservação, reparações urgentes, pagamento das despesas de condomínio, restituição da coisa locada em bom estado), o locatário terá de efetuar o seguro da coisa locada, contra o risco da sua perda ou deterioração e dos danos por ela provocados.

O art. 10º, n.º 2 do RJCLF determina que para além dos direitos e deveres gerais previstos no regime da locação (arts. 1022º e ss. do CCivil) que não se mostrem incompatíveis com o presente diploma, assistem ao locatário os direitos de (i) usar e fruir a coisa locada; (ii) defender a integridade do bem e o seu gozo, nos termos do seu direito; (iii) usar das ações possessórias, mesmo contra o locador; (iv) onerar, total ou parcialmente, o seu direito, mediante autorização expressa do locador; (v) exercer, na locação de fração autónoma, os direitos próprios do locador, com exceção dos que, pela sua natureza, somente por aquele possam ser exercidos; (vi) adquirir o bem locado, findo o contrato, pelo preço estipulado.

Decorre do art. 15º do RJCLF que, salvo estipulação contrária, o risco de perda ou deterioração do bem corre por conta do locatário. Tal regime fará sentido por via do locatário financeiro possuir a “propriedade económica” da coisa, sendo o seu utilizador exclusivo17. Neste sentido, do art. 503º, n.º 1, do CCivil, pode-se entender que será o locatário o responsável pelos danos causados pela coisa locada a terceiros, pois, é ele quem tem a “direção efetiva do veículo”.18

O locatário pode exercer contra o vendedor ou o empreiteiro, quando disso seja caso, todos os direitos relativos ao bem locado ou resultantes do contrato de compra e venda ou de

16 “Sucessões de valores monetários que se vencem em momentos tendencialmente equidistantes uns dos outros” (Duarte, 2012, p. 96).

17 Cfr. neste sentido, Rui Pinto Duarte (2012, pp. 75-78) e Gravato Morais (2006, pp 91-92).

18 Cfr. neste sentido, Rui Pinto Duarte (2012, p. 118). Vide neste sentido o Ac. do TRP de 15 de dezembro de 2016 (proc.28/16.9T8FLG.P1; relator: Oliveira Abreu) onde equipara-se o locatário ao arrendatário quando aos poderes de fruição temporária da coisa e onde se lê que, embora seja o locador o detentor do título jurídico de proprietário, “o locatário exerce, durante o períododocontrato,umdomínio sobreobemdado emlocaçãofinanceira –ou seja,umdireitodeo usar,retirando,emexclusividade, as suas utilidades – em termos de poder praticamente excluir o proprietário jurídico”.

empreitada (art. 13º do RJCLF). Não obstante, é o locador quem contrata pessoalmente com o vendedor ou empreiteiro, embora com instruções do locatário19 .

Será o locatário quem suporta as despesas de transporte e respetivo seguro, montagem, instalação e reparação do bem locado, bem como as despesas necessárias para a sua devolução ao locador, incluindo as relativas aos seguros (art. 14º do RJCLF). No entanto, será diferente quando antes de ter sido celebrado o contrato de locação financeira qualquer interessado tenha procedido à encomenda de bens, com vista a contrato futuro. Tal interessado atua por sua conta e risco, não sendo o locador responsável por prejuízos eventuais decorrentes da não conclusão do contrato, sem prejuízo do disposto no art. 227º do CCivil (art. 22º do RJCLF).

Por último, convém ter em conta que podem ser constituídas a favor do locador quaisquer garantias, pessoais ou reais, relativas aos créditos de rendas e dos outros encargos ou eventuais indemnizações devidas pelo locatário (art. 19º do RJCLF).

4.3. A Transmissibilidade da Posição Jurídica

O art. 11º do RJCLF trata de matéria referente à transmissão das posições jurídicas do locador e do locatário. No seu n.º 4 determina que o contrato de locação financeira subsiste para todos os efeitos nas transmissões da posição contratual do locador, ocupando o adquirente a mesma posição jurídica do seu antecessor.

Nos casos de locação financeira de bens de equipamentos é permitida a transmissão inter vivos da posição do locatário nas condições previstas no art. 115º do DL n.º 321-B/90, de 15 de outubro20, e a transmissão mortis causa, a título de sucessão legal ou testamentária, quando o sucessor prossiga a atividade profissional do falecido locatário (cfr. o art. 11º, n.º 1 do RJCLF). Ainda em sede da transmissão mortis causa, decorre do art. 1051º, n.º 1, al. d) do CCivil, ex vi art. 11º, n.º 2 ,do RJCLF, que na locação financeira que não tenha por objeto bens de equipamento o contrato só não caduca se houver cláusula neste sentido. Em qualquer dos casos o locador poderá opor-se à transmissão da posição contratual do locatário, desde que prove que o cessionário não oferece garantias bastantes à execução do contrato (cfr. o art. 11º, n.º 3 do RJCLF). A norma nada diz quanto ao consentimento do locador pelo que aplicar-se-á o art. 424º do CCivil ex vi art. 1059º, n.º 2, do CCivil, cuja aplicabilidade decorre do art. 11º, n.º 2, do RJCLF, exigindo-se então o consentimento do locatário.21

19 Em Portugal a contratação do fornecedor não pode ser feita pelo locatário como representante do locador (Duarte, 2012, pp. 8993). No entanto, na realidade o locatário como primeiro/principal interessado será normalmente quem incita os primeiros contactos com o fornecedor e/ou com o locador financeiro, cfr. Gravato Morais (2006, p. 65).

20 O DL n.º 321-B/90, de 15 de outubro que aprova o Regime do Arrendamento Urbano, foi revogado pelo art. 60º, nº 1 da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro. Será então aplicável o Novo Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pela mesma lei.

21 Cfr. neste sentido Rui Pinto Duarte (2012, pp. 108-109) e Gravato Morais (2006, p.98).

4.4. A Cessação do Contrato

O art. 8º estabelece que o contrato de locação financeira produz efeitos a partir da data da sua celebração (n.º 1), podendo, no entanto, as partes condicionar o início da sua vigência à efetiva aquisição ou construção, quando disso seja caso, dos bens locados à sua tradição a favor do locatário ou a quaisquer outros factos (n.º 2).

A cessação do contrato dá-se por mútuo acordo, por resolução ou por caducidade (arts. 1051º e ss. do CCivil)22 .

O contrato será resolvido quando ocorra algumas das três situações seguintes: (i) incumprimento das obrigações, legais ou convencionadas, de uma das partes (art. 17º, n.º 1 do RJCLF); (ii) pelo locador quando haja a dissolução ou liquidação da sociedade locatária (art. 18º, al. a) do RJCLF); (iii) pelo locador com a verificação de qualquer dos fundamentos de declaração de insolvência do locatário (art. 18º, al. b) do RJCLF).

Na resolução do contrato pelo locador, é comum a previsão contratual de um núcleo comum de deveres a cargo do locatário enquanto efeitos da resolução. Entre outros, destacam-se a restituição imediata do bem locado, a obrigação de pagamento das rendas vencidas e não pagas até à data da resolução, o pagamento de uma quantia igual a 20% da soma das rendas vincendas.23 Já na resolução pelo locatário, a tendência é que os fundamentos decorram apenas da lei (Morais, 2006, pp. 191-192).

Nos casos em que o contrato caduca por decurso do prazo (art. 1051º, al. a) do CCivil), o locatário tem a faculdade de optar pela aquisição da coisa locada (cfr. os arts. 1º, 7º, 10º, n.º 1, al. k) in fine e nº 2, al. f) e 21º, n.º 1 do RJCLF), pela restituição da coisa locada (cfr. os arts. 10º, n.º 1, al. k), 1ª parte e 21º, n.º 1 do RJCLF) ou pela renovação do contrato24 .

Independentemente do modo de cessação do contrato, quando o locatário não exerça a faculdade de compra da coisa locada, o locador pode dispor do bem, nomeadamente, vendendo-o ou dando-o em locação ou locação financeira ao anterior locatário ou a terceiro (cfr. art. 7º do RJCLF).

Cláusulas Contratuais Usuais nos Contratos de Locação Financeira

Desde logo, e tendo em conta o supra referido acerca da resolução pelo locatário, aparenta-se como cláusula contratual ordinária a cláusula resolutiva expressa25

Rui Pinto Duarte (2012, pp. 100-108) apresenta um elenco de cláusulas contratuais vulgares em sede dos contratos de locação financeira : (i) cláusula relativa à obrigação de entrega

22 Segundo Gravato Morais (2006, p. 170), existe “remissão direta para as regras ínsitas no Código Civil”, designadamente nos arts. 9º, n.º 2, 10º, n.º 2 e 11º, n.º 2 do RJCLF.

23 Vide Gravato Morais (2006, pp. 176 e ss.).

24 “Estipula-se, normalmente, a faculdade de o locatário, até a um determinado momento (v.g., até ao momento do vencimento da última renda), propor ao locador a renovação do contrato” (Morais, 2006, p. 239). Há quem entenda poder abordar tal situação como se tratando de novação (arts. 857º e ss. do CCivil) visto serem estabelecidas novas estipulações contratuais, Cfr. Pizarro e Calixto (1995, p. 20). No entanto, para tal exigir-se-ia a extinção total da antiga obrigação, o que efetivamente não ocorre.

25 Vide Gravato Morais (2006, pp.89-90).

do bem locado; (ii) cláusula instituindo o vencimento antecipado das rendas vincendas em caso de incumprimento; (iii) Cláusula penal estabelecendo a obrigação de, em caso de resolução do contrato com fundamento em incumprimento do locatário, este indemnizar o locador mediante o pagamento de uma certa percentagem das rendas vincendas; (iv) cláusula penal estabelecendo a obrigação de, em caso de resolução do contrato com fundamento em incumprimento do locatário e não devolução do bem, o locatário indemnizar o locador mediante o pagamento de um certo valor por cada período de tempo de atraso na devolução26

Tais cláusulas visam essencialmente regular o que não se encontra regulado no RJCLF pelo que será também usual, entre outras, cláusulas sobre a mora no pagamento das rendas, sobre a redução da rendas e sobre o próprio valor das rendas, matérias que se encontravam reguladas respetivamente nos arts. 16º, 5º e 4º do RJCLF até serem revogados pelo DL nº 285/2001 de 3 de novembro.

Comum também será a celebração dos contratos de locação financeira por via de cláusulas contratuais gerais (DL nº 446/85, de 25 de outubro).

Conclusão

Chegados a esta fase podemos tecer algumas considerações finais sobre o contrato de locação financeira e seus efeitos.

Os efeitos decorrentes da celebração do contrato de locação financeira são mais incisivos na esfera jurídica do locatário do que na do locador. Enquanto que para o locador estará em causa um “mero” financiamento, para o locatário o objeto poderá consistir em casa de morada da família ou em equipamento indispensável para o funcionamento de uma fábrica. Assim, o locador estará sempre numa posição de maior liberdade negocial podendo impingir mais facilmente efeitos ao contrato independentemente da vontade do locatário.

Na realidade, só estaremos perante locação financeira quando o locatário opte pela compra do bem, onde o leasing revela-se como o instrumento mais rápido e eficaz para investimentos protagonizados por indivíduos ou empresas com capital próprio insuficiente para a aquisição de determinados bens. Quando não opte o locatário por exercer a faculdade de compra do bem, na verdade, opera-se apenas a locação e não efetivamente a locação financeira.

26 A cláusula penal que preveja que o locatário pague as prestações vencidas e ainda 20% das prestações vincendas e o valor residual foi a cláusula penal aceite, em temos gerais, pelos tribunais (Vasconcelos, 2016, p. 66). Já será proibida, por exemplo, a cláusula penal para o caso de resolução do contrato por incumprimento do locatário estabelecendo a obrigação deste de devolver o bem locado e pagar todas as rendas que se venceriam até ao termo do contrato, cfr. Ac. do TRL de 07 de março de 2019 (proc. 127318/16.1YIPRT.L1-8; relator: António Valente) por se entender existir desproporcionalidade quanto aos danos previsíveis para o locador.

Bibliografia

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Calixto, S. N. (1995). Contratos financeiros: leasing, agência, franchising, factoring, permuta, mútuo, 2ª ed. Coimbra: Almedina.

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Duarte, R. P. (2015). Locação financira: algumas questões. Em L. M. Vasconcelos, I Congresso de direito bancário (pp. 245-261). Coimbra: Almedina.

Morais, F. d. (2006). Manual da Locação Financeira. Coimbra: Almedina. Vasconcelos, M. P. (jan./dez. 2016). As cláusulas penais nos contratos de locação financeira. Revista da Ordem dos Advogados - Ano 76, pp. 63-76.

Jurisprudência

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http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/0ca76ff31bdc573b8025 832700512a45?OpenDocument&Highlight=0,Loca%C3%A7%C3%A3o,Financeira.

Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 07-03-2019, proc. 127318/16.1YIPRT.L1-8, relator António Valente, consultado em:

http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/16a392acc72a1058802 583c1003ed005?OpenDocument&Highlight=0,Loca%C3%A7%C3%A3o,Financeira.

Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 15-12-2016, proc. 28/16.9T8FLG.P1, relator

Oliveira Abreu, consultado em:

http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/872dfdbe3f99f1ab802

580920059a917?OpenDocument&Highlight=0,Loca%C3%A7%C3%A3o,Financeira.

Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 18-12-2018, proc. 15038/16.8T8PRT.P1, relator Maria Cecília Agante, consultado em:

http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/5561c0bc6114401a802

583ac004c1338?OpenDocument&Highlight=0,Loca%C3%A7%C3%A3o,Financeira.

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