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Paolo Barbaro
from PVEC25Abril20
by casadaachada
O que é a liberdade nas circunstâncias que estamos a viver hoje? Posto que fomos subitamente catapultados para uma situação completamente nova e inesperada, estes dias estranhos são, certamente e acima de tudo, uma oportunidade para pensar com uma certa radicalidade – ou seja, para pensar, mesmo que em casa sozinhos – sobre as raízes do nosso agir, lá fora, em conjunto. Quanto à liberdade: é preciso deixar de pensar na liberdade como algo que se mede e se procura a partir do seu limite. Se o limite é imposto por algo que nos pareça justo e razoável – evitar que nos coloquemos em perigo a nós próprios, e que ponhamos em perigo os outros – temos de estender a nossa liberdade a territórios novos, territórios a repensar: de estudo, de reflexão, de comportamentos individuais ou de comunidades mínimas. Muitos de nós terão também de pensar em formas livres de enfrentar o medo, a dor pelas pessoas que adoecem e morrem. Isto não significa que se invista tudo no individualismo – o horizonte é social, ainda que estejamos sozinhos. Há instrumentos de comunicação muito úteis, e cada acto, mesmo o mais pessoal, tem a ver com todos. Cada acto se exprimirá porventura de maneiras inesperadas e talvez leve a diferentes formas de liberdade quando sairmos à rua e nos voltarmos a encontrar de novo.
Como aproveitar esta mudança radical para, sem voltar atrás, construir alternativas ao mundo de ontem? Por enquanto, há a nostalgia de estarmos próximos e sermos muitos, de nos tocarmos. Depois há que compreender de maneira diferente o que é o medo dos outros, a desconfiança de que inevitavelmente todos sofreremos um pouco, e combater essa desconfiança percebendo melhor de que se trata. Teremos aprendido uma forma mais clara de pensar a globalidade e a globalização, as responsabilidades e irresponsabilidades dum modelo em que as pessoas circulam como e enquanto mercadoria,
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quando a circulação da mercadoria é deveras indiferente à vida ou à morte das pessoas. Politicamente, esta situação deveria ter-nos levado a entender que as pessoas têm direito à subsistência, a uma vida decente, independentemente do funcionamento do mercado, ou então ninguém se salvará... Foi boa a decisão tomada pelo governo português de regularizar todos os que estão no território. Foi muito mau o facto de praticamente nenhum outro governo europeu ter feito o mesmo – nem sequer as esquerdas mais ou menos desbotadas falaram disso. Poderemos igualmente afirmar com ainda mais veemência que a economia não coincide com a finança. E a cultura fica sempre para depois? O que é que tem a ver a cultura com tudo isso? E se a finança é apenas uma parte da economia, a economia é por sua vez uma parte da cultura, uma parte dos instrumentos de que os homens dispõem – eu diria mesmo todos os seres vivos – para compreender e relacionar-se com o meio ambiente, com os outros semelhantes e diferentes. A cultura não vem depois, vem antes de tudo. Um ministro italiano – e muitos depois dele –gaba-se de ter dito que a cultura não se come. Não é verdade: como comer e o quê é cultura, qualquer acto é cultura. Claro que os chamados intelectuais terão de colocar a si mesmos algumas questões, de entender a que ponto o próprio trabalho – o nosso – acaba por ser reduzido a um entretenimento nos dias de aborrecimento, antes de se voltar às coisas sérias. A cultura é uma coisa séria, a história da Casa da Achada demonstra-o. Se depois nos debruçarmos sobre a cultura científica e o seu uso nestes dias, há mais de um motivo para activar rapidamente um pensamento crítico e consciente. Uma última reflexão, não sei se tem a ver com o assunto.
Aqui continuam a dizer que estamos em guerra, e é um grande disparate (uma solene treta proferida de má-fé...): a guerra é quando nos mandam matar pessoas que poderiam ser nossos irmãos, é quando, em nome de um princípio abstracto e de outros interesses concretos, nos ensinam a eliminar, ou pelo menos derrotar, os nossos semelhantes. A metáfora militar revela-se muito útil para varrer qualquer sentido crítico e denunciar como traidor aquele que vê as coisas segundo ópticas diferentes. Não é só uma questão de palavras: se falarmos de luta, expressaremos melhor a ideia de que é uma luta também de classes. Aqui em Itália, morrem mais os pobres. Vemos, por exemplo, que na rica Lombardia, lugar de exaltada, porque privada, excelência sanitária, os mais indefesos – que moram em lares de idosos privados donde os sindicatos dos médicos e dos enfermeiros foram escorraçados – caem como moscas. A excelência sanitária só é excelente se gerar lucro... Quem não se pode defender nem é politicamente influente morre – e esta é uma questão política.
Paolo Barbaro Abril 2020
O que é a liberdade nas circunstâncias que estamos a viver hoje? A liberdade é um direito, mas a saúde (nossa e dos outros) também é um direito. Portanto temos que juntar Liberdade, Saúde e respeito pela Constituição (no nosso caso, italiana). Como manter juntas estas três questões fundamentais? Garantir saúde e liberdade é um pouco como garantir a própria liberdade respeitando a dos outros e a salvaguarda da saúde de todos. Somos livres de fazer o que não põe em causa a liberdade dos outros e, neste caso, temos que limitar a nossa liberdade para garantir a nossa saúde e a dos outros. O problema está em avaliarmos todos em conjunto até quando e quanto um governo pode limitar a nossa liberdade para garantir o bem comum e quando, pelo contrário, estamos perante escolhas autoritárias. Garantir a saúde colectiva, mesmo que com limitações de liberdade e movimento numa situação de particular gravidade e risco, pode ser aceitável, mas as medidas têm que ser limitativas para todas as pessoas da mesma forma. Quem é encarregado de controlar o respeito pelas restrições não pode agir de modo arbitrário e vexatório e as autoridades têm de ser capazes de salvaguardar o direito à expressão, à informação, à manutenção das relações humanas, à instrução dos nossos filhos, ainda que em condições de parcial isolamento, bem como o direito de poder conservar o emprego e os recursos económicos necessários para a família. Acima de tudo, o Estado tem de garantir direitos iguais a todos os cidadãos, não permitir situações de empobrecimento e salvaguardar o direito à saúde para todos os cidadãos através do sistema de saúde público. Em Itália pararam todas as actividades – excepto os sectores que têm que garantir os alimentos, os serviços de saúde, os desinfectantes, etc. –mas infelizmente também foram consideradas essenciais as indústrias de fabrico de armas. Portanto, será que continuar a abastecer o mercado com as armas que alimentam as guerras faz parte das liberdades a salvaguardar em situações de emergência como a desta pandemia? A imposição do distanciamento social para garantir a saúde colectiva − se mal gerido ou gerido
de forma desigual dependendo de quem for encarregado de fazer respeitar as normas (papel da polícia local ou nacional), ou do território (papel das diferentes autoridades regionais que podem estabelecer nos diversos territórios regras diferentes) − pode despoletar um clima de medo, de suspeita, de delação (logo, de controlo social) relativamente a quem possa presumir-se ser passível de não respeitar as regras de restrição e, por conseguinte, traduzir-se por uma grave perda de liberdades. Deveríamos interrogar-nos sobre estas coisas. O risco é a perda gradual dos direitos constitucionais com a desculpa da pandemia, como aconteceu na Hungria.
Como aproveitar esta mudança radical para, sem voltar atrás, construir alternativas ao mundo de ontem? Para muitos a esperança é que, uma vez terminada a emergência, tudo possa voltar a ser como dantes o mais cedo possível, para que sejam retomadas as actividades com base num modelo de desenvolvimento que favoreceu a destruição do ambiente e o empobrecimento de populações inteiras, bem como dos sectores mais frágeis das sociedades mais ricas. É impensável sair da crise sanitária, económica e social induzida pela pandemia permanecendo agarrados – ou até prisioneiros – do mesmo modelo de desenvolvimento e de consumo que contribuiu para a provocar. Nós, pelo contrário, pensamos que nada poderá nem terá que voltar a ser como antes porque, se assim fosse, quereria dizer que (enquanto colectividade) não desejamos procurar perceber como tudo isto pôde acontecer e como vamos preparar-nos para eventuais novas crises. Já fizemos esse erro em relação a outras epidemias recentes, embora menos graves, e em relação à crise de 2008, o que resultou num aumento das desigualdades sociais e no surgimento de novas pobrezas. São necessários grandes investimentos em fontes energéticas renováveis com baixo impacto, para sistemas de produção industriais e agrícolas que se inspirem na economia circular, com reciclagem total dos recursos, sem produção de resíduos e de poluição. Há que defender as florestas, os rios, os bosques, os oceanos e cada habitat que está em risco de ser destruído. Todavia é preciso dar igual atenção aos tipos de ajuda e cooperação destinados aos países mais pobres: nenhuma ajuda militar, nenhum «apoio» que consista em transferir para lá
indústrias poluentes dos países ricos, mas antes financiamentos que permitam o desenvolvimento de uma economia sustentável para produzir o que for necessário às populações locais, a partir duma agricultura biológica e de estruturas sanitárias adequadas para fazer frente às frequentes epidemias, como a de de diarreia infantil, que todos os anos fazem mais de meio milhão de vítimas.
E a cultura fica sempre para depois? O que é que tem a ver a cultura com tudo isso? Mudar o sistema que causou crise e pandemia significa ir até à origem do nosso modo de agir a nível político, económico, social, ou seja, questionar de novo o paradigma cultural actualmente dominante. Sem uma revolução cultural, as coisas ficarão como dantes. Adoptar um novo paradigma passará por reavaliar todos os saberes, e não apenas o técnico-científico, a partir da filosofia, das artes e sobretudo dos saberes populares transmitidos de geração em geração (tais como os cantos populares e as narrações típicas das várias tradições). A revolução cultural, a mudança de paradigma, também requer uma capacidade de prever um futuro diferente, com bases solidárias e igualitárias e para tanto temos que exercer, como explicava Gramsci, «hegemonia cultural». Uma cultura que, de qualquer modo, não poderá circular sobretudo através da internet, como acontece agora em situação de emergência, pois terá de voltar a ser baseada num confronto com o real e nas relações dentro das comunidades.
Auretta Pini e Gianni Tamino