Revista Chico Nº 7 - Julho / 2020

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Revista do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco • Julho 2020

A privatização da Eletrobras em discussão Os jumentos do sertão em perigo UNIVASF um legado de conquistas Condomínios de luxo invadem a paradisíaca região do cânion de Xingó 1


SUMÁRIO

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Páginas Verdes

Educação

Ricardo Galvão

Ensino sem distância

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Privatização

Debate

Interesse público

Na contramão do mundo

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Economia

Projetos CBHSF

Salve os jumentos

Vida severina


Expediente PRESIDENTE: ANIVALDO DE MIRANDA PINTO VICE-PRESIDENTE: JOSÉ MACIEL NUNES OLIVEIRA SECRETÁRIO: LESSANDRO GABRIEL DA COSTA PRODUZIDO PELA ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO DO CBHSF TANTO EXPRESSO COMUNICAÇÃO E MOBILIZAÇÃO SOCIAL COORDENAÇÃO-GERAL: PAULO VILELA, PEDRO VILELA, RODRIGO DE ANGELIS EDIÇÃO: KARLA MONTEIRO TEXTOS: ANDRÉIA VITÓRIO, ANIVALDO MIRANDA, AUDREY FURNALETO, CAROLINA LEITE, DEISY NASCIMENTO, IARA VIDAL, JUCIANA CAVALCANTE, KARLA MONTEIRO, LUIZA BAGGIO, MARIANA MARTINS E MAURÍLIO ANDREAS PROJETO GRÁFICO: MÁRCIO BARBALHO DIAGRAMAÇÃO: RAFAEL BERGO FOTOS: BRUNO FIGUEIREDO, BRUNO KELLY/GREENPEACE, CRISTIANO COSTA, EDSON OLIVEIRA, LÉO BOI, LUCAS BOIS, LUIZ MAIA, MANUELA CAVADAS E SHUTERSTOCK ILUSTRAÇÕES: CLERMONT CINTRA E ANDRÉ FIDUSI REVISÃO: ISIS PINTO E LUIZA BAGGIO FOTO CAPA: AZAEL GÓIS IMPRESSÃO: ARW GRÁFICA E EDITORA TIRAGEM: 5000 EXEMPLARES DISTRIBUIÇÃO GRATUITA DIREITOS RESERVADOS. PERMITIDO O USO DAS INFORMAÇÕES DESDE QUE CITADA A FONTE.

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Arte O súdito e a majestade

SECRETARIA DO COMITÊ: RUA CARIJÓS, 166, 5º ANDAR, CENTRO BELO HORIZONTE - MG CEP: 30120-060 - (31) 3207-8500 secretaria@cbhsaofrancisco.org.br ATENDIMENTO AOS USUÁRIOS DE RECURSOS HÍDRICOS NA BACIA DO RIO SÃO FRANCISCO: 0800-031-1607 ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO: comunicacao@cbhsaofrancisco.org.br

Gastronomia

www.cbhsaofrancisco.org.br

Da boa

Meio ambiente Plantando água

Ensaio Chove chuva

Turismo Joia rara

Campanha #virecarranca 3


Editorial

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Como será o amanhã? Assim como nós, a equipe da revista CHICO, você deve estar se perguntando qual o significado de uma pandemia como esta para a humanidade. Como sairemos do outro lado? Do isolamento do seu apartamento em Roma, diante da Itália em silêncio, o sociólogo Domenico De Masi, famoso pelo conceito de ócio criativo, fez uma previsão otimista. Na opinião dele, o mundo, enfim, está diante da grande chance de descobrir o óbvio: somos uma aldeia global. “Nenhum homem, nenhum país é uma ilha”. Na opinião de De Masi, a propaganda neoliberal, que começara a se alastrar nos anos 80, com Ronald Reagan, nos Estados Unidos, e Margareth Thatcher, na Inglaterra, desacreditou tudo o que é público em favor do setor privado. Porém, agora, a conta chegou, escancarando a perversidade dessa lógica econômica: “A marcha a ré e os freios que a cultura neoliberal se recusaram obstinadamente a usar agora foram desencadeados, não graças a uma revolução violenta, mas sim a um vírus invisível que um morcego soprou sobre a sociedade opulenta, obrigando-a a se repensar”.

Nesta edição, a CHICO se dedicou a olhar para o futuro. Nas Páginas Verdes, o físico Ricardo Galvão, ex-diretor do INPE, escolhido um dos dez cientistas de 2019 pela prestigiada revista Nature, reflete sobre a importância da ciência e os rumos da política ambiental no Brasil. Na reportagem intitulada “Interesse Público”, penetramos nas questões que envolvem a privatização da Eletrobrás. E mais: o Brasil precisa de energia nuclear? Quais os ganhos da implantação de uma universidade pública no sertão? Por que devemos preservar os jumentos? Entre outros assuntos, também estamos trazendo para você os projetos que o CBHSF desenvolverá na região Semiárida. Boa leitura!

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Ouรงa o podcast: Acesse https://bit.ly/PodTrav75 ou escaneie o QR CODE abaixo.

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A Palavra do Presidente

Da continuidade das coisas Desde os primeiros dias em que foi estabelecida a emergência sanitária no Brasil, o Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF) tratou de adotar as medidas necessárias para se adaptar às recomendações da Organização Mundial da Saúde, bem como às normativas das autoridades sanitárias brasileiras, incluindo particularmente aquelas oriundas dos estados e municípios inseridos no território da bacia. À falta de uma vacina eficiente e de testes em quantidade recomendável para o controle seguro dos níveis de contaminação pelo Covid-19, o Comitê valorizou, sobretudo, o isolamento social como medida mais eficaz para achatar a curva epidemiológica, reduzir ao máximo a mortandade de pessoas e abreviar, no momento propício, a retomada cautelosa das atividades humanas que ficaram, a grosso modo, restritas aos serviços e às atividades essenciais. A pandemia, entretanto, não paralisou o CBHSF e tampouco o seu braço executivo, a Agência Peixe Vivo. Nos limites daquilo que não contraria os parâmetros do isolamento social, as duas instituições, cada qual no âmbito de suas funções e competências, continuaram a desenvolver - sobretudo com utilização do trabalho remoto por via digital - as atividades que não requerem aglomerações de pessoas em níveis comprometedores à saúde. A prioridade nesse esforço foi dada à continuidade, na medida do possível, do desenvolvimento das séries de projetos que as instâncias do Comitê aprovaram e que se encontram em distintos níveis de execução. Em articulação com essa prioridade, videoconferências se converteram em instrumental valioso para reuniões de trabalho e troca de informações, além de facilitar os processos de tomadas de decisão. Finalmente, a Internet foi essencial para manter o CBHSF conectado às instituições parceiras na gestão das águas e ao grande público através de intensa participação em “webnários” e outras formas modernas de estímulo ao debate. Graças a esse trabalho, a família de projetos de recuperação hidroambiental avançou principalmente na feitura dos termos de referência que permitirão a contratação de sua execução assim que as condições mínimas permitirem, bem como o conjunto de Planos Municipais de Saneamento Básico que o CBHSF continua entregando às prefeituras da bacia, notadamente aquelas ribeirinhas ao Rio São Francisco. Os projetos oriundos do edital que direciona ações para a região semiárida que o São Francisco atravessa estão experimentando o mesmo tratamento. Já projetos especiais, como é o caso da construção do Sistema de Informações sobre Recursos Hídricos da Bacia (SIGA São Francisco) estão em pleno andamento, bem como a finalização dos projetos básicos e executivo de obras e equipamento que servirão para contornar os efeitos da intrusão salina no abastecimento humano das populações da foz do rio e ainda a feitura do Plano de Bacia do afluente do Alto São Francisco, só para citar alguns exemplos.

Complementando todas essas ações, a Diretoria Colegiada do Comitê continuou de olho, também, nos desafios e nas ameaças de curto e longo prazos, que prosperam sem a transparência necessária e que podem interferir na boa gestão das águas franciscanas. Esse é o caso da ressurreição da ideia requentada da construção de usina nuclear no Sertão de Pernambuco com uso direto de águas do rio, da também requentada ideia de construção de novo barramento hidrelétrico na região de Piraporara, Minas Gerais, de controle privado das hidrelétricas da CHESF e CEMIG, na contramão do princípio dos usos múltiplos das águas na calha do Velho Chico, morosidade e pouca transparência nos processos de controle e descomissionamento de barramentos de rejeitos de minérios potencialmente perigosos para o São Francisco e seus afluentes, paralisia total do Programa de Revitalização e outras temáticas que seriam exaustivas para o presente texto. Infelizmente, o CBHSF está sendo obrigado a acompanhar também, ao lado da vasta comunidade de técnicos, gestores, pesquisadores, juristas, estudiosos, ativistas e tantos outros milhões de cidadãos e cidadãs, a insana ofensiva que há muito tempo vinha se ensaiando com tímidas investidas, mas que agora ganhou uma grotesca celeridade a partir do governo central dirigida à desconstrução do patrimônio representado pela política pública do meio ambiente, uma conquista de quase meio século da inteligência administrativa, ambiental e daquela dedicada aos primados do desenvolvimento sustentável no Brasil. É preocupante e merece rigoroso questionamento todo esse processo que flexibiliza à sorrelfa as leis ambientais no seu sentido mais amplo, o afrouxamento dos processos de fiscalização de crimes ambientais, como os incêndios deliberados nos grandes biomas brasileiros, legislações que premiam a posse ilegal de terras públicas e indígenas, desmonte de agências públicas e todo um cabedal de outras iniciativas, também desencadeadas em níveis estaduais, que atentam contra os interesses estratégicos da nação com vistas à sustentabilidade e modernidade do desenvolvimento do país no contexto do complexo século XXI. Fiel aos ditames da Lei Nacional das Águas, a Lei 9.433/97, e ao Plano de Gestão da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, o CBHSF não alimenta dúvidas de que somente em ambiente genuinamente democrático, onde o primado da Constituição Brasileira se imponha com absoluta imperiosidade sobre todos os níveis da sociedade e de governo, será possível, de fato, construir a gestão pública de qualidade e de eficiência que o Brasil precisa e merece, começando pela gestão das águas cujo sucesso depende e dependerá sempre do seu caráter participativo, compartilhado e descentralizado. Anivaldo Miranda Presidente do CBHSF

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Páginas Verdes

Ricardo Galvão Em julho de 2019, o mineiro Ricardo Galvão, então presidente do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), virou notícia. Após divulgar que o desmatamento na floresta Amazônia teve um aumento de 40% em um ano, viu-se questionado publicamente pelo presidente Jair Bolsonaro e pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. Em vez de recuar, levantou a cabeça, reafirmou a veracidade das informações e seguiu firme,

protagonizando um duro embate com o governo que lhe custou o cargo. Menos de seis meses depois, no começo de dezembro, ele estava de novo nos jornais, desta vez como um dos dez cientistas do ano da prestigiada revista Nature. Aos 71 anos, do isolamento em que se encontrava desde o início da pandemia do Covid-19, o professor do Instituto de Física da USP falou à CHICO.

Por Audrey Furlaneto Fotos: Arquivo pessoal Ricardo Galvão, Shuterctock e Bruno Kelly/Greenpeace

Muito se tem debatido sobre o futuro da humanidade pós-pandemia. O senhor acredita que esta tragédia pode alterar positivamente nossa relação com o meio ambiente? Falando como cidadão, e não como cientista, acredito que essa pandemia naturalmente vai trazer uma mudança muito grande ao mundo. A primeira coisa que nós temos que nos conscientizar: estamos todos conectados. Vamos todos para o mesmo lugar. Espero que as pessoas, assim, tenham um pouco mais de consciência de que são frágeis e de que todo o planeta é frágil. Essa pandemia mostra também que esse desenvolvimento dos últimos cem anos – baseado numa disponibilidade muito grande de combustíveis fósseis baratos e num capitalismo que não se preocupa com o meio ambiente – não é mais sustentável. Nossa visão desse desenvolvimento capitalista tradicional tem que ser alterada. Outro aspecto importante que virá é a percepção de que a ciência é essencial. Todas as soluções que estamos buscando precisam ser baseadas em ciência. O senhor deixou a presidência do INPE justamente por defender a soberania da ciência. Como avalia sua passagem pelo órgão e as atuais políticas públicas para o meio ambiente? Ainda durante a campanha, o então candidato Jair Bolsonaro deixou muito claro que não se preocupava com a questão ambiental. Essa postura está sendo confirmada dia a dia pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. O governo considera a preservação da Amazônia e o controle do desmatamento ortogonais ao desenvolvimento econômico da região.

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Sua saída do INPE causou grande ruído. O senhor já esperava que fosse assim? Nós já esperávamos problemas, mas não com a grandeza que se deu. Foi terrível. O INPE sempre se responsabilizou pelo monitoramento do desmatamento da Amazônia e, a partir de dezembro de 2017, de todos os oito biomas brasileiros, dos pampas e do pantanal até o cerrado. Nós tínhamos, até final de 2018, um acordo de cooperação técnica com o Ibama. A responsabilidade do INPE era prover os dados para o Ibama fazer as autuações cabíveis. Esse acordo de cooperação técnica acabou, e nós acreditávamos que o novo governo iria renová-lo. Mas isso não aconteceu. Então as minhas preocupações começaram a crescer. O descompasso entre os dados do INPE e a atuação do governo diante das evidências é algo novo? Não, já houve no passado casos também complicados de confronto entre o INPE e o governo com relação aos dados na Amazônia. Ocorreu no governo Lula, em 2008. O INPE detectou um desmatamento enorme naquele ano, e 53% do desmatamento era no Mato Grosso. E o governador do estado na época, Blairo Maggi, acusou o INPE, aliás, usando quase as mesmas palavras do Bolsonaro, ao dizer que os dados não eram verdadeiros e que o INPE estava trabalhando a serviço de ONGs. Infelizmente, o presidente Lula escutou o governador e colocou em dúvida os dados, mas, à época, nós tínhamos Marina Silva como ministra do Meio Ambiente. E ela teve uma ação completamente oposta à que teve Ricardo Salles no meu caso e convocou uma reunião com o presidente, o governador e os diretores do INPE e do Ibama, para discutir o assunto em Brasília. Foi uma reunião muito difícil, de três horas, e, por fim, o presidente Lula decidiu seguir a sugestão da ministra Marina Silva de fazer um sobrevoo sobre as áreas que o INPE dizia que estavam sendo desmatadas e que o governador, por sua vez, negava. Foi feito o sobrevoo e caiu por terra tudo o que Blairo Maggi falava. Usando os dados do INPE, então, a ministra atuou fortemente no controle do desmatamento, não só autuando os desmatadores e mineradores ilegais, mas também confiscando equipamentos, com ações muito fortes.


Ricardo Galvão é ex-diretor do INPE e professor do Instituto de Física da USP

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Houve um pico de desmatamento nessa época? As ações do governo conseguiram reverter o quadro? Na verdade, temos dois grandes picos no desmatamento. O primeiro foi em 1995, ainda no governo Fernando Henrique Cardoso, com 27 mil km2 desmatados. O presidente atuou de uma forma diferente: o que ele fez foi aumentar o número de reservas indígenas e o número de áreas protegidas. Foi uma ação efetiva e caiu o índice do desmatamento durante um tempo, mas já no final da gestão dele, quando o governo estava mais fraco por razões econômicas e quando havia muita demanda internacional por madeira, começou a crescer o desmatamento. Então vem o segundo pico, no governo Lula, com 27.400 km2. Mas aí Marina Silva já era ministra, e ela solicitou ao INPE que não só desse os dados de desmatamento no final do ano, mas que criasse um sistema de alertas diários. Ela e o ministro Carlos Minc conseguiram reduzir o desmatamento para pouco mais de 4 mil km2 em 2012. Isso foi considerado pela revista Nature o maior exemplo de controle de desmatamento em florestas tropicais dos últimos dez anos no mundo. Mas o país não conseguiu manter esse tipo de ação, certo? Infelizmente, isso tudo se perdeu neste governo, pela ação do presidente que temos e, principalmente, do ministro Ricardo Salles. Logo que ele entrou no governo, em janeiro, fez a primeira acusação ao INPE, dizendo que o sistema de alertas não era bom, que não era suficientemente preciso, que havia erros e inconsistências, mas nunca apresentando números, atuando da forma como atua este governo, de falar algo na imprensa sem apresentar provas. Eu não respondi a ele, mas ao ministro da Ciência e Tecnologia, que é responsável pelo INPE, mostrando que Salles estava errado. Publicamos vários relatórios e mandamos sempre ao ministério, mas os ataques ao sistema desenvolvido pelo INPE continuavam porque ele tinha interesse em comprar o sistema de uma empresa americana. O senhor acredita que esse interesse comercial sustenta o negacionismo científico? Na verdade, o grande interesse é acabar com o monitoramento e as ações fortes contra o desmatamento e a mineração ilegal na Amazônia. Eles acreditam que a Amazônia, para ser desenvolvida economicamente, precisa ser desmatada. No fundo, o grande negacionismo deles tem como centro não acreditar em mudanças climáticas. Eles não acreditam no papel importantíssimo da Amazônia para o sequestro de carbono. O maior mecanismo que a humanidade tem para diminuir gás carbônico na atmosfera são as florestas tropicais que absorvem grande quantidade de carbono. Eles não acreditam nisso.

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Nas fotos corte e transporte de madeira ilegal na Amazônia


O que se pode fazer para tentar conter o desmatamento? É possível conciliar desenvolvimento econômico e preservação no território da Amazônia? Primeiro, temos que investir em controle e, mais que isso, na recuperação das terras, ou seja, plantar novamente. O desenvolvimento da Amazônia tem que ser baseado em ciência e numa exploração inteligente da sua grande biodiversidade. O que nós ganhamos em venda de açaí, por exemplo, é dez vezes mais do que se ganha em exploração de gado, na mesma área. Mas, se fores para o exterior, verás que em muitos lugares, inclusive na Europa, cerca de 20 ou mais produtos de açaí não são produzidos no Brasil, mas na Califórnia. Isso é um exemplo de uma ação que poderia ser feita. O governo teria que investir, até com isenção fiscal, como se fez com a Zona Franca de Manaus, criando várias zonas francas em toda a Amazônia, explorando a biodiversidade local. Isso é bastante possível. No ano passado, o desmatamento escalonou a partir de junho, mês em que o país perdeu 762,3 km², ou 60% mais do que se desmatou no mesmo período em 2018. Entramos o mês de junho deste ano em quarentena. O senhor acredita que isso pode criar um terreno fértil para a grilagem? Sem dúvida. A questão é terrível. O próprio Marcello Brito (ruralista, presidente da Associação Brasileira do Agronegócio) deu uma entrevista recentemente reconhecendo que a grilagem está avançando rapidamente no norte do Mato Grosso. E a principal razão do desmatamento é grilagem de terras, principalmente, em terras públicas, preservadas. Por lei, o Brasil tem o compromisso de não desmatar mais do que 3.900 km2 na Amazônia em 2020. Nós não vamos cumprir isso de jeito nenhum. No ano passado, chegamos a quase 10 mil km2 desmatados. Pelas projeções do INPE, nós vamos provavelmente passar de 12 mil km2 neste ano, porque o desmatamento está muito forte agora e ainda não é a época da seca, quando tudo se agrava. Há uma previsão de que, se nós tivermos um período de seca grande na Amazônia, agora no final de maio, as queimadas vão voltar violentamente. Os fiscais do Ibama estão trabalhando menos in loco, por causa do isolamento? A fiscalização está mais frouxa, de certa forma, por causa do coronavírus? A fiscalização está mais frouxa, sim, e claro que é também efeito da pandemia, mas isso é usado como desculpa. O afrouxamento começou no ano passado. O ministro Ricardo Salles demitiu praticamente todos os diretores das agências locais do Ibama e renovou poucos. Muita gente foi demitida, pessoas que estavam em cargos importantes, como a própria presidente do Ibama, Suely Araújo, que comandou o órgão no governo Temer e que atuava muito fortemente contra o desmatamento. A primeira coisa que o Ricardo Salles fez quando entrou no ministério foi demiti-la. Em suma, o desmatamento está correndo solto.

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Educação

Herbário do Centro de Referência para Recuperação de Áreas Degradadas, um dos projetos em desenvolvimento na UNIVASF

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Ensino sem distância Após oito anos capitaneando a expansão da Universidade Federal do Vale do São Francisco, Univasf, o reitor Julianeli Tolentino de Lima deixa um importante legado para a região do Submédio São Francisco Por Juciana Cavalcante / Fotos: Marcizo Ventura/ Ilustração: Clermont Cintra Na mítica Juazeiro, terra de João Gilberto e Ivete Sangalo, os irmãos Igo Rafael, Diêgo e Izis Rafaela são os primeiros da família Santos Silva a cursar uma universidade. Igo fez Engenharia Elétrica e hoje encara o mestrado. Izis se formou em Tecnologia em Alimentos. E Diêgo está fazendo Engenharia Mecânica. Sem profissão certa, o pai criara os filhos pulando de atividade em atividade. Seu último trabalho fora como vendedor de medicamentos. Segundo conta Diêgo, as chances de estudar em uma universidade federal seriam mais difíceis se não fosse um fato: a inauguração, em 27 de junho de 2002, da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf). Assim como milhares de jovens daquele pedaço do sertão nordestino a interiorização do ensino público universitário abriu para Igo, Diêgo e Izis um admirável mundo novo. “Primeiro que, para nós, só existia uma possibilidade de fazer faculdade se fosse numa instituição pública. Seria muito difícil, meus pais nunca teriam condições de bancar escola particular para três filhos”, comentou Diêgo. “Por outro lado, seria mais difícil estudar fora. Nós somos muitos gratos à Univasf”. Perto de completar duas décadas de história, a Univasf se despediu, em abril, do reitor Julianeli Tolentino de Lima, que, nos últimos oito anos, capitaneou a expansão do projeto idealizado pelo ex-deputado federal Oswaldo Coelho, falecido em 2015, aos 84 anos. Com sede em Petrolina (PE), a universidade se espalhou por outros municípios, com unidades em Juazeiro (BA), São Raimundo Nonato (PI), Senhor do Bonfim (BA), Paulo Afonso (BA) e, por último, abriu turmas também em Salgueiro (PE). No começo, operava com 11 cursos de graduação, sendo 530 vagas: Administração, Enfermagem, Medicina, Psicologia, Zootecnia, Arqueologia e Engenharias Agrícola e Ambiental, Civil, Elétrica, Mecânica e de Produção. Hoje, oferece mais de 30 opções de graduação, sendo a primeira universidade pública do país a ter o curso de arqueologia, na cidade de São Raimundo Nonato, região do importante sítio arqueológico da Serra da Capivara. “Muitos falam em antes e após da Univasf”, comentou Julianeli de Lima. “Dando oportunidade a milhares de jovens, a instituição trouxe uma nova perspectiva para o desenvolvimento socioeconômico da região”. Ao assumir o cargo, em fevereiro de 2012, uma das metas do então novo reitor era o desenvolvimento de ações que propiciassem aos estudantes em vulnerabilidade social a possibilidade de, primeiro, permanecer na universidade, e, a partir daí, seguir adiante nos estudos. Partindo desse objetivo, a Univasf investiu em cursos de 13


mestrado e doutorado, fechando ciclos profissionais e acadêmicos. “O ganho é muito grande para toda a sociedade”, afirmou Julianeli de Lima. Segundo ele, os programas de pesquisas garantem resultados práticos, que interferem direta e positivamente na vida dos ribeirinhos. A conta é simples: qualificando a mão de obra local, a Univasf está propiciando a ressignificação do sertão e do sertanejo no imaginário nacional. Saúde em dia Um dos exemplos dessa mudança qualitativa ocasionada pela presença da Univasf no sertão é o Hospital Universitário. Em 2013, no segundo ano de gestão de Julianeli de Lima, a faculdade de medicina incorporou o antigo Hospital de Urgências e Traumas, que, além de atender os pacientes, serve hoje à formação dos futuros doutores. O HU atende a população de cerca de 70 municípios dos estados de Pernambuco, Bahia e Piauí. Para o ex-reitor, a Univasf já se tornou, sem dúvida, a mais importante referência em educação superior do Nordeste. “Havendo o investimento que precisamos para a manutenção e também aumento da oferta de cursos de graduação e pós-graduação, tenho certeza de que a universidade evoluirá juntamente com a sociedade”, ressaltou. Baiana de Juazeiro, Patrícia Paixão cursou enfermagem na Univasf. Conforme afirma, a oportunidade de estudar lhe trouxe, além de uma profissão, a realização pessoal. “A faculdade de enfermagem demanda muita dedicação, estudo e tempo. Eu não teria conseguido se não existisse uma universidade na minha cidade. Morando com minha família, pude me dedicar”, comentou ela, que se formou em 2008. A Caatinga Nos últimos oito anos, a Univasf também se engajou em projetos de defesa da Caatinga. Em 2014, inaugurou o Núcleo de Ecologia e Monitoramento Ambiental (Nema), que desenvolve programas de monitoramento e recuperação do importante bioma local. Entre as pesquisas prioritárias do Nema, está a avaliação dos impactos da transposição do Rio São Francisco. A ideia, de acordo com o coordenador do núcleo, o professor Renato Garcia, é utilizar o conhecimento pré-existente de recuperação ambiental para pensar exclusivamente os problemas da Caatinga, com todas as suas peculiaridades. “A exemplo da ausência de chuva em boa parte do ano, a presença do bode, entre outros fatores”, enumerou Garcia. Sobre os impactos da transposição, o Nema está investindo no replantio de uma área de 750 hectares, levando em conta sempre o ciclo de chuvas: “Fazemos a seleção de espécies mais resistentes e realizamos o plantio para que até março esteja plantado”. A previsão é que em 2023 o projeto seja encerrado nas obras do Ramal do Agreste, nos canais Norte e Leste da transposição. Inaugurado em 2008, o Centro de Conservação e Manejo de Fauna da Caatinga (Cemafauna) é outro importante projeto da Univasf para a preservação ambiental. O núcleo promove estudos de inventário, resgate e monitoramento da fauna silvestre nas áreas de influência direta e indireta do Projeto de Integração do Rio São Francisco com as Bacias do Nordeste Setentrional (PISF). Além disso, atua na recuperação de espécies. Em uma década de atuação, o Cemafauna já fez o resgate de mais de 150 mil animais. Parte deles oriundos das apreensões feitas pela Fiscalização Preventiva Integrada (FPI). Além disto, o Cemafauna ainda abriga o Museu de Fauna da Caatinga, para quem quiser conhecer os habitantes do magnífico sertão brasileiro.

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CEARÁ

2004

Realização do primeiro processo seletivo discente, que ocorreu por meio de vestibular em setembro de 2004. (Petrolina-PE e Juazeiro-BA).

2004

Início das atividades acadêmicas no dia 18 de outubro, com Aula Magna. (Petrolina-PE)

2006

RIO GRANDE DO NORTE

2003

Realização do primeiro concurso para docentes por meio dos Atos Administrativos Nº 1, de 5 de dezembro de 2003, e Nº 2, de 14 de janeiro de 2004, foram instituídos os primeiros 11 cursos de graduação. (Petrolina-PE)

2019

Início das Atividades Acadêmicas do Campus Salgueiro. (Salgueiro-PE)

2002

Sancionada a Lei Nº 10.473, de 27 de junho de 2002, de criação da Universidade Federal do Vale do São Francisco.

2018

Criação dos dois primeiros cursos de doutorado: o doutorado em Ciência dos Materiais e o doutorado em Ciências Veterinárias no Semiárido.

Criação do Centro de Referência para a Recuperação em Áreas Degradadas (CRAD). (Petrolina-PE)

PIAUI

INÍCIO

PARAÍBA

Salgueiro

PERNAMBUCO

São Raimundo Nonato

Petrolina Paulo Afonso

Criação do primeiro Programa de Pós-Graduação: Mestrado em Ciência dos Materiais.

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2007

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Juazeiro

2008

2009

BAHIA Senhor do Bonfim

ALAGOAS

2017

Inauguração dos Campi Sede, Juazeiro-BA e São Raimundo Nonato-PI.

Início das atividades acadêmicas do Campus Senhor do Bonfim na Bahia, que funcionou provisoriamente no Instituto Federal Baiano (IF Baiano). (Senhor do Bonfim-BA)

UNIVASF

Inauguração do Complexo Administrativo Prédio da Reitoria. (Petrolina-PE)

2010

Inauguração do Hospital Veterinário Universitário. (Petrolina-PE)

2011

Inauguração do Campus Senhor do Bonfim-BA.

2012

Criação da WebTV Caatinga. (Petrolina-PE)

MINAS GERAIS

SERGIPE

Time Line

2015 2010

Autorização do Ministério da Educação (MEC) para funcionamento do Campus Salgueiro, em 25 de agosto. (Salgueiro-PE)

Inauguração do Núcleo de Ecologia e Monitoramento Ambiental (Nema). (Petrolina-PE)

2015

Início das Atividades Acadêmicas do Campus Paulo Afonso - BA, com Aula Magna. (Paulo Afonso-BA)

2014

Incorporação do Hospital Universitário ao patrimônio da Univasf. (Petrolina-PE)

2013

Inauguração do Complexo Esportivo no Campus Sede. (Petrolina-PE)

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Privatização

Interesse público Adiada para 2021, a privatização da Eletrobras põe em risco a vida dos ribeirinhos e a sobrevivência de outras atividades comerciais na bacia do Rio São Francisco, onde estão implantadas grandes usinas hidrelétricas Por Iara Vidal / Fotos: Edson Oliveira e Léo Boi Ilustração: Clermont Cintra Qual o destino do Velho Chico com a privatização da Eletrobras? Ao longo dos seus 2.830 quilômetros de extensão, o São Francisco abriga um feixe de usinas hidrelétricas, grandes e pequenas, a maioria delas sob o guarda-chuva da estatal, a maior empresa de geração de eletricidade da América Latina e uma das maiores do mundo. Na região central de Minas Gerais, fica a Usina Hidrelétrica de Três Marias. Descendo o rio, no sertão da Bahia está a Usina Hidrelétrica de Sobradinho e mais adiante o complexo de usinas de Paulo Afonso. E entre os estados de Alagoas e Sergipe, a Usina Hidrelétrica de Xingó. Somando a produção, o São Francisco responde por boa parte da energia elétrica consumida no país. Com a pandemia do coronavírus, o processo de privatização foi adiado para 2021, ascendendo o debate sobre as perdas e danos por vir. “Não temos nenhuma questão de princípio em relação às privatizações, que podem ser vantajosas ou não do ponto de vista do interesse público dependendo de cada caso particular. Um acionista ou grupo de acionistas, sobretudo estrangeiros, que assumirem o controle de usinas com as da Companhia Hidrelétrica do São Francisco (CHESF) ou da Companhia Energética de Minas Gerais (CEMIG) na calha do Rio São Francisco, não terá ou não terão sobriedade e visão gerencial equilibrada, sustentável e aberta para gerir um ativo tão complexo quanto as águas do São Francisco”, comenta Anivaldo Miranda, presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco (CBHSF). “O compromisso de uma empresa privada é primeiramente com o lucro, o que é legítimo. Mas, no contexto de um curso de águas que já vem sofrendo um declínio histórico de suas vazões e consequentemente vários conflitos instalados ou potenciais pelo direito de uso dos recursos hídricos em disputa, sem dúvida teremos o agravamento desses conflitos exatamente no momento em que o CBHSF propõe a construção de um Pacto das Águas que parte do reconhecimento de que os reservatórios do Velho Chico tenderão cada vez mais a abandonar a hegemonia do uso das águas para geração hidrelétrica em favor de um novo modelo de usos múltiplos crescentes das águas franciscanas, apto a dar respostas aos enormes desafios que o São Francisco tem por ser praticamente a única fonte real de disponibilidade hídrica para o Semiárido brasileiro, por representar 70% da disponibilidade hídrica da região Nordeste e ainda atender ao Norte de Minas Gerais". Como é fácil perceber, de certa forma, o adiamento do leilão da Eletrobras trouxe alívio. Com pelo menos um ano pela frente, o debate em torno de questão tão delicada, que envolve aspectos sociais, econômicos e ambientais, poderá ser ampliado com a 16

sociedade, acredita Anivaldo Miranda. O objetivo do governo é tornar-se minoritário, ou seja, diminuir sua participação acionária na estatal para menos de 50%, e arrecadar nesse processo cerca de R$ 16,2 bilhões. Entre as preocupações que permeiam a operação está, em primeiro lugar, a gerência das águas do São Francisco. Responsável por 70% da disponibilidade hídrica da região Nordeste, o controle da vazão do Velho Chico precisa atender às inúmeras necessidades, da agricultura familiar ao agronegócio, da pesca artesanal à mineração. Pela turma que receia a privatização, são muitos os temores, tais como o alto risco de deixar em mãos estrangeiras um setor estratégico para a economia e a vida da população, um possível aumento nas contas de luz, prejudicando, sobretudo, os mais vulneráveis, e a redução ou fim de projetos sociais em benefício de comunidades tradicionais, ribeirinhos, indígenas e quilombolas. "O Rio São Francisco é a espinha dorsal da região Nordeste. Não podemos imaginar um ribeirinho ter que pedir permissão para pescar ou um barqueiro solicitar autorização para navegar”, comenta Fernando Neves, secretário de Energia da Federação Regional dos Urbanitários do Nordeste (Frune). “Imagine também os agricultores do entorno do rio tendo que pagar pelo uso das águas. Todas essas situações não são exagero. É uma realidade que ocorrerá, caso aconteça a privatização”. Para Anivaldo Miranda, todos os problemas se resumem num só: a Eletrobras vai deixar de ter foco no interesse púbico: “A geração hidrelétrica no São Francisco perdeu o sentido de prioridade, tanto pela diminuição frequente das vazões quanto pelo uso múltiplo de suas águas. Essa quantidade de usos vem gerando conflitos sobretudo porque estamos vivendo uma crise hídrica. Não resta dúvida de que a privatização, caso ocorra, vai agravar bastante o problema”. De acordo com o presidente do CBHSF, para ter retorno financeiro, a Eletrobras privatizada precisaria usar os reservatórios predominantemente sob a lógica do lucro. Ou seja: “Deplecionar os reservatórios (liberar suas águas) para gerar mais energia, o que, a partir de certos limites, prejudicaria os outros usos. Para a agricultura e o consumo humano, por exemplo, é necessário um nível seguro, da capacidade útil de cada reservatório, capaz de garantir a irrigação e o abastecimento de água inclusive no período seco”.


Com a privatização, a Eletrobras deixará de cumprir sua função social 17


MA PI

Usinas hidrelétricas no Rio São Francisco Rio

São

Fra nc

isco

TO

GO

1

18

MG


PB

3 4

PE

6 2 5

AL Bacia do rio São Francisco

SE Usina Hidrelétrica

BA

Localização

Capacidade de geração

Proprietária

1

Três Marias

Nove municípios da área central do estado de Minas Gerais

396 MW

CEMIG **

2

Sobradinho

Entre os municípios de Sobradinho e Casa Nova (BA)

1.050 MW

CHESF

3

Luíz Gonzaga

Estado de Pernambuco, 25 km a jusante da cidade de Petrolândia (PE)

1.480 MW

CHESF

4

Apolônio Sales

Municípios de Delmiro Gouveia (AL), a 8 km da cidade de Paulo Afonso (BA)

400 MW

CHESF

Paulo Afonso I

Paulo Afonso (BA)

180 MW

CHESF

Paulo Afonso II

Paulo Afonso (BA)

443 MW

CHESF

Paulo Afonso III

Paulo Afonso (BA)

794 MW

CHESF

Paulo Afonso IV

Paulo Afonso (BA)

2.462 MW

CHESF

Xingó

Entre os municípios de Piranhas (AL) e Canindé de São Francisco (SE)

3.162 MW

CHESF *

(Itaparica)

(Moxotó)

5

ES

6

* Companhia Hidrelétrica do São Francisco

** Companhia Energética de Minas Gerais

19


A melhor maneira de gerir o complexo uso das águas do Velho Chico, ainda de acordo com Anivaldo Miranda, é por meio de uma administração estatal majoritária, com gestão compartilhada, participativa e descentralizada. “O São Francisco não é um canal de cimento, é um rio, um ecossistema, tem valor inclusive sentimental para a população. É preciso que todos os usuários, todos os interesses tenham voz, sejam ouvidos para evitar que os conflitos se tornem dramáticos”. Uma das ferramentas para alcançar esse objetivo seria o Pacto das Águas. Proposto pelo CBHSF, visa transformar a gestão das águas do Rio São Francisco em uma política de Estado e não uma política fragmentada de governos. “Alagoas, Pernambuco, Sergipe, Minas Gerais e Bahia, e num plano mais modesto, Goiás e Distrito Federal, precisam interagir, no cenário da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, junto com o governo federal, para fazer a recarga de aquíferos, a recomposição de matas ciliares e florestal, lutar contra o assoreamento dos rios, impedir que os biomas da Caatinga e do Cerrado sejam destruídos, além de implementar vigorosamente a gestão dos recursos hídricos quanto à quantidade e à qualidade das águas, um tanto superficiais quanto subterrânea, para evitar situações críticas em rio tão estratégico para o Brasil”, enumera Anivaldo Miranda. Questão de soberania Contra as alegadas incompetência e ineficiência das estatais, talvez se possa olhar por outro ângulo. Segundo Fernando Neves, da Frune, todas as empresas da Eletrobras mantêm hoje diálogo direto com as comunidades ao longo da bacia do São Francisco, gerando emprego, desenvolvimento socioeconômico e incentivando a cultura local. Caso ocorra a privatização, certamente, na sua opinião, a empresa deixará de cumprir sua função social. “É natural que as empresas privadas priorizem o lucro em detrimento da manutenção de benefícios para públicos como ribeirinhos e indígenas”, observa Neves. Para ele, os trabalhadores também vão pagar a conta: “Em todas as empresas que foram privatizadas houve redução considerável do número de trabalhadores. Estamos falando de capital técnico, de segurança”. Como exemplo, Neves cita a Vale, privatizada em 1997. Nos últimos anos, a empresa contabilizou duas tragédias ambientais

Vista da Hidrelétrica de Três Marias, em Minas Gerais

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Linhas de transmissão da Hidrelétrica de Paulo Afonso (BA)


que mataram mais de 300 pessoas em dois rios, o Doce e o Paraopeba: “Na Vale, a substituição por terceirizados diminuiu sensivelmente o respeito às normas de segurança, e o resultado, lamentavelmente, foi o que nós assistimos”. “Quem vier a controlar as usinas hidrelétricas vai controlar os rios, a geração de energia, a irrigação e, portanto, a produção de alimentos e o abastecimento humano e animal”, comenta Emanuel Mendes Torres, diretor da Associação de Empregados da Eletrobras e do Sindicato dos Eletricitários do Rio de Janeiro e Região. Ou seja, privatizar a estatal seria privatizar dois elementos básicos para a vida: a água e a energia, conforme reforça Mozart Bandeira, ex-diretor de Operação da Chesf por 12 anos e presidente do Sindicato dos Engenheiros no Estado de Pernambuco: “É uma empresa vital para a soberania nacional”. Quanto vale o show Anunciado inicialmente em 2018, na gestão de Michel Temer, o Projeto de Lei que prevê a desestatização da Eletrobras começou a tramitar na Câmara dos Deputados em novembro de 2019. O processo será feito por meio de capitalização, ou seja, a estatal emitirá novas ações, que serão postas à venda, reduzindo a participação acionária do governo a menos de 50%. Ficam de fora a Eletrobras Termonuclear e a Itaipu Binacional, que não podem ser controladas pela iniciativa privada. Um dos argumentos do governo federal para a venda das ações é que a estatal não teria atualmente capacidade financeira para fazer os investimentos necessários. “A Eletrobras é uma empresa importantíssima e tem um papel fundamental no mercado de energia no Brasil, mas o fato é que ela perdeu a sua capacidade de investimento”, garante o ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque. “O que queremos é uma empresa competitiva, que possa cumprir seu papel para a segurança energética do país”. Hoje, a Eletrobras responde por 31% da geração de energia e por 47% da transmissão elétrica no país. Conforme as entidades representativas de trabalhadores do setor, contrárias à privatização, a afirmação de que a estatal não tem como investir não procede. “Em novembro, a Eletrobras divulgou um lucro de R$ 7,6 bilhões, correspondente ao período entre janeiro e setembro de 2019. Em 2018, a empresa apresentou lucro de R$ 13,3 bilhões. Ou seja, são R$ 20,9 bilhões em menos de dois anos. A empresa tem plena capacidade financeira para ampliar seus investimentos para muito além dos R$ 3 bilhões que foram previstos para o ano passado”, afirma Torres, da Associação de Empregados da Eletrobras. Mozart Bandeira também refuta o argumento do governo. “Os números mostram que, além de estratégica, a Eletrobras é lucrativa para o país. A presença da Eletrobras, inclusive em parceria com empresas privadas, tem propiciado a expansão do setor elétrico brasileiro. Muitos investidores condicionam a atuação à participação da Eletrobras, porque consideram que isso dá segurança a seus investimentos”. Outro argumento de quem é favorável à privatização é de que haveria redução no valor da conta de luz. Para Torres, a afirmação também não corresponde à realidade. “O processo de privatização prevê a retirada de 14GW da Eletrobras do regime de cotas. Nesse regime, a empresa vende a energia, em média, a R$ 60 o MWh. Essa energia vai para o mercado livre a um valor estimado entre R$ 200 a R$ 250 o MWh. E isso em um ambiente de sobra de energia. Se faltar energia, o preço chegará facilmente a R$ 1.000/MWh, até mais”. Segundo Neves, a Agência Nacional de Energia Elétrica já fez estudos que preveem o aumento das tarifas de energia em caso de privatização. “Se a própria agência reguladora do governo indica

que haverá aumento, somente os ingênuos acreditam numa diminuição”, observa. Neves citou como exemplos as privatizações da Cepisa e da Ceal, empresas de energia do Piauí e de Alagoas. “Ambas aumentaram as tarifas e pioraram a qualidade dos serviços. Esse argumento de diminuir o valor da conta é apenas um canto de sereia. Na prática, o que ocorre é a precarização dos serviços prestados e, junto com tudo isso, a ampliação do lucro para as empresas, que é mandado para fora do nosso país”. O PL de privatização da Eletrobras prevê que os novos proprietários da empresa deverão fazer, durante 10 anos, aportes anuais de R$ 350 milhões para a revitalização do Rio São Francisco. “Eles estão acenando com uma cereja do bolo. Isso é uma miragem, não resolve a situação. Se quiser recuperar o São Francisco do ponto de vista hidroambiental, é preciso investir algo em torno de R$ 30 bilhões, ou seja, muito mais do que o previsto”, concluiu Anivaldo Miranda. Lá fora Em quase todo o mundo, a geração de energia hidrelétrica é estatal. Inclusive nos países de economia marcadamente liberal. Segundo os especialistas, trata-se de soberania nacional. É o caso de Estados Unidos, Canadá, Noruega, França, Rússia, China, África do Sul e Coreia do Sul, entre outros. Os Estados Unidos, por exemplo, mantêm o Exército resguardando as empresas de energia. Por outro lado, em muitos lugares, os parques geradores e transmissores são privados, principalmente de energia considerada ‘suja’, baseada em combustíveis fósseis como o carvão. “Muitos países privatizaram principalmente empresas de distribuição e de transmissão. Não por coincidência, hoje enfrentam graves problemas em relação à falta e à baixa qualidade de energia elétrica”, comenta Neves. “Os preços elevaram-se significativamente, fazendo com que os consumidores grandes e pequenos passassem a ter dificuldades de pagar a fatura de energia elétrica”. Torres cita como exemplo Chile e Argentina: “Nesses países, houve forte aumento nas contas de energia, chegando ao ponto de inviabilizar empresas e a subsistência da população”, declara. Na Argentina, a tarifa subiu, em média, 700% nos dois primeiros anos após a privatização. No Chile, o prédio da ENEL, empresa energética do país, foi um dos primeiros atacados durante as manifestações de outubro de 2019, logo após mais um reajuste no preço da energia, desta vez de 15%. Em Portugal, a privatização de duas empresas de energia, em 2012, trouxe prejuízo aos cofres públicos, segundo auditoria do Tribunal de Contas. Os juízes concluíram que os dividendos anuais da EDP e da REN podiam dar mais dinheiro do que o montante arrecadado no processo. A perda estimada para o Estado, segundo o Tribunal, chega a quase 2 bilhões de euros. Por outro lado, há países, como a Inglaterra, onde se discute reestatizar o setor elétrico. Pesquisa divulgada pelo jornal The Guardian apontou que 83% da população é a favor da nacionalização da água e 77%, da eletricidade e do gás. Há proposta para que haja mudança estatutária das empresas desses setores para que o objetivo principal passe a ser o provimento do serviço público, e não mais o lucro.

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Debate

Na contramão do mundo

Usina nuclear de Angra 1, em operação desde 1985

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Até 2050, a cidade de Itacuruba, às margens do Velho Chico, deve receber um complexo de seis usinas nucleares. O investimento em energia atômica vai na mão contrária da tendência mundial, além de ameaçar o meio ambiente e a vida na aldeia Pankará Por Luiza Baggio Foto: Manuela Cavadas e Shuterstock Um estudo do Ministério de Minas e Energia (MME) já definiu onde serão implantadas as seis usinas do complexo nuclear que a Eletronuclear pretende construir até 2050: o município de Itacuruba, em Pernambuco, à beira do Rio São Francisco. Ao todo, a obra, que deve ser incluída no Plano Nacional de Energia, vai custar R$ 30 bilhões, gerando cerca de seis mil MW; pelo menos essa é a previsão. Não custaria lembrar que o país conta com duas usinas nucleares em funcionamento, Angra 1 e 2, responsáveis por apenas 1,2% da geração de energia nacional. E Angra 3, obra iniciada há 35 anos, segue inacabada, tornando-se um elefante branco na bela paisagem do litoral fluminense. O movimento de expansão da matriz nuclear ocorre na contramão de países como Japão e Alemanha, que estão aposentando usinas construídas entre os anos 1970 e 1980. Por aqui, a ideia de mais energia nuclear andava fora de moda desde o terrível acidente de Fukushima, em 2011, o maior desastre do gênero após Chernobyl, ocorrido em 1986. Porém, o assunto voltou à tona com o governo de Jair Bolsonaro. Em novembro de 2019, o ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, inaugurou a 8ª cascata de ultracentrífugas da usina de enriquecimento isotópico de Urânio, com a presença do próprio Bolsonaro. Na ocasião, afirmou ser esta ação prioritária para o atual governo. Além das seis usinas a serem erguidas em Pernambuco, pretende-se também finalizar Angra 3. "A energia de origem nuclear é, hoje, a forma de geração de eletricidade, em larga escala, que menos causa impacto ao meio ambiente. Usinas nucleares como as de Angra funcionam em áreas relativamente pequenas, não liberam gases que provocam aquecimento da atmosfera e todos os seus resíduos são mantidos em instalações sob monitoramento permanente", afirmou Leonan dos Santos Guimarães, diretor-presidente da Eletronuclear. Segundo o MME, existem três vantagens que justificariam o investimento do governo: o domínio da tecnologia e do ciclo do combustível nuclear, a existência de reservas de urânio no território brasileiro, o que coloca o Brasil como uma das sete maiores do mundo, e, por fim, a constatação de que o país opera usinas nucleares de forma segura por quase quatro décadas. Nem tudo que reluz é ouro Olhando para a história da produção de energia nuclear no mundo, contabiliza-se três acidentes que marcaram a humanidade: Three Miles Islands, nos Estados Unidos, Chernobyl, na extinta União Soviética, e Fukushima, no Japão. De acordo com o professor da 23


Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Heitor Scalambrini Costa, na verdade, não existe nenhuma vantagem nesse tipo de matriz energética. Atualmente, Scalambrini coordena o projeto Soluções em Energia e Design da UFPE: “É uma tecnologia suja, insegura e cara. Da mineração do urânio ao problema insolúvel da destinação do lixo radioativo, é insustentável do ponto de vista social, ambiental e econômico. Não existe lugar apropriado para confinar o lixo nuclear em nenhuma parte do mundo. Devemos rechaçar qualquer política energética que ameace as gerações presentes e futuras”. Segundo o professor, doutor em Energética pela Faculte SaintJerôme/Aix-Marseille III, na França: “O manejo e o transporte de substâncias radioativas pelas precárias estradas e portos brasileiros é inseguro e coloca em risco cidades vizinhas das rodovias e portos, bem como moradores das grandes cidades. Além disso, o custo para o encerramento adequado das atividades das usinas antigas é altíssimo. O chamado descomissionamento está avaliado em torno de US$ 1 bilhão”. Para a implantação das usinas nucleares em Pernambuco, o governo federal tem pela frente um entrave legal para implantação dos reatores em Itacuruba. A Constituição pernambucana, em seu artigo 216, veta a instalação de usinas nucleares no estado "enquanto não se esgotar toda a capacidade de produzir energia hidrelétrica oriunda de outras fontes”. Sobre a retomada do projeto de Angra 3, Scalambrini ressaltou: “O que sabemos é que a proposta para finalizar a construção de Angra 3 é com tecnologia ultrapassada, cujos equipamentos estão armazenados há mais de 30 anos”. Velho Chico na berlinda A água utilizada nos reatores nucleares é devolvida ao meio ambiente em temperaturas que variam de 30 a 50 graus. Ou seja: com a instalação do complexo em Itacuruba, o Rio São Francisco deveria passar a receber água quente. Apesar de não existirem estudos conclusivos sobre os malefícios disso para a fauna e flora do rio, pesquisas apontam que na região de retorno da água mais quente há o desaparecimento de várias espécies vegetais e animais. Estima-se que a vida num raio de 500 metros em torno do local onde são despejadas as águas que saem dos reatores sofre impactos relevantes com o choque térmico. Heitor Scalambrini é enfático sobre a não construção de usinas nucleares na bacia do Velho Chico. “Creio que, numa relação de custo e benefício, podemos afirmar que essa água que será devolvida ao rio trará mais problemas do que solução. Volto a dizer que o mais importante é que qualquer acidente que possa provocar vazamento de material radioativo contaminará não somente o rio, mas o terreno no entorno da usina e também o ar. E, dependendo da situação climática local, a movimentação do ar contaminado poderá atingir lugares bem afastados, como foi o caso do acidente na usina de Chernobyl. O aumento de radiação chegou a ser detectado em Lisboa, que em linha reta está a mais de 3.000 km de distância. Para que não tenhamos nenhuma dúvida sobre a ocorrência de um acidente de tal natureza, a única certeza é não construir o empreendimento”. Os atingidos As promessas de emprego e renda são controversas. Segundo a cacique Pankará, Lucélia Cabral, o projeto, com previsão de geração de seis mil empregos diretos, significa a morte para o seu povo. Ao todo, 300 famílias vivem na aldeia, localizada em Itacuruba. "É a morte para nós”, comentou ela. “É preciso lembrar que parte da nossa história e da nossa vivência está embaixo da água. Mais uma vez, somos jogados feito bola para aqui e acolá. É como se a gente não tivesse significado e importância”. Lucélia ressalta que, apesar do tamanho do terreno para instalação da usina nuclear ser de 500 24

A energia eólica é uma opção de custo competitivo e baixo impacto ambiental na implantação e operação


hectares, existe uma área de segurança que é bem maior. "Compreende todo o território que estamos brigando para ser demarcado. Isso aqui pertence aos povos indígenas e quilombolas. Não aceitamos que nos matem assim". Em 1988, os Pankará foram retirados de seu território para realização de uma inundação programada pela Chesf (Companhia Hidrelétrica do São Francisco) e a consequente construção da barragem de Itaparica. Assim, deram início à construção da aldeia Pankará em Itacuruba que, no início, chegou a ter o maior índice de suicídios do Brasil, visto que a nova cidade era totalmente artificial e ficava no meio do nada. O assunto é tema do documentário “Tarja Preta”, de Márcio Farias, que pode ser assistido no Youtube.

Volta ao mundo Japão: Até o desastre de Fukushima, 30% da energia consumida pelos japoneses era de matriz nuclear. O país anunciou que até 2030 todas as suas usinas estarão desativadas. Alemanha: O governo alemão anunciou o desligamento de todas as usinas nucleares do país até 2022. O plano foi aprovado em 2011, após o acidente de Fukushima. O custo para a desativação das 17 usinas do país é de 17 bilhões de euros. Suíça: Cerca de 40% da eletricidade na Suíça vem de energia nuclear. O país estuda abandonar a energia atômica até 2034, investindo em fontes renováveis, como hidráulica, solar e eólica. Itália: Após Fukushima, decidiu interromper a expansão da energia nuclear no país. Em junho de 2011, a esmagadora maioria dos italianos se pronunciou em um referendo contra projetos de usinas em andamento. Bélgica: Pouco mais da metade de toda a energia consumida pelos Belgas, 54%, vem de usinas nucleares. Mas o país promete o abandono progressivo da energia radioativa até 2025. Coreia do Sul: Conta com 23 usinas para atender cerca de 40% da demanda local. O país segue investindo em energia nuclear. França: A energia radioativa representa 77,7% do consumo na França. Ao assumir o governo, Emmanuel Macron anunciou o fechamento de 14 dos 58 reatores em operação no país. A meta é reduzir para 50% o consumo de energia atômica até 2025. Argentina: O país vizinho colocou em funcionamento, em 2011, ano do acidente de Fukushima, sua terceira usina atômica. Seu plano estratégico prevê a construção de uma nova central nuclear e a ativação de um reator de baixa potência projetado por cientistas argentinos.

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Economia

Salve os jumentos Em menos de cinco anos, o animal que se tornou símbolo do sertão pode desaparecer da paisagem nordestina. Usado na produção de remédios e cosméticos na China, a exportação coloca em risco a espécie Por Juciana Cavalcante / Fotos: Marcizo Ventura

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A maior parte da população de jumentos atualmente Ê selvagem 28


O mestre Luiz Gonzaga deu-lhe o título de “maior desenvolvimentista do sertão”, na canção “O jumento é nosso irmão”. Já Chico Buarque teve que reconhecer, no musical “Os Saltimbancos”, que, afinal, não era mesmo o “jumento o grande malandro da praça”, pois “trabalha, trabalha de graça”. Também chamado de jegue, asno ou jerico, qualquer alcunha que se escolha para o animal de origem africana, introduzido no Brasil pelos portugueses, esta remeterá sempre à estultice, à parvoíce. Historicamente, porém, ele tem papel fundamental no desenvolvimento agrícola do país, principalmente no Nordeste. Antes da chegada das máquinas, era o grande aliado do homem do campo na lida diária, transformando-se em patrimônio cultural e símbolo do agreste brasileiro. Nos últimos anos, no entanto, o simpático jumento começou a sumir da paisagem sertaneja, desde que os chineses passaram a importar o animal do Brasil. Segundo especialistas, o risco de extinção tornou-se iminente. Estima-se que em menos de cinco anos a espécie pode desaparecer. A China tem interesse, principalmente, no couro, matéria prima para a produção do ejiao, uma gelatina usada na medicina e em cosméticos. A carne é um

subproduto, consumido no Norte do país asiático. Calcula-se que a demanda por jumentos na China gire em torno de cinco milhões de cabeça por ano, movimentando um mercado de cerca de R$ 22 bilhões. A ironia é que o Brasil entrou nessa conta sem sequer ter quantidade suficiente de animais para exportação. Em 2012, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) contabilizara uma população de apenas 902 mil jumentos, 877 destes vivendo no Nordeste. A sorte dos jumentos brasileiros começou a ser traçada em 2016. Naquela altura, a Agência Estadual de Defesa Agropecuária da Bahia (ADAB) resolveu definir os critérios para o abate legal de equídeos. A partir daí, instituiu-se a matança para a exportação. Calcula-se que, desde então, cerca de 100 mil jumentos tenham sido mortos nos três frigoríficos autorizados pelo governo federal, nos municípios de Amargosa, Itapetinga e Simões Filho. O risco de extinção deve-se ao fato de que não existe criação de jumentos para o abate, como acontece com o gado, por exemplo. Os sertanejos capturam animais soltos ou domésticos para vender para atravessadores e fazendeiros.

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Triste fim Após perder a utilidade no campo, substituído por motos e equipamentos industriais, o jumento passou a ser descartado, simplesmente solto nas estradas, causando acidentes. Por isso, a princípio, a ideia de exportar soou como bálsamo para as autoridades. Mas não demorou muito para que se percebesse a crueldade por trás da aparente saída. O sofrimento do animal começa logo na captura. Levados em caminhões sem nenhum suporte para esse tipo de transporte, os jumentos viajam centenas de quilômetros sem direito a água e alimentação. Isso porque, segundo Eduardo Aparício, membro da União Internacional Protetora dos Animais (UIPA), a carne do animal não é o principal foco dos chineses e sim a pele, o que torna evitável para a cadeia os custos com alimentação. As denúncias de maus tratos se amontoam. No mesmo ano de 2016, o Ministério Público da cidade de Miguel Calmon recebeu representação criminal contra o abate de jumentos. Na ocasião foram realizadas inspeções em um frigorífico que foi multado e recomendada pelo MP a suspensão do abate após verificação de irregularidades nas instalações e em seu funcionamento. Em 2017, a comarca de Amargosa também recebeu denúncias e, em 2018, o mesmo fato aconteceu em Itapetinga e Canudos, onde cerca de 200 jumentos que seriam abatidos morreram de fome em uma fazenda do município, enquanto outros 800 animais caminhavam para o mesmo fim. As ações foram representadas pelas entidades União Defensora dos Animais – Bicho Feliz e Fórum Animal, participantes da Frente Nacional de Defesa dos Jumentos (FNDJ). “Os jumentos são capturados ou comprados, amontoados em caminhões, depositados em fazendas sem comida e água, o que gera enorme sofrimento dos animais”, comentou a advogada Gislane Brandão, da FNDJ. Em 2018, a juíza Arali Maciel Duarte, da 1ª Vara Federal de Salvador, concedeu decisão liminar proibindo o abate de jumentos na Bahia, em resposta à Ação Civil Pública movida por diversas entidades, entre elas Bicho Feliz, Fórum Animal, REMCA e SOS Animais de Rua (Frente Nacional de Defesa de Jumentos). A liminar, porém, durou pouco. Em setembro de 2019, foi suspensa pelo Tribunal Regional Federal (TRF) da 1a Região, sob a alegação de que a restrição se caracterizava como “duríssima e de gravíssimas consequências e alto impacto econômico para o comércio estadual e, consequentemente, para a economia pública nacional”. De acordo com a Assessoria de Comunicação do TRF 1ª Região o processo está concluso para decisão aguardando julgamento. Quanto vale Mas o que torna o animal tão cobiçado pela China? Anualmente, para produzir 5.600 toneladas do ejiao, são necessários 4,8 milhões de peles de jumento – e esse índice cresce 20% por ano. Ou seja: não há, no país asiático, animais suficientes para sustentar o mercado. Segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (Food and Agriculture Organization of the United Nations, FAO), em 1992, havia mais de 11 milhões de jumentos no país, representando o maior rebanho do mundo. Já, em 2017, a estimativa foi que esse número havia diminuído em mais da metade, não ultrapassando 4,6 milhões de jumentos. Mas esse número pode ser ainda mais baixo, cerca de 2,6 milhões de acordo com o Anuário estatístico da China para 2017. Por isso, a necessidade de importar de outros países. Inclusive do Brasil. “Os jumentos vivem de 30 a 35 anos. Antes de serem substituídos por máquinas, sua utilidade no campo era de grande valor comercial, pois auxiliavam na produção e trabalho nas fazendas, devido à sua resistência ao trabalho”, destacou Chiara 30

Albano, zootecnista e professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA). “Hoje, sem utilidade, acabam sendo descartados. E o que temos visto ao longo desses anos é que, com o abate do jumento, o animal corre grande risco de extinção. Nessa escala, pode estar extinto em quatro anos”. Questão de saúde pública Além da crueldade envolvida no abate de jumentos, outra questão toma notoriedade: trata-se do surto de mormo, espécie de anemia infecciosa, que atinge os equídeos, podendo também ser transmitida para humanos. O contágio pode acontecer por meio do contato com pus, secreção nasal, urina e fezes do animal. Segundo a ADAB, os últimos casos registrados ocorreram em Euclides da Cunha e Feira de Santana, onde animais infectados com a doença foram sacrificados. “A liberação do abate dos jumentos no país, além de inaceitável, gerando sofrimento aos animais e sua extinção, representa um risco à saúde da população e a outros animais, já que ao contrário do que diz a ADAB, o mormo não foi controlado”, afirmou Gislane Brandão, da FNDJ.“Dezenas de animais foram confirmados positivos para mormo no rebanho apreendido em Euclides da Cunha/ Canudos (BA). Centenas de animais morreram em Itapetinga (BA) de forma extremamente cruel, com manejo violento, além de muitos animais agonizando e mortos serem mantidos juntamente com os vivos, sem qualquer cuidado e alimentação enquanto aguardavam o transporte para o abatedouro, muitos acometidos por doenças contagiosas, e os produtos originários desse abate foram exportados em 2018”. Operação resgate O bom exemplo vem do Ceará. Na cidade de Santa Quitéria, a 220 quilômetros de Fortaleza, fica o Parque Padre Antônio Vieira, que abriga cerca de três mil jumentos, em área de 500 hectares. Considerada hoje um santuário, a fazenda, a princípio, funcionava como um depósito de jumentos recolhidos nas estradas do estado. Sem alimentação ou cuidados, a maioria acabava morrendo. Foi então que Geuza Leitão, presidente da União Internacional Protetora dos Animais, em parceria com o Ministério Público e o Detran/CE, resolveu arregaçar as mangas, conseguindo firmar um termo de ajuste de conduta para garantir o bem-estar dos jumentos capturados. “Junto com a União Internacional de Proteção dos Animais (UIPA), do qual faço parte, criamos a ideia de um parque de turismo que poderia servir para o recolhimento do animal, pesquisa dos hábitos e cuidados. Hoje a taxa de mortalidade diminuiu consideravelmente, os animais têm um tratamento digno, recebendo alimentação, água, vacinas”, comentou Aparício. “Não foi fácil, mas estamos conseguindo fazer com que as pessoas entendam aquele espaço como um local de cuidados e preservação”. O local recebeu o nome de Parque de Proteção Padre Antônio Vieira numa justa homenagem. Homônimo do português que se tornara um dos nomes mais influentes da colônia, no século 17, o pároco foi um grande defensor dos animais e escreveu o livro que inspirou Luiz Gonzaga: “O Jumento, Nosso Irmão”. Por 30 anos, ele coordenou o Clube Mundial dos Jumentos que chegou a receber apoio da atriz e ecologista francesa Brigitte Bardot. “O padre dizia: ‘A situação é triste porque tudo que existe neste Nordeste foi feito no lombo do jumento’”, comentou José Dimas de Almeida, presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Miguel.


Na cidade de Santa Quitéria (CE), o Parque Padre Antônio Vieira abriga cerca de três mil jumentos

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Projetos CBHSF

Vida severina

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Em vez de bater asas do sertão, a saída para a seca no Nordeste é a convivência com o fenômeno natural. Para isso, o CBHSF investe em projetos com foco na sustentabilidade hídrica do Semiárido Por Luiza Baggio Fotos: Edson Oliveira e Manuela Cavadas Entre 1877 e 1879, o Nordeste brasileiro enfrentou aquilo que entrou para a nossa história como “A Grande Seca”. Estima-se que cerca de meio milhão de pessoas tenham morrido de sede ou de fome. Alarmado, o então imperador D. Pedro II chegara a afirmar que gastaria até a última joia da coroa para garantir aos súditos que o cenário de desolação não se repetiria. Como se sabe, a promessa dissolveu-se na primeira chuva. Durante todo o século seguinte, o século 20, a seca seguiu sendo o calvário dos sertanejos, que, em grandes ondas, deixavam sua terra para tentar a sorte noutras paragens. Como cantara Luiz Gonzaga, “inté mesmo a Asa branca bateu asas do sertão”. O século 21, porém, trouxe novidades. As correntes migratórias não só diminuíram, como aconteceram na mão contrária, com gente largando os grandes centros para voltar para casa. Por quê? Nos últimos 20 anos, o que mudou foi a forma como a população enfrenta o problema. Se antes combatia o fenômeno, agora se vê diante de uma nova proposta política: a convivência com a seca. Neste contexto, o Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF) vai executar oito projetos, sendo dois em cada região fisiográfica (Alto, Médio, Submédio e Baixo São Francisco), com foco na sustentabilidade hídrica da região Semiárida. Cada região fisiográfica da Bacia vai receber o montante de até R$ 1 milhão para execução das propostas aprovadas. Os projetos são fruto do chamamento público lançado pelo CBHSF em novembro de 2019. Concorreram projetos de diversas associações, cooperativas, ONGs, prefeituras, institutos de ensino/pesquisa, entre outros. “O Semiárido é muitas vezes desprezado. A sustentabilidade hídrica é uma meta em compatibilidade com o Eixo IV do Plano de Recursos Hídricos da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (PRH-SF)”, comentou o austríaco Johann Gnadlinger, do Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada (IRPAA), com sede em Juazeiro, na Bahia. “Os projetos que serão executados são um início e exemplificam como se pode viver no Semiárido”. 33


Morador da região há 43 anos, ele aposta tudo nesta ideia. Para isso, milita em várias frentes. É um dos fundadores da Associação Brasileira de Captação e Manejo de Água de Chuva (ABCMAC) e também membro da Câmara Técnica de Planos, Programas e Projetos (CTPPP) do CBHSF. “O Semiárido representa 54% da área da bacia do Rio São Francisco. É uma região que tem a maior parte do seu território coberto pela Caatinga, considerada por especialistas o bioma brasileiro mais sensível à interferência humana e às mudanças climáticas globais”, comentou Gnadlinger. “Outra característica do Semiárido brasileiro é o déficit hídrico, embora isso não signifique falta de água, pelo contrário, é o Semiárido mais chuvoso do planeta. Porém, as chuvas são irregulares no tempo e no espaço e a quantidade de chuva é menor do que o índice de evaporação”. Para Johann Gnadlinger, não há outra saída hoje senão aprender a viver com a seca: “Aprendendo sobre as tecnologias disponíveis e como produzir de maneira apropriada. Isso significa que as pessoas que vivem no Semiárido precisam se preparar para a chegada da chuva. Saber gerir seus recursos e ter reservatórios para captar e armazenar água para o período de estiagem”.

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Conheça os projetos que o CBHSF vai executar: Alto São Francisco: – Água para beber, vidas para cuidar – Ações de revitalização dos recursos hídricos no município de Miravânia, no Semiárido mineiro Médio São Francisco: – Água e vida no Semiárido: produzindo alimento e resgatando a autonomia financeira dos agricultores – Colhendo água de chuva e resgatando a cidadania da população do Semiárido na bacia do Paramirim Submédio São Francisco: – Bênçãos do São Francisco – sustentabilidade socioambiental, hídrica, energética, alimentar e nutricional no Submédio São Francisco – Salvando as veias do São Francisco – a luta para recuperar rios e nascentes nas serras de Jaguarari-BA Baixo São Francisco: – Segurança hídrica e controle da desertificação através de energia fotovoltaica e Sistemas Agroflorestais; – Bênçãos do São Francisco – sustentabilidade socioambiental, hídrica, energética, alimentar e nutricional no Baixo São Francisco.

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Arte

O súdito e a majestade Na cidade de Anadia, interior de Alagoas, o ambientalista Dimas Cavalcante, presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Miguel, guarda um tesouro: a impressionante coleção que percorre a vida e obra de Luiz Gonzaga Por Deisy Nascimento / Fotos: Edson Oliveira

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Livros e discos da preciosa coleção de Dimas Cavalcante

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Quem chega à casa do alagoano Dimas Cavalcante, presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Miguel, na cidade de Anadia, interior do estado, não tem dúvida: ali mora um fã de Luiz Gonzaga. Para começo de conversa, o visitante é recepcionado por uma estátua do rei do baião, talhada em madeira, em tamanho natural. A presença impõe respeito, afinal o pernambucano de Exu tinha 1,94 m. Ao adentrar o recinto, depara-se com uma memorável coleção de discos raros, objetos inusitados, fotografias, revistas e livros que contam a trajetória de um dos mais importantes artistas brasileiros, nascido em 1912 e morto em 1989, aos 77 anos. “Meu nome é Luiz Gonzaga. Não sei se sou fraco ou forte. Só sei que, graças a Deus, té prá nascê tive sorte”: e foi com o poema biográfico, publicado pelo jornal Última Hora, edição de 16 de setembro de 1971, que Dimas começou a mostrar o valioso acervo.“A primeira canção que tratou do Velho Chico foi ‘Riacho do Navio’, composição de Zé Dantas e Luiz Gonzaga, gravada em 1955, em disco de 78 rotações”, disse ele, mostrando uma das preciosidades de sua coleção. A princípio, o que chamou a sua atenção na obra de Luiz Gonzaga foi o sentimento tão fundo do sertão, traduzido em músicas que resgatavam a sua própria vivência de sertanejo. Como bem dizia a letra de “Riacho do Navio”: “Sem rádio e sem notícias das terra civilizada”. Tudo começou quando tinha 10 anos e ouvia nos autofalantes de Anadia a voz de Luiz Gonzaga. No ar, ressoavam outros bambas, como Jackson do Pandeiro, mas o que ele gostava mesmo era daquele sertanejo arretado. Na juventude, mergulhou numa profunda pesquisa das referências musicais do artista, além de comprar revistas, livros, tudo que contasse um pouco da vida do ídolo. Ao longo dos anos, acumulou peças que pouquíssimos colecionadores têm acesso, algumas únicas e de enorme valor sentimental. Ironicamente, porém, só viu Gonzagão ao vivo uma única vez, num show em Maceió, no Trapichão. “Acabei conhecendo Daniel Gonzaga, filho de Gonzaguinha, Joquinha Gonzaga, sobrinho de Luiz Gonzaga, que seguiu seus passos, mora em Exu (PE) e cuida da fundação Vovô Januário”, relatou Dimas. “Luiz Gonzaga tocava o coração das pessoas. Sua morte trouxe grande tristeza. Tinha orgulho de ser nordestino, era um ícone que exaltava o Nordeste e colocou a região na rota da música. Suas canções sempre traziam histórias tristes, alegres, mas relatos verdadeiros do sertão”. De Exu para o mundo O ambientalista sabe de cor a biografia do pernambucano. Luiz Gonzaga nascera na fazenda Caiçara, em Exu, interior de Pernambuco, no dia 13 de dezembro de 1912. O pai chamava-se Januário e a mãe, dona Santana. Teve oito irmãos: João (Joca), Zé Januário, Severino, Aluísio, Geni, Socorro, Muniz e Chiquinha. O gosto pela música herdou do pai, que tocava fole de oito baixos e consertava sanfonas. De acordo com Dimas, foi uma infância feliz, apesar da dureza da Caatinga. “Em suas músicas sempre buscou relatar a própria vida, dos parentes, dos amigos, do sertão, do Nordeste”, comentou. “Mas precisou dar uma pausa na sua carreira como sanfoneiro porque entrou no exército, onde trocou a sanfona pela corneta”. No início dos anos 40, de mudança para a capital da República, o Rio de Janeiro, Luiz Gonzaga cantou em bares e cabarés. Vestido de terno e gravata, como era a moda entre os músicos profissionais, não empolgava ninguém. Até que, numa bela noite, conseguiu se apresentar no programa de Ary Barroso, na famosa rádio Nacional. “Tocou um estilo ainda desconhecido, o vira-e-mexe, e levou o público ao delírio”, relatou Dimas. “Luiz Gonzaga tinha visão, era um gênio. No Rio de Janeiro, logo percebeu que, para fazer sucesso, tinha que tirar o terno e assumir as raízes nordestinas. Foi assim que adotou o gibão de couro e o chapéu”. De acordo com Dimas, daí em diante, Luiz Gonzaga virou o ícone que o Brasil inteiro conhece, apresentando ao país, além do baião, o 38

xaxado, o forró coco, o arrasta pé e a marchinha junina, influenciando grandes artistas, como Raul Seixas, Alceu Valença, Geraldo Vandré, Elba Ramalho, Geraldo Azevedo, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tim Maia e Fagner. “Quase todos os grandes regravaram alguma música dele”. Apesar do sucesso, nunca abandonou as raízes: “Ele foi para a cidade grande, mas seu coração foi sempre do Sertão”. Na Marquês de Sapucaí Entre as histórias que marcaram a vida de Luiz Gonzaga, como a relação tumultuosa com o filho Gonzaguinha, Dimas mostrou uma revista trazendo os bastidores da última grande homenagem ao ídolo. Em 2012, a escola de samba Unidos da Tijuca desfilou sob o enredo “O dia em que toda a realeza desembarcou na Avenida para coroar o Rei Luiz do Sertão”. “Guardo essa revista com muito cuidado e carinho. Essa é uma peça de colecionador e poucos tiveram ou terão a oportunidade de tê-la”, explicou Dimas. “Luiz Gonzaga não foi homenageado à toa. Ele deixou um grande legado musical e de representatividade nordestina. Ressalto o quanto ele foi revolucionário para os padrões da época e sigo dizendo que por meio dele outros artistas tiveram seus trabalhos reconhecidos”. Para levar Luiz Gonzaga para a avenida, a bateria da Unidos da Tijuca misturou forró e samba. O samba-enredo conclamou a torcida: “Canta Tijuca. Vem comemorar. Inté Asa Branca encontrar o pavão para coroar o rei do baião”. Como não podia deixar de ser, naquele ano de 2012, a escola sagrou-se campeã do carnaval carioca. “Para mim, ele vai ser sempre o maior artista brasileiro e jamais será esquecido”, finalizou Dimas.

O colecionador Dimas Cavalcante


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Gastronomia

Da boa O Rio São Francisco é brasileiro, da nascente à foz. A cachaça também só existe aqui. Quando se cruzam, o resultado não deixa a desejar a nenhum uísque escocês. A seguir, você vai conhecer quatro histórias de branquinhas que, nascidas sob a influência da cultura ribeirinha, se destacam, conquistando paladares cada vez mais refinados e status de bebida importante. Por Andréia Vitório / Fotos: Divulgação 40


A cachaรงa Paramirim fica por 2 anos armazenada em barris de carvalho 41


Em Januária Corriam os anos 30 na mineira Januária, localizada no médio São Francisco, quando o comerciante Astério Itabayana começou a produzir e vender a sua cachaça. Para chamar a atenção dos viajantes que por ali passavam aos montes, subindo e descendo o Velho Chico, então uma importante rota comercial do país, batizou-a com um nome sedutor: Insinuante. Ao longo das décadas, a caninha de seu Astério fez fama no concorrido mercado local. Como se sabe, Minas Gerais é lugar de cachaça boa. E Januária, famosa pelos antigos alambiques que povoam seus arredores. Em 1996, a Insinuante foi comprada por Marcelo Ricaldoni Alves e, a partir de então, começou a correr mundo. Hoje é uma das dez cachaças artesanais mais vendidas do Brasil. São envasados mensalmente cerca de mil litros, aproximadamente 1600 garrafas. Segundo Gabriel Ricaldoni, segunda geração da família à frente do negócio, o segredo é uma soma de fatores: “conseguimos juntar o doce da cana pura, o paladar encorpado dos seus 48% de graduação alcoólica e o gostoso cheiro suave da amburana”. Para Gabriel, que cuida do marketing da Insinuante, o nome remete ao espírito dos nativos de Januária, povo “simpático e sedutor”. Já o rótulo, nas cores vermelho e amarelo, foi inspirado no deslumbrante pôr do sol às margens do São Francisco. Na Serra da Canastra A cachaça Nascente do Velho Chico, fabricada na Serra da Canastra, não é qualquer cachaça. Cachaça gourmet, como se diz por aí, fabricada em tons e nuances diferentes, para paladares distintos. A tradicional possui sabor delicado, levemente frutado e aroma característico da cana. O produto mais nobre é a versão envelhecida por cinco anos em tonéis de carvalho. Ao todo, são produzidas, mensalmente, cerca de 1000 garrafas da Nascente do Velho Chico, que chegam a 21 estados do Brasil. Até começar a espalhar a sua cachaça pelo país, o produtor Francisco de Oliveira só fazia – e vendia – queijo. Aliás, como muita gente na Serra da Canastra, região que virou sinônimo de queijo artesanal de qualidade. O chamado queijo Canastra é fabricado há pelo menos dois séculos, primo do queijo de São Jorge, fabricado na ilha dos Açores. Segundo Francisco, ao comercializar a sua produção, ele logo percebeu que os clientes que compravam queijo também queriam uma boa cachacinha para fazer par. Da dobradinha infalível, nasceu a Nascente do Velho Chico. O nome escolhido para o batismo da aguardente não podia ser outro. Além de terra do queijo, a Serra da Canastra também abriga a nascente do Rio São Francisco. O rótulo remete à cachoeira Casca D’anta, primeira queda d’água do Velho Chico. “Buscamos mostrar o que nós acreditamos ser uma das maiores belezas de toda extensão do rio”, comentou Francisco. De acordo com ele, a água utilizada na produção da cachaça e na higienização das garrafas chega pelo afluente Ribeirão das Araras. Em Paramirim Em 1996, o casal Adeylsa e Edvaldo Antônio de Souza Matos começou a fabricar a cachaça Paramirim, que leva o nome da cidade baiana onde nasceu. O pai de Edvaldo já tinha feito história no ramo da produção de aguardente quando, em 1956, acompanhou o cunhado, descendente de turcos, numa empreitada arrojada para a época: implantar um alambique moderno no meio do sertão. Segundo contou Edvaldo, o gosto pelo ofício, sem dúvida, é herança paterna. “A gente atribui o sabor da nossa cachaça ao tipo de solo que temos aqui no vale do Rio Paramirim. A cachaça Paramirim é 42

adocicada, lembra muito fruta madura”, comentou ele. Um dos principais afluentes do Rio São Francisco, o Paramirim irriga justamente plantações de cana de açúcar. “A barragem do Zabumbão é a salvação da região. O São Francisco é fundamental nas nossas vidas”, salientou o produtor. A montanha e os contornos que marcam a paisagem estampam o rótulo da bebida, premiada no ano de 2019 em uma importante feira do setor, em Minas Gerais. Atualmente, são produzidos cerca de 25 mil litros da cachaça por ano. Entre Morro do Chapéu e América Dourada Em uma fazenda plantada entre Morro do Chapéu e América Dourada, dois municípios do sertão baiano, a cachaça ganhou o sotaque da Caatinga. O casal Matteus da Silva Bagano e Indira Ferreira inventou a UmbuGarapa, uma aguardente com o toque mágico do fruto do Umbuzeiro, árvore típica da região. A fazenda fica perto do Rio Jacaré, afluente do São Francisco. “Utilizamos a água do rio para esterilizar o material e o fruto, além de lavar o que vamos usar. Deixamos tudo esterilizado para começar o processo de infusão da cachaça”, explicou Indira. Atualmente, a produção gira em torno de 100 garrafas por mês. A expectativa é dobrar a produção em 2021. Além da cachaça, o casal produz o licor, o doce e a geleia de Umbu. “A cachaça surgiu da necessidade de aproveitamento do umbu produzido a cada ano na fazenda. Fizemos os primeiros testes da produção em família e hoje o processo continua totalmente familiar. Realizamos todas as etapas, desde a catação do fruto na época, produção, rotulagem e distribuição”, relatou a produtora. Criada em 2018, a UmbuGarapa tem gosto, cheiro e cor do umbu, graças ao uso do método de infusão. O rótulo também não deixa dúvida da terra natal, inspirado na xilogravura, uma arte da poesia de cordel. Na imagem, traços da bela e inconfundível paisagem sertaneja.


Outros rótulos:

Cachaça Triumpho

Cachaça Claudionor

Produzida na cidade serrana de Triunfo, localizada na Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, no Sertão do Pajeú, em Pernambuco, conhecida como a Capital da Rapadura! Foi a 1° Cachaça do Brasil a receber a Certificação de Conformidade do INMETRO.

Pioneira na produção artesanal na cidade de Januária, no Médio São Francisco, em Minas Gerais, desde 1925. É um dos rótulos mais conhecidos do Brasil.

Gogó de Ema

Produzida em Laranjeiras, Sergipe, a cachaça Xingó homenageia a hidrelétrica construída sobre o Rio São Francisco, entre Alagoas e Sergipe.

Medalha de Ouro no Concurso Mundial de Bruxelas de 2018, é produzida no município alagoano de São Sebastião, que está inserido na Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco e é banhado pela sub-bacia do Rio Piauí, cujo principal afluente é o Riacho do Meio.

Cachaça Xingó

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Meio Ambiente

Plantando água Na zona norte de Belo Horizonte, moradores da Ocupação Izidora encontraram nas práticas da agroecologia a fórmula para produzir alimentos saudáveis, preservando a natureza e a diversidade cultural Por Mariana Martins Fotos: Bruno Figueiredo e Lucas Bois Em 2015, a Ocupação Izidora, na zona norte de Belo Horizonte (MG), entrou para o imaginário nacional como símbolo de resistência. Naquele ano, no maior conflito fundiário urbano já visto no país, cerca de 30 mil moradores protagonizaram uma ferrenha batalha pelo direito à cidade e à moradia. O terreno de 900.000 metros quadrados havia sido ocupado em 2013, por oito mil famílias sem-teto, que deveriam ser expulsas para dar lugar a um megaempreendimento comercial. Com a mobilização, angariando o apoio de movimentos sociais da capital mineira, a comunidade venceu a guerra. Cinco anos depois, o Izidora abriga uma experiência pioneira de agroecologia. Segundo o engenheiro florestal João Portella Sobral, do Coletivo Agroecologia na Periferia, a preservação ambiental teve papel fundamental para garantir a integração de posse aos moradores: “A conservação do meio ambiente está na origem dessa luta”. Afinal, o que é agroecologia? De acordo com o Dicionário da Educação do Campo, publicado em 2012 pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), trata-se de “um conjunto de conhecimentos sistematizados, baseados em técnicas e saberes tradicionais (dos povos originários e camponeses) que incorporam princípios ecológicos e valores culturais às práticas agrícolas”. Para João Portella, a agroecologia vai muito além de produzir alimentos sem agrotóxicos: “Falar de agroecologia é falar de preservação ambiental, conservação das águas, do respeito às diversidades culturais, de gênero, de religião. Em suma, de formas mais cordiais e solidárias entre homens e mulheres”, comentou. 44


Na ocupação Izidora, a prática da agrofloresta vem mudando a realidade

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Moradores do Izidora desde os primórdios da ocupação, o casal Ana Maria Souza e José Adão da Silva cultiva hortaliças, frutas e legumes no quintal de casa. Durante o processo de implantação da comunidade, a dupla conheceu a agroecologia, por meio de grupos como a AMAU (Articulação Metropolitana de Agricultura Urbana) e o Coletivo. “No começo eu fiquei com um pé atrás. Não acreditava que dava para plantar sem veneno. Lá no Norte de Minas, de onde eu venho, a gente mexia com horta também, mas tudo com adubo químico”, lembrou José Adão. Ele conta que, aos poucos, percebeu que não só dava como era melhor produzir sem fertilizantes químicos. “Fui vendo que ia brotando e fui gostando. Aí parei de usar produto químico”, diz ele. A diferença se sente no bolso e na mesa, garante. “Barateou muito o custo. E o sabor da verdura também melhorou, o cheiro… Só de andar na horta você já sente”. Economia Além de alimentos mais saudáveis, as práticas agroecológicas, conforme explicou João Portela, reduzem em 90% o uso de água: diversificação da produção, estratificação por altura (plantas de diferentes alturas no mesmo terreno) e cobertura do solo. “A cobertura do solo não deixa a água evaporar, ajuda na infiltração. O solo se mantém fresco, então facilita a conservação da umidade. Qualquer água que venha de um processo erosivo para na cobertura do solo e tem a tendência de infiltração, abastecendo o lençol freático. Plantar água deve ser entendido como o processo de infiltração de água no solo”, comentou o engenheiro florestal. O terreno do Izidora ainda possui mata nativa – uma transição entre a Mata Atlântica e o Cerrado, e guarda cerca de 200 nascentes e 64 córregos. Segundo Paula Cristina Fonseca da Silva, conhecida na comunidade como Paulinha, a preservação das nascentes é prioridade devido à falta d’água na região. “Tem um setor da ocupação onde não chega água, então eles canalizaram uma nascente e utilizam a água para abastecimento próprio. A gente também fura poços para garantir água. Mas tudo é feito com cuidado, plantando em volta das nascentes para que a água fique mais pura”, contou ela. Por outro lado, há a preocupação constante com a qualidade da água consumida. “A gente já pediu estudos em relação a isso diversas vezes, mas ninguém vem fazer. Mas todos aqui são muito precavidos. Mesmo com a falta de infraestrutura (não temos esgoto, por exemplo) a gente tenta ao máximo preservar. Já fizemos uma fossa ecológica na comunidade e temos projeto para mais uma. A fossa ecológica ajuda na conservação do solo e é uma solução para evitar que as pessoas façam suas próprias fossas de maneira incorreta, poluindo o solo. O custo é muito alto para uma população carente como a nossa, mas pretendemos fazer mais”. O agro não é pop “A agroecologia está para a vida, assim como a agricultura convencional está para a morte”, afirmou o engenheiro florestal João Portella. “De toda a água consumida no Brasil, 70% é gasta na agricultura e uma parte muito considerável é perdida com as práticas ineficientes utilizadas na agricultura convencional, com uso de pivô central, sistema de irrigação por sulcos de grandes volumes que causam uma perda por evapotranspiração gigantesca”. Na agricultura convencional prevalece a busca da maior produtividade através da utilização intensa de insumos externos e predomina o cultivo de monoculturas, o que favorece o aparecimento de pragas, doenças e ervas invasoras, aumentando o uso de agrotóxicos. Ela visa, acima de tudo, produção, deixando em segundo plano a preocupação com a conservação do meio ambiente e a qualidade nutricional dos alimentos.

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Mas, é possível resistir ao agronegócio? Um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) mostra que a produção e o consumo de produtos orgânicos no mundo têm crescido significativamente, impulsionados pela expansão da demanda por alimentos e bebidas orgânicas, principalmente nos países da Europa e da América do Norte, além da China, que se tornou o quarto maior mercado de orgânicos no mundo, desde 2013, atrás somente dos Estados Unidos, da Alemanha e da França. O crescimento médio anual das vendas no varejo de produtos orgânicos no mundo foi superior a 11%, no período de 2000 a 2017. No Brasil, o estudo mostra que a produção e o consumo de produtos orgânicos também aumentaram, mas em um ritmo mais lento. A demanda foi impulsionada não somente pelo mercado externo, mas também pelo mercado doméstico. O papel das compras institucionais para a alimentação escolar e os serviços de alimentação de alguns órgãos governamentais possibilitou a valorização da produção orgânica, especialmente da agricultura familiar. Apesar disso, a produção orgânica no Brasil enfrenta inúmeros desafios. O Brasil é o maior consumidor de agrotóxicos do mundo. Para Portella, “essa é uma luta de Davi contra Golias. Se você olhar quanto do financiamento agrícola do governo vai para a agricultura convencional e quanto vai para a agroecologia, chega a ser vergonhoso. A diferença é gritante, é uma luta muito desigual. Mas sim, é possível enfrentar o agronegócio. É trabalho de formiguinha, e cada vez mais tem gente trabalhando no sentido de promover a agroecologia”.


ÁGUA E CONSUMO 97% da água no mundo é salgada e apenas 3% é doce. Destes, 2% estão em geleiras e 1% é a quantidade de água disponível para consumo. Do total de água doce disponível para consumo, estimase que 70% é consumido pela agricultura, 23% pela indústria e 7% é a quantidade para consumo humano.

Prefeitura de Belo Horizonte incentiva hortas comunitárias Um projeto piloto do chamado Programa Territórios Sustentáveis foi implantado na Ocupação Izidora, com o objetivo de investir no fortalecimento da agroecologia e da agricultura urbana, favorecendo a segurança alimentar, a geração de renda, a conservação ambiental e a inclusão social. Criado em 2017, por meio da Secretaria Municipal de Assistência Social, Segurança Alimentar e Cidadania, o programa que incentiva a plantação de hortas comunitárias fornece mudas e sementes, auxilia no desenvolvimento de quintais produtivos, oferece oficinas de formação e apoia o processo de organização para a comercialização quando a produção excede o consumo doméstico. O programa também orienta os moradores sobre cultivo de alimentos dentro dos princípios da agroecologia, sem uso de agrotóxicos, com baixo consumo de água, buscando a produção sustentável de alimentos saudáveis e recuperando o meio ambiente. A ocupação Izidora conta com três áreas produtivas nos territórios Rosa Leão, Esperança e Vitória, beneficiando 116 famílias que recebem visitas periódicas de técnicos da Subsecretaria de Segurança Alimentar e Nutricional. Os técnicos acompanham o desenvolvimento das plantações e auxiliam em diferentes demandas relacionadas à agroecologia e à sustentabilidade. Outros órgãos municipais também participam do programa. A SLU (Superintendência de Limpeza Urbana), por exemplo, auxilia na orientação sobre a produção de compostagem com o lixo orgânico, o que permite tanto a adubação natural das hortas quanto a diminuição da quantidade de resíduos que é depositada nos aterros sanitários.

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Ensaio

Chove Chuva Há muito tempo não se via tanta chuva. Entre o fim de janeiro e o começo de fevereiro, Minas Gerais ficou debaixo d’água. Se por um lado os fortes temporais registrados no estado deixaram um rastro de tragédia, por outro, encheram o Rio São Francisco, que voltou a correr caudaloso da nascente, na Serra da Canastra, até a região da foz, em Alagoas. A maior parte da água que aumentou a vazão do Velho Chico veio da cheia do Rio das Velhas, na região metropolitana de Belo Horizonte. Segundo especialistas, com a renovação das águas do São Francisco, a flora e a fauna agradeceram. Porém, as catástrofes ocasionadas pelas enchentes, mais uma vez, serviram de alerta para os históricos problemas ambientais na bacia, como o desmatamento e assoreamento dos rios, propiciando transbordamentos de proporções desastrosas para as comunidades ribeirinhas. Por Karla Monteiro Fotos: Luiz Maia 48


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Avenida Tereza Cristina, em Belo Horizonte durante e depois das chuvas 51 51


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Enquanto fortes temporais causaram destruição em Minas Gerais, o Rio São Francisco foi beneficiado pelo volume das águas 53 53


Turismo

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Joia rara Destino mais procurado de Sergipe, o cânion de Xingó, nas cercanias das cidades de Piranhas e Canindé do São Francisco, atrai em média 1,5 mil visitantes diariamente Por Carolina Leite Fotos: Edson Oliveira e Shuterstock 55 55


Em Sergipe, o menor estado brasileiro, esconde-se um dos cenários mais deslumbrantes do país: o cânion de Xingó, em Canindé do São Francisco, na divisa com Bahia e Alagoas. Localizado a 213 quilômetros da capital, a viagem de encantos já começa em Aracajú. Adentrando pela zona da mata, depara-se com a vegetação luxuosa da Serra de Itabaiana em contraste com a aspereza por vir da Caatinga. A região chega a ter nove meses de seca por ano. Após cruzar pequenas cidades enfileiradas, enfim, chega-se ao fabuloso destino. O cânion do Xingó é formado por um vale que vai até 170 metros de profundidade, com extensão de 64 quilômetros e largura que varia entre 50 e 300 metros. Subir de barco a garganta de paredões rochosos, entremeada pelas águas verdes do Velho Chico, é uma experiência inesquecível. As rochas de granito, que vão do vermelho ao cinza, atingem até 50 metros de altura. O lugar tornou-se atração turística quando o São Francisco foi represado naquela altura, para a construção da Usina Hidroelétrica de Xingó, em 1988. Com a barragem, o rio chegou a triplicar de tamanho, inundando os arredores. O volume de água represada é de cerca de 3,8 bilhões de metros cúbicos. Não por acaso o cânion de Xingó foi escolhido para cenário de duas novelas da TV Globo, “Velho Chico” e “Cordel Encantado”. O passeio começa no Karranca’s, o primeiro restaurante flutuante do percurso, localizado no lago dos Diques. Dali partem catamarãs e escunas. Ao longo do caminho, atrações como a pedra do Gavião, o lago São José, o lago do Justino, a gruta do Talhado, além da imagem de São Francisco incrustrada numa rocha. A região é considerada o oásis do sertão, pelas temperaturas amenas, que variam entre 18º e 32º. A melhor época para se visitar o cânion do Xingó é entre setembro e março, quando o São Francisco fica mais cristalino.

A cidade de Piranhas, em Alagoas

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Paraíso ameaçado Quais os impactos do turismo na região? A chegada de grandes empreendimentos imobiliários de luxo vem assustando ambientalistas. Em Piranhas, na margem superior da barragem do Lago do Xingó, está em construção um condomínio residencial com 433 lotes, marina e píer exclusivos para os condôminos, além de um shopping center com 32 lojas e um hotel com 90 apartamentos. Cada lote custa em média R$ 150 mil. Em Delmiro Gouveia (AL), no terreno da antiga Fábrica da Pedra, que abriga um açude e uma reserva ambiental, foi anunciado outro grande condomínio de alto padrão, prevendo também um centro comercial. Ambos anunciados em 2018, os projetos encontram-se em fases distintas. No primeiro caso, a obra já está praticamente concluída. No segundo, faltam licenças ambientais para dar início à construção. “Trata-se de grande especulação imobiliária em toda a região. No caso de Delmiro Gouveia, querem destruir a reserva ambiental e não sabemos o que vai acontecer com o açude. Já fomos ao Ministério Público e a obra encontra-se embargada”, comentou o empresário Tony Cloves Pereira, que, em 2018, foi candidato a deputado estadual em Alagoas, pelo PSOL. “O impacto deste empreendimento é imenso. Não há sequer tratamento de esgoto. A sociedade civil está acompanhando de perto para que não consigam construir numa área de reserva. Nossa região é muito quente e a presença de uma reserva urbana em Delmiro Gouveia é muito importante para a população”. Traduzindo para o meio ambiente, o condomínio de Piranhas também representa um impacto significativo, com o aumento da geração de esgoto e lixo. Segundo a empresa paulista Luan Investimentos, em parceria com o empresário local Manoel Foguete, a obra atende os requisitos do plano diretor, como zona urbana, e fora da zona de amortecimento do Monumento Nacional do São Francisco (Mona). Através do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), o Mona tem o poder de controle, fiscalização e restrição ambiental. De acordo com o Instituto do Meio Ambiente de Alagoas, o empreendimento está com a licença de instalação vencida, mas tramita no órgão a solicitação de prorrogação. Os números de turistas na região impressionam. Diariamente cerca 1,5 mil turistas de diversos pontos do país realizam o passeio ao Cânion do Xingó. De acordo com a Associação Brasileira das Agências de Viagem, ABAV, corresponde a 70% da procura por passeios no estado de Sergipe. A cidade de Piranhas, por exemplo, já conta hoje 904 leitos disponíveis aos visitantes. O recomendado pelos órgãos ambientais seriam 275 leitos. Motor econômico, o turismo, obviamente, é bem-vindo, garantindo o sustento dos ribeirinhos. Porém, a falta de controle da atividade acendeu o alerta da necessidade de se proteger esta joia rara da Caatinga brasileira. “Não há incompatibilidade entre turismo e proteção do meio ambiente, desde que a atividade seja explorada de forma sustentável, observe estritamente a legislação de regência e respeite o modo de vida das populações tradicionais da região, especialmente os pescadores artesanais”, comentou o procurador do Ministério Público Federal em Alagoas, Bruno Lamenha. “Essa é uma medida até de utilidade para os próprios empreendimentos, pois a degradação ambiental impacta o principal atrativo da região, que são suas belezas e riquezas naturais”.


Como chegar Partindo de Aracaju, a distância é de 213 quilômetros. Saindo de Maceió, cerca de 300 quilômetros. As cidades mais próximas do cânion do Xingó são Canindé de São Francisco (SE) e Piranhas (AL). O passeio de um dia custa em média R$ 250 (ida e volta), incluindo transporte, guia turístico, passeio de catamarã e almoço.

Onde ficar Em Canindé, há opções de resorts e hotéis, com diárias de cerca de R$ 350, por pessoa. Em Piranhas, o aconchego das pousadas custa em torno de R$ 200 a diária.

O que fazer Cânion de Xingó O passeio de catamarã dura três horas e custa R$ 110. A parada de uma hora no Porto de Brogodó oferece aos visitantes um refrescante mergulho em piscinas naturais e a possibilidade de navegar em um barquinho entre paredões ainda mais estreitos pelo adicional de R$ 10. Centro Histórico de Piranhas Tombada pelo Iphan, a cidade de Piranhas abriga belo casario colonial. Durante o dia, a visita ao Museu do Sertão e ao Centro de Artesanato é parada obrigatória. Para os mais dispostos, a subida dos 354 degraus do mirante para avistar o Velho Chico do alto é indicada. Já à noite, na ‘Lapinha do Nordeste’, os visitantes podem aproveitar bares e restaurantes com música ao vivo. Trilha Vale dos Mestres O sítio arqueológico contém pinturas rupestres e gravuras de mais de três mil anos cobrindo paredões de arenito rochoso. A trilha compreende uma caminhada de dois quilômetros de extensão e um delicioso banho nas águas do Rio Poço, um dos afluentes do São Francisco. Rota do Cangaço Partindo de Piranhas, o passeio começa com 40 minutos de catamarã, passando pelo povoado de Entremontes, até atingir o parque ecológico. Ao longo da rota do Cangaço, atrações como o local do massacre do bando de Lampião, em 1938, e a casa onde se hospedou Dom Pedro II. O ecoparque é o ponto de saída para a trilha da Grota do Angico, com cerca de 1 hora de caminhada (ida e volta). Incluindo o catamarã, almoço e trilha, o passeio custa em média R$ 120.

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Campanha

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Com a pandemia do novo coronavírus, o Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF) está enfrentando um desafio sem precedentes. Mais do que nunca a saúde do São Francisco se traduz em saúde para a população ribeirinha. Sem água limpa e abundante, a guerra contra a COVID-19 estaria perdida. Foi pensando nisto que o CBHSF lança o mote: “Velho Chico Vivo”, para lembrar a importância do rio da integração nacional, que conecta cinco estados do país, e também para celebrar a vida em tempos sombrios. O São Francisco começou 2020 cheio, transbordante, com grande volume de águas em razão das fortes chuvas do último verão, principalmente na cabeceira, em Minas Gerais. Mas a luta por sua sobrevivência segue árdua, exigindo o compromisso de todos para recuperar e preservar o rio que é sinônimo da interiorização do Brasil. Um Velho Chico Vivo é o que queremos hoje e sempre.

Visualmente a campanha “Eu viro carranca pra defender o Velho Chico” aposta este ano em uma identidade com cores marcantes, que ressaltam não a dor do momento, mas a força para superá-lo. É preciso ser positivo, forte e ressaltar três palavras companheiras na jornada: resiliência, reinvenção e reconversão. Resiliência para permanecermos na luta pelo São Francisco e para superarmos as crises sanitária e econômica que estamos enfrentando. Reinvenção nas ações de comunicação e de relacionamento que se fazem necessárias hoje. Reconversão para redescobrirmos crenças e valores, focando cada vez mais no que realmente importa.

Participe Todas as informações sobre a campanha “Eu viro carranca para defender o Velho Chico” e suas atividades podem ser encontradas no site www.virecarranca.com.br. Lá, você encontra um amplo material de educação ambiental, que pode ser baixado para uso em escolas, comunidades, entre outros. Além disso, todo o material gráfico da campanha deste ano está disponível para download. Todas as notícias produzidas pela equipe de comunicação sobre a campanha e de assuntos relativos ao Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco podem ser encontradas na aba “Notícias”. E, ainda, na aba “O Comitê” encontram-se as informações institucionais do CBHSF. O site é totalmente interativo. Para participar, poste suas fotos ou vídeos vivendo e curtindo o Velho Chico no Instagram. Use a hashtag

Para saber mais, acesse www.virecarranca.com.br

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CIÊN FUTU CIA RO AMBI ENTE

A importância da Ciência para o Futuro do Rio São Francisco

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III SIMPÓSIO DA BACIA HIDROGRÁFICA DO RIO SÃO FRANCISCO

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