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Grande sertão: Coragem

José Miguel Wisnik

Antes de tudo, é preciso coragem para encarar Grande sertão: veredas. O livro de Guimarães Rosa é, entre tantas outras coisas, uma monstruosa ruminação sobre a sempre renovada violência ancestral brasileira, cujos nós se enlaçam, na obra rosiana, com o volume de narrativas do Corpo de baile e vão bater fundo em “Meu tio o Iauaretê” (Estas histórias). Mas tudo isso vai muito além do enraizamento local. Como estamos sabendo tragicamente, o sertão, cuja lei periclitante trabalha a contrapelo das leis, é o mundo (onde Deus, “quando vier, que venha armado”).

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Numa passagem conhecida, Riobaldo afirma estar narrando, mais do que a autobiografia de um sertanejo-jagunço, a “matéria vertente” que busca “entender do medo e da coragem, e da gã que empurra a gente para fazer tantos atos, dar corpo ao suceder”. A ligação inextrincável entre o medo e a coragem é um dos núcleos centrais do livro. A coragem medra no medo e, quando dá seu saltomortale, só se tem a se apoiar em si mesma, na “coragem de ter coragem”, sediada no misterioso e insondável lugar da Vontade, também chamado coração (do qual coragem é, etimologicamente, um atributo). “Coragem é o que o coração bate”; “coragem faz coragem”, clama Diadorim.

Simplificadamente falando, o medo, potencializado pela sua relação anagramática com o demo, busca no pacto com o diabo o poder de uma improvável impermeabilidade. Não há como adiantar mais do que isso. Mas vale sugerir, ainda, um contraponto entre esse romance inteiro e um parágrafo de Clarice Lispector, chamado “Medo da libertação” (A descoberta do mundo), que verte, na dimensão do foro mais íntimo, sobre a coragem radical de ser livre. “Coragem e covardia são um jogo que se joga a cada instante”; “minha coragem, inteiramente possível, me amedronta”; “antes de aprender a ser livre, tudo eu aguentava – só para não ser livre”.

Nas apostas de Rosa e de Clarice está em jogo, ainda, a coragem de não se entregar aos maniqueísmos, junto com a de não cair no limbo da omissão.

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