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Solidão e coragem

Newton Bignotto

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Desde a antiguidade o debate sobre a natureza da coragem tem ocupado um lugar fundamental na cultura ocidental. Platão, em seus primeiros escritos, se preocupou com a definição dessa virtude visto que ela impactava diretamente a vida da cidade ao guiar o comportamento dos cidadãos na guerra, mas também nas disputas políticas. No diálogo intitulado Laques, ele coloca dois jovens soldados – Laques e Nícias – frente a frente com Sócrates para discutir a questão de qual deve ser o significado do termo. Rapidamente os participantes do debate se dão conta de que o problema proposto é mais difícil de solucionar do que parecia no início. Se a coragem, a temperança e a beleza são partes do Bem, traçar, na vida cotidiana, a fronteira entre as duas primeiras virtudes não é fácil. Sendo a coragem uma virtude reconhecida como tal pela cidade, isso não quer dizer que possa ser identificada sempre e exclusivamente com as ações consideradas corajosas pelos cidadãos. Há uma dimensão interior da coragem que é essencial para o tratamento da questão. Não basta agir de forma corajosa, é necessário ter consciência do gesto e de seu significado. Essa dupla dimensão do problema o torna extremamente complicado dificultando chegar a uma definição unívoca da coragem.

Platão, no diálogo referido, não pretendeu oferecer uma teoria acabada sobre o tema, mas apontou para uma forma de abordá-lo que teria grande influência na posteridade. Aristóteles na Ética a Nicômaco seguiu um caminho diferente de seu mestre, o que se revelou muito profícuo. Para ele, assim como para Platão, a associação entre o problema da coragem e o da guerra indica o campo dentro do qual o tema deve ser abordado. Na guerra, a proximidade do perigo leva, por vezes, o ator valoroso a agir de forma desmesurada, apaixonada, colocando em risco a própria vida. Assim, se numa primeira aproximação somos tentados a pensar a coragem olhando apenas para o comportamento dos atores que se arriscam

no campo de batalha, rapidamente nos damos conta de que a coragem diz respeito mais amplamente a atores inseridos numa comunidade política. Seus gestos, muitas vezes exagerados, só podem ser julgados positivamente se descobrirmos o sentido coletivo por trás das ações arriscadas que costumamos chamar de corajosas. Enquanto virtude que implica o pertencimento a uma polis, ela só pode concernir aos seres humanos, pois depende do poder da escolha moral (proaíresis) para existir. Animais não são corajosos no sentido aristotélico. A principal consequência desse raciocínio é a afirmação de que a coragem serve para que, nas guerras, os indivíduos se esmerem para não se tornarem escravos de outros povos, mas que lutem principalmente para preservar a liberdade da polis face a seus inimigos. Corajosos são os que se batem pela própria vida e pela vida da cidade.

Os debates sobre essas questões foram intenso ao longo dos séculos e estiveram longe de produzir consensos duradouros. Apesar disso, deles podemos reter o fato de que a coragem é uma virtude que opera no terreno povoado pelo medo, sobretudo pelo medo da morte. Segundo Aristóteles: “Ainda que a coragem tenha relação com a confiança e com o medo, isso não se dá da mesma maneira. Ela se mostra, sobretudo, nas coisas que inspiram medo.” (Aristóteles. Ética a Nicômaco, III, 12, 117a). Esse temor, no entanto, não concerne apenas à vida dos indivíduos. Ele abarca o terreno da existência em comum. A morte que se projeta no horizonte dos que devem enfrentar perigos por vezes extremos diz respeito aos seres humanos em sua natureza de seres políticos, e não apenas enquanto seres capazes de gestos espetaculares. Face aos perigos, o corajoso foge da covardia e da intemperança para se colocar no justo meio. Só assim seus atos podem ser elogiados por todos e gerar o reconhecimento almejado. Para o homem corajoso, a bravura é “uma disposição virada para a esperança.” (Aristóteles. Ética a

Nicômaco, III,10, 116 a). Não basta produzir ações espetaculares se elas não se projetarem para o futuro. A morte solitária e anônima nunca foi o objetivo dos atores corajosos da Antiguidade, ainda que muitos heróis tenham sido homens solitários.

Pode-se, sem dúvida, aprender com os pensadores do passado, mas é preciso prestar atenção ao fato de que a ideia dos seres humanos como animais políticos tem hoje um significado diferente daquele que teve. Em cidades cada vez maiores, os laços que unem seus habitantes não são os dos sentimentos que uniam as cidades gregas ou a república romana. O surgimento das sociedades de massa alterou os termos dessa equação. Sem dúvida, medo e coragem continuam a demarcar o campo de estudo da natureza das virtudes voltadas para a cidade, mas que medo prevalece nas sociedades atuais? O medo maior continua a ser o da morte. Enfrentá-lo com equilíbrio ainda pode ser chamado de ato corajoso. Mas a condição do homem contemporâneo se define pela solidão que o ameaça no seio de cidades superpovoadas ou diante de situações em que não se pode ter esperança o que, como mostrou Aristóteles, impede também a coragem. Somos uma sociedade de seres atomizados. Enfrentamos a morte solitariamente, isolados no tempo e no espaço de nossas individualidades. No máximo conseguimos compartilhar nossos sentimentos com nossos próximos, mas isso é quase um privilégio num tempo que trabalha para nos isolar uns dos outros e nos tornar responsáveis por nossa própria sorte.

Pode-se delimitar o campo de investigação em questão em torno de duas experiências contemporâneas de solidão, para tentar compreender como elas afetam a pesquisa sobre os sentidos da coragem nos dias atuais. A primeira experiência é a que se pode chamar de solidão urbana. Ela é retratada em obras literárias como A hora da Estrela de Clarice Lispector ou em A invenção da solidão de Paul Auster. Nessas obras, surgem personagens que lutam não

apenas para sobreviver, mas, sobretudo, para serem vistos, para não sucumbirem à morte simbólica, que faria deles seres invisíveis para os outros. Nessa situação, de uma sociedade que não enxerga seus próprios habitantes, qual pode ser o significado da coragem? Como pensar ações que eram tidas como gloriosas num tempo de invisibilidade? A explosão das tecnologias de comunicação longe de minorar a solidão a tornou ainda mais palpável. Aparentemente todos podem falar com todos. Mas no mundo digital estamos submetidos à superficialidade da comunicação instantânea. É-se visível nas redes, mas vive-se cada dia mais a solidão das bolhas ilusórias de sociabilidade artificial. Ser corajoso nas redes sociais está longe de poder ser considerado um ato virtuoso. Está mais para a afirmação de um vazio perturbador, que torna o indivíduo solitário no meio das multidões, como é o caso da personagem Macabeia de Clarice Lispector.

O momento que se vive é também o dos massacres e da perda do sentido da vida para os que enfrentaram situações de violência extrema como as guerras de exterminação e os campos de concentração. Nesse contexto, cabe perguntar se ainda é possível falar de coragem, quando a ameaça à vida se torna o elemento central do cotidiano de milhões. Tzvetan Todorov em seu livro Face ao extremo procura refletir sobre qual moral é possível diante do mal que representou a experiência dos campos de concentração e as cenas de barbárie vistas no cerco de cidades durante a Segunda Guerra Mundial. Ele não diz que nesses terrenos de horror não existe a figura do herói. Ele continua a ser uma raridade, mas surge nos momentos mais improváveis com um meteoro que risca o céu. A questão é a de saber se o heroísmo clássico ainda faz sentido. Todorov afirma que “como o advento triunfante do individualismo como ideologia, no fim do século XVIII, o modelo heroico perde força a olhos vistos nos países europeus. Não se sonha mais com feitos

e com a glória, cada um aspira à felicidade pessoal, ou a uma vida de prazer.” (Tzvetan Todorov. Face à l’extrême. Seuil, 1994, p.56). O pensador não acredita que o heroísmo desapareceu totalmente, mas que foi perdendo força e importância aos olhos do corpo político, pois, como diz, “sem uma narrativa que o glorifica o herói não é mais um herói” (ibidem, p. 53).

Nesse terreno de encolhimento da vida pública e das liberdades mais elementares, resta um campo de exercício moral reduzido, mas nem por isso inexistente. Para Todorov o cidadão ordinário não deixa de agir e de agir moralmente no contexto de degradação do espaço comum. Resta-lhe a prática de pelo menos três virtudes: a dignidade, o cuidado com os outros e a atividade do espírito. Cada uma dessa virtudes tem sua especificidade que as diferencia, por exemplo, da caridade cristã e até da solidariedade. De alguma maneira, elas são ações que cabem nos moldes de tempos de solidão. São ações possíveis num mundo de desolação.

A pergunta que fica é se nesses tempos e espaços de isolamento de todos e de tudo, sobretudo quando a vida está ameaçada de forma radical como nos campos de concentração, ainda há lugar para falar de coragem. Essa virtude foi historicamente associada aos homens, sobretudo nos campos de batalha. Ela também se aplicou com muita frequência a atos que preservaram a vida de outros seres humanos em situação de risco. De forma breve, pode-se dizer que na tradição filosófica a coragem foi quase exclusivamente uma virtude masculina, uma vez que as mulheres raramente eram mobilizadas na guerra, embora fossem vítimas frequentes das invasões e destruições de suas cidades. Se, como mostrou Todorov, as virtudes possíveis em tempos de solidão e barbárie são diferentes daquelas com as quais os clássicos da filosofia trabalharam, é importante avaliar se nesses abismos da condição humana não se pode falar de uma nova forma de coragem, que seria uma virtude sem gênero

e não mais exclusivamente masculina. É claro que com isso não se diz que ela esteja vedada aos homens, mas sim que aparece em ações que transcendem o medo e apontam para a esperança, como queria Aristóteles, de forma diferente daquela dos guerreiros que arriscavam a vida pela glória. Arriscando-se nos momentos mais perigosos, diante do perigo iminente da morte, algumas mulheres, nos campos de concentração, deram mostras de tal resistência em suas lutas pela vida que cabe indagar se não apontaram para uma nova forma da coragem em tempos de solidão. Para investigar essa hipótese, vamos analisar os relatos de Germaine Tillion. Prisioneira no campo de Ravensbrück, único campo de concentração nazista construído para mulheres, o testemunho dela dá a pensar nas formas de coragem praticadas por mulheres submetidas à solidão diante da morte iminente e que inspiram reflexões sobre uma virtude que exige ser repensada em tempos marcados pela expansão da solidão nas sociedades de massa.

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