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Nascemos no medo. De onde vem a coragem?
Maria Rita Kehl
Nascemos no medo.
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Depois de meses de aconchego, calorzinho, refeições numa espécie de drive trough permanente, escurinho - olhos, pra que? silêncio - ouvidos, pra que?... de repente, atravessamos um corredor apertado, uma força nos empurra pra fora dali: uma passagem difícil. E... luz! Mesmo as membranas de nossos olhinhos ainda fechados registram o impacto da luz! e os sons! e o frio! Que medo.
Mesmo onde não se pratica a costumeira palmada para provocar o primeiro choro a abrir os pulmões, o recém-nascido logo há de chorar. Onde estou? Levem-me a seu líder!
E a partir daí, meses aterrorizantes em que a fome nos atiça por dentro sem termos a menor segurança de que a mamãe (quem?) vai resolver aquilo; os intestinos funcionam - contorções dentro do corpo - o frio e o calor nos atingem e alguém que nunca vimos vem se encarregar de nós.
Alguém que nunca vimos e nunca nos viu também. Alguém que supostamente nos ama, mas não temos certeza.
Alguém que erra. Alguém que as vezes chora para nos amamentar. Alguém que nem sempre acorda feliz na madrugada. Alguém que erra. E por isso é chamada de "suficientemente boa".
(Se não errasse nunca, seria nossa desgraça, mas não sabemos disso ainda). Nascemos no medo. É nosso primeiro habitat.
A pergunta é: então, de onde vem a coragem?
Isto é: a vontade de estar naquele lugar insólito chamado mundo (ou lar), e de continuar nele? Será que, nesse começo, perseveramos porque temos vontade?
Ou será porque o corpo vivo não nos dá outra alternativa?
Medo, medo. Da luz, do ar, do estômago vazio, dos intestinos que expelem o que parecia ser uma parte da gente.
De onde vem a coragem?
Minha hipótese: não é necessariamente do amor, mesmo que Winnicott nos alerte para a importância dos "pais suficientemente bons".
Quem sabe seja da rotina? depois de dias, ou semanas, passamos a não temer a fome - basta berrar que a garçonete vem nos saciar. O ar já envolve nosso corpo sem nos atemorizar, os pulmões já funcionam no piloto automático. Isso ainda não é coragem: é confiança.
De onde vem a coragem?
Da curiosidade. Para além da segurança com a qual, aos poucos, passamos a contar, o mundo continua lá, barulhento, cheio de luz e sombras, mutante, cheiroso e fedorento, quente e frio; Mas sempre grande, enorme. Depois de chupar o polegar e constatarmos que é bom, que outros prazeres se apresentarão?
Aí a criança começa a chupar o mundo. A fronha. A chupeta. O rabo do cachorro, o rodapé... a coragem começa pela boca.
E um dia... ficar de pé! Mudar a perspectiva! ver as coisas do alto de nosso meio metro.
Tudo, tudo é perigoso. E tudo nos instiga.
Se não tivermos pais apavorados, eles nos ensinarão a ter coragem. Não com prescrições (a essa altura ainda não entendemos a língua que eles falam). Mas com, da parte deles: coragem.
Coragem pra nos deixar tentar andar e cair. Em todos os sentidos. Coragem pra nos deixar explorar o chão, os móveis, as vezes o quintal (quando ele existe), as janelas (de preferência com telas).
Coragem pra nos deixar tentar correr e cair, ralar o joelho, sangrar o nariz. Coragem pra nos deixar brincar com o cachorro. E com - muito mais perigoso que o cachorro - a chegada de outro neném.
Quem somos nós, então, se de repente nos deparamos com aquele outro tão diferente e tão igual? Coragem pra não desistir de tudo nessa hora.
Vou tentar fundamentar teoricamente a origem da coragem que nos permite atravessar a saga da primeira infância.
Desde já lanço a hipótese de que é nessa tenra idade que aprendemos a coragem.
Se os pais tiverem coragem pra nos deixar aprender.