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A coragem de falar e a potência das vozes negras

A coragem de falar e a potência política das vozes negras

Tessa Moura Lacerda

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“and when we speak we are afraid our words will not be heard nor welcomed but when we are silent we are still afraid So it is better to speak remembering we were never meant to survive”

Audre Lorde, The Black Unicorn: Poems

A poeta e ensaísta Audre Lorde resume a situação paradoxal da pessoa negra, e mais particularmente da mulher negra, em uma sociedade pós-colonial que viveu o escravagismo: “Quando falamos temos medo/de que nossas palavras não sejam escutadas / nem bem recebidas / mas quando estamos em silêncio / ainda temos medo / então é melhor falar / lembrando / que nós nunca deveríamos ter sobrevivido”. É preciso coragem para tomar a voz numa sociedade que teima não apenas em silenciar a mulher negra, mas em retirar dela a possibilidade mesma de ser sujeito de sua história.

O critério racial mantém grande parte da população brasileira, afirma Lélia Gonzalez, na condição de infans, conceito lacaniano que caracteriza quem não é sujeito de seu próprio discurso. O sistema ideológico de dominação, o sistema patriarcal-racista, infantiliza a mulher não branca: “... ao nos impor um lugar inferior dentro da hierarquia (...) suprime nossa humanidade precisamente porque nos nega o direito de ser sujeitos não apenas de nosso próprio discurso, mas de nossa própria história”.

Como recuperar a voz e o lugar de sujeito?

“Não é fácil dar nome a nossa dor, teorizar a partir desse lugar”, afirma Bell Hooks, feminista negra estadunidense. É preciso ter coragem para falar deste lugar de dor e medo: “Cheguei à teoria porque estava machucada – a dor dentro de mim era tão intensa que eu não conseguia continuar vivendo.” É preciso coragem para enfrentar o medo e narrar o horror do racismo diário. É preciso ter coragem para dar seu testemunho1 ou recuperar testemunhos

1 Jeanne-Marie Gagnebin tem uma vasta reflexão sobre o testemunho, embora não do ponto de vista da resistência negra, mas vinculada aos sobreviventes do genocídio nazista, do genocídio armênio e da ditadura civil-militar brasileira de 1964-85. Queremos recuperar esse sentido de testemunho. Gagnebin, Jeanne Marie –

de outras pessoas. O papel do testemunho para a construção da resistência política diante do racismo é fundamental. A tentativa de dizer o indizível por meio de silêncios e de um discurso que, como a memória, é penetrado por lacunas, tem, sem dúvida, um valor terapêutico para aquele que fala; mas tem principalmente um valor político. Falar é assumir para si uma tarefa política e uma tarefa ética.

É preciso coragem para responder diariamente à pergunta inaudita: “Por que vidas negras não importam?” A frase “Vidas negras importam” é uma resposta a essa pergunta silenciada – questão que ultrapassa, com certeza, as fronteiras brasileiras, mas ganha aqui uma dimensão gigantesca porque feita num país que promove cotidianamente o genocídio da população negra. O Estado brasileiro, afirma Denise Ferreira da Silva, emprega a violência total contra essa população – e o que espanta, afirma ela, é a indiferença ética da sociedade diante dessa violência de Estado.

Mas como ensina Audre Lorde: “é melhor falar”, mesmo com medo é preciso tomar a voz. E ainda que essa fala nasça num lugar de dor e medo ela se reinventa e inventa mundos e cria um espaço de resistência política. O testemunho do horror nas filosofias feministas negras está sempre acompanhado do reconhecimento de um legado de luta e resistência, seja através da poesia (como faz Audre

Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Editora 34, 2009 – p.47: “Tarefa altamente política: lutar contra o esquecimento e a denegação é também lutar contra a repetição do horror (que, infelizmente, se reproduz constantemente). Tarefa igualmente ética e, num sentido amplo, especificamente psíquica: as palavras do historiador ajudam a enterrar os mortos do passado e a cavar um túmulo para aqueles que dele foram privados. Trabalho de luto que nos deve ajudar, nós, os vivos, a nos lembrar dos mortos para melhor viver hoje. Assim, a preocupação com a verdade do passado se completa na exigência de um presente que, também, possa ser verdadeiro”.

Lorde), seja através dos ensaios filosóficos (de Angela Davis, por exemplo), seja através da leitura da letra de músicas (como sugere Denise Ferreira da Silva). Vejamos alguns exemplos.

Angela Davis recupera a dimensão da resistência de maneira muito clara no primeiro capítulo de Mulheres, raça e classe. Ela intercala em “O legado da escravidão: parâmetros para uma nova condição da mulher” três discursos:

1. o testemunho do horror feito por pessoas escravizadas, testemunho que humaniza aquelas pessoas;

2. a construção teórico-ideológica de historiadores que justificam ou minimizam esse horror. Nesse caso, Davis não apenas mostra como se dá essa narrativa que justifica a escravidão de pessoas – justifica o injustificável porque desumaniza pessoas humanas; a filósofa também desconstrói essas supostas justificativas desvelando as razões concretas que explicam esse discurso.

3. A assunção de um legado de luta das mulheres negras. Esse legado vai sendo construído ao longo deste texto, mostrando como ironicamente a escravidão permitiu a criação de um modo de vida mais livre e igualitário entre mulheres e homens negros. Davis enfatiza como as experiências terríveis da escravidão podem ter forjado a força dessas pessoas e laços de afeto baseados na igualdade.

Denise Ferreira da Silva, por sua vez, encontra nas músicas do bloco Olodum a criação de uma poética que recria a história da negritude. As músicas do Olodum – bloco que faz parte da re-africanização do Carnaval da Bahia a partir de 1970, quando os blocos afro, até então proibidos, voltam às ruas de Salvador – não descrevem a África como um significante histórico, mas como um sujeito histórico já emancipado e consciente de si: “O Olodum introduziu no imaginário brasileiro uma África do ‘devir’, significante da existência

ao privilegiar as lutas que se seguiram como efeito do momento de consciência em si mesmo (...) dos momentos de sujeição.” Em outras palavras, essas músicas abandonam o oeste da África, onde os antropólogos identificam os “originais” da cultura negra brasileira, e se voltam para Madagascar, Egito, Etiópia. São esses novos lugares que se tornarão a fonte da herança africana nos bairros pobres de Salvador. Dessa maneira, cria-se uma memória cultural coletiva de lugares nos quais as populações resistiram à colonização europeia, e “o sujeito político que emerge nessas músicas pode falar”.

Talvez, como já reconheceram Lélia Gonzalez e Beatriz Nascimento, para mulheres que se envolveram na militância do movimento negro e até na política partidária brasileira, a principal forma de resistência contra o racismo e o patriarcalismo em uma sociedade que viveu a dor da colonização é ainda a resistência cultural. Talvez seja na ação de resistência cultural que a coragem para enfrentar o medo em um país que promove o genocídio da população negra pode se juntar à alegria como afeto fundamental.

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