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A anarquia da coragem

Marcia Sá Cavalcante

Como epígrafe, um diálogo fictício

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“O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”, escreve Guimarães Rosa

“...Viver não é coragem, saber que se vive é coragem...” “[...] a coragem de ser o outro que se é”, escreve Clarice Lispector

Como pensar a coragem hoje? A pergunta proposta é corajosa, pois desafia o sentimento espalhado de que hoje não faz mais sentido falar em coragem e seus heroísmos. Qual o sentido de se falar em coragem num mundo que não faz mais sentido, ou seja, num mundo que parece ter perdido não só um sentido de mundo, mas o sentido do que seja sentido? Como falar de coragem num mundo onde o sentido se esvazia pelo modo como circula e se comunica tornando todo sentido ambíguo e vazio quando voltado contra si mesmo? Como falar de coragem num mundo onde os próprios discursos sobre a coragem desencorajam a coragem tão logo se reproduzem e autopropagam em memes e mensagens sem fim, banalizando-se em jargões e chavões sobre a coragem? Por outro lado, como não falar em coragem num mundo que lida cotidianamente com as questões mais perigosas e mais desesperadas – os múltiplos extermínios, a fome crescente, a miséria expansiva, o desemprego massivo, a exclusão mutiladora, a opressão econômica, social, política, sexual, afetando toda a Terra e suas formas de vida, humanas, não-humanas, pós-humanas com uma força que excede todas as formas conhecidas de força de combate e resistência? Se Descartes tem alguma razão ao dizer que “... é nos assuntos mais perigosos e mais desesperados que mais se empregam ousadia e coragem...”1, não será no mundo atual, tão perigoso e desesperado, que se deveria empregar com todo vigor não só uma fala da coragem, mas uma prática da coragem? Mas como entender que num mundo devastado por tantos incêndios: da Amazônia a museus e catedrais, dos solos físicos aos espirituais, conceituais, sensíveis, políticos e éticos sobre os quais história e natureza se viram confrontados ao longo dos séculos, os ecos da palavra coragem se perca na intensidade de uma apatia e desencorajamento ativos? Como compreender que hoje se tenha tanto medo da coragem, um medo que gera “o hábito

1 Descartes. “As Paixões da Alma”, livro III, art. 173 in: Os Pensadores, p. 293.

que temos de olhar através das grades da prisão, o conforto que traz segurar com as duas mãos as barras frias de ferro”, como Clarice Lispector descreveu “o medo da libertação”?2 Por um lado, nunca dizer “coragem” pareceu tão impotente frente ao perigo e ao desespero; por outro, nunca foi tão urgente dizer: “coragem”. Para dizer “coragem” é preciso ademais separar o dizer da coragem com dois pontos, os “dois pontos à espera”, como os definiu também Clarice Lispector3 , os dois pontos de uma tomada de fôlego, o fôlego da espera de um fôlego. Atentando para a necessidade desses dois pontos do fôlego da espera ao se dizer: “coragem”, pode-se escutar que a agonia da coragem hoje está sobretudo ligada a uma outra agonia, a agonia da “espera”. Descartes talvez também tenha razão ao dizer ainda que, para se empregar ousadia e coragem nos “assuntos mais perigosos e desesperados”, “é preciso que se espere ou até que se tenha certeza de que o fim proposto será logrado, para opor-se com vigor às dificuldades com que nos deparamos”.4 A explicação cartesiana para o não emprego da coragem nos assuntos mais perigosos e desesperados é a falta de espera e esperança e ainda da certeza do que se quer alcançar e de que o a ser alcançado pode ser alcançado. O que Descartes não poderia pensar é, contudo, que hoje não cabe mais opor coragem somente ao medo ou à covardia mas também à apatia, ao desencorajamento e até mesmo às ideias e ideais que ressoam na palavra “coragem”. E sobretudo que a incapacidade de esperar ou de assegurar-se de que o fim proposto será logrado reside antes de tudo na falta do fim a se propor. Que fim poderia se propor quando, por toda parte, o mundo se confronta com a ameaça e o perigo do seu fim – seja o fim do mundo

2 Clarice Lispector. “O medo da libertação” em A descoberta do Mundo, p. 198. 3 Clarice Lispector. ”É como se a vida dissesse o seguinte: e simplesmente não houvesse o seguinte. Só os dois pontos à espera”, in: Água viva, p. 86. 4 Descartes, op. Cit.

natural ou do mundo histórico? Que fim a se propor e a esperar quando o fim de uma finalidade não mais se distingue do fim de um aniquilamento, quando a logica da instrumentalização, eficácia e finalidade de tudo, a lógica do niilismo ativo do capitalismo global, tende a por fim a tudo? Que fim propor se o sentido do fim dificilmente se distingue do fim da possibilidade de um sentido e um princípio capazes de orientar e fundamentar o pensamento e a ação? “O que é permitido esperar?” [Was darf Ich hoffen?] perguntou Kant sem imaginar que um dia essa pergunta se veria privada de sentido uma vez que, diante do fim do mundo dos sentidos e dos sentidos de mundo, parece que não há o que nos permita esperar.

Mas por que a espera de um fim preciso e definido seria a condição para empregar a coragem nos assuntos mais perigosos e desesperados? Por que a coragem para pensar e agir nos assuntos mais perigosos e desesperados precisa da espera e certeza de um fim preciso e definido? Se admitirmos que o discurso manipulador e ideológico do “fim do mundo” encobre que em questão está não o fim “de” mundo, mas o fim de “um” mundo de sentido, que fazemos a experiência de uma mutação da história do mundo e do mundo da história, será preciso considerar que nada há o que esperar, seja um mundo depois do fim do mundo, seja um nada depois do fim do mundo. Em questão está a coragem de nada esperar quando nos damos conta de que em jogo está uma mutação do mundo e de todos os seus sentidos e direções, uma mutação genética e histórica da sensibilidade e de todas as formas de inteligibilidade. Mutação não é o mesmo que transformação e metamorfose. Enquanto transformação e metamorfose podem ser intuídas ou previstas já que são compreendidas como passagem de uma forma para outra que, não obstante nova, mantém alguma semelhança ou laço com a forma passada e superada, a mutação expõe todo sopro de vida para o imprevisível e impossível, para o que não se deixa reconhecer, assimilar ou identificar,

para o informe e sem forma. Pode-se assim dizer que toda mutação implica um mutismo e uma dificuldade de reagir frente ao que ultrapassa todo horizonte de possibilidade e de compreensibilidade. A questão que se coloca então é como pensar a coragem num tempo de mutação, ou seja, num tempo que se apreende como perda de todos os princípios, sentidos e valores que sustentavam experiência de mundo, enquanto experiência da perigosa e desesperada relação entre teoria e prática, entre pensamento e ação.

Ao longo da história da filosofia, a coragem foi tratada como a virtude das virtudes, uma espécie de mãe das virtudes, como a força das forças não apenas para sobreviver, mas para uma forma de vida e de convivência capaz de coordenar teoria e prática. Nos primórdios da filosofia grega, Parmênides insistiu que para pensar é preciso um coração intrépido e corajoso [eukukléos atremés]5; no século das Luzes, Kant formulou a condição moderna como a coragem de pensar por si mesmo, da autonomia, “ouse saber” [sapere aude]6 sem o jugo da autoridade e da tradição; a coragem foi tratada ainda e sobretudo como coragem para agir, como capacidade para enfrentar o medo e suportar as dificuldades, o sofrimento e a dor. É preciso coragem heroica e anti-heroica para agir, mas também coragem estoica para não agir, e foi em torno da noção de coragem que antigos e modernos reivindicaram a necessidade de uma apatia filosófica (Epicuro) e moral (Kant) entendida como a coragem de controlar os afetos. A coragem foi louvada como virtude filosófica (Platão)7 , moral (Tomás de Aquino)

5 Parmenides, Sobre a natureza, frag 25 6 A expressão latina usada por Kant é citação de uma passagem de Horácio na Epistularum liber primus , livro 1, carta 2, verso 40: Dimidium facti qui coepit habet: sapere aude («Aquele que começou está na metade da obra: ouse saber!»). 7 Cf.Platão no diálogo Fédon, quando afirma que a verdadeira coragem não é uma relação com o medo ou com o sofrimento mas é um atitude de pensamento.

e política (Maquiavel), a força capaz de articular a inteligência diante de uma situação, a resolução de agir e arriscar e o controle da emoção do medo, a força para saber o que temer e não temer. Além da coragem para saber e para agir há também uma coragem do espírito (Valéry) e da verdade (de Sócrates a Kant)8 sem esquecer tanto a coragem filosófica de dizer a verdade (Foucault) como a coragem poética de dizer (cf. o poema de Hölderlin, Dichtermut, “Coragem do poeta”), a coragem da literatura e da arte. Nesse arquivo de pensamentos e práticas da coragem, apresenta-se a relação entre teoria e prática, entre pensamento e ação sempre com base em determinados princípios, razões, fundamentos e finalidade, num sentido de racionalidade que permite esperar e assegurar um fim preciso para a ação. A questão que hoje se coloca, porém, é como pensar a relação entre teoria e prática no fim de um mundo, num “desmundo” i-mundo, que não mais conhece sustento em princípios, razões, valores, fundamentos, finalidades e sentidos, que parece ter eliminado de seu horizonte o sentido do próprio sentido.

Em lugar de buscar um novo princípio ou de reclamar princípios antigos, modernos ou pós-modernos para responder às perguntas urgentes de “O que fazer?”, “Onde buscar um princípio de coragem para agir num mundo vazio de princípios e fundamentos, de valores e sentidos?”, proponho pensar a coragem desde essa falta e vazio, como a experiência e prática de uma anarquia, entendida etimologicamente como an-arché, sem princípio e fundamento. Esboçando, sob inspiração de Clarice Lispector, Pasolini e Reiner Schürmann, uma teoria da anarquia da coragem, deve-se buscar o sentido de uma ação anárquica que possa responder à mutação de mundo. A coragem anárquica expõe a coragem de se “saber vivo” sem qualquer princípio, sentido, valor e finalidade, a anarquia do sem porquê do estar sendo.

8 Cf. Frédéric Gros. “De Socrate à Kant, le courage de la verité” in Inflexions 2013/1 (n 22), 141-147.

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