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Além do temor: o lugar do medo nos campos da morte
Além do temor: sobre o lugar do medo nos campos da morte
Renato Lessa
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Do tema
1. Proponho tomar como objeto o lugar do sentimento do medo em alguns relatos de sobreviventes dos campos da morte nazistas. Em especial, pretendo concentrar-me em obras de autores tais como Charlotte Delbo, Primo Levi, Robert Antelme e Ruth Klüger. De Charlote Delbo, tomarei como referência sua trilogia, recém-publicada entre nós, sob o título de Auschwitz e depois (Carambaia, 2022), composta das obras: Nenhum de nós voltará (1965), Um conhecimento inútil (1970) e Medida de nossos dias (1971). De Primo Levi, os textos a considerar serão seu mais conhecido livro – É isto um homem? – editado originalmente em 1947 e seu último escrito publicado em vida, Os afogados e os sobreviventes, de 19861 . De Robert Antelme, considerarei a obra publicada também em 1947, A Espécie Humana, com base na experiência de interno nos campos de concentração de Buchenwald e Dachau2. De Ruth Klüger – sobrevivente de Terezin e de Auschwitz-Birkenau –, tratarei de seu relato Paisagens da memória, publicado no Brasil em 20053.
1 Farei uso, ainda, do material “leviano” disposto nas inúmeras entrevistas concedidas por Primo Levi, e editadas no terceiro volume de suas Opere (Edição Einaudi). 2 Antes de A espécie humana, Antelme publicou em uma revista editada em 1946 por ex-prisioneiros e ex-deportados – Les Vivants - um pequeno e poderoso texto intitulado Vengeance?, no qual se opõe a um suposto “direito de vingança” contra os prisioneiros de guerra alemães, em uma interessante reflexão a respeito da “condição cativa”. A obra viria a ser reeditada em 2005 (Farrago) e em 2010 (Hermann), desta feita com um belo posfácio de Jean-Luc Nancy. 3 O livro foi publicado em 1992, na Alemanha, com o título minimalista original de Weiter Leben. Eine Jugend, algo aproximado a Seguir na vida. Uma juventude. Na edição francesa, de 1997, adotou-se como título Refus de témoigner: une jeneusse. A edição norte-americana, de 2001, optou pela fórmula de maior impacto: Still Alive: a holocaust girlhood remembered.
2. Nos últimos anos, com obra de Primo Levi a servir de epicentro, tenho ocupado-me da leitura, da reflexão e de alguma escrita a respeito de alguns exemplares da escritura de sobreviventes dos campos, como forma literária que ultrapassa o rótulo de “literatura de testemunho”, atribuído por Elie Wiesel, ele mesmo um dos mais célebres escritores-sobreviventes 4. Em termos distintos, sustento que o valor daquelas obras excede a dimensão – diga-se já, de importância imensurável – de transmissão de experimentos traumáticos pessoalmente vividos e/ou testemunhados. Há naquelas narrativas o que designo como um “sobrepasso do testemunho” 5 , presente em pelo menos dois aspectos nelas inscritos e que a mim parecem centrais.
3. Antes de tudo, a presença de um empenho formal, pelo qual a prática da escritura se faz acompanhar de uma constante busca pela forma, um movimento calcado na incerteza e/ou na impossibilidade de adaptação natural da linguagem ao que se quer descrever e contar e de dizer o real. A natureza do problema está bem abrigada na fórmula de Robert Antelme: “Nous avons vu ce que les hommes ne doivent pas voir; ce n’est pas traduisible par le langage” 6. Esta é a mesma chave que encontramos na epígrafe de Simone Weil, adotada por Ruth Klüger na abertura de seu livro:
4 Wiesel dixit: “se os gregos inventaram a tragédia, os romanos a epístola e o Renascimento o soneto, nossa geração inventou uma nova literatura, a do testemunho”. Cf. Elie Wiesel, “The Holocaust as Literary Inspiration”, In: E, Wiesel et, al., Dimensions of the Holocaust: Lectures at North Western University, Evanston: The University, 1977, p. 9. 5 Cf. Renato Lessa, “Primo Levi transformou em arte relato sobre o horror de Auschwitz”, In: Ilustríssima, Folha de São Paulo, 27/07/2019. 6 “Vimos o que os homens não devem ver, algo intraduzível pela linguagem”. Cf. Robert Antelme, Vengeance?, Paris: Farrago, 2005.
“Suportar o desencontro entre a imaginação e o fato” 7. O que disso resulta é o uso combinado de modos de narrar, nos quais a descrição fática e direta do que permanece na memória é acompanhada de efeitos poéticos mais dissipados e imprecisos e de uma forma de expressão aproximada à ideia de lamento, tal como definida por Gershom Scholem: uma linguagem inscrita na linha divisória entre o que é revelado e o que não é, ou não pode ser 8. Dessa forma e ao mesmo tempo, não revela nada e revela tudo.
4. Outro aspecto diz respeito à direção do empenho literário: um movimento que o inscreve nos domínios da filosofia moral. Tal é o movimento de Levi, por exemplo, ao invocar a arquitetura imagética de Dante, que lhe permite representar o experimento do Campo como desabamento, como precipitação abissal, na direção do fundo, como vórtice no qual estão canceladas as condições mínimas do humano.
Por mais graves que sejam as descrições e as formas expressivas a elas associadas, o tema do medo ali possui inscrição secundária. Um claro ponto de convergência entre as narrativas mencionadas é a indicação de um modo de supressão da experiência humana ordinária: o “andar na rua”, de Delbo ou o encontro com o “cibo caldo” (comida aquecida) no regresso à casa após o trabalho, de Levi 9. Uma experiência na qual o sentimento do medo parecia ter
7 Apud Ruth Klüger, Paisagens da memória: autobiografia de uma sobrevivente do Holocausto, São Paulo: Editora 34, 2005. 8 Cf. Gershom Scholem, “On Lament and Lamentation”, In: Illit Ferber & Paula Schwebel (Eds.), Lament in Jewish Thought: philosophical, theoretical, and literary perspectives, Berlin: De Gruyter, 2014, pp. 313319, texto elaborado em 1917. 9 Em Delbo: “Andar, falar, responder às perguntas, dizer aonde queremos ir, ir”. Cf. Charlotte Delbo, Medida de nossos dias, In: Charlotte Delbo, Auschwitz e depois, São Paulo: Carambaia, 2022, p. 290. Em Levi: “...vocês que, voltando à noite, encontram co-
seu lugar natural de inscrição e acolhimento. Um universo no qual faria todo o sentido o título do fabuloso e mais recente livro do historiador italiano Adriano Prosperi, Tremare è Umano (Temer é Humano) 10. É evidente que o medo assolava também, e com imensa força, o universo dos prisioneiros dos campos: como não temer a brutalidade dos kapos ou a aparição do “comando do céu” (Delbo)? Mas, de algum modo, tal sentimento não é o que se revela mais nítido e singular para descrever aquela condição. Uma das razões para tal pode residir no fato de que sentir medo é algo tão associado à experiência da vida ordinária, de um modo tal que a supressão da regularidade do mundo torna-se capaz de evocar sensações de natureza diversa e mais funda. Algo aquém – ou além - do medo. É exatamente isto que gostaria de explorar. Conto, desde já com algumas suspeitas e premissas. A vê-las.
Pistas e premissas:
1. Estar à espreita
Gilles Deleuze, em memorável aula a propósito de “Leibniz e os Princípios da Liberdade”, ministrada em 1987 em Vincennes e na qual exalta o fundo de espontaneidade inscrito na substância das mônadas, sugeriu que a maneira de ser dos animais, em seus regimes de relações com o mundo, é marcado pela presença um princípio de inquietude11. Segundo Deleuze, ao se opor à doutrina cartesiana do animal máquina, Leibniz teria feito mais do que
mida quente e rostos amigos”. Cf. Primo Levi, É isto um homem?, Rio de Janeiro: Rocco, 1988, p.9. 10 Cf. Adriano Prosperi, Tremare è umano: uma breve storia dela paura, Milano: Solferino, 2021. Chamo a atenção para o fato de que o termo “Temer” na tradução do título é palavra de acentuação oxítona. 11 Cf. Gilles Deleuze, “Sur Lebniz. Les principes de la liberté”, in: www.webdeleuze.com/textes/148.
sustentar a presença de alma nos animais. Teria sido ele o “inventor da psicologia animal”, não por ter sustentado a presença de uma alma, mas pela definição do animal como “être aux aguets”; como ser à espreita, ou em permanente estado de inquietude. É o que diz: “La psychologie animale commence à partir du moment où, non seulement, vous croyez à l’âme des bêtes, mais où vous avez définit la situation de cette âme comme étant la situation de l’être aux aguets (e.a.)”12. Na sequência, Deleuze propõe a seus ouvintes a seguinte simulação: “Quand vous vous promenez à la campagne il faut faire le jeu suivant, mais aussi bien à la ville, imaginez que vous soyez une bête. Ça veut dire quoi, être une bête? Ça veut dire que, quoi que vous fassiez, être aux aguets de ce qui peut survenir”13 .
O princípio da inquietude, como anima, exige como condição de possibilidade a presença de um corpo. Mais do que isso, impõe uma redução absoluta ao fato de ter um corpo. A inquietude envolve a ação de um sistema complexo, composto por inúmeras e pequenas percepções desse mesmo corpo, sempre ativas no animal à espreita. Ainda Leibniz/Deleuze: “a paz do animal é a integração de uma inquietude perpétua”. Supor que somos bestas pode ser tomado não apenas como recurso pedagógico para compreender, por analogia, a psicologia animal. Suspeito que traga em si a sugestão de que podemos levar a coisa a sério, e tomarmo-nos como bestas, na observação de nossos próprios regimes de relação com o mundo.
12 “A psicologia animal começa partir do momento no qual, não apenas se crê na presença de uma alma nos animais, mas no qual se define a situação dessa alma como na situação de um ser inquieto (ou à espreita)”. 13 “Quando passear pelo campo, tanto quanto na cidade, é preciso que faça o seguinte jogo: imagine que seja um animal. Mas o que quer dizer ser um animal? Quer dizer que, não importa o que faça, está à espreita e inquieto com relação ao que pode acontecer”. Cf. Gilles Deleuse, Idem.
2. Princípio de inquietude, medo e crueldade
O modelo da inquietude animal é distinto do modelo do medo. Ao afirmarmos “os animais têm medo”, em grande medida a eles conferimos um atributo que nos é exclusivamente familiar. O medo é demasiadamente humano. Se assim o for, a perspectiva da desconfiguração e destruição do humano, inscrita na lógica do Läger – e em experimentos que a preservam e como forma de vida – introduz a possibilidade de pensar a respeito de algo além – ou aquém – do medo.
Mas, como assim “demasiado humano”? A ideia aqui implicada é a de que medo significa medo do outro, e tem a ver com uma experiência extremamente arcaica da espécie, que pode ser designada como a da domesticação da crueldade. Análoga à domesticação do fogo, a da crueldade decorre do controle das técnicas de produção de sofrimento nos outros corpos, a partir da descoberta de que somos capazes de reproduzir – e aperfeiçoar – a dor acusada pelos nossos sentidos. Produzir nos outros corpos uma sensação que bem conhecemos nos nossos próprios corpos. É bem o caso de invocar a filósofa Elaine Scarry, em seu monumental livro Body in Pain, de 1987: a experiência da dor física pessoal é o que mais se aproxima do sentimento de verdade14 . Para empregar a expressão de Carlo Emilio Gadda, o “conhecimento da dor”15 contém o modelo completo do autoconhecimento verdadeiro: não tenho como duvidar da dor que sinto e, neste sentido, ela aparece como absolutamente verdadeira.
Uma “antropogenese” do medo poderia revelar as circunstâncias na quais nos tornamos reciprocamente temíveis: o momento da
14 Cf. Elaine Scarry, The Body in Pain: The making and the unmaking of the world, Oxford: The Oxford University Press, 1987. 15 Cf. Carlo Emilio Gadda, La cognizione del dolore, Torino: Einaudi, 1963.
descoberta e da difusão da capacidade de produção de dor e sofrimento por meios artificiais. Nesse “momento”, a espécie parece ter confiscado da natureza o monopólio da produção de sofrimento, tornando-o regular e regulado, acrescentando-lhe ainda o componente da crueldade. Nesse passo, o animal em questão tornou-se temível para si mesmo. Ou seja, faz todo o sentido temê-lo: tremare è umano.
O autoconhecimento da dor em si sustenta a destreza na produção de dor a outrem. Repetir no corpo do outro o experimento da dor, em função da capacidade exclusiva dos humanos na manipulação artificial de processos naturais. Trata-se do fundamento da crueldade originária, o que confere sentido ainda mais forte à definição de Montaigne a respeito de ser a crueldade o pior dos vícios.
Tremare è umano, por certo, mas ao mesmo tempo, o medo é uma paixão produtiva. Trata-se de uma condição necessária para a invenção de artifícios tanto de proteção como de retaliação (com frequência, trata-se dos mesmos). As “formas de consciência social”, na bela fórmula de Marx, mais do que refletir posições de classe, dependem em enorme medida da capacidade de estabelecer distinções, para as quais marcadores de aversão e afinidade são essenciais. Se as relações sociais são relações de força, e para que não se reduzam à pura ludicidade, elas envolvem a possibilidade do temível e, nesse sentido, o estar à espreita dos humanos – seu modo de inquietude – exige o sentimento do medo como operador de sensibilidade. O conhecimento do temível impõe-se como compulsório, uma esfera composta por ações e práticas demasiadamente humanas.
Provisoriamente em suma
Pretendo explorar a as implicações possíveis de minha apropriação inteiramente pessoal da fórmula deleusiana do “princípio da inquietude” para lidar com o lugar secundário do medo, em algumas das mais importantes – e literariamente superiores – narrativas a respeito dos campos da morte. Não tenho conclusões e muito menos demonstrações, apenas a suspeita de que uma forma de vida além – ou aquém – do medo não seja exatamente convidativa. Se nada disso fizer sentido, resta-nos o juízo de Espinosa, que assegura a relação bi-unívoca entre medo e esperança: não há um sem o outro, e vice versa. Mas, se assim é, como ter esperança no interior do Läger? Como ter medo sem esperança?