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A superindústria do imaginário e o vazio da coragem

Eugênio Bucci

Uma vida não é nada. Com coragem, pode ser muito. Carlito Maia.1

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Para lucrar com a pandemia, o capital apostou na dispensa do corpo humano. Não que tenha ele mesmo engendrado a rotina em que a circulação e a aglomeração de pessoas se converteram em tormentos da saúde pública; seu trunfo foi primordialmente o de aproveitar a oportunidade. Adaptando-se aos ordenamentos sanitários da pandemia que se impôs em 2020, logrou tirar proveitos e ganhos inauditos. Saiu por cima. Quando as autoridades passaram a obrigar o confinamento dos indivíduos em domicílios – fossem eles confortáveis, precários ou mesmo inexistentes –, o linguajar do mercado cuidou de popularizar o termo home office ao passo que desenvolvia soluções incorpóreas para produzir valor, ou valor a mais. O capital sacou rápido e faturou alto. Relegando as pessoas reais a uma espécie de espaço off do modo de produção, desencadeou um novo ciclo de acumulação.

Estamos vivendo um contrassenso histórico, um descompasso, uma contradição de forma nova: a exploração se instalou pela ausência física do explorado. Essa contradição precisa ser lembrada aqui não por dizer respeito diretamente à coragem, mas porque, ao afetar a condição e a posição do corpo nas relações sociais, muda de lugar o tema da coragem. É simples entender por quê. A coragem não tem como deixar de ser uma disposição corporal, uma virtude que só se manifesta em ato. Ora, se vivemos numa ordem onde nada mais é “presencial” (o palavrão da moda), a coragem perde seu alicerce e seu vetor. Como ela poderia existir sem braços erguidos, sem punhos cerrados e sem peito aberto? Pode ser corajoso um ser virtual? Comecemos por aí.

1 MARTINHO, Erazê. Carlito Maia – a irreverência equilibrada. São Paulo: Boitempo, 2003. P. 164.

A pandemia favoreceu o aprofundamento do modus operandi da Superindústria do Imaginário.2 O corpo da gente – ossos, fibras, músculos, glândulas, tecido – ficou jogado de lado, feito carcaça no acostamento das infovias. No lugar dos nossos esqueletos, que antes balouçavam na labuta de sol a sol e hoje se prostram diante de um celular, o que ganhou valor foram categorias do imaginário: marcas, signos, imagens ou, ainda, para usarmos o vocábulo da temporada, as “narrativas”. O capital, agora, pouco se dedica à fabricação das tais coisas corpóreas. Convertido em capital-narrador, assume as vezes de sintetizador de linguagem. Por aí, alcançou as alturas e foi além, num novo fôlego de expansão.

No início de janeiro de 2022, circulou a notícia de que a Apple se tornara a primeira companhia da história a atingir o valor de mercado de três trilhões de dólares. Em um intervalo de 16 meses, o preço da empresa subiu 50%, indo de dois para três trilhões de dólares.3 Não passemos por esse número assim, sem maiores calafrios. A cifra é um estrondo. Três trilhões de dólares equivale, mais ou menos, ao dobro do PIB de um país como o Brasil. É dinheiro.

E como foi que a Apple se agigantou? Qual seu segredo? A resposta é simples: ela forjou os dispositivos para tirar proveito da expulsão dos corpos. A Apple se tornou um colosso capitalista na medida em que removeu de sua pessoa jurídica o incômodo da pessoa física. Higienizou-se. Como outras de seu tronco – mais que um ramo – de negócios, ela não depende mais de corpos em suas linhas de montagem; bastam-lhe os cliques remotos de seus “colaboradores” assalariados ou contratados.

2 BUCCI, Eugênio. A Superindústria do Imaginário. Belo Horizonte: Autêntica, 2021. 3 Apple torna-se primeira empresa a atingir US$ 3 trilhões em valor de mercado. 3 jan 2022. Folha de S. Paulo. https://www1. folha.uol.com.br/mercado/2022/01/apple-torna-se-primeira-empresa-a-atingir-us-3-trilhoes-em-valor-de-mercado. shtml?origin=folha

Mas não está aí a maior originalidade da companhia mais cara de todos os tempos. Aliás, não há originalidade nenhuma nessa história de home office, que se alastrou como praga em toda parte: padres, psicanalistas, astrólogos, escolas e escritórios de advocacia de qualquer biboca do planeta adotaram a fórmula. Uma infinidade de serviços do setor público ou do setor privado opera com trabalho a distância. Não, a originalidade da Apple, e de outros conglomerados conhecidos como big techs, como Google, Amazon ou Facebook (agora rebatizado como Meta, de metaverso), não se encontra no home office de seus empregados. O Home office, vamos falar claro, virou a maior carne de vaca – ou, no caso brasileiro, virou osso de vaca. O que os conglomerados monopolistas globais têm de original, muito além do trabalho remoto, é a transformação do consumo em trabalho virtual extenuante e inconsciente. Na Superindústria do Imaginário, consumir é trabalhar.

Os tais “usuários” – aqueles que se deixam viciar nos aplicativos e nas atrações libidinais de monstros como Apple, Netflix ou Microsoft – não estão propriamente “consumindo” facilidades ou funcionalidades; estão, isto sim, caindo numa trama que os escraviza, e isso em dois níveis distintos e combinados. No primeiro nível, os “usuários” – que não usam, mas são usados – produzem significações com seu olhar aprisionado pelas telas. O trabalho do olhar é entregue de graça para os conglomerados, sem limites de jornadas. Sem as massas olhando e clicando, não há associação de sentido que se estabeleça. Sem o olhar do público, o Banco Itaú não conseguiria virar dono da cor alaranjada. Sem fisgar o olhar do público, o capitalismo não daria conta de produzir as significações que catapultam o valor de troca das mercadorias. O olhar é a força produtiva – uma força ativa – que confecciona socialmente os significados, além de ser a via pela qual as massas assimilam o discurso visual da mercadoria.

No segundo nível, os ditos “usuários”, os adictos, entregam, também de graça, os seus dados pessoais mais íntimos. De posse desses dados, os conglomerados pavimentam as trilhas que serão seguidas pela mercadoria para assediar o sujeito em seus circuitos mais secretos. Nos dois níveis, as multidões indistintas e os indivíduos em sua mais ínfima singularidade trabalham (de graça) e entregam seus dados (também de graça), enquanto imaginam se divertir. Sem saber, servem a uma ordem escravocrata. São “usuários” a serviço de usurários. Trabalham com os olhos e com as pontas dos dedos, quase sem mover o corpo. A Superindústria do Imaginário explora sujeitos ausentes que se encontram em estado semivegetativo.

A corporeidade evaporou. Não somente o corpo humano foi exilado; também o corpo da mercadoria virou fumaça. O trabalho explorado não vem mais diretamente dos músculos, mas da imaginação cativa e do olhar encabrestado. O valor da mercadoria escapa da coisa fabricada para se depositar sobre o signo, sobre a imagem. O valor de troca não está mais na coisa física da mercadoria, mas na sua aura sintética. O valor de troca de um par de óculos de sol não vem do plástico, do vidro ou do metal que nele se combinam pelo trabalho alienado, mas do sentido que sua marca, seu signo e sua imagem emprestam ao “eu” do consumidor.

A mercadoria não se orienta mais pelo propósito de aportar uma utilidade ao cliente; cumpre agora uma função linguística e identitária. Ela não mais interpela a necessidade, mas o desejo. Apresentase como objeto do desejo para tapear o desejo e, nesse percurso, desonra o desejo. Simulando ser a presa do desejo livre, faz dele sua presa. Não apenas toda mercadoria lobotomiza o desejo, como tudo aquilo que lobotomiza o desejo age como mercadoria, mesmo quando seu valor de troca não está aparente.

O “escanteamento” do corpo é a chave para o entendimento da Superindústria do Imaginário e do contrassenso histórico que ela acarretou. O capitalismo nasceu ao inventar uma forma inédita de explorar a força de trabalho, força que só pode existir no corpo, posto que é energia sanguínea. Agora, reprogramado, o “novo” capitalismo, o capitalismo digital, parece esnobar o velho corpo humano, interessando-se menos pelo organismo (corpóreo) e mais pelas taras (psíquicas) do explorado. Já não adora tanto o metal, a lã, a madeira, o bíceps, mas os aspectos narrativos que vão identificar a mercadoria – que circula mais como amuleto do que como valor de uso. À medida que as relações de produção entraram na velocidade da luz, o corpo, tanto da mercadoria quanto do trabalhador, virou nuvem (termo não aleatório). Quanto ao capital, ainda que você não consiga pegá-lo com as mãos (os capitalistas não conseguem), nunca esteve tão sólido.

A mercadoria canaliza o desejo mais ou menos como os engenheiros canalizam as águas de um rio: com sistemas de diques e barragens, estanca o impulso de liberdade para rebaixá-lo a um elo fungível na cadeia de valor na qual o explorado virtual não terá vez. Consequentemente, a virtude da coragem, que só pode ser pensada eticamente como um compromisso que o sujeito amarra entre seu desejo e sua liberdade, escapa por inteiro à esfera do realizável. Estamos falando de uma tragédia civilizacional.

Isso significa que o regime de corpos confinados, incorporado pelo capital, estabelece a interdição estrutural da coragem. No mês de abril de 2020, primeiros tempos da pandemia, havia 4,5 bilhões de pessoas sujeitas a confinamento no mundo.4 Ora, se o corpo não

4 Coronavírus deixa 4,5 bilhões de pessoas confinadas no mundo. O Globo. 17/04/2020. Disponível em https://oglobo.globo.

comparece à cena, onde então poderia se ancorar essa virtude? De que maneira ela poderia honrar o desejo? Como pensar desejo e liberdade no corpo barrado a esse grau?

Não é só. Se o confinamento do corpo desaloja a coragem e difrata o desejo, será que poderíamos (ou deveríamos) chamar de desejo ou de coragem o impulso que se insurge contra o isolamento? Será isso um vetor antimercadoria e anticapitalista? Será que o ato de coragem é aquele que encampa o levante contra as medidas de restrição de trânsito e de aglomeração?

As perguntas não são simples. A pandemia, a mesma que foi para o capital uma “oportunidade” lucrativa, complicou os nossos desafios éticos. Será que o combate aberto, demagógico e apelativo contra a política de isolamento sanitário é um gesto de coragem? A julgar pela nossa experiência desde 2020, a resposta só pode ser não. Esse combate não resultou da pulsão de vida, mas de uma pulsão de morte mediada. Nessa condição, não deveria ser interpretada por nós como ato de coragem. Fora isso, o desejo que há nela é um desvio difratado na órbita do capital.

Notemos que os ataques contra o lockdown e, de quebra, contra o uso de máscaras e contra as vacinas, emergiram como bandeiras da extrema direita antidemocrática, uma coagulação de correntes que é determinada pela repressão – a sexual, sobretudo. Logo, não há de ter sido por desejo, mas por ódio (uma paixão à parte), que as forças reacionárias patrocinaram os levantes contra as medidas restritivas.

Com um individualismo desumanizado e armado, a extrema direita antidemocrática convocou energias sociais poderosas para

com/mundo/coronavirus-deixa-45-bilhoes-de-pessoas-confinadas-no-mundo-24378350. Acessado em 27 maio 2020.

construir uma fraude performática de liberdade e de desobediência civil. Suas manifestações contra o isolamento não vieram para enfrentar, mas para acelerar os piores desígnios do capital, consubstanciados no desprezo ostensivo pela vida humana. Foram canais de assassinato, não de libertação, donde a aparente “coragem” (meramente cênica) dos destacamentos de inspiração fascista não pode ser chamada de coragem, já que celebrou o extermínio em detrimento dos direitos. Era vício, não virtude, e sua consequência lógica se traduziu em matar mais rapidamente os mais frágeis.

A coragem, ainda que seu ator encare a morte, rende seus préstimos à vida coletiva, não à morte dos desprotegidos. É verdade que, sendo expressão do caráter, ainda que tangencie a formação da vontade, a coragem pode, na hora extrema, prescindir do pensamento, indo direto ao ato, sem ter de passar pela reflexão. A coragem é, assim, “um jeito de corpo”. Não obstante, seu conceito requer de nós que consideremos, nela, a mediação da política, por meio da qual o ato pode superar as contradições abertas entre a democracia e o capital. Desse modo, o ato de coragem, dentro do presente contrassenso histórico, só pode encontrar consequência se for ato político, mediado pelo pensamento. No nosso tempo, a virtude mais valiosa talvez seja a coragem de pensar.

A coragem, em sua expressão não esbravejante, encampa a defesa da vigência plena do corpo e honra o desejo, na exata medida em que lhe confere a chance de lutar contra a sentença de morte que o sitia.

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