IGOR VIDOR EX _MISS_FEBEM DIAS & RIEDWEG MARCOS CHAVES A R T E E C U LT U R A C O N T E M P O R Â N E A
Fotografia da série Ramos (2015), de Julio Bittencourt
OPAVIVAR Á!
A revista chegou, a matéria da Paula Alzugaray está primorosa! É um edição especial, tenho bastante interesse nesse assunto. Parabéns a toda equipe. Virginia de Medeiros, artista
Passando aqui pra contar dessa edição maravilhosa da seLect, com feminismo de tema de capa. Inteirinha falando delas, de representatividade na arte, na música, na dança, na fotografia, nas ciências. E o mais lindo: cheia de referências de minas f... que estão conquistando visibilidade em áreas diversas e mudando as regras do jogo. A gente teve a sorte de estar lá (falando da Comum e dyvando), junto com MC Soffia, Chega de Assédio, Mc Luana Hansen, Coletivo Quaerere, Bia Sodré, Bárbara Wagner e mais um monte de mulher incrível. Apenas comprem Anna Haddad, da comunidade feminista Comum.vc
Escreva-nos Rua Itaquera, 423, Pacaembu, São Paulo - SP CEP 01246-030
S E L E C T E X PA N D I D A O N L I N E www.select.art.br faleconosco@select.art.br facebook.com/selectrevista twitter.com/revistaselect plus.google.com/+SelectArtBr instagram.com/revistaselect
FALA FAUSTO FAWCETT
Em entrevista exclusiva à seLect (http://bit.ly/fala-fausto), o escritor e compositor Fausto Fawcett fala sobre seu novo livro, Favelost, sua carreira e sucessos como o hit Kátia Flávia, a Godiva do Irajá.
BRASIL DE DI
Em cartaz na Galeria Almeida e Dale (SP), a mostra Di Cavalcanti ̶Conquistador de Lirismos reúne obras que registram elementos da identidade nacional. No site, confira galeria de imagens com destaques da exposição.
OLHAR ESTRANGEIRO
Nomes como o alemão Marc Ohrem-Leclef e a anglo-americana Sarah Morris realizaram trabalhos artísticos que lançam outra perspectiva sobre o Rio de Janeiro. No site, confira o portfólio desses artistas. FOTOS: CISCO VASQUES E DIVULGAÇÃO
ÍNDEX
6
62
76
86
90
102
PORTFÓLIO
TERRITÓRIOS
PATRIMÔNIO
ENTREVISTA
VERNISSAGE
IGOR VIDOR
ANTICARTÃOPOSTAL
DO VALONGO À FAVELA
WASHINGTON FAJARDO
RICARDO RENDÓN
Ex-atleta profissional,
Os subúrbios e os
Clarissa Diniz escreve sobre
Curador do Brasil na Bienal
A crítica e curadora Laura
artista ancora seu trabalho
inferninhos retratados por
como uma instituição dá
de Arquitetura de Veneza
Bardier escreve sobre
na experiência com o
Julio Bittencourt , Fausto
conta do valor cultural
fala sobre a importância
individual do artista
esporte e a cidade
Fawcett , Oswaldo Goeldi
da região conhecida
do circuito da herança
mexicano na Zipper Galeria
e Nelson Rodrigues
como Pequena África
africana para o Rio
48 PORTFÓLIO
O PÃO DE AÇÚCAR DE CADA DIA Série fotográfica de Marcos Chaves explora a vida em torno do ícone máximo do Rio
SELECT.ART.BR
FEV/MAR 2016 ABR/MAI 2016
FOTO: CORTESIA DO ARTISTA/GALERIA NARA ROESLER
SEÇÕES
8 14 16 32 36 41 114
Editorial
56
Cartas
ENSAIO
Selects / Agenda
BONITO POR ARTIFÍCIO
Coluna Móvel
Desde a sua fundação, a cidade é palco de
Acervos Itaú Cultural
intervenções que movem montanhas
Mundo Codificado Em Construção
68 CURADORIA
FLUXOS DA CIDADE O espaço público e suas transformações como componentes do trabalho de três artistas e um coletivo
94 ENTREVISTA
DIAS & RIEDWEG Artistas falam da conceituação do trabalho, da relação com o Rio e da evolução da cidade
FOTOS: CORTESIA DOS ARTISTAS E MENDES WOOD DM
7
EXPEDIENTE
EDITOR E DIRETOR RESPONSÁVEL: DOMINGO ALZUGARAY EDITORA: CÁTIA ALZUGARAY PRESIDENTE-EXECUTIVO: CARLOS ALZUGARAY
10
EDITORA RESPONSÁVEL: PAULA ALZUGARAY
DIRETORA DE REDAÇÃO: PAULA ALZUGARAY DIREÇÃO DE ARTE: RICARDO VAN STEEN DESIGNER: MARIANA AQQAD REPORTAGEM: LUCIANA PAREJA NORBIATO REPORTAGEM DIGITAL: CAMILA RÉGIS CONSELHO EDITORIAL: GISELLE BEIGUELMAN E MÁRION STRECKER COLABORADORES
Clarissa Diniz, João Paulo Quintella, Kiki Mazzucchelli, Laura Bardier, Luisa Duarte, Ulisses Carrilho
PROJETO GRÁFICO
Ricardo van Steen e Cassio Leitão
SECRETÁRIA DE REDACÃO COPY-DESK E REVISÃO PRÉ-IMPRESSÃO
CONTATO
MARKETING
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DIRETOR: Rui Miguel ASSISTENTE DE MARKETING: Andreia Silva
DIRETOR NACIONAL: Maurício Arbex DIRETORA: Ana Diniz GERENTES EXECUTIVOS DE PUBLICIDADE: Batista Foloni Neto, João Fernandes, Tania Macena e Rita Cintra SECRETÁRIA DIRETORIA PUBLICIDADE: Regina Oliveira EXECUTIVA DE PUBLICIDADE: Andréa Pezzuto ASSISTENTE DE PUBLICIDADE: Eyres Mesquita ASSISTENTE ADM. DE PUBLICIDADE: Ederson do Amaral COORDENADORES: Gilberto Di Santo Filho CONTATO: publicidade@editora3.com.br RIO DE JANEIRO-RJ: COORDENADORA DE PUBLICIDADE: Dilse Dumar; Tel.: (21) 2107-6667 / Fax (21)2107-6669 BRASÍLIA-DF: Gerente: Marcelo Strufaldi. Tel.: (61) 3223-1205 / 3223-1207; Fax: (61) 3223-7732 ARACAJU-SE: Pedro Amarante - Gabinete de Mídia - Tel./Fax: (79) 3246-4139/9978-8962. BELÉM-PA: Glícia Diocesano - Dandara Representações - Tel.: (91) 3242-3367 / 8125-2751. BELO HORIZONTE - MG: Célia Maria de Oliveira - 1ª Página Publicidade Ltda.; Tel./Fax: (31) 3291-6751 / 99831783. CAMPINAS-SP: Wagner Medeiros - Parlare Comunicação Integrada - Tel.: (19) 8238-8808 / 3579-8808. CURITIBA-PR: Maria Marta Graco - M2C Representações Publicitárias; Tel./Fax: (41) 3223-0060 / 9962-9554. FLORIANÓPOLIS-SC: Anuar Pedro Junior e Paulo Velloso - Comtato Negócios; Tel./Fax: (48) 9986-7640 / 9989-3346. FORTALEZA-CE: Leonardo Holanda - Nordeste MKT Empresarial - Tel.: (85) 9724-4912 / 88322367 / 3038-2038. GOIÂNIA-GO: Paula Centini de Faria – Centini Comunicação - Tel. (62) 3624-5570 / 9221-5575. PORTO ALEGRE -RS: Roberto Gianoni - RR Gianoni Com. & Representações Ltda. Tel./Fax: (51) 3388-7712 / 9985-5564 / 8157-4747. RECIFE-PE: André Niceas e Eduardo Nicéas - Nova Representações Ltda - Tel./Fax: (81) 3227-3433 / 9164-1043 / 9164-8231. SP/RIBEIRÃO PRETO: Andréa Gebin - Parlare Comunicação Integrada; Tel.s: (16) 3236-0016 / 8144-1155. BA/SALVADOR: André Curvello - AC Comunicação - Tel./ Fax: (71) 3341-0857 / 8166-5958. VILA VELHA-ES: Didimo Effgen-Dicape Representações e Serviços Ltda. - Tel./Fax (27)3229-1986 / 8846-4493 Internacional Sales: Gilmar de Souza Faria - GSF Representações de Veículos de Comunicações Ltda - Fone: 55 11 9163.3062. MARKETING PUBLICITÁRIO - DIRETORA: Isabel Povineli GERENTE: Maria Bernadete Machado ASSISTENTES: Marília Trindade e Marília Gambaro. REDATOR: Bruno Módulo. DIR. DE ARTE: Victor S. Forjaz.
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SELECT.ART.BR
ABR/MAI 2016
DARIO ESCOBAR COMPOSIÇÕES CASA TRIÂNGULO 05.04.2016 – 08.05.2016
SP-ARTE STAND H5 PAVILHÃO DA BIENAL, SÃO PAULO 06.04.2016 – 10.04.2016
FRIEZE NY STAND D7 RANDALL’S ISLAND PARK, NEW YORK 04.05.2016 – 08.05.2016
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14.05.2016 – 11.06.2016
RUA ESTADOS UNIDOS 1324 . CEP: 01427-001 . SÃO PAULO . BRASIL . T: +55 11 3167-5621 . INFO@CASATRIANGULO.COM . WWW.CASATRIANGULO.COM
Dario Escobar . Composition No. 78, 2016 . óleo de motor sobre papel . 143 x 39 cm © Gustavo Sapón
CASA TRIÂNGULO
E D I TO R I A L
8
A HERANÇA E O AMANHÃ Quando a Associated Press solicitou a
primeiras entregas do maior projeto de
especialistas a análise da qualidade das
reforma urbana em prática hoje no Brasil, a
águas da Baía de Guanabara e da Lagoa
Operação Urbana Porto Maravilha. Desse
Rodrigo de Freitas, e constatou, em julho de
projeto em construção já desponta um
2015, níveis perigosamente altos de vírus e
de seus mais preciosos legados, o Circuito
bactérias de esgoto humano nos locais das
Histórico e Arqueológico da Celebração da
competições olímpicas e paraolímpicas, o
Herança Africana, que trouxe à luz o antigo
conteúdo pedagógico do Museu do Amanhã
Cais do Valongo – candidato a Patrimônio
estava em fase de finalização. Inaugurado
da Humanidade, na Unesco – e o exemplar
em dezembro, o Amanhã investiu alto
trabalho de resgate e conservação da
em experiências imersivas, ambientes
memória da cultura negra, realizado pelo
audiovisuais e instalações interativas, a fim
Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos.
de engajar seu público em reflexões sobre
Nesta edição dedicada ao Rio de Janeiro,
a era do Antropoceno, “quando o homem
seLecT incentiva seus leitores a explorar
se tornou uma força planetária capaz de
o que a Cidade Maravilhosa tem de mais
alterar o clima, degradar biomas e interferir
potente: a rua. A exemplo das andanças de
em ecossistemas”. Estranha-se, porém,
alguns de seus mais amorosos e dedicados
que, ao lado das perguntas lançadas pelo
filhos – do jornalista João do Rio aos artistas
corpo educativo (De onde viemos, quem
Marcos Chaves e Dias & Riedweg –, há muito o
somos, onde estamos, para onde vamos
que (re)conhecer em passeios a pé.
e como queremos conviver nos próximos
A edição se propõe também a documentar,
50 anos), não se tenha investido em um
por meio de entrevistas, portfólios e da
aprofundamento científico da atualidade do
curadoria, envolvendo diversos artistas
ecossistema onde o edifício está inserido: as
e agentes que vivem e trabalham na
águas da Baía de Guanabara.
cidade, como esses intensos processos de
Perguntas urgentes a serem formuladas por
transformação urbana estão impactando
um museu de ciências “dedicado a explorar
na vida do carioca. Interessada tanto
as possibilidades de construção do futuro”
nas comunidades biológicas da Baía de
seriam, por exemplo: Qual o circuito das
Guanabara quanto nas reivindicações das
valas por onde correm os esgotos do Rio de
comunidades de moradores removidos de
Janeiro? Qual a composição desses resíduos?
seus lares por conta das reformas, seLecT
Qual o exato espectro da degradação dos
mergulha nos labirintos e circuitos da cidade
biomas da Baía? Qual o nível de vitalidade
amada, para compreender que, para cultivar
hoje do ecossistema original? As respostas a
o amanhã, precisamos dar conta do aqui
essas indagações levariam o público massivo
e agora, além de pisar no terreno firme da
que encara horas de filas diante do museu-
herança cultural.
escultura de Santiago Calatrava à inevitável questão: para onde foram os recursos e as promessas oficiais de limpeza das águas? A Praça XV, revitalizada, o Museu do Amanhã
Paula Alzugaray
e o Museu de Arte do Rio (MAR) foram as
Diretora de Redação
SELECT.ART.BR
ABR/MAI 2016
COLABORADORES
12
clarissa diniz
ulisses carrilho
Curadora. Desde 2013, integra a equipe do Museu de Arte do Rio (MAR). Entre 2006 e 2015, foi editora da revista de crítica de arte Tatuí. Tem diversos livros publicados - pesquisa P 86
Curador e escritor independente pós-graduado em Economia da Cultura. Sua mostra mais recente é Aquí Mis Crímenes no Serían de Amor (Lugar a Dudas, Colômbia) - review P 111
joão paulo quintella
laura bardier
Mestre em Processos Artísticos Contemporâneos pela Uerj, curador do projeto Permanências e Destruições, no Rio - curadoria P 68
Curadora nascida no Uruguai, foi gestora do acervo de Estrellita B. Brodsky. É diretora da Este Arte, feira de arte contemporânea de Punta del Este - vernissage P 102
kiki mazzucchelli
luisa duarte
Curadora e doutoranda na TrAIN – University of the Arts, de Londres. Fez a curadoria de Mitologias por Procuração (MAM-SP) e Hüseyin Bahri Alptekin (Sesc-Pompeia) - review P 107
Crítica e curadora independente. Mestre em filosofia pela PUC-SP. Membro do conselho consultivo do MAM-SP e crítica de arte do jornal O Globo - coluna móvel P 32
SELECT.ART.BR
ABR/MAI 2016
C A R TA S
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A revista chegou, a matéria da Paula Alzugaray está primorosa! É um edição especial, tenho bastante interesse nesse assunto. Parabéns a toda equipe. Virginia de Medeiros, artista
Passando aqui pra contar dessa edição maravilhosa da seLect, com feminismo de tema de capa. Inteirinha falando delas, de representatividade na arte, na música, na dança, na fotografia, nas ciências. E o mais lindo: cheia de referências de minas f... que estão conquistando visibilidade em áreas diversas e mudando as regras do jogo. A gente teve a sorte de estar lá (falando da Comum e dyvando), junto com MC Soffia, Chega de Assédio, Mc Luana Hansen, Coletivo Quaerere, Bia Sodré, Bárbara Wagner e mais um monte de mulher incrível. Apenas comprem Anna Haddad, da comunidade feminista Comum.vc
Escreva-nos Rua Itaquera, 423, Pacaembu, São Paulo - SP CEP 01246-030
S E L E C T E X PA N D I D A O N L I N E www.select.art.br faleconosco@select.art.br facebook.com/selectrevista twitter.com/revistaselect plus.google.com/+SelectArtBr instagram.com/revistaselect
FALA FAUSTO FAWCETT
Em entrevista exclusiva à seLect (http://bit.ly/fala-fausto), o escritor e compositor Fausto Fawcett fala sobre seu novo livro, Favelost, sua carreira e sucessos como o hit Kátia Flávia, a Godiva do Irajá.
BRASIL DE DI
Em cartaz na Galeria Almeida e Dale (SP), a mostra Di Cavalcanti ̶Conquistador de Lirismos reúne obras que registram elementos da identidade nacional. No site, confira galeria de imagens com destaques da exposição. SELECT.ART.BR
ABR/MAI 2016
OLHAR ESTRANGEIRO
Nomes como o alemão Marc Ohrem-Leclef e a anglo-americana Sarah Morris realizaram trabalhos artísticos que lançam outra perspectiva sobre o Rio de Janeiro. No site, confira o portfólio desses artistas. FOTOS: CISCO VASQUES E DIVULGAÇÃO
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rua das acácias, 104 - gávea - rio de janeiro +55 21 2521-0426 www.silviacintra.com.br
AGENDA
16
RIO DE JANEIRO
PARA COMER COM OS OLHOS
Instalação de Samantha Caldato e Bel Lobo no restaurante Fazenda Culinária, no Museu do Amanhã (inauguração prevista para abril)
Paisagismo Comestível, http://paisagismocomestivel.com A Feira, Fábrica Bhering, Rua Orestes, 28, Santo Cristo, RJ “Ao invés de cascas, vemos nossos filhos abrindo caixas de papelão. Nos rótulos, ingredientes foram substituídos por palavras que nem sequer podem ser encontradas em dicionários. Nos programas de televisão, uma numerosa e nova geração não sabe diferenciar uma batata de uma beterraba.” Foram essas tristes constatações que levaram a carioca Samantha Caldato a começar a transformar pequenos espaços domésticos em jardins comestíveis. Isso começou em Los Angeles, onde viveu nos últimos anos, e continua no Rio de Janeiro, onde mora atualmente. “A ideia era voltar ao tempo em que a comida ainda era cultivada, cuidada e observada com carinho, diariamente”, diz Samantha, que ao lado do irmão Conrado Squadrito criou o Paisagismo Comestível, cultivando hortas urbanas. Além dos serviços de personal horta, o projeto amplia-se em um espaço de trabalho e trocas, A Feira, que é também loja de objetos, móveis e acessórios, uma parceria com a diretora de arte Kiti Duarte, em um inspirador espaço na F ábrica Bhering. PA SELECT.ART.BR
ABR/MAI 2016
FOTO: DIVULGAÇÃO
James Lee Byars, Sonia Gomes, Haroon Gunn-Salie, 09/04 – 21/05, 2016 “Prediction” Curadoria de Milovan Farronato
Cibelle Cavalli Bastos 28/05 – 06/08, 2016 SP-Arte, São Paulo 07 –10/04, 2016 Frieze, New York 05 – 08/05, 2016
Mend e s Wood DM Rua da Consolação 3358 Jardins São Paulo SP 01416 – 000 Brazil + 55 11 3081 1735 www.mendeswooddm.com facebook.com/mendeswood @mendeswooddm Image: Sonia Gomes
AGENDA S Ã O PA U LO
EM CLIMA DE ESTREIA 18
Composições – Dario Escobar, 5/4 a 8/5, Casa Triângulo, Rua Estados Unidos, 1.324 www.casatriangulo.com A segunda exposição do belíssimo novo espaço da Casa Triângulo – projetado pelo Metro Arquitetos Associados e construído em esquina privilegiada dos Jardins – será uma estreia. Em sua primeira individual na galeria de Ricardo Trevisan, o guatemalteco Dario Escobar usa como matéria-prima elementos aparentemente banais, como pinturas em caçambas de caminhões. O artista parte dessas estruturas para criar objetos bidimensionais que exploram aspectos construtivos em séries como Construção Geométrica (à dir., a de nº 7, 2015).
RIO DE JANEIRO
MIGRAÇÃO EM FOCO Macabéa – Jorge Soledar, até 23/4, Portas Vilaseca, Avenida Ataulfo de Paiva, 1.079, ss 109 www.portasvilaseca.com.br A anti-heroína Macabéa, de A Hora da Estrela, livro icônico de Clarisse Lispector, serve de inspiração à estreia do gaúcho Jorge Soledar (à dir. foto que faz parte da instalação) na galeria carioca Portas Vilaseca. Partindo da premissa da migração ao Sudeste, o artista utiliza elementos como intervenção espacial e escultura para sugerir a presença da personagem em uma instalação, que problematiza o processo de desumanização pelo qual tantas vezes o migrante é submetido.
RIO DE JANEIRO
ESCOLA E ÍCONE URBANO Istituto Europeo di Design, Rua João Luíss Alves, Urca, www.ied.edu.br Localizado no antigo Cassino da Urca – um dos endereços mais emblemáticos do Rio e envolto na mística da história da música e das noites cariocas –, o IED Rio (foto à esq.) tem três novidades no primeiro semestre. Uma delas é o curso inédito de Design 1.0 – Fundamentos em Design, direcionado a jovens de 17 a 23 anos, interessados em conhecer as possibilidades de aplicação do Design em Moda, Gráfico, Produto e Estratégico. A ideia do curso é preencher uma lacuna entre a conclusão do ensino médio e o início de uma faculdade, preparando o aluno para seguir na profissão. SELECT.ART.BR
ABR/MAI 2016
FOTOS: DIVULGAÇÃO/RICARDO GAMA
White Cube at SP-Arte 2016 7 — 10 April 2016 Stand location G02
Artists featured include Darren Almond Georg Baselitz Larry Bell Tracey Emin Theaster Gates Antony Gormley Mona Hatoum Damien Hirst Sergej Jensen Rachel Kneebone Jac Leirner Christian Marclay Sarah Morris Eddie Peake Haim Steinbach Liu Wei SP-Arte 2016 Pavilhão Ciccillo Matarazzo Parque Ibirapuera, Portão 3 São Paulo, Brazil
Sergej Jensen, £ 100 Silver, 2016
Bermondsey London
Hong Kong
Mason’s Yard London
AGENDA
RIO DE JANEIRO
MANTRAS DISTÓPICOS
20
Forgotten Mantras- Ana Maria Tavares, até 30/4, Silvia Cintra + Box 4, Rua das Acácias, 104 www.silviacintra.com.br Desde 1997, as palavras invadiram a poética de Ana Maria Tavares e logo ganharam a forma de mantras. Explorando essa última vertente, a individual da artista na Silvia Cintra + Box 4 traz esses lemas distópicos, numa expressão da aura caótica da sociedade contemporânea. Dizeres como “air conditioning life”, “lexotan” e “credit card”, escritos em várias posições e rodeados de ideogramas chineses, são impressos em placas de aço inox quadriculadas (no alto, Forgotten Mantras, 2016) e em grandes peças de dominó.
S Ã O PA U LO
AFINIDADE PLURAL Poemata (É Tudo Poesia) – Montez Magno, até 21/5, Galeria Pilar, Rua Barão de Tatuí, 389 www.galeriapilar.com A seleção de Lisette Lagnado traz um recorte da produção do pernambucano Montez Magno que vai além de sua relação com arquitetura – que a curadora abordou no Panorama da Arte Brasileira de 2013. Desta vez, o foco é a vertente poética do veterano, revisitada em mais de 40 obras produzidas desde 1957 (abaixo, foto da série Cidades Imaginárias, 1972). Nelas, partituras que unem a visualidade da escrita musical ao conteúdo melódico dialogam com poemas, pinturas, mapas celestes e desenhos, criando uma afinidade estética entre suportes tão diferentes.
N OVA YO R K
MUITO ALÉM DO JARDIM Roberto Burle Marx: Brazilian Modernist, 6/5 a 18/9, The Jewish Museum, 5ª Avenida, 1.109 www.thejewishmuseum. org Burle Marx ganha a primeira retrospectiva de sua obra nos EUA, mas não só da vertente pela qual tornou-se mundialmente famoso, o paisagismo. Na mostra, a pluralidade de sua criação aparece em pinturas, projetos, esculturas, cenários de teatro, tapeçaria e joalheria, entre os muitos suportes que explorou em mais de 60 anos de carreira (acima, capa da revista Rio, 1953). Trabalhos de artistas contemporâneos influenciados por ele, como Paloma Bosquê, Dominique Gonzalez-Foerster e Beatriz Milhazes, estão incluídos. Depois da temporada norteamericana, a mostra deve excursionar para o Deutsche Bank Kunsthalle (Berlim) e o Museu de Arte do Rio (MAR). SELECT.ART.BR
ABR/MAI 2016
FOTOS: DIVULGAÇÃO/SÍTIO ROBERTO BURLE MARX, RIO DE JANEIRO
Zoe Zapot • My Tree IX • série My Trees
em breve: Zoe Zapot • My Trees • 8 de Março a 31 de Maio SP-Arte • stand F15 • 2º Pavimento • 7 a 10 de Abril Lançamento Rev. Nacional por JR Duran na SP-Arte • 9 de Abril 16h Vila Modernista - Alameda Lorena 1257 - casa 2 Jardim Paulista - São Paulo - SP + 55 11 3825 0507 instagram.com/galeria_de_babel facebook.com/galeriadebabel galeriadebabel.com
Alfredo de Stéfano Alfredo Nugent Setubal Andrea Micheli Andreas Heiniger Ara Guler Araquém Alcântara Cliff Watts Dimitri Lee Elliott Erwitt JR Duran Julio Landmann Kamil Firat Kevin Erskine Luciano Candisani Luis Gonzalez Palma Mio Nakamura Pablo Boneu Paolo Ventura Simon Roberts Steve McCurry Thomas Hoepker William Miller Zak Powers Zoe Zapot FOTO: WILLIAM GOMES/INHOTIM
AGENDA
RIO DE JANEIRO
22
INDEPENDÊNCIA À VISTA Átomos Espaço Independente, Rua Sara, 18 Átomos (foto abaixo), novo espaço independente da Cidade Maravilhosa, abriu portas no dia 12/3 com a proposta de ser uma plataforma híbrida, unindo vocações de ateliê e experimentação multidisciplinar. É fruto da sociedade de dois artistas, Manoela Medeiros e Romain Dumesnil. Para ocupar no segundo semestre deste ano a sede em Santo Cristo, região portuária do Rio, chamaram os curadores Germano Dushá, João Paulo Quintella e Marta Mestre. Também na linha de espaço indie, o Solar dos Abacaxis vai ocupar o prédio art nouveau homônimo, ainda sem data de estreia. Os sócios Adriano Carneiro de Mendonça, Bernardo Mosqueira e Maria Duarte querem que o local seja sede de um programa de transformação social baseado em arte e educação.
S Ã O PA U LO
REVISÃO CONCRETA REVER_Augusto de Campos, 5/5 a 31/7, Sesc-Pompeia, Avenida Clélia, 93 Sessenta e cinco anos de trajetória de um dos pais da poesia concreta, Augusto de Campos, ganham revisão na mostra exibida pelo Sesc e produzida pelo Instituto de Cultura Contemporânea (ICCo). O diretor artístico do instituto, Daniel Rangel, assina a curadoria. São 75 obras, entre colagens, serigrafias, manuscritos, instalações e vídeos de trabalhos extraídos dos livros Viva Vaia (à dir., Olho por Olho, 1964), Despoesia, Outro e Não, todas de caráter “verbivocovisual” – termo cunhado por James Joyce que reúne os aspectos verbais, sonoros e visuais do poema. SELECT.ART.BR
ABR/MAI 2016
S Ã O PA U LO
GESTO PERFORMÁTICO Isso É Osso Disso – Lenora de Barros, 30/4 a 30/7, Paço das Artes/Oficina Cultural Oswald de Andrade, Rua Três Rios, 363 Organizada pelo Paço das Artes em sua primeira investida fora da sede da Cidade Universitária, a exposição traz 34 obras de Lenora de Barros produzidas ao longo de toda a sua carreira. Vídeos, fotoperformances (acima, Poema, 1979), fotos e trabalhos sonoros selecionados pela diretora do Paço, Priscila Arantes, enfocam a qualidade performática da produção da artista e seu processo de criação, compreendido como um constante work in progress. Na abertura (30/4, a partir das 15 horas), Lenora de Barros em pessoa apresenta a performance Pregação. FOTOS: DIVULGAÇÃO
LIVROS
24
IRAN DO ESPÍRITO SANTO - DESENHOS Cobogó, 2016, 240 págs. R$ 150 Com texto do crítico e curador Jacopo Crivelli Visconti, a publicação reúne mais de 130 obras de Iran do Espírito Santo. Em comum, os trabalhos trazem o papel, suporte presente em toda a trajetória do artista, e uma paleta de cores discreta, que varia especialmente entre preto, cinza e branco. Privilegiando um recorte cronológico, Visconti destaca o viés conceitual e a ironia sutil dos trabalhos de Espírito Santo.
CINEMA EXPLÍCITO: REPRESENTAÇÕES CINEMATOGRÁFICAS DO SEXO Rodrigo Gerace, Edições Sesc-São Paulo / Editora Perspectiva, 2015, 320 págs. R$ 72 Pornografia, obscenidade, sexo, cinema experimental e censura. Esses são alguns dos temas que o sociólogo Rodrigo Gerace, da Universidade Federal de Minas Gerais, aborda em seu novo livro. O autor apresenta uma ampla genealogia das representações do sexo no cinema, transitando dos filmes mudos aos contemporâneos, brasileiros e internacionais. Ao analisar imagens – das implícitas às mais explícitas –, o estudo estabelece uma crítica do erotismo fílmico e sua relação com moral, estética e política.
CONCRETO E CRISTAL: O ACERVO DO MASP NOS CAVALETES DE LINA BO BARDI Org. Adriano Pedrosa e Luiza Proença, Cobogó / Masp, 320 págs. R$ 150 Removidos em 1996 sob o pretexto de danificar obras, os cavaletes de vidro de Lina Bo Bardi retornaram ao Masp em 2015. Criados para a sede do museu na Avenida Paulista, os suportes transparentes quebram paradigmas expográficos e brindam o visitante com novas possibilidades de usufruto do percurso, facilitando relações entre as obras. O livro registra o retorno dos suportes de concreto e cristal por meio de textos e mais de 300 imagens da coleção.
A PELE DE ANNA
ÁGUA ESCONDIDA Caio Reisewitz, Editora Bei, 144 págs. R$ 90 Realizada em parceria com o Instituto Moreira Salles e o Arq.Futuro, a publicação consiste em um ensaio visual dedicado à cidade e suas hidrografias, do fotógrafo Caio Reisewitz. Conhecido por abordar relações entre natureza e urbanidade, o artista viajou a São Paulo, Belém, Bertioga e Santos para registrar galerias subterrâneas, barrancos, rios, córregos e represas. O volume traz um ensaio do antropólogo Antonio Risério e entrevista de Reisewitz ao curador Thyago Nogueira. SELECT.ART.BR
ABR/MAI 2016
Anna Maria Maiolino, Daniel Lins , Cosac Naify, 288 págs. R$ 44,70 O professor e filósofo Daniel Lins, ex-aluno de Gilles Deleuze, investiga obra da artista Anna Maria Maiolino, por meio da ótica do seu antigo professor. Em análises de trabalhos dos anos 1960 até obras atuais, o autor revela a visceralidade de Maiolino. O livro ainda traz um texto da artista sobre seu primeiro contato com o pensador francês e texto de apresentação da crítica espanhola Helena Tatay.
MARCIUS GALAN / SEÇÃO Org. Rodrigo Moura, Cosac Naify, 2016, 244 págs. R$ 33 Uma entrevista e dois ensaios apresentam a obra escultórica e espacial de Marcius Galan em sua primeira monografia. Dividida em três volumes, a publicação organizada pelo crítico e curador Rodrigo Moura tem como fio condutor a ideia de fragmento, conceito extraído da própria obra do artista, e reúne imagens de trabalhos como Seção Diagonal (2008) e Abstração Instável (2012). FOTOS: DIVULGAÇÃO
Oswaldo Vigas é uma figura fundamental da arte latino-americana por ter legitimado o legado cultural da região, mediante a revisão de suas próprias raízes artísticas através do prisma de sua perspectiva global nas artes. Em 1952, Vigas se mudou para Paris, onde passou doze anos se dedicando à pintura. Durante sua estada nessa cidade, ele participou de várias edições do Salon de Mai, mostrando seu trabalho junto com artistas como Jean Arp, Marc Chagall, Alberto Giacometti, Wifredo Lam, René Magritte, Henri Matisse, Roberto Matta, Max Ernst e Pablo Picasso. Em 1964 voltou para a Venezuela, onde ficou morando e trabalhando sem descanso até sua morte, em 2014, com 90 anos de idade. O trabalho de Vigas tem sido apresentado até hoje em mais de uma centena de exposições individuais e sua obra está presente não somente em inúmeras instituições, mas também em coleções públicas e privadas do mundo inteiro. De fato, uma grande exposição antológica está sendo apresentada, desde 2014, nos museus mais importantes do continente americano.
OSWALDO
VIGAS
Anthological 1943-2013
São Paulo April 2nd July 3rd 2016
Traveling exhibition Lima | Santiago de Chile | Bogotá | São Paulo
Oswaldo Vigas. Antológica 1943-2013 é uma grande exposição constituída pelas obras mais representativas de Vigas, com a qual se mostra a sua evolução artística desde 1943 até 2013. Esta exposição itinerante —que já foi apresentada em Santiago, Lima e Bogotá no ano passado— continua conquistando novos territórios no continente americano e em pouco tempo será apresentada no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC) no Brasil, em abril de 2016, e em outras cidades dos Estados Unidos (ainda por serem anunciadas). www.oswaldovigas.com
AGENDA S Ã O PA U LO
DESIGN BRASILEIRO PIONEIRO Design Moderno – Uma Vertente Brasileira, até 29/4, ArtEEdições e Studio Nóbrega, Rua Estados Unidos, 1.162 www.arteedicoes.com.br O design contemporâneo, que incorporou forma artsy a objetos utilitários, só foi inaugurado no Brasil a partir dos anos 1930. A exposição Design Moderno, produzida pela ArtEEdições em parceria com o Studio Nóbrega, mostra essa história por meio de projetos de época de nomes como Jorge Zalszupin, Joaquim Tenreiro e Abraham Palatnik (à esq., armário de sua autoria para Arte Viva, déc. 1950). De quebra, evidencia as relações entre design e artes no período, já que então boa parte dos designers tinha atuação profissional em mais de uma área, como visuais e arquitetura. A curadoria é de Jayme Vargas.
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RIO DE JANEIRO
VETERANA DO POEMA/PROCESSO Tom/Som Dá Vida – Neide Sá, até 8/5, Oi Futuro Ipanema, Rua Visconde de Pirajá, 54 Uma das fundadoras do movimento Poema/Processo nos anos 1960, a veterana da poesia visual Neide Sá ganha mostra de fases variadas de sua carreira na capital fluminense. Poemãos (acima), série de exposições de suas próprias mãos sobre papel fotográfico, é de 1973. Quarenta anos a separam do livro-objeto Ciclo Infinito Vida-Morte (2013), uma peça de metal guardada em caixa de acrílico. Reflexível é formada por um círculo, um triângulo e um retângulo no chão, sobre os quais o público terá uma surpresa ao pisar. A curadoria é de Alberto Saraiva.
S Ã O PA U LO
TECNOLOGIA EM CENA Teatro Santander, Avenida Presidente Juscelino Kubitschek, 2.041 www.entretix.com.br Focando em megamusicais, a mais nova sala de espetáculos da cidade abre as portas com a possibilidade de se adaptar às necessidades de qualquer evento cultural ou corporativo. É o Teatro Santander (à dir.), construído pelos grupos WTorre e Iguatemi com um aparato tecnológico que permite a troca total de sua configuração interna rapidamente. Até as cadeiras podem sumir ou ser dispostas em formato stadium, abrigando até 2.085 pessoas. A acústica é outro ponto alto. Na estreia, está em cartaz o musical britânico We Will Rock You, baseado em canções da banda Queen. SELECT.ART.BR
ABR/MAI 2016
FOTOS: DIVULGAÇÃO/CAIO CARUSO
AGENDA
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RIO DE JANEIRO
TOCHA OLÍMPICA O fotógrafo alemão Marc Ohrem-Leclef usa Primavera Árabe e pintura de Delacroix como referências para série realizada em favelas cariocas “Em 2006, acompanhei notícias da destruição de Qianmen, distrito histórico de Pequim, para os Jogos Olímpicos”, conta à seLecT o fotógrafo alemão Marc Ohrem-Leclef. “Me impressionou profundamente o fato de um evento que deveria encarnar o espírito de unidade provocar diretamente destruição de bairros históricos e remoção de milhares de moradores.” A partir desse primeiro contato com as políticas habitacionais que envolvem a preparação das Olimpíadas, Ohrem-Leclef decidiu acompanhar o processo similar que ocorreu no Rio de Janeiro. O resultado pode ser visto no livro Favela Olímpica, que traz texto do venezuelano Luis Pérez-
SELECT.ART.BR
ABR/MAI 2016
Oramas, curador do Departamento de Arte Latino-Americana do MoMA e ex-curador da 30ª Bienal de São Paulo. A publicação apresenta duas modalidades de retrato. Uma delas traz moradores fotografados em frente às suas casas, as quais foram designadas para remoção pela Secretaria Municipal de Habitação do Rio de Janeiro e marcadas por números pintados com tinta spray. A outra mostra os residentes com sinalizadores de emergência nas mãos, em suas comunidades de origem. Ohrem-Leclef conta que usou imagens clássicas como referências, que variam da pintura A Liberdade Guiando o Povo (1830), de Eugène Delacroix, até registros icônicos da Primavera Árabe. “O gesto e a utilização dos sinalizadores nessas fotografias evocam ideais de libertação, independência, resistência dos moradores, protesto e crise, ao mesmo tempo que se relacionam com o símbolo principal dos Jogos Olímpicos – a tocha”, diz Ohrem-Leclef. CR
PRONTOS PARA O OURO Com a cobertura da Editora Três, você estará sempre a frente nas atualizações sobre os Jogos Olímpicos e Paralímpicos Rio 2016. Nesta edição tem uma nova matéria para você acompanhar. Acompanhe também as versões digitais e os sites das nossas revistas para não perder nenhum lance sobre a maior competição esportiva do mundo. Torne-se o mais veloz acessando as notícias da Editora Três.
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O L I M P Í A DA C U LT U R A L
EM BUSCA DO PRAZER DO JOGO Jogos do Sul, 4/8 a 22/10, Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica, Rua Luís de Camões, 68, RJ
Registro feito durante os I Jogos Mundiais dos Povos Indígenas
durante e depois do megaevento. Nas palavras da curadora, a proposta é “articular o tema dos jogos em sua abrangência mundial, mas sem mencionar
As Olimpíadas são uma grande
exemplos olímpicos. Observar de perto como um
confraternização internacional
evento de caráter internacional modifica uma cidade
realizada por meio de jogos que
e como isso implica diretamente seu cotidiano”.
trazem o espírito de irmandade entre povos e nações.
Para isso, artistas como Anna Azevedo, Marcone
Se é assim, por que precisa de placares, quadro de
Moreira e Paulo Nazareth foram enviados aos I Jogos
medalhas, vencedores e vencidos? Partindo dessa
Mundiais dos Povos Indígenas, que aconteceram entre
indagação, o Goethe-Institut concebeu o projeto
23 de outubro e 1º de novembro do ano passado,
Jogos do Sul, que culmina em uma exposição
trazendo esportes típicos de populações nativas de
entre agosto e outubro no Centro Municipal de
30 países. Lá, entraram numa experiência imersiva
Arte Hélio Oiticica, no Centro do Rio de Janeiro.
de contato com os atletas e de acompanhamento
Com curadoria de Paula Borghi, o projeto debate
do evento para criar os trabalhos que estarão na
também as questões do impacto urbanístico das
exposição. A presença dos artistas no evento gerou
Olimpíadas, com a reorganização e adaptação
também um blog de cobertura abrigado entre os blogs
da cidade para receber as modalidades, e como
do Goethe-Institut (www.blog.goethe.de/jogosdosul),
isso se reflete no cotidiano da população antes,
para quem quiser saber mais sobre o projeto. LPN
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FOTO: SANDRA RODRIGUES/GOETHE-INSTITUT
FOGO CRUZADO
Do morro para o asfalto e da zona sul para a Baixada Fluminense há distâncias que parecem intransponíveis. A população das favelas e do aglomerado urbano da Avenida 36
Brasil, de maioria negra, sente na pele o preconceito herdado do Brasil Colônia, quando seus antepassados foram escravizados. Espacialmente segregado e limitado a funções profissionais subalternas, o povo negro do Rio vive o avesso do cartãopostal e da pretensa democracia entre etnias, tão alardeada como chamariz turístico. Por essa razão, seLecT faz a pergunta que não quer calar:
O QUE FALTA PARA O RIO SER UMA REAL DEMOCRACIA RACIAL? NEGA GIZZA RAPPER, APRESENTADORA DA TV BRASIL E FUNDADORA DA CENTRAL ÚNICA DAS FAVELAS (CUFA)
No Rio de Janeiro, a miscigenação é muito forte e as pessoas não têm claro a qual grupo pertencem. Não conseguem se identificar “sou negro” ou “sou branco”, porque nas escolas, nas instituições e entre os políticos não há discussão sobre essa questão. O racismo é crime no Brasil, mas a pena ainda é muito leve. Com o pagamento de uma cesta básica, a pessoa sai livre. Para chegarmos a essa democracia racial no Rio é preciso falar mais sobre o assunto com brancos e pretos, falar sobre a questão dos escravos e de como se deu a mistura de raças. O IBGE precisa fazer uma pesquisa mais condizente com a realidade, com mais delicadeza de abordagem para as pessoas se sentirem mais à vontade para se identificar como negro. Minha filha é miscigenada, mistura de italiano com preto, então tem o cabelo mais liso, a pele mais clara, como meu filho. Meu filho, que tem 8 anos, identifica-se como negro, mesmo quando comentam sobre sua cor mais clara e cabelo “macio”. Você precisa saber de onde veio para ter clareza de como se identificar. Precisamos discutir mais o assunto, saber que vamos continuar pegando o mesmo ônibus, frequentando os mesmos lugares, que vamos para a zona sul, para a praia, e é preciso saber conviver. Essa é a cara do Rio de Janeiro, é uma cidade da mistura. SELECT.ART.BR
ABR/MAI 2016
FOTOS: DIVULGAÇÃO E DAMIÃO A. FRANCISCO/CPFL CULTURA (MARIA RITA KEHL)
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VIRGINIA DE MEDEIROS ARTISTA 38
Como falar de uma “real democracia racial” hoje sem mergulhar nesse caldo complexo e composto, do qual emerge uma dimensão psicopolítica, micropolítica, biopolítica, afetiva, estética, psíquica, que, através de certos desarranjos e colapsos, denuncia os modos de produção de sentidos e de valores que caducaram? O termo “real democracia racial” está completamente esvaziado de sentido, esgotou-se. O que me interessa é aquilo que se insinua para além ou aquém de uma “real democracia racial”.
BERNARDO MOSQUEIRA CURADOR
A desmilitarização e a profunda remodelação da Polícia Militar do Rio de Janeiro e o cumprimento de um plano de educação que valorize a cultura e a história do povo negro no Brasil são ações fundamentais para tornar possível a construção de uma democracia racial nessa cidade. É preciso aumentar a autoestima, a segurança, as oportunidades e a esperança da juventude negra carioca. O negro é tratado pelo Estado como potencial inimigo interno e não como legítimo sujeito de direito. Enquanto as famílias brancas têm renda média aproximadamente 70% maior do que as famílias negras, os jovens negros são mortos 70% mais do que os brancos. Nossa história resultou em uma estrutura social que nega aos negros a educação de qualidade e o acesso aos melhores postos de trabalho e aos locais dignos de habitação. É preciso que outros agentes do Estado diferentes de uma Polícia Militar treinada para matar possam estar presentes nas comunidades. É dever do Estado aumentar a oferta e a qualidade dos serviços básicos de forma a transformar todas as áreas da cidade em territórios férteis para o crescimentos das crianças e dos jovens negros. É preciso que haja a implementação de uma educação libertadora capaz de inspirar o orgulho negro e de desnaturalizar o racismo institucional além de estender para esses jovens de forma justa as oportunidades de trabalho.
THAMYRA THÂMARA JORNALISTA E IDEALIZADORA DO PROJETO GATOMÍDIA
Nascer de novo (risos). A base da construção do Brasil é racista. O Rio de Janeiro, hoje, é uma cidade só para turistas, e não para os cariocas. Circular pela cidade para ter lazer e cultura é caro, o que contribui para a segregação da juventude negra na periferia, sem poder experimentar a cidade e sua vida. Na favela, o “pau come” e na pista o jovem preto continua sendo esculachado. Recentemente, foi divulgado que a Anatel autorizou as Forças Armadas a usarem Bloqueadores de Sinais de Radiocomunicação (BSRs) durante a realização dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos Rio 2016. Essa medida, se realmente for levada adiante, só vai piorar a violação de direitos que acontece cotidianamente na cidade, porque a gente sabe que, hoje, as mídias sociais fazem esse papel de fiscalizar a ação policial nas ruas e em protestos. Além de ser crime contra o direito à informação e à comunicação. Fazer essa ideia maluca ser barrada já é um pequeno passo para a “democracia racial”. SELECT.ART.BR
ABR/MAI 2016
FOTOS: DIVULGAÇÃO/ CAMILA FONTANA (FLICKR)
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SAL GROSSO
A família cresceu
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SELECT.ART.BR
AGO/SET 2016
MUNDO CODIFICADO
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AT L A S ARTÍSTICO E C U LT U R A L DO RIO
Entre novíssimos espaços criados e sítios arqueológicos redescobertos, o Rio de Janeiro é um universo cultural em permanente expansão. Confira os mapas e deixe-se perder
Legenda FOTOS:
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A Gentil Carioca
Rua Gonçalves Lêdo, 11/17, Centro http://agentilcarioca.com.br
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5
Anita Schwartz Galeria de Arte
Portas Vilaseca Galeria
HAP Galeria 31 Artur Fidalgode Arte
4
Avenida Ataulfo de Paiva, 1.079, Leblon www.portasvilaseca.com.br
Rua Campos, 143, RuaSiqueira Abreu Filho, 11, Jardim Botânico Copacabana www.hapgaleria.com.br www.arturfidalgo.com.br
Rua das Acácias, 104, Gávea www.silviacintra.com.br
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Galeria Nara Roesler
7
Lurixs Arte Contemporânea
Silvia Cintra + Box 4
Representante de nomes como Nelson Leirner (obra em destaque), Miguel Rio Branco, Ana Maria Tavares e Cristina Canale, a galeria promove um diálogo entre artistas consagrados e novos talentos.
Rua José Roberto Macedo Soares, 30, Gávea www.anitaschwartz.com.br
Rua Redentor, 241, Ipanema www.nararoesler.com.br
Rua Paulo Barreto, 76/77, Botafogo www.lurixs.com
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10 Inox Galeria
11 Athena Contemporânea
Avenida Atlântica, 4.240, Shopping Cassino Atlântico, Copacabana www.galeriainox.com
Avenida Atlântica, 4.240, lojas210/211, Shopping Cassino Atlântico, Copacabana www.athenacontemporanea.com
Mais Um Galeria de Arte
Galeria Cavalo
Rua Garcia D’Ávila, 196, Ipanema
Rua Sorocaba, 51, Botafogo www.galeriacavalo.com
12 Mercedes Viegas Arte Contemporânea
13
Rua João Borges, 86, Gávea www.mercedesviegas.com.br
Galeria da Gávea
Rua Marquês de São Vicente, 431, Lj. A, Gávea www. galeriadagavea.com.br
14 Movimento Arte Contemporânea Avenida Atlântica, 4.240, loja211 Shopping Cassino Atlântico, Copacabana www.galeriamovimento.com Sob o comando de Ricardo Kimaid Jr, a galeria se dedica à street art, trazendo artistas emergentes ao mercado. 13 15
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Luciana Caravello Arte Contemporânea
4
Rua Barão de Jaguaripe, 387 Ipanema www.lucianacaravello com.br 5 Fundado em 2011, o espaço reúne artistas com trajetórias, conceitos e poéticas variado. Nazareno, Afonso Tostes, Ana Linnemann e Gisele Camargo integram o time da galeria.
SELECT.ART.BR
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CIRCUITO DE GALERIAS DE ARTE CONTEMPORÂNEA FOTOS: DIVULGAÇÃO
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Galeria 535 – Observatório de Favelas
Voltado para o registro e a preservação da história das comunidades do Complexo da Maré Rua Guilherme Maxwell, 26, Maré www.museudamare.org.br
Galeria com foco nos fotógrafos do Complexo da Maré Rua Teixeira Ribeiro, 535, Maré www.imagensdopovo.org. br/galeria535
8 7
Casa Nuvem
14
Escola de Artes Visuais Parque Lage
Museu do Amanhã
Praça Mauá, 1, Centro www.museudoamanha.org.br
Fundação Eva Klabin
Avenida Epitácio Pessoa, 2.480, Lagoa www.evaklabin.org.br
19
Rua Jardim Botânico, 414, Jardim Botânico www.eavparquelage. rj.gov.br
21
3
Fábrica Bhering
Os seis andares do prédio da antiga fábrica de chocolate abrigam estúdios de artistas, designers e fotógrafos, além de cafés, a editora-livraria Bolha e lojas autorais. Vivian Caccuri e Barrão estão entre os artistas que ocupam o espaço. Rua Orestes, 28, Santo Cristo www.fabricabhering.com
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Espaço Cultural Olho da Rua
Local de eventos, galeria de arte, laboratório criativo e loja. Rua Bambina, 6 - Botafogo www.olhodarua.com.br
4 Largo das Artes | Despina Sobrado reúne ateliês, residências, cursos e galeria, com cinco projetos expositivos anuais. O projeto integra a rede de parceiros internacionais da instituição holandesa Prince Claus Fund. Rua Luís de Camões, 2, Centro www.largodasartes. tumblr.com
10
5
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MAM Rio
Avenida Infante Dom Henrique, 85, Flamengo
Oi Futuro
Rua 2 de Dezembro, 63, Flamengo Rua Visconde de Pirajá, 54, Ipanema www.oifuturo.org.br
Rua 1º de Março, 66 Centro www.bb.com.br/cultura
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12
Capacete
Lastro
Rua 2 de Dezembro, 63, Flamengo Rua Visconde de Pirajá, 54, Ipanema www.oifuturo.org.br
Paço Imperial
Praça XV de Novembro, 48, Centro www.pacoimperial.com.br
SELECT.ART.BR
AGO/SET 2016
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Galeria do Lago – Museu da República
Rua do Catete, 153, Catete www.museudarepublica. museus.gov.br/artecontemporanea
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Caixa Cultural
Avenida Almirante Barroso, 25, esquina com Avenida Rio Branco, Centro www.caixacultural.com.br
Museu da Chácara do Céu
Rua Murtinho Nobre, 93, Santa Teresa www.museuscastromaya.com.br
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Comuna
O espaço define-se como grupo multidisciplinar de gestão e produção cultural conectado com a economia criativa. Desenvolve projetos em rede nas áreas de música, arte, publicações e comida e bebida. Tem forte atuação como hamburgueria/bar. Rua Sorocaba, 585, Botafogo www.comuna.cc
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Centro Cultural dos Correios
Rua Visconde de Itaboraí, 20, Centro www.correios.com.br
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Oi Futuro
Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea
Estrada Rodrigues Caldas, 3.400, Jacarepaguá www. museubispodorosario.com
A instituição tem foco em artes visuais e tecnologia, além de um programa voltado à pesquisa e difusão da poesia visual
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Casa França-Brasil
11
Sem uma sede fixa, surgiu com o objetivo de estreitar relações entre profissionais da arte, em especial da América Latina, e promover intercâmbios culturais. A plataforma digital lastroarte.com reúne artistas, curadores e pesquisadores que disponibilizam material de consulta. www.lastroarte.com
O museu de 65 anos tem um acervo de mais de 6,5 obras, além dos comodatos de Gilberto Chateaubriand e Joaquim Paiva
6
Rua Visconde de Itaboraí, 78, Centro www.casafrancabrasil. rj.gov.br
Misto de espaço cultural – com programação voltada para debates artísticos relacionados à cidade e a questões contemporâneas –, residência artística, espaço expositivo e bar. Rua Benjamin Constant, 131, Glória Hotel/ Residência: Ladeira dos Meireles, 150, Santa Teresa www.capacete.org
Centro Cultural Banco do Brasil
Recém-aberto na histórica Praça Mauá, o empreendimento traz instalações interativas para questionar a noção de futuro
MAR
Praça Mauá, s/n°, Centro www.museudeartedorio. org.br
16
Instituto Moreira Salles
Rua Marquês de São Vicente, 476, Gávea http://www.ims.com.br/ ims/instituto/unidades/
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Studio X
Integrante de uma rede global da Escola de Arquitetura, Planejamento e Preservação da Universidade Colúmbia, de Nova York, o projeto dedica-se a pensar o futuro das cidades. Praça Tiradentes, 48, Centro www.studioxrio.org
Espaço independente de arte e coworking, promove exposições, debates, festas e projetos semanais abertos ao público. É um dos Pontos de Cultura do MinC. Rua Morais e Vale, 18, Lapa www.casanuvem.com
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Museu da Maré
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Casa de Cultura Laura Alvim
Avenida Vieira Souto, 176, Ipanema www.cultura. rj.gov.br/espaco/casa-decultura-laura-alvim
28 MIS (Novo, em Copacabana)
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Previsão de inauguração no fim de 2016 Avenida Atlântica, 3.432, Copacabana
Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica
Rua Luís de Camões, 68, Centro www.rio.rj.gov.br/web/ smc/centros-culturais
CIRCUITO DE MUSEUS E ESPAÇOS CULTURAIS 45
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espaços independentes 13
museus centros culturais 24
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FOTOS: HALLEY PACHECO DE OLIVEIRA, DIVULGAÇÃO, PEDRO ACIOLLY
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Cemitério Pretos Novos
Rua Pedro Ernesto, 36, Gamboa Local de sepultamento precário de cerca de 6 mil corpos de escravos africanos recémchegados ao Porto do Rio, entre 1779 e 1830. Sua localização exata permaneceu um mistério até 1996, quando o casal Merced
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e Petruccio Guimarães começou uma reforma na casa recémcomprada. No local, instala-se hoje o Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos, que faz um trabalho exemplar em prol da memória das populações africanas escravizadas e seus desdobramentos nos dias atuais. Aberto à visitação.
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Centro Cultural Municipal José Bonifácio
Rua Pedro Ernesto, 80, Gamboa Batizado com o nome do Patriarca da Independência, é o Centro de Memória, Pesquisa e Documentação da Cultura Afro-Brasileira. Sua sede, em estilo neoclássico, foi construída em 1877 como uma escola, sendo hoje tombada pelo Patrimônio Histórico do Rio de Janeiro.
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Rua Pedro Ernesto Local onde atuou o negro Horácio José da Silva, vulgo Prata Preta, aclamado chefe das barricadas e trincheiras da então Rua da Harmonia, em resistência à obrigatoriedade da vacina contra a varíola (imposta pelo governo federal e por Oswaldo Cruz).
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Casa de Machado de Assis
Ladeira do Livramento, 77 Não há confirmação oficial, mas fala-se na região que um dos maiores escritores brasileiros, filho do mulato Francisco José de Assis, pintor de paredes e descendente de escravos alforriados, e da portuguesa Maria Leopoldina Machado, passou a infância na Ladeira Nova do Livramento. 8 Pedra do Sal Fim da Rua Argemiro Bulcão, Morro da Conceição Local onde o sal era descarregado de navios por africanos escravizados no século 17, tornou-se, a partir da segunda metade do século 19, ponto de encontro e de festas de estivadores. Aqui surgiram os primeiros ranchos carnavalescos, afoxés e rodas de samba, frequentados por João da Baiana, Heitor dos Prazeres, Pixinguinha e Donga.
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AGO/SET 2016
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Rua Barão de São Félix
Deve ser lembrado hoje como um símbolo da miscigenação, pois foi onde se instalaram as primeiras casas de santo – onde foi iniciada uma geração inteira de mães de santo atuantes na região –, e onde o islamismo foi praticado de forma discreta, em uma construção assobradada onde muçulmanos faziam suas orações.
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Teleférico do Morro da Providência (Antigo Morro da Favela) A data simbólica da fundação da primeira favela do Brasil é 1897, quando veteranos retornados da Guerra de Canudos receberam permissão para construir moradias no Morro da Providência, rebatizado de Morro da Favela, em homenagem a um local de mesmo nome em Canudos (BA). O local já era habitado, desde o início da década de 1890, por movimentos migratórios que se seguiram à abolição. O novo teleférico, que liga a Praça Américo Brum, no alto do morro, à Central do Brasil e à Gamboa, atende os 5 mil moradores da comunidade e propicia uma vista aérea do local.
Jardim Supenso do Valongo
A antiga Rua do Valongo (atual Rua Camerino), que ligava o Cais do Valongo ao Largo do Depósito, foi o centro do comércio de escravos e de artigos relacionados à escravidão, onde se situava o mercado de negros, documentado em aquarelas e gravuras de Debret e Rugendas, em 1835. Em 1906, por ocasião do alargamento da via, foi construído o Jardim Suspenso do Valongo, projetado pelo arquitetopaisagista Luis Rey no Morro da Conceição, dentro do plano de remodelação da cidade pelo prefeito Pereira Passos.
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Cais do Valongo
Praça Jornal do Comércio, Avenida Barão de Tefé Construído em 1811 como local de desembarque de escravos, foi porta de entrada de mais de 500 mil africanos. Remodelado em 1843 para receber a futura mulher de D. Pedro II, Teresa Cristina, sendo rebatizado como Cais da Imperatriz, ainda conserva o obelisco dessa época. Aterrado nas reformas urbanas de 1911 e redescoberto um século depois, em 2011, durante as obras de reurbanização do porto..
MAR
Praça Mauá, s/n°, Centro O Museu de Arte do Rio é uma ponte entre o circuito de arte e o circuito da herança africana. Em suas exposições promove uma leitura transversal da história da cidade, seu tecido social e sua vida simbólica. O museu tem também a importante missão de inscrever a arte no ensino público, por meio da Escola do Olhar. 11
Barricada da Saúde, Revolta da Vacina, 1904
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Igreja de Santa Rita
Largo de Santa Rita, s/n, Centro Abrigava o antigo Cemitério de Escravos Ladinos e Pretos Novos antes de sua remoção para o Valongo, em 1769
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12 Igreja de Nossa Senhora do Rosário Rua Uruguaiana, 77, Centro A antiga Rua da Vala abriga a Igreja do Rosário, sede da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos. O templo católico foi construído lá em 1737 e era frequentado pela comunidade africana.
13 Rua da Quitanda Entre a Rua do Ouvidor e a Rua 7 de Setembro, a Rua da Quitanda era área dos escravos de ganho, que trabalhavam como barbeiros, engraxates ou vendiam frutas e mercadorias em tabuleiros. Davam ao seu senhor parte dos proventos, quando se autossustentavam, ou repassavam toda a féria e eram sustentados. Foram largamente retratados por Jean-Baptiste Debret (1768-1848).
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Praça XV.
15 Ilha de Villegagnon
Ladeada pela Rua 1º de Março (antes Rua Direita), paralela à via que ladeia o Porto do Rio de Janeiro, a praça fixou-se como ponto do mercado de escravos, além de ter sido palco da Revolta da Chibata (22/27 de novembro de 1910), contra as punições físicas sofridas pelos marinheiros.
Acesso pela Sede da Escola Naval e fechada ao público, pode ser vista do alto dos aviões que pousam no Aeroporto Santos-Dummont ou por passeios de barco pela Baía de Guanabara. Abrigou um forte, alvo de inúmeras batalhas desde 1555 até 1895, e foi posto de quarentena aos navios negreiros para evitar a proliferação de varíola e escorbuto. A atual escola foi construída em 1938 sobre as ruínas da fortaleza.
CIRCUITO DA HERANÇA AFRICANA As reformas da Operação Urbana Porto Maravilha trouxeram à tona importantes memórias soterradas na região portuária conhecida como 15 9
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Valongo. Formado pelos bairros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo, o antigo Valongo foi berço do samba
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e da cultura afro-brasileira e tem roteiro histórico e arqueológico
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imprescindível 14 12 13
FOTOS: INSTITUTO MOREIRA SALLES, DIVULGAÇÃO
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PORTFOLIO
Na série Sugar Loafer, realizada desde o ponto de vista transitório da biclicleta, o artista exalta o que há de
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perene e de passageiro sob a pedra fundamental do Rio de Janeiro
MARCOS CHAVES
PA U L A A L Z U G A R AY
PARA O POETA JOSÉ LINO GRÜNEWALD, NELSON RODRIGUES ERA INSUPERÁVEL NO USO DE ADJETIVOS. De fato, ao nomear O Óbvio Ululante sua coletânea de crônicas do jornal O Globo, o escritor definiu o cúmulo da evidência. Conta Ruy Castro, organizador do livro de 1993, que a expressão refere-se ao Pão de Açúcar. Foi criada por Nelson Rodrigues ao comentar o susto que Otto Lara Resende teria levado ao notar a pedra desde a janela de seu carro, no mesmíssimo trajeto que realizava diariamente de casa para o trabalho. “Durante anos, o Pão de Açúcar, de tão óbvio, passou despercebido por Otto. Era como se não existisse. Mas um dia, enfim, Otto o enxergou. Era o óbvio ululante”, teria concluído. Como Nelson Rodrigues, Marcos Chaves faz a crônica cotidiana do que ulula no Rio de Janeiro. “Trabalho com o óbvio”, diz ele a seLecT. Os buracos nas ruas e as próteses SELECT.ART.BR
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POÉTICA DO ÓBVIO
Foto da série Sugar Loafer destaca Hamilton, maranhemse de passagem pelo Rio, em uma de suas casas construídas na Baía de Guanabara
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FOTOS: CORTESIA DO ARTISTA/ GALERIA NARA ROESLER
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A habilidade construtiva dos moradores do Aterro do Flamengo evoca a lembrança de projetos de Hélio OIticica
nas paredes – fraturas e cicatrizes da cidade – são elementos familiares tanto na vida do carioca quanto na obra fotográfica do artista. Mas o óbvio ululante por excelência, o Pão de Açúcar, é de fato seu grande tema, explorado com esmero e à exaustão na série Sugar Loafer (iniciada em 2014 e em processo). Loafer, explica o artista, é a tradução para o inglês que o Google Translator dá para o francês flâneur, sujeito relativo ao verbo flâner, que significa passear, vagar. Exaltado na prosa de Baudelaire e na crítica de Walter Benjamin, o flâneur deambula pela cidade a fim de experimenta-la. Observador privilegiado da vida moderna parisiense do fim do século 19, se relaciona, com prazer voyeurístico, com os moradores da cidade em suas atividades diárias. A flânerie é antepassada das andanças de João do Rio pelas ruas do Cais do Porto carioca nos anos 1910 e da deriva embriagada de Hélio Oiticica pelas SELECT.ART.BR
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A BICICLETA COMO VEÍCULO DE CRIAÇÃO vias labirínticas da Favela da Mangueira, nos anos 1960. Ainda que a insegurança limite o disfrute do espaço público, o Rio de Janeiro sempre favoreceu a deriva. Este é o dispositivo disparador da atividade artística de Marcos Chaves de um modo geral e, especificamente, em Sugar Loafer. A série foi desenvolvida sobre duas rodas, ao longo do percurso que o artista faz de sua casa, em Santa Teresa, até Ipanema. “A bicicleta tem a velocidade perfeita para a observação”, diz. Desde um ponto de vista transitório, ele se relaciona com o que há de perene na paisagem – o Pão de Açúcar – e passageiro – as vidas e as coisas que passam sob a pedra. Em trânsito, enquadra o grande ícone da cidade entre as traves de um gol da Praia de Botafogo; ou o obstrui atrás das grades de aço de uma arquibancada em construção. No trajeto, ele reconhece os carroceiros, os andarilhos, os
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moradores de rua. Descobre seus hábitos alimentares – pescar marisco nas pedras do quebra-mar e comer ali mesmo, em frente à Avenida Rui Barbosa – e suas invejáveis habilidades construtivas. Assim ele conheceu Hamilton, um maranhense de passagem pelo Rio, que lhe chamou a atenção pela engenhosidade de seus ninhos e suas tendas, fabricados com objetos catados. Fotografou três de suas casas, derrubadas e reconstruídas a cada batida policial. Da casa-totem, com a cópia da cadeira de Charles Eames pregada com fita durex a uma coluna, à casa-barco de isopor com barraca de sol, passaram-se semanas. Seu trânsito pelo Rio culminou com a casa-casulo, um objeto que o artista identificou como “helioiticiquiano”, em referência aos Ninhos (1969) que Hélio Oiticica criava em espaços arquitetônicos e urbanos. “Miséria? Que miséria?”, pergunta-se Marcos Chaves. Se o Rio de Janeiro é, desde sua fundação, ums cidade de para-
doxos, da beleza que encobre uma pobreza sem-fim, Sugar Loafer inverte o jogo. Coloca a pedra fundamental como pano de fundo do grande teatro da vida como ela é. Enfocadas em primeiro plano – na praia, na água ou no quebra-mar – cenas que poderiam ser vistas como miséria e precariedade tornam-se liberdade e invenção. Caso da academia de ginástica ao ar livre do Aterro –, com seus equipamentos feitos com baldes, latas e cimento – criada e conservada por uma cooperativa da praia. O espaço entrou para a série Sugar Loafer e foi reinterpretado pelo artista na instalação Academia (2015), uma espécie de readymade das academias ao ar livre, feita com esculturas de cimento, tubos de ferros, madeira e tapewares. “A prefeitura instalou uma academia-padrão lá ao lado, mas ninguém usa. Só querem saber da academia dos Flintstones”, ri o artista, para quem o humor é uma arma eficaz de mudança de comportamento. FOTOS: CORTESIA DO ARTISTA/ GALERIA NARA ROESLER
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Se o Rio de Janeiro é conhecido como um destino erótico, o Pão de Açúcar entra como um fator importante nessa consideração, diz Marcos Chaves
Vista obstruída do Pão de Açúcar, em foto da série Sugar Loafer, de Marcos Chaves
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Fotografias colocam o Pão de Açúcar como um fato estético que exerce grande poder de sedução
CIDADE ERÓTICA Opina o crítico Paulo Herkenhoff que o Pão de Açúcar é um problema pictórico antigo da cidade – de Taunay a Tarsila do Amaral, passando por Thimóteo da Costa e Guignard. Entende-se que é problema porque é assunto de relevância; um fato-estético da geografia que exerce grande poder de atração sobre quem passa por ali ou sobre ele ouve falar. Se o Rio de Janeiro é mundialmente conhecido como um destino erótico, o Pão de Açúcar entra como fator importante para essa consideração, coloca o artista. “Para mim, ele sempre foi um aliado, uma solução”, garante. O grande ícone já protagonizara um clássico de sua obra, “Eu Só Vendo a Vista” (1998) – para Herkenhoff o trabalho mais político de Marcos Chaves, “que aborda o colonialismo interno no País e no Rio em sua resistência ao capital imobiliário”. Depois, o Pão de Açúcar foi a imagem de abertura do vídeo Day and Nightshots (Oferta e Procura) (2015), exibido em Destricted.br, projeto coletivo sobre sexo, erotismo e pornografia, apresentado no Festival do Rio, em 2010, e n Galpão Fortes Vilaça, SP, em 2011.
Na lenda do gigante que jaz adormecido nas montanhas do Rio – e que inspirou várias gerações de viajantes, do gravurista inglês John Landseer (1769-1852) à propaganda do uísque Johnnie Walker (2011) –, o Pão de Açúcar é o pé dessa figura deitada, enquanto a Pedra da Gávea é a cabeça e o Corcovado, o pênis. Mas no vídeo de Marcos Chaves, ele é promovido: assume a forma de um pênis e torna-se símbolo da paixão que irrompe no calor das praias cariocas, debaixo de calções apertados. Pé, pinto ou peito, o Pão de Açúcar de Marcos Chaves é a confirmação de que a percepção que o flâneur tem da cidade passa sempre pelo apelo erótico das coisas. Não podemos esquecer outro enamorado, desta vez um paulista, Oswald de Andrade, quem cantou pela primeira vez a poesia que há “no Pão de Açúcar de Cada Dia”. Depois veio João Bosco musicar o poema (Escapulário, Pau-Brasil, 1925) e completar que, “diante da pedra, são todos iguais”. Assim são as casas, os casulos, os carroceiros e os atletas abraçados diante da pedra e da câmera de Marcos Chaves. Óbvios, e todos iguais. FOTOS: CORTESIA DO ARTISTA/ GALERIA NARA ROESLER
ENSAIO
BONITO POR 56
ARTIFÍCIO Capital das imagens, o Rio de Janeiro naturaliza as mudanças na paisagem, transformando toda intervenção humana em marca registrada do lugar GISELLE BEIGUELMAN
A modificação sistemática do território faz parte da retórica do urbanismo desde que o Barão Haussmann mandou disparar a primeira marretada na Paris do século 19. Mas, no Rio de Janeiro, essa prerrogativa ganhou tons muito particulares. Na cidade que já nasceu maravilhosa, toda intervenção humana torna-se a marca registrada do lugar. É como se a paisagem, sempre transformada, reagisse de uma forma tão integrada às loucuras da engenharia, que ela parece nunca ter sido outra. E isso sem esquecer das dores dos processos de exclusão embutidos que suas sucessivas reformas trouxeram. Duvida? Faça o teste. Seria possível ainda imaginar Copacabana como uma faixa estreita de areia coberta de restinga? O Flamengo invadido pelas ressacas do mar, antes do aterro? As águas da Baía de Guanabara batendo diretamente nas rocas que circundam os morros da Urca e do Pão de Açúcar, inviabilizando a construção do bairro? E como conceber a Floresta da Tijuca como uma mata que não é original? Ou lembrar que a Praça Mauá era praia? O Rio é uma cidade que vive no futuro do presente. Nada mais emblemático dessa situação que ter um museu inteiramente dedicado ao porvir, o Museu do Amanhã. Que outro luSELECT.ART.BR
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gar no mundo poderia ser mais adequado à paradoxal ideia de que “o amanhã é hoje”? Para quem nunca se acostumou ao incômodo das britadeiras e tratores que cruzam a zona portuária carioca há alguns anos, imobilizando o trânsito e perturbando o som, um aviso desalentador: sempre foi assim. Desde a sua fundação, a cidade é palco de intervenções que movem montanhas, encolhem mares e aterram praias. Não só sua paisagem física foi modificada ao longo dos séculos, mas também sua paisagem humana. Da presença indígena ficou apenas o gentílico carioca, que corresponde ao nome da maior aldeia tupinambá que ocupou o território do Rio antes do Rio. Desde os seus primórdios registrada em gravuras e desenhos de viajantes estrangeiros e pintores, a história da cidade confunde-se com a história da fotografia, do daguerreótipo à Realidade Virtual. Na vertigem que apaga a natureza original para renascer como confluência da técnica com o mar e a mata, o Rio impõe-se como capital das imagens e da privatização do olhar.
Visitante utiliza óculos de Realidade Virtual para acessar imagens da mata Atlântica na obra Phantom (Kingdom of All the Animals and All the Beasts is My Name), de Daniel Steegmann (2015)
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FOTOS: CORTESIA MENDES WOOD DM
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MORRO DO CASTELO Pode-se dizer que o Rio de Janeiro foi refundado duas vezes no mesmo lugar: o Morro do Castelo. A primeira, no século 16, quando o Castelo se torna a referência da ocupação colonial, depois da expulsão dos franceses pelos portugueses, no atual bairro da Urca, marco original da sua fundação. Outra, no início do século 20, quando o morro é desmontado. Hoje um dos ícones desse vasto terreno é o Aeroporto Santos-Dumont. Ele divide a esplanada com prédios coloniais, como a Santa Casa de Misericórdia e o Palácio Capanema, um dos marcos da arquitetura moderna brasileira. Até o fim do século 17 concentrava a vida administrativa e social carioca. Com a intensiSELECT.ART.BR
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ficação do comércio marítimo, essas funções se deslocam para a área da atual Praça XV. Na prefeitura de Pereira Passos, em 1904, parte do morro é demolida para a abertura da Avenida Central (hoje, Rio Branco), combinando políticas sanitárias com processos de higienização social. Em 1920, mais de 4 mil pessoas moravam ali em cortiços e habitações precárias. A pretexto da realização da Exposição Internacional em Comemoração ao Centenário da Independência (1922) começa a derrubada final, que implicou a erradicação dos miseráveis da área. Finda a exposição, ficou o vazio da Esplanada do Castelo e uma cidade urbanisticamente fraturada entre ricos e pobres.
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Na página anterior e abaixo fotos de Augusto Malta documentam a demolição do Morro do Castelo em 1921 e em 1922. Nesta página, à direita, Copacabana, atual Posto 6, em 1895, com o Morro Dois Irmãos ao fundo, em foto de Marc Ferrez
COPACABANA Os tupinambás a chamavam de Sacopenapan, que quer dizer caminho dos socós, um tipo de ave comum nas restingas que cobriam suas areias. A região era inóspita, de difícil acesso e a praia cortada por três pequenos morros de granito. Dois estão ocultos pelos prédios e o outro deu lugar à pérgula do Copacabana Palace. Foi só a partir do começo do século 20 que a famosa praia foi sistematicamente ocupada, beneficiando-se da nova infraestrutura urbana. Contribuiu para isso também a introdução dos novos comportamentos e hábitos de saúde que incorporavam o banho de mar, ainda que em horários controlados pela municipalidade, em nome do decoro. A inauguração do Copacabana Palace, em 1923, transformou-a em símbolo do turismo e espaço elitizado. Ao longo das décadas seguintes, o adensamento populacional é intenso e a orla modifica-se substancialmente com o erguimento de prédios e mais prédios. Nos anos 1970, sofre sua mais radical interferência. A Avenida Atlântica é alargada e duplicada com a implantação de um aterro hidráulico que resultou na “engorda” de suas areias. Nessa época, o bairro já havia se tornado um microcosmo da cidade, concentrando de inferninhos a hotéis de todos os portes. Hoje é o bairro mais populoso da zona sul e prepara-se para receber a nova sede do Museu da Imagem e do Som. Com arquitetura do escritório Diller Scofidio + Renfro, o projeto promete ser não apenas acervo, mas um novo mirante à beira-mar. Um museu do depois de amanhã. FOTOS: ACERVO FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL (FOTOS DE AUGUSTO MALTA); ACERVO FOTOGRÁFICO DO INSTITUTO MOREIRA SALES
Para quem nunca se acostumou ao incômodo das britadeiras que cruzam a zona portuária há anos, um aviso desalentador: sempre foi assim. Desde a sua fundação, a cidade é palco de intervenções que movem montanhas
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CORCOVADO Foi na Floresta das Paineiras, no Maciço da Tijuca – Paineiras, Corcovado, Tijuca, Gávea Pequena, Trapicheiro, Andaraí, Três Rios e Covanca – que, no século 17, se construiu o Aqueduto da Carioca. Primeira grande obra pública do Brasil, ele levava as águas da nascente desse rio, no sopé do Corcovado, até o centro da cidade velha. Hoje em grande parte subterrâneo, o Rio Carioca era a fonte de água limpa que abastecia os habitantes do Rio colonial. Com 710 metros de altura, o Corcovado domina a paisagem da cidade. No topo desse morro, em 1931, foi implantado o monumento ao Cristo Redentor, que hoje se confunde com a própria identidade da cidade. A esse monumento a artista Rosângela Rennó dedicou A Última Foto (2006). Nessa obra, toda a história da fotografia e sua relação com a indústria turística contemporânea são questionadas. Para realizar seu pro-
jeto, Rennó convidou 43 fotógrafos profissionais para registrar o Cristo Redentor, usando câmeras mecânicas de formatos diferentes, que ela havia colecionado ao longo de vários anos. O projeto consiste em 43 dípticos, cada qual pareando as câmeras com a última foto que haviam documentado. Concebido na época em que a Kodak anunciou que deixaria de vender os filmes tradicionalmente usados nas câmeras, esse projeto levantou questões perturbadoras: essas câmeras são capazes de armazenar a história da fotografia, cuja direção foi modificada pela digitalização das imagens? Além disso, com a crescente privatização da natureza e do que podemos ver, por quanto tempo a paisagem carioca continuará acessível aos nossos olhos? Chegará o dia em que a visão Rio de Janeiro só será possível com poderosos óculos de Realidade Virtual, como sugere Phantom (2015) de Daniel Steegmann?
À direita, Rosângela Rennó, A Última Foto (2006), díptico com foto de Zeca Linhares feita com câmera Contax III. Nesta página, foto de Augusto Malta retrata ressaca na Praia do Flamengo, no começo do século 20, antes da implantação do aterro nos anos 1950
FOTOS: CORTESIA GALERIA VERMELHO; ACERVO FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL
PORTFÓLIO
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O ARTISTA
Igor Vidor coloca-se
ENQUANTO
fisicamente em processos
ATLETA
de transformação na elaboração de projetos artísticos com engajamento social
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Alto verão, fim de semana no Parque do Flamengo. As pistas das vias de alta velocidade do Aterro estão interditadas para carros, abrindo espaço para a prática de esportes ao ar livre. Tudo é diversão, até que quatro garotos sem camisa passam correndo a toda velocidade. Sob gritos de “pega, pega”, eles se separam e cada qual desaparece em um percurso entre as palmeiras, os abricós-de-macaco e as abundantes espécies que fazem os caminhos sinuosos do parque idealizado em 1965 por Lota de Macedo Soares, com paisagismo de Burle Marx. A cena não é incomum. Confunde-se à rotina de esportistas ou às correrias que se seguem aos furtos, que nos últimos anos fazem a fama do local. No entanto, o evento descrito não era uma coisa nem outra, mas uma ação promovida pelo artista Igor Vidor com três jovens que trabalham com malabarismos nos semáforos da cidade.
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“Um mês antes, eu havia presenciado uma perseguição na Glória”, diz o artista à seLecT. “Quatro policiais, dois agentes oficiais e uma viatura do conselho tutelar abordaram um menino, que se recusou a acompanhá-los e escapou. Ele não havia roubado nada, era um jovem negro e levava bolinhas de tênis.” O acontecimento presenciado veio ao encontro de uma pesquisa que ele desenvolve com jovens em situação de risco, moradores de rua, em sua maioria negros ou pardos. A ação Corra Como se o Sol Pudesse Alcançar Você (2015) foi criada especificamente para observar as reações geradas diante dos corpos negros em movimento. O título da ação é uma apropriação do nome do programa esportivo de verão do Parque do Flamengo. “Apesar de estarem usando tênis novos e de cada um deles ter colocado sua melhor bermuda, uma concentração de garotos negros correndo sempre gera uma comoção”, diz Vidor, que comprou tênis para os garotos e também participou da ação. “Me pergunto o que legitima uma simples corrida, quais instâncias simbólicas cercam esse tipo de conclusão sobre o corpo negro em movimento.” Igor Vidor durante treino de condicionamento físico para o projeto LPO (Levantamento de Peso Olímpico, 2016), a ser realizado durante as Olimpíadas
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FOTOS: CORTESIA DO ARTISTA/ GALERIA LUCIANA CARAVELLO
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A CIDADE MOVE “A cidade do Rio me move muito”, diz esse paulista de 28 anos, que estava morando em Londres, quando foi convidado a integrar a equipe de educadores do Museu de Arte Rio. A performance do Parque do Flamengo tem relação direta com sua formação pessoal e histórico profissional. Ele foi atleta profissional de futebol até os 18 anos e depois trabalhou por seis anos em projetos educativos de instituições como a Bienal de São Paulo, o Itaú Cultural e o Instituto Tomie Ohtake (SP) e a Whitechapel Gallery (Londres). “Comecei a jogar aos 7 e a maioria dos meus amigos era de negros”, diz ele, que atuou no Corinthians, no São Caetano e no Juventude de Caxias (RS), onde foi convocado para a Seleção sub 18. Devido a políticas especulativas e desfavorecimentos provocados pela corrupção no futebol, Vidor foi impedido de participar do campeonato e acabou dispensado do clube. “Passei a maior parte da minha vida moldando meu corpo diariamente para uma única situação, e ver esse tipo de coisa acontecer era inadmissível.” Essa experiência envolvendo fracasso e desilusão foi decisiva para moldar a nova etapa. “Pra falar a verdade, acho que meu primeiro trabalho de arte foi abandonar o futebol”.
ROLAM AS PEDRAS Metáforas da queda e do perigo surgiram logo nos primeiros trabalhos. Na individual intitulada O Sublime Como Possibilidade Diante da Morte, decorrente de residência artística no Ateliê Aberto (Campinas, 2011), Vidor apresentou dois vídeos que exploram as relações entre êxtase e terror na prática de esportes radicais. O texto Êxtase Sublime, em que o crítico Guy Amado discorre sobre a potência simbólica e visual do surfe de ondas gigantes, e publicado na edição 10 de seLecT (fev/ mar de 2013), foi usado pelo artista no trabalho de conclusão do Bacharelado em Artes Visuais no Centro Universitário Belas Artes, em São Paulo. “Diz muito a respeito do que tenho pesquisado e, na época, foi um propulSELECT.ART.BR
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Polaridades como vantagem e desvantagem;, sucesso e fracasso pautam a série Anywhere is My Field (2016),
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sor pra outras coisas.” As noções de sucesso e fracasso, vantagem e desvantagem – instâncias naturais do mundo do esporte –, continuam a pautar sua pesquisa. Elas se materializam em Anywhere is My Field (2016), projeto em que desenha campos de futebol em encostas de terrenos íngremes. O trabalho evoca a performatividade do jogo de futebol a partir das características do relevo. Traduz as inquietações do artista, enquanto jogador, ao comparar as topografias dos campos profissionais e de várzea. Mas essa obra também elabora uma base simbólica mais complexa. Ao desafiar o corpo do jogador a reagir às leis da gravidade, Vidor processa o mito de Sísifo, o titã condenado por Zeus a levar uma rocha sobre os ombros até o topo de uma montanha. Ao chegar lá, a pedra sempre volta a rolar para o vale, levando o titã a reiniciar a tarefa, ad infinitum.
FORÇA DE RESISTÊNCIA Anywhere is My Field executa, em poucas linhas traçadas em terrenos acidentados, uma ideia de performance. O trabalho se dá como suspensão da realidade, ao promover uma performance imaginária, onde a ação é apenas sugerida e é lançada a pergunta: que desempenho teria o corpo em plena ribanceira? O corpo ganha protagonismo novamente no trabalho LPO (Levantamento de Peso Olímpico) – título provisório –, que está em pleno desenvolvimento na Vila Autódromo, comunidade ao lado do Parque Olímpico, na Barra da Tijuca, zona oeste do Rio, onde se concentrarão as principais atividades dos Jogos Olímpicos. Sísifo continua atuante aqui. O trabalho tem como eixo o campo de alta-tensão gerado entre moradores e forças públicas, desde que se iniciaram as remoções e desapropriações daquela comunidade, em 2013. As histórias por trás de cada casa demolida, detalhes raramente lembrados nos planos de reformas urbanas e nas estatísticas, serão pano de fundo da ação de Igor Vidor, que deve ganhar a forma final de um filme-instalação na época das Olimpíadas. A força de SELECT.ART.BR
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Metáforas do perigo, da queda, do desafio e do fracasso aproximam o trabalho de Vidor com o universo do esporte vontade das cerca de 3 mil pessoas da comunidade original de Vila Autódromo, que vêm resistindo a sucessivos intentos de remoção ao longo dos últimos 20 anos, é traduzida pelo artista na forma do levantamento de pesos. O trabalho consiste em fazer 2.833 levantamentos de peso, no interior das casas que não foram demolidas. Esse era o número de pessoas que haviam sido removidas até a realização deste texto, quando Vidor conversou com seLecT. “Estou treinando há seis meses. Ganhei 6 quilos de musculatura e tenho hoje apenas 9% de gordura no corpo”, diz. Em LPO (2016) entra em ação um dispositivo de transferência socio-corporal. O trabalho se dá no embate físico do artista com o contexto social que ele quer abordar, na medida em que ele executa no próprio corpo a problemática vivida pelos moradores da zona em conflito. E, ao modelar seu corpo, de certa forma ele retoma os anos de treinamento intenso para a prática do futebol. A incorporação da realidade social, e a sua manifestação em performance, se dá ainda em outro trabalho em processo, que será apresentado na exposição Linguagens do Corpo, a partir de 17 de maio, no MAR. Com o título provisório de Corpo Fabélico (2016), o trabalho envolve 80 jovens de Vila Aliança, comunidade localizada no bairro de Bangu. Escalados do projeto de futebol Craques da Vila, os garotos estarão envolvidos em uma corrida, novamente sob os gritos “pega, pega!”. Só que, desta vez, seus movimentos serão condicionados em círculos, no espectro da Praça Mauá, o coração do novo Porto Maravilha.
À direita, obra da série Anywhere is My Field (2016); abaixo, frame do vídeo Corra Como Se o Sol Pudesse Alcançar Você (2015), realizado durante ação no Aterro do Flamengo
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FOTOS: CORTESIA DO ARTISTA/ GALERIA LUCIANA CARAVELLO
CURADORIA
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FLUXOS,FIXOS E FLUÍDOS Esta frase serigrafada no vidro do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro pelo artista Laercio Redondo, em sua recente exposição na cidade, atrita com o que vemos através: o deslumbramento moderno diante das curvas da natureza, que aqui é verde e concreta. Existe um Rio de Janeiro, um projeto de Rio de Janeiro, um passado do Rio de Janeiro. Tudo em uma linha só, cheia de C A N T O S. Desgovernada, cheia de fraturas. Assim a cidade avança sobre a paisagem natural, em uma espécie de confluência urbana do absurdo. As dobras, ladeiras e cantos são o meio perfeito para a proliferação de microrganismos perfeitos dentro da cidade imperfeita. Nos encontros fortuitos que surgem nos trânsitos e fluxos dessa cidade é que se instala o trabalho de Aleta Valente. Por meio de seu avatar no Instagram, EX_ MISS_FEBEM, a artista apropria-se do espaço virtual e faz dele arena, devir, cidade. O instantâneo, forte componente da vida social carioca, é a via para a materialização de um trabalho que se faz de unha-sangue-carne-osso – algo ainda estranho ao mundo digital envernizado. Não por acaso, ela foi banida do Facebook diversas vezes, em razão de denúncias de haters engajados (ou SELECT.ART.BR
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O espaço público como componente ativo no trabalho de Aleta Valente, Cecilia Cipriano, Guga Ferraz e Opavivará!
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FOTOS: SERGIO ARAUJO
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com muito tempo livre) e de diretrizes impostas por pudores corporativos. No Instagram, o tempo é outro, mais colado à RL (realidade). Com o celular como dispositivo e uma plataforma como meio, o escoamento de imagens é mais natural. A superexposição fortalece os sinais vitais da EX_MISS_FEBEM. Os excessos conferem-lhe movimento. A profusão induz a um descontrole (ou seria fluidez?) necessário. E o trabalho de Aleta Valente se faz na diluição do sujeito na experiência, na fluidez corpo-cidade, quando os fluxos urbanos se confundem com os fluidos do corpo. Sedução e sexualidade desentopem veias. Quando gera um meme com uma foto de uma “quentinha” sobre seu corpo seminu, ela avança sobre o imaginário da figura feminina no Rio de Janeiro, escancarando os pontos de vista arcaicos que aparecem nos comentários. O trabalho faz-se também em suas respostas e nos diálogos sem travas que se desdobram na interface do dispositivo, onde pulsa um corpo vulnerável e exposto aos desfechos da cidade. SELECT.ART.BR
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Acima, frame de Volcán (1979), filme super-8 de Ana Mendieta. À direita, O Triângulo Impossível da Judith Negra e a Sedução do Útero da Razão (2012), de Thiago Martins de Mello
APAGAR O FIXO
A tomada do espaço público como componente ativo do trabalho também acontece no coletivo Opavivará!, para quem a rua é lugar de criação. Seus projetos propõem arranjos, gestos, ritos que potencializam a experiência no espaço. Como os chuveiros instalados a céu aberto (Chuvaverão, 2014), que movimentam as águas paradas do Rio de Janeiro. Na experiência do banho coletivo, eles alternam prática íntima e situação pública. Sem essas dinâmicas que reviram a determinação da ordem urbana estanque, estaríamos fadados “à anulação daquilo que faz das vidas um evento singular no mundo”, como diz Moacir dos Anjos no texto Três Coisas Que Eu Acho Que Sei Sobre Opavivará!. Em Pula Cerca (2009), oito pares de escadas apontam o conflito de interesses no espaço público da Praça Tiradentes. As grades, hoje retiradas, geravam, na época em que o trabalho foi instalado, um impedimento de uso pela população. Com uma simples escada, o Opavivará! anulava a incongruência irônica de um espaço público com restrições ao uso público, suprimindo a estrutura fixa e propondo um novo fluxo.
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FOTOS: SERGIO ARAUJO
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Acima, frame de Volcán (1979), filme super-8 de Ana Mendieta. À direita, O Triângulo Impossível da Judith Negra e a Sedução do Útero da Razão (2012), de Thiago Martins de Mello 45
DEMARCAR O ESQUECIMENTO
Na contramão do apagamento e do esquecimento, Guga Ferraz desenvolve uma pesquisa sobre formas de materializar (tornar visíveis) geografias transplantadas do Rio de Janeiro. Ele parte das operações de remoção e movimentação de terra, que, ao longo da história, redesenharam o território da cidade em nome do desenvolvimento. Oitenta anos depois da passagem de Le Corbusier pelo Rio – deixando a proposta de um viaduto sinuoso e habitável –, o entendimento da cidade pelo poder público continua debruçado na opção rodoviária e na supressão da paisagem natural pelo cimento. Vide o projeto da via expressa Transolímpica, na Barra da Tijuca, zona oeste do Rio, onde se concentram as obras para as Olimpíadas. Em Até Onde o Mar Vinha. Até Onde o Rio Ia. (2014), Guga Ferraz faz da ausência, presença. O projeto consiste em demarcar, com 3 toneladas de sal grosso, os limites da extinta Praia da Lapa, que tocava o Morro do Castelo. Foi ali que os portugueses expulsaram os franceses e retomaram o controle da costa brasileira, em 1560. “A pé, dali, era impossível avançar porque dariam naqueles mesmos pântanos que se interpunham entre a zona do delta e o Morro do Castelo. E as naus, isoladas na baía, não tinham como enfrentar a fortaleza.”, anota o escritor Alberto Mussa, em A Primeira História do Mundo (Record, 2014). O morro do Castelo era, portanto, uma geografia decisiva, subtraída a partir da vontade do Estado, em 1922. FOTOS: CORTESIA GALERIE LELONG, NEW YORK; THE ESTATE OF ANA MENDIETA COLLECTION , LL; CORTESIA MENDES WOOD DM
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CORTE ABERTO
Talvez o mais grave na história das alterações da paisagem urbana não sejam as remoções de terra, mas das casas e das famílias, atropeladas por projetos urbanísticos. Como revitalizar algo que está vivo permanece um mistério. Entre 2012 e 2015, a artista Cecilia Cipriano frequentou o Morro da Providência, localizado entre os bairros Santo Cristo e Gamboa, na zona central do Rio de Janeiro, onde um projeto de teleférico fazia parte da Operação Urbana Consorciada Porto Maravilha. Cipriano acompanhou o processo de marcação das casas pela Secretaria Municipal de Habitação, que aconteceu com a pichação dos muros das casas com a sigla SMH. Ao contrário dessa tática embutida de terror psicológico, a artista desenvolveu uma relação baseada no afeto. Em diálogo com os moradores e em sintonia com suas vontades, propôs uma alteração arquitetônica nas casas condenadas ao desmanche. O Corte (2012-2015) permitiu novas perspectivas da cidade. “Pelas frestas abertas em dezembro de 2012, conseguimos dar o zoom na cidade atual, numa cidade refém do mercado, em detrimento do direito de seus cidadãos”, escreve Ana Hupe, artista e curadora da exposição resultante do projeto. A prática de Cecilia Cipriano é feita de visibilidade e não de supressão. Soma novos fluxos a espaços pulsantes. Adere à lógica das justaposições que determina a complexidade dessa metrópole. Em uma fase de intensas e profundas transformações urbanas está em jogo o estado das coisas na cidade.
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FOTOS: VIRGINIA DE MEDEIROS, CORTESIA GALERIA NARA ROESLER:
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Da Louraça Belzebu de Fausto Fawcett às altas temperaturas do Piscinão de Ramos captadas pelas lentes de Julio Bittencourt, autores exaltam e transformam em poesia a face mundo-cão da Cidade Maravilhosa SELECT.ART.BR
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RIO LADO B
L U C I A N A PA R E J A N O R B I AT O FOTOS J U L I O B I T T E N CO U RT G R AV U R A S O S WA L D O G O E L D I
E M U M P O N TO A N I M A D O E D E A LT Í S S I M A S TEMPERATURAS, no imenso conglomerado urbano às margens da Avenida Brasil, o fotógrafo Julio Bittencourt foi buscar material humano para suas lentes. Mais precisamente, no famoso Piscinão de Ramos, um lago artificial com 26.414 metros quadrados e 30 milhões de litros de água salgada, construído ao lado da Baía de Guanabara, próximo ao Aeroporto do Galeão. Criado em 2001 como alternativa à poluída Praia de Ramos, está fechado para manutenção desde o fim de 2015. Num passado mais glorioso, chegou a receber 60 mil pessoas por fim de semana e foi cenário de novela da Globo, mas seu estado de conservação deteriorou de tal forma que a poluição se equiparou à da praia original, numa evolução em que o descaso do poder público alimentou o descuido da população local. Serviu de inspiração à nova praia artificial do Parque Madureira, inaugurada em outubro passado pela prefeitura do Rio. FOTOS:
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Sega, still de Cinéma Casino. Em colaboração com Benjamin de Burca, 2015Ti nullori andebissunt ex eossitat. Conseni mperero
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Acima, Perigo no Mar (1955), de Oswaldo Goeldi
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O fotógrafo paulistano soube do Piscinão de Ramos por uma reportagem na ocasião de sua inauguração, quando ainda nem sonhava que viria a morar colado ao local. “Fotografei lá durante quatro anos, entre 2009 e 2012. Nos dois primeiros anos, ficava indo e vindo da zona sul, mas perdia muito tempo nos deslocamentos, no trânsito”, conta à seLecT. Na época estava saindo de projetos enfocando os moradores da ocupação do Edifício Prestes Maia (SP) e queria trabalhar em algo mais espontâneo. Uma praia foi o lugar perfeito. “Praia fala muito sobre cultura, é onde as pessoas são iguais. O Piscinão era ainda mais interessante, por não ser propriamente uma praia. A cultura ali é mais real, mais próxima da essência do Brasil.” As fotografias de Bittencourt traduzem em imagens voluptuosas essa realidade cheia de contradições. Nelas, pequenas multidões buscam seu lugar ao sol e se misturam sem preconceito, fazendo churrasco, usando descolorante de pelos e trazendo o cachorro a tiracolo. A singularidade do ensaio chamou a atenção do britânico Martin Parr, um dos papas da fotografia litorânea. Tanto que o veterano editou com Bittencourt o livro Ramos, lançado pela extinta Cosac Naify em 2015, assinando o texto de apresentação. Bittencourt está em cartaz atualmente na Galeria da Gávea, com a expo Kamado, em que clicou cozinhas em uma ilha abandonada no Japão. Enfocando a ausência pelos rastros deixados por ex-habitantes, o ensaio é a antítese de Ramos.
“Praia fala sobre cultura, é onde as pessoas são iguais. O piscinão é ainda mais interessante, por não ser propriamente uma praia”, diz Bittencourt
DO IRAJÁ À COPA CYBERPUNK Quem já circula há mais tempo pelas sedutoras incongruências do subúrbio e do submundo carioca é o escritor Fausto Fawcett. O Irajá foi celebrizado na letra do funk Kátia Flávia (1986), “ex-miss Febem, encarnação do mundo-cão, louraça satanás, gostosona e provocante”, e Copacabana – com sua fértil fauna local – é sua menina dos olhos desde os anos 1980. “Gilberto Gil sempre disse que a Bahia lhe deu régua e compasso pra vida inteira. Gosto de dizer que Copacabana me deu a papelaria inteira, me preparando pra várias overdoses de vivências e surpresas existenciais”, diz Fawcett à seLecT. “Meus textos, meus temas e minha escrita estão ligados à alquimia peculiar de submundos e clandestinidades, escritórios, clínicas, consultórios, praia, montanha, todo tipo de gente, todo tipo de serviço, todo tipo de polícia e bandidagem, e paisagem imobiliária muito concentrada em 4 quilômetros e pouco de Copacabana.” Desse caldo saíram livros antológicos, como Santa Clara Poltergeist (1990) e o mais recente, Favelost (2012), uma distopia cyberpunk em que São Paulo e Rio viram uma só cidade pela continuidade do crescimento desordenado de suas periferias (leia Review na pág. 108). A literatura, que Fawcett tem como seu meio principal, é apenas uma entre as muitas mídias com que trabalha. Dos livros vieram performances que eternizaram musas do submundo, como Regininha Poltergeist. Das artes visuais vieram parceiros como Chelpa Ferro e Vivian Caccuri, com quem divide o palco em shows experimentais. Da música, coautorias como o hino Rio 40 Graus (1992), composto com Fernanda Abreu e Laufer, cujo título presta homenagem ao clássico cinematográfico de Nelson Pereira dos Santos, de 1955. Mas quem nunca largou do seu pé foi mesmo Kátia Flávia, a Godiva do Irajá, que matou o marido contraventor da Baixada Fluminense, fugiu para Copa e será a eterna Garota de Ipanema às avessas de Fausto Fawcett. “Não nego o orgulho de ter recolocado no mapa do imaginário pop nacional, mesmo por um tempo, Copacabana, que andava ali pelos anos 1980 esquecida ou reduzida a um estereótipo de decadência que fiz questão de dizer que era apenas uma camuflagem para o imenso
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point urbano e humano que acontece no bairro. Outra coisa foi uma gostosona bandida na boca do povo, maldita querida e fêmea cheia de poder – e poder marginal – na boca do povo”, diz. Em 2016, a música faz 30 anos e a personagem deve virar filme. Fawcett lança livro novo, Cachorrada Doentia. 84
Entre o distante Leblon e a boemia do Centro e da Lapa,
DA BELLE ÉPOQUE À SAPUCAÍ Oswaldo Goeldi achou Divas underground são frequentadoras assíduas das páginas da literatura carioca há mais de cem anos. Nos contos do escritor e inspiração para jornalista João do Rio (1881-1921), elas são acompanhadas por janotas, mas também por traficantes e cafetões, mães de santo e escravos, e retratar os proscritos, transitam com sex-appeal pela região portuária e do Centro, na belle époque carioca. Na virada do século 19 para o 20, João do Rio chocava como pescadores, os eruditos com o calor das ruas, temperado pela homossexualidade, o dandismo exacerbado e a cor da miscigenação. Por suas incursões bêbados e prostitutas do grand monde aos antros do porto, soube traduzir esse universo em textos jornalísticos como “As Religiões do Rio” (1904) e “A Alma Encantadora das Ruas” (1908). Em contos como História de Gente Alegre, lançou um olhar afiado sobre as relações sorrateiras entre o povão e as elites deleitando-se às escondidas nos prazeres obscuros dos antros do Centro. Em 2016, nos 135 anos de seu nascimento, uma caixa recém-lançada pela Editora Carambaia traz três facetas de sua produção: crônica, teatro e folhetim. Outro ilustre frequentador do Centro e da região portuária foi Oswaldo Goeldi (1895-1961). A partir dos anos 1920, o artista enredava a narrativa sombria de suas gravuras entre os peixes e o mar do Leblon – então um areal isolado, onde o artista morava num quarto de fundos – e as noites boêmias na Lapa, retratando proscritos e prostitutas. “Não era um cara abandonado, solitário, mas se identificava com esses personagens”, diz Lani Goeldi, sobrinha-neta do artista. No aniversário de 55 anos de sua morte, ela prepara Repaginando a História, livro sobre os bastidores da vida de Goeldi, com lançamento previsto para o fim do ano. Uma exposição em Belém – onde o artista nascido no Rio morou em criança –, marcando também os 400 anos da cidade, e um documentário em cinco capítulos estão entre as homenagens. A inspiração também veio do outro lado da Floresta da Tijuca para Nelson Rodrigues (1912-1980). Mais precisamente, da infância passada na Aldeia Campista, na época uma cercania afastada num enclave entre os atuais Vila Isabel, Andaraí e Irajá (zona norte). As taras e vícios de uma sociedade dividida entre o pretenso cosmopolitismo de capital da República e o moralismo rigoroso do subúrbio ganharam status mítico por sua dramaturgia mordaz, recheada por pactos de morte, adultérios, subornos e casamentos de fachada, em peças como A Falecida (1953) e romances como Asfalto Selvagem (1959) – cuja protagonista, Engraçadinha, mora em Vaz Lobo, região de Madureira, onde hoje fica uma nova e tórrida praia artificial dos subúrbios. Alegoria de todas as histórias do Brasil e do Rio, a Marquês de Sapucaí não poderia ficar de fora dessa breve antologia dos cânticos aos submundos. Afinal, a Marquês já serviu de palco para o elogio da discrepância de classes, com o enredo Ratos e Urubus: Larguem Minha Fantasia, da Beija-Flor, vice-campeã em 1989. O autor da ousadia foi Joãosinho Trinta (1933-2011), que com os versos Sou na vida um mendigo, da folia eu sou rei traduziu o paradoxo do Carnaval, festa de luxo feita pelo cidadão de baixa renda. Num dos carros alegóricos, uma réplica do Cristo Redentor daria as costas a um cortejo de mendigos saltitantes, mas teve de ser coberta com plástico preto pela proibição da Igreja Católica. Saiu embrulhada, mas com uma placa dizendo “Mesmo proibido, Olhai por nós”. É dessas contradições de uma terra abençoada por Deus, mas deixada à mercê dos homens, que vem se nutrindo, ao longo dos anos, o panteão maldito da arte. SELECT.ART.BR
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À direita, Pescadores (1940), de Goeldi
FOTOS: CORTESIAS JULIO BITTENCOURT E LANI GOELDI/ASSOCIAÇÃO ARTÍSTICA E CULTURAL OSWALDO GOELDI
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PEQUENA ÁFRICA CARIOCA Nos arredores dos antigos mercados de escravos, cais do Valongo e Cemitério dos Pretos Novos nasceu a primeira periferia urbana brasileira
A PRIMEIRA PERIFERIA URBANA DO BRASIL NASCEU NO TRECHO DO LITORAL DA BAÍA DE GUANABARA que corresponde, hoje, aos bairros da Saúde, da Gamboa e do Santo Cristo. Antes dos aterros realizados em função do reaparelhamento do porto, na primeira década do século 20, aquele era um litoral sinuoso e recortado por sacos, praias e ilhas com nomes pitorescos, como Ilha das Moças e Ilha dos Melões. Com o aumento das atividades portuárias, o carregamento de mercadorias passou do antigo cais próximo ao Largo do Paço (atual Praça XV) para a Prainha (hoje Praça Mauá). Não somente ouro e diamantes escoados de Minas Gerais, como também a carga humana trazida da África, faziam parte desse tráfico de coisas e de gente. Ao longo do tempo, foi sendo transferida para a região uma série de atribuições indesejáveis para a porção nobre da cidade. O mercado de escravos, por exemplo,
que no século 18 se estabeleceu na Rua do Valongo, seguido de perto pelo Cemitério dos Pretos Novos. Ali, entre 1789 e 1830, africanos recém-chegados foram enterrados em valas comuns. O local foi redescoberto acidentalmente em 1996 e abriga hoje o Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos (IPN). Os chamados “usos sujos” se multiplicavam. A prisão do Aljube foi instalada em 1733, enquanto o Hospital da Saúde – para doenças contagiosas – tinha sua localização próxima ao Cemitério dos Ingleses. Volta e meia, a Forca Pública era armada na Prainha e os condenados levados à Igreja de Santa Rita para receber as últimas consolações. Por entre processos de marginalização e degradação, a região foi se transformando em lugar de pobreza, violência e morte. A desigualdade entre essa e outras partes da cidade foi confirmada, no fim do século 19, pelo surgimento da primeira favela, no Morro FOTOS: CORTESIA DA ARTISTA, REPRODUÇÃO INSTRAGRAM
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À esquerda, da série Morro da Favela (2009), de Maurício Horta, da Coleção MAR; na página ao lado, retrato de Elias Aparecido Dias “Cuca”, morador do Morro da Providência (2014), em foto de VHILS tirada da laje do MAR/ Escola do Olhar
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UM MUSEU PARA DAR CONTA DO VALOR CULTURAL DO VALONGO CLARISSA DINIZ
Ainda que muito jovem, com três anos de existência, e situado física e simbolicamente na interseção entre os campos da cultura e da política, já é possível perceber nos percursos do Museu de Arte do Rio (MAR) uma articulação colaborativa de respostas produtivas às muitas questões que perpassam sua inserção na cidade. Imaginado por Paulo Herkenhoff como um museu poroso – que se quer constituir através da participação direta da sociedade –, o MAR tem aprendido que o seu local de fala só existe na mesma medida de sua capacidade de escuta. Na aparente solidez de sua arquitetura, abrimos fissuras para alargar a visão do que está fisicamente “por trás” do museu (se considerada sua perspectiva frontal, tomada da renovada Praça Mauá), mas social e culturalmente por toda a parte: a história da Pequena África, seu presente, suas pelejas e os modos pelos quais ela deve se projetar no
da Providência, a poucos metros de onde antes existiu o mercado de escravos. Diante desse cenário, no início do século 20, a Saúde era o local mais temido da cidade. Seus “bambas”, “malandros” e “capoeiras” eram o assunto predileto das reportagens policiais. Ali, a meio caminho entre o porto e a favela, na chamada Pequena África, entre o preconceito e a resistência à dura realidade social, sobreviveram e foram reinventadas diversas práticas culturais africanas – dos terreiros de candomblé à capoeira – e nasceu o samba, acalantado pelos estivadores e pelas prostitutas. Embora seja uma das regiões mais centrais e antigas da cidade, são poucos os que compreendem as quebradas de suas ruas e os sentidos de suas inversões. Mistérios do Rio. Segredos da Pequena África.
dia a dia de uma instituição museológica que passa a habitar esse território. No que concerne ao seu papel na Pequena África, o museu leva em consideração as dimensões arqueológicas, históricas e vivas da herança africana, conforme pautadas pela carta Recomendações do Valongo, elaborada em junho de 2012 por instituições e especialistas vinculados ao movimento negro e à Política de Igualdade Racial que compuseram o Grupo Curatorial do Circuito Histórico e Arqueológico de Celebração da Herança Africana, constituído para orientar o trabalho relativo às redescobertas do sistema econômico da escravidão no Porto do Rio de Janeiro, envolvendo pontos como o Cais do Valongo, o Cemitério dos Pretos Novos, a Pedra do Sal e o Largo do Depósito. Em sua atuação educacional e cultural, trabalha na problematização e na ativação dessa história, como demonstra
Edição de textos de Clarissa Diniz e Rafael Cardoso, publicados no catálogo Do Valongo à Favela: Imaginário e Periferia (Instituto Odeon/ MAR) SELECT.ART.BR
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a formação da coleção, que atualmente reúne centenas de manuscritos relativos à economia da escravidão; iconografia dos séculos
18 a 20 em torno de questões étnicas, sociais
culturais, sociais e políticos, como a capo-
região, cujas singularidades não permitem
e culturais da presença negra no Brasil; obras
eira, a religiosidade, o feminismo, a favela, a
que ocupe espaços já existentes, mas que
de artistas afrodescendentes e africanos; ob-
história da resistência, o samba e Tia Ciata,
forje novas espacialidades dentro e para além
jetos de práticas religiosas; trajes; trabalhos
entre tantos outros. Essas e outras ações têm
da Pequena África. Pois o território do MAR
de artistas contemporâneos; elementos da
conformado um MAR atento ao seu lugar na
não é somente o da doída história da forma-
cultura material, entre outros, num conjunto
Pequena África.
ção social do Brasil, como também o da fragi-
que já ultrapassa 500 itens e que está estrei-
Essas trocas ajustam a política cultural do
lidade das políticas públicas para a cultura do
tamente imbricado ao programa curatorial
Museu de Arte do Rio a partir de perspectivas
País e, em especial, do Rio de Janeiro. Nesse
do MAR, com exposições como Do Valongo à
cruzadas: aquela dos movimentos sociais e a
sentido, deve politizar também o seu papel
Favela: Imaginário e Periferia (2014).
perspectiva da arte, nem sempre consensuais
institucional no campo da cultura, tensionan-
De vertebral importância é, ainda, o Progra-
em suas escolhas e estratégias. Por sua vez,
do e lutando em prol da autonomia, da profis-
ma Vizinhos do MAR, principal interface do
em acordo com o crítico Mário Pedrosa, para
sionalização, da capilarização, da longevidade
museu com a comunidade e seus parceiros
o qual “em tempo de crise é preciso estar com
e do adensamento das instituições culturais
da região – moradores, artistas, lideranças
os artistas”, o MAR finca sua posição junto à
brasileiras. Sem se afastar do compromisso
comunitárias, produtores e coordenadores
inventividade, à liberdade e à ambiguidade
de, como museu, “colecionar, registrar, con-
de projetos culturais e sociais. Além da gra-
crítica da arte, enquanto se compromete com
servar, pesquisar, publicar, exibir, comunicar e
tuidade garantida aos moradores do bairro
a capacidade de endereçamento e transfor-
educar”, como previsto em seus documentos
da Saúde, do Santo Cristo, da Gamboa e do
mação dos movimentos sociais. As equiva-
fundacionais. Pois a concretude e a estabili-
Caju, há dois anos o Programa estabelece
lências entre as importâncias e ambições do
dade institucionais são, antes mesmo de suas
uma rede de interlocução e trocas, nos quais
programa curatorial e educacional do MAR
demais vocações, o primeiro “serviço” do MAR
se constitui uma agenda comum de projetos
são, para tanto, fundamentais. Pluralizando
ao Valongo – da capacidade de empregar os
e atividades que surgem do imbricamento
os ouvidos, amplia-se a escuta e diversifica-
moradores da Pequena África à constituição
dos interesses e das oportunidades da vizi-
-se aquilo que se ouve.
de uma biblioteca dedicada à cidade e àque-
nhança. Multiplicam-se conversas de galeria,
Decerto o MAR amplificou sua escuta nesses
les que cotidianamente fazem dessa região
visitas educativas, mostras de filmes, oficinas
três anos e, como consequência, tem expan-
um território ímpar para a humanidade.
do projeto Ofícios e Saberes da região, semi-
dido o alcance de sua voz. Aos poucos des-
nários, performances, encontros, exposições,
constrói a prévia imagem de “intruso” para
Leia o texto na íntegra no site da seLecT:
fóruns e outras ações em torno de aspectos
consolidar-se como mais um habitante dessa
http://bit.ly/pequena-africa
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WASHINGTON FAJARDO
A MELHOR CIDADE É A CIDADE QUE EXISTE O curador do Brasil na Bienal de Arquitetura de Veneza fala das relações entre Patrimônio Cultural e planejamento urbano, do Circuito Histórico da Herança Africana no Rio de Janeiro e adianta alguns destaques do pavilhão brasileiro, como Ana Maria Tavares GISELLE BEIGUELMAN
O ARQUITETO WASHINGTON FAJARDO, 43, PRESIDENTE DO INSTITUTO RIO PATRIMÔNIO DA HUMANIDADE E UM DOS EXPOENTES DO PROJETO PORTO MARAVILHA, é o curador do Pavilhão do Brasil
na Bienal de Arquitetura de Veneza, que inaugura em 25 de maio. Nesta entrevista concedida com exclusividade à seLecT, Fajardo reconhece as conquistas e as fragilidades da revitalização do patrimônio cultural da área do Porto do Rio. Eloquente e articulado, ele frisa: “A melhor cidade é a cidade que existe. É nela que estão as soluções para os nossos problemas. Os grandes centros urbanos têm potencial para muito mais que habitações sociais. Eles têm potencial para que possamos estar juntos no espaço público”. SELECT.ART.BR
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Qual o projeto do Brasil para a Bienal de Arquitetura de Veneza? O pavilhão se chama Juntos e está organizado a partir do cruzamento de três dimensões: Encruzilhadas, Ecos e Juntos. A primeira parte, Encruzilhadas, é um espaço dedicado a um tipo de arquitetura que tinha uma curiosidade genuína sobre a dimensão da cultura popular brasileira. Para tanto, vou falar de duas casas. A Casa da Flor, um bem cultural do Rio, e a Casa do Jardim dos Cristais, projetada por Lina Bo Bardi, no Morumbi, em São Paulo. A primeira, a Casa da Flor, é do século 19 e é uma arquitetura onírica feita por um senhor local, um operário, filho de escravos, Gabriel Joaquim da Silva, que um dia tem um sonho de uma casa e passa a vida inteira construindo essa casa. Já a segunda é uma casa projetada por uma arquiteta, no século 20. Mas essas casas compartilham a mesma textura, a mesma palheta de cor, a mesma materialidade. E é muito interessante comparar duas casas em lugares diferentes, com histórias radicalmente diferentes. Do ponto de vista expográfico, será uma sala cheia de fios, onde o visitante terá de procurar um caminho até encontrar essas casas e, logo depois, ao lado, está a sala dos Ecos. Nessa sala, o que está em pauta são os centros urbanos das cidades brasileiras. Trata de ressonâncias, reverberações, onde estamos sempre tentando resolver o problema dos centros urbanos com abordagens da modernidade. Apesar das lutas de reformas urbanas, da Constituição, do estatuto das cidades, esses centros históricos urbanos estão relegados ao acaso, com muitas propriedades abandonadas, a despeito de serem ainda o símbolo e o centro de nossa vitalidade política. Nós recorremos a eles para fazer valer nossas vontades coletivas, mas esse capital simbólico não reverbera na ocupação do espaço público.
“Por que no espaço público não temos a representação da cultura negra? Essa é a pergunta que começamos a fazer aqui no Patrimônio Cultural do Rio, em função do Porto Maravilha, e quero levar para o Pavilhão”
Quais são os projetos apresentados nesse eixo? Quero mostrar nesse bloco as fraturas sobre os grandes centros urbanos: o estudo da Lina Bo Bardi para o Centro de Salvador e o corredor cultural no Rio de Janeiro, mas também a intervenção no Sambódromo de Oscar Niemeyer. Isso criou, ao mesmo tempo, lugar para a distribuição de um grande conteúdo cultural, realizou a espetacularização do carnaval e do samba, estabeleceu um contato com a cultura negra, mas também desarticulou totalmente o bairro do Catumbi, como se pode ver no trabalho de Carlos Nelson Ferreira dos Santos, Quando A Rua Vira Casa. Nesse setor, o foco é também a cultura negra. Porque esses centros urbanos eram ocupados pela presença dos escravos, que dominavam e tinham a utilização e o controle da definição do próprio espaço público no País. Acontece que essas populações são afastadas dos centros urbanos e, em cidades como o Rio, vivemos neles um alto grau de potência e, ao mesmo tempo, um sinal de fracasso. O Porto do Rio é embleFOTO: ILUSTRAÇÕES SOBRE FOTOS DE FERNANDO VELUDO E TOMÁS PINHEIRO
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mático disso. Lá ocorre uma grande transformação e há uma especial atenção nossa voltada para a proteção dessa cultura negra que é originária e está até hoje presente ali. Temos um potencial de realizar uma ideia de América, ou seja, um amálgama de diferentes sociedades no Brasil, entretanto, não falamos abertamente sobre racismo, sobre inclusão e, como arquiteto, penso que não falamos sobre isso no espaço público. A busca de defesa de inclusão e dos direitos dos negros é ainda uma luta voltada para o acesso às dimensões privadas do espaço. Por que no espaço público não temos a representação da cultura negra? Essa é a pergunta que começamos a fazer aqui no Patrimônio Cultural do Rio, em função do Porto Maravilha, e quero levar para o Pavilhão. E o que acontece quando tudo se junta? A terceira dimensão, Juntos, que faz a amarração entre as duas primeiras, são os ativistas culturais que trabalham para a proteção de bens culturais, para a criação de espaço para os valores culturais e que, nessa busca, acabam por criar arquitetura. São 15 trabalhos. Nesse bloco, quero falar de pessoas. Não se trata de depreciar a figura do arquiteto, mas de fazer uma reflexão sobre nosso papel na sociedade. Quero destacar a arquitetura que é feita lentamente, com muito tempo, dos projetos que levam 20 anos para ser concluídos. Não quero falar de nada que é feito em cinco anos. Destaco o caso da Dione. Ela é uma dançarina que se dedicou ao Jongo da Serrinha, em Madureira, no Rio de Janeiro, por mais de 15 anos. Isso implica também a recuperação não só do Jongo e do saber fazer o Jongo, mas de reconstituição de toda uma trama social. Em um dado momento, ela consegue conquistar uma arquitetura, um edifício. Tem também o programa Vivenda, que é um negócio social, iniciado por um empreendedor de São Paulo. Eles vendem kits de reforma e atuam em favelas. Esse projeto é muito interessante porque mostra a necessidade de falar do parque de habitação informal que existe hoje. Falamos tanto, e muito equivocadamente no Minha Casa Minha Vida como alternativa
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para solucionar o déficit habitacional, mas, hoje, o parque de habitações informais é quatro vezes superior ao déficit habitacional! Temos mais de 25 milhões de habitações precárias e informais que necessitam de melhorias. Precisamos falar dessas melhorias habitacionais, e é interessantíssimo esse caso do Vivenda. Especialmente porque isso é um negócio. É um business social. Não envolve recursos públicos, eles trabalham com microcrédito, assumem compromissos de fazer obras que duram uma semana e oferecem kits: kit cozinha, kit banheiro, kit sala, kit ventilação, e trazem qualidade de fato para essas casas. O impacto é muito interessante, porque você vê as pessoas conquistando qualidade nas suas casas. Não é uma solução fordista, mas sim um caminho para trabalhar com os problemas. Outro caso é o do Jardim Edite, também em São Paulo, projeto do MMBB e de Elisabete França, porque é muito importante falar dos formuladores de políticas urbanas. Quais outros projetos de formuladores de políticas urbanas estarão em pauta na Bienal? Temos um caso autorreferencial, que é o corredor cultural do Rio e o circuito da herança africana, com a proposta de formular uma política de urbanização que colocasse em circulação esses valores culturais de matriz africana e que esses códigos pudessem ter rebatimento no espaço público. Como quando se anda na Liberdade, em São Paulo, e se reconhece a presença oriental na cidade.
O Circuito Histórico Arqueológico de Celebração da Herança Africana é um projeto seu, não é? É um projeto do Patrimônio Cultural Municipal. O primeiro plano da prefeitura do Rio para a revitalização do Porto data de 1979. E muitas das ações que estamos fazendo têm suas técnicas básicas assentadas na gestão anterior. O grande diferencial do que estamos fazendo é, em termos de gestão, dar continuidade a um projeto anterior, e sua metodologia. Ela envolveu um grupo de trabalho formado pela Secretaria de Cultura e pela Secretaria de Habitação, entre outras, com seus corpos técnicos, e muitas audiências públicas. Apontamos, desde o início, o potencial arqueológico, o potencial de memória da existência da cultura negra e fizemos a defesa do orçamento para essas intervenções. Essa é a dimensão pragmática que aprendi no trabalho: a diferença entre o discurso e a realidade é o orçamento. Com isso, mobilizamos R$ 110 milhões para o Patrimônio Cultural da área do Porto. É até hoje o maior investimento por metro quadrado em patrimônio cultural na história do País. Isso foi uma conquista nossa. Mas que atendia, sobretudo, a duas reivindicações da comunidade: o clamor por melhorias e a exigência do resguardo de seu direito de não ser “zoologificada”. Isso nos permitiu obter muitos recursos e deveria ter servido à habitação popular. E essa é a grande fragilidade do projeto.
Qual foi o impacto desse processo do ponto de vista do mercado imobiliário? Houve, sim, valorização das terras e das propriedades na região portuária. Mas temos de considerar algumas questões. Essa área é a de menor densidade demográfica da cidade. Tem 5 milhões de metros quadrados e apenas 28 mil habitantes. É uma área de muitas ociosidades. Essas ociosidades jogavam o valor da terra lá embaixo. Isso cria uma falsa ilusão de acesso. Porque esse suposto acesso está ligado a um processo de degradação do território. Houve, de fato, valorização de quase 100% em toda região central, entre 2010 e 2011. E isso está vinculado ao início dessa operação. Isso, somado às Olimpíadas, levou o Rio de Janeiro, até 2014, a números, em termos de mercado imobiliário, um tanto irreais. Mas hoje eles já começam a se normalizar. Por abrigar a Olimpíada e ter tido um papel de destaque na Copa do Mundo, o Rio tornou-se o barômetro de toda a pressão imobiliária. É nesse sentido que se revela a fragilidade do tema habitacional. Que outras cidades serão abordadas no Pavilhão do Brasil, além do Rio? Projetos propriamente ditos serão apresentados apenas no setor Juntos. Nos outros, serão referências. Nele, vamos mostrar a Escola Mangue do Recife, um projeto da comunidade com o escritório O Norte; Vila Flores, um trabalho de Patrimônio Cultural muito interessante em Porto Alegre, feito por um coletivo de São Paulo, o Goma Oficina, que rompe com o fetiche da restauração, trabalhando em um imóvel ocupado. E o projeto Piseagrama, de Belo Horizonte, que é também uma revista. De São Paulo, levaremos a casa para uma empregada doméstica, dona Dalva Borges Ramos, na zona leste de São Paulo, projetada pelo escritório Terra e Tuma (ganhador de prêmios como o da Associação Brasileira dos Escritórios de Arquitetura, AsBEA) e representante do Brasil em bienais no Equador e na Holanda. Em síntese, é uma seleção que privilegiou os projetos que tratam a arquitetura como mídia, os seja sobre o próprio processo de educação para a arquitetura.
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DIAS & RIEDWEG O ATELIÊ É A RUA, A OBRA É A VIDA Como uma dupla de artistas do mundo se radicou no Rio de Janeiro e tirou poesia, filosofia e lições de vida dos dramas, da desigualdade, da marginalidade e da violência
MÁRION STRECKER
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FOTOS: SERGIO ARAUJO
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MAURICIO DIAS E WALTER RIEDWEG ESTÃO OTIMISTAS COM O RIO, onde vivem desde 2000, sabe-se lá até quando. Dias é carioca e Riedweg é suíço. Eles se conheceram na Europa, foram um casal por dez anos, se separaram, mas continuam a morar e trabalhar juntos, agora numa grande casa em Santa Teresa, no Centro do Rio. A propriedade inclui o ateliê, a pousada em que recebem hóspedes e a família expandida que formaram desde que, há sete anos, Mauricio Dias adotou (ou foi adotado por) duas crianças que conheceu na Favela de Santa Marta, que na época tinham 10 anos. As crianças agora estão com 17. Os dois trabalham juntos há 22 anos. Suas obras estiveram nas bienais de Veneza, de São Paulo e na Documenta de Kassel, e também fazem parte de acervos de instituições importantes no Brasil, na Europa e nas Américas. A bibliografia sobre a dupla é extensa e envolve a atenção de críticos como Mary Jane Jacob, Catherine David, Paulo Herkenhoff e Guy Brett, entre muitos outros. Seus trabalhos são projetos de longo prazo e incluem a participação intensa de outras pessoas, como imigrantes, porteiros, travestis, crianças de rua, pacientes psiquiátricos, presidiários ou de outras pessoas que eles vão conhecendo no percurso. Riedweg é músico e veio também do teatro. Dias começou com gravura e pintura. Juntos eles criam performances, desenvolvem laboratórios e filmam, antes de editar as imagens e preparar suas instalações, que são expostas em museus, galerias ou outros lugares. Nesta entrevista, eles falam de filosofia, da conceituação do trabalho, da relação com o Rio, da evolução da cidade e da vida que vivem. Mauricio Dias: Em 1994, a gente veio para o Rio trabalhar pela primeira vez em Devotionalia. Coletamos 1.286 cópias de cera, como se fosse tradição de ex-votos. Essa era a época da Chacina da Candelária (oito jovens sem-teto foram executados por policiais militares), da Chacina de Vigário Geral (21 moradores da favela também foram mortos por policiais militares), em que o Rio de Janeiro estava em plena guerra civil. Essas crianças que viviam na rua, e eram muitas, mais ainda do que hoje, a gente proSELECT.ART.BR
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“Aqueles que viviam do tráfico de repente se viram sem emprego. Alguns caíram no crack, outros na Igreja evangélica”, diz Maurício Dias
punha que elas mesmas fizessem cópias dos pés e das mãos. A gente ia com um carrinho velho cheio de argila e gesso, cera de parafina e um fogareiro e ficava estacionado duas semanas em cada lugar, debaixo de viaduto, em favelas, em praças. E gravava essas conversas em vídeo. Esse projeto durou um ano e foi uma libertação. Na verdade, a gente queria ficar na rua. Até então, nunca tínhamos pego uma câmera. Vocês filmam com câmeras fotográficas? MD: Sim. A gente faz tudo: filma, edita, conceitua. Cada trabalho tem um jeito de edição diferente, que já é determinado na maneira de filmar. Não fazemos vídeo documentário. Walter Riedweg: Tivemos aprendizagens paralelas. Na Basileia (Suíça) havia um coletivo de vídeo chamado VIA. Eu fiz parte desse coletivo. Pipilotti Rist fazia parte desse coletivo. Ele ainda existe. Nessa época não havia esses equipamentos tão facilmente. Lá se formaram as primeiras classes de videoarte. MD: A gente só mudou de vez para o Rio em 2000. Recebíamos todo tipo de convite: fazer projeto na fronteira do México, resi-
dência na África do Sul, no outro mês era Veneza, sempre envolvendo pessoas locais, questões locais. Em 2002, fizemos uma primeira individual com trabalhos de diversos lugares, e pela primeira vez as pessoas viram que esses trabalhos eram, sim, relacionados. As maiores influências vêm da época em que a gente trabalhava em salas de aula na Suíça e éramos literalmente postos para apagar incêndios de professores que entravam em curtos-circuitos com turmas que não tinham uma língua comum. Como as pessoas se relacionam com o trabalho de que participam? Sentem-se coautoras? MD: Depende. Quando o trabalho termina, os vínculos se guardam com algumas pessoas. De vez em quando encontramos alguém
Na página à esquerda, a dupla Dias & Riedweg durante a performance Nada Quase Nada (2016); abaixo, cena de Corpo Santo (2012), realizada com pacientes psiquiátricos; na página anterior, Caminhão de Mudança (2009-10)
de Devotionalia. Teve uma situação engraçada: um menino uma vez foi assaltar o Walter, lembrou e falou: “Ô, tio!” Ou então a gente vai num Bob’s da vida e encontra um deles. Eu adotei duas crianças que saíram de um trabalho e vivem comigo há sete anos. Não tem regra. A gente não põe regra. Isso é a vida. Seria uma mentira querer moralizar isso. WR: A gente faz um trabalho que se baseia nesse conflito, nessa tensão, na colaboração com os participantes. Seria possível fazer sem eles? Para eles seria possível fazer sem a gente? Então se cria algo além da gente e além deles também. Por que decidiram morar no Rio? MD: Em Devotionalia a gente passou nove meses indo para comunidades no Rio, luga-
FOTOS: ATELIER DIAS & RIEDWEG E ANA ALEXANDRINO
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res onde nem eu tinha ido. Para mim foi um período de gestação. Como uma gravidez do Brasil. Eu estava há 13 anos fora. Quando saí, era muito difícil ser artista aqui. Era uma coisa da elite. Vim de classe média baixa, minha mãe era professora, meu pai era agente imobiliário, classe média da zona norte. Eu morava longe da arte e a arte morava longe de mim. Ir para a Europa foi um atalho para virar artista. E voltar para cá foi uma descoberta totalmente inesperada. A gente foi vindo pouco a pouco, à medida que foram aparecendo trabalhos aqui. As entradas que a gente teve no Brasil foram muito fortes: Devotionalia no MAM (19951996) e Porteiros na Bienal de São Paulo (1998). A gente estava cansado de viver numa mala. WR: Durante quatro anos administramos três apartamentos alugados e sublocados em três continentes: Basileia, Nova York e Rio. A decisão foi de tentar montar uma base no Rio. Devotionalia foi uma experiência muito intensa como porta de entrada para esta cidade. Eu tenho uma segurança de andar por aqui que veio desse projeto. Aqui me sinto, sim, em casa. SELECT.ART.BR
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“A implosão da perimetral foi muito importante, porque abriu a Praça XV, o Porto. Acho fantástico terem recuperado uma visão que não existia mais”, diz Riedweg
Como é essa história de que seus filhos saíram de um trabalho? MD: O trabalho que a gente fez para a Documenta (2007) chama Funk Staden, que reconta a história de Hans Staden, que nasceu em Kassel. Ele naufragou na costa brasileira, foi capturado e solto pelos tupinambás porque não falava português. De volta à Europa, escreveu um livro que foi um dos primeiros best sellers. A Documenta colocou Funk Staden ao lado de pinturas do século 15, portanto, antes da época dos Descobrimentos. Essa coisa da floresta, Adão e Eva expulsos do paraíso. O paraíso era o trópico. O inferno, ao mesmo tempo, era o trópico, porque o selvagem que comia carne humana era o demônio. Nessa época do funk comendo solto aqui no Rio, a gente queria filmar. Mas apontar uma câmera nesses bailes era como apontar uma arma, porque eram financiados por traficantes. (...) A gente refez as xilogravuras do livro do Hans Staden em tableau vivant numa laje do Morro Dona Marta (onde fica a Favela Santa Marta). Escolhemos um capítulo que conta o ritual do festim antropofágico. A gente vê os funkeiros como se fossem os tupinambás. Eles atacam bonecas infláveis de sex shop, esse modelo do branco. O grito do tupinambá é revivido na cultura funk. Assim conheceram os meninos? MD: Nesse contexto eu conheci a família dos meninos. Eles eram muito pequenos, tinham uns 5 anos. Alguns anos depois, quando estávamos gravando Pequenas Histórias de Modéstia e Dúvida, o Rio estava vivendo uma grande transformação, com o processo de pacificação nas favelas. Muita gente é muito crítica desse processo de pacificação, dizendo que é um processo de redominação, de constrangimento. Mas quem viveu o Rio de Janeiro 40 anos sem isso, viu que esse processo de pacificação é, sim, um caminho. A gente chegou a subir o Morro do Alemão na época de Devotionalia e o caminho para subir era por onde o cocô descia, não tinha outro caminho. Hoje em dia, você tem teleférico, estradas, banco, cinema. Esse é um processo muito longo. Não é só um make-up da cidade para os Jogos Olímpicos.
WR: A matança de jovens masculinos no Rio foi pior que o índice de guerras que houve no mundo. Isso diminuiu drasticamente. Na Baixada ainda é assim e ninguém fala nada, mas no Centro da cidade já houve um progresso muito grande. Como estão vendo a cidade? MD: Acho que o Museu do Amanhã é um ponto turístico incrível. Mas, como artista, coloco questões práticas. Se a gente tem problema para manter o MAM, como vamos manter o Museu do Amanhã com aquela arquitetura impossível de ser mantida? É caríssimo. É um museu que não tem conteúdo. Em matéria de contexto, acho muito fraco. Se fosse concebido para ser um espaço de feira, seria mais feliz. Agora, a carcaça acho legal. Parece um osso de baleia. WR: A implosão da Perimetral foi muito importante, porque abriu a Praça XV, o Porto, a Praça Mauá. Acho fantástico o fato de terem recuperado uma visão que não existia mais. E com a pacificação do Alemão e agora da Maré, lentamente, seguindo pela Bai-
Na página à esquerda, detalhe da instalação Devotionalia (1994-2004), o primeiro projeto realizado pela dupla no Rio; abaixo, cena do vídeo O Espelho e a Tarde (2011)
xada, está se formando uma nova visão da própria cidade. Espero que essa nova juventude que vem daí, que não tem ambição de morar na zona sul, tenha ambição de fazer algo lá, que transforme. O Parque Madureira, por exemplo. MD: Você já foi no Parque Madureira? É um parque longilíneo maior que o Aterro do Flamengo. Esse povo que pegava trem para andar de skate agora tem a maior pista de skate do Rio de Janeiro. Tem um monte de cachoeiras, um piscinão. Fui no fim de semana antes do Natal e fiquei passado com o que vi. O parque estava cheio, rolando samba, as pessoas atravessavam a rua levando seu isopor, um barato! WR: Meu parceiro tem um grupo de dança em Nilópolis e eles se qualificaram para ir para um festival na Argentina. Como pagar as passagens? Esses jovens se plantaram no Parque Madureira durante dois meses, todo fim de semana, passando o chapéu. Levantaram R$ 4 mil. Para eles, o lugar de fazer isso era lá, e não em Copacabana. Para mim, isso é uma transformação.
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Fiquei com a impressão de que você não acabou de contar a história das crianças. MD: Entre 2008 e 2010, fizemos vários trabalhos nesse contexto do funk e fez as Malas para Marcel. São 12 malas. A gente as colocava no espaço público, deixava as pessoas levarem e filmava atrás. Essas malas nos levaram de novo para o Dona Marta. Depois começamos a frequentar as favelas em pleno processo de pacificação e foi aí que conhecemos o Vitor, que estava com 10 anos, e chegou em frente à câmera e falou para mim: “Eu vou te adotar”. E me adotou. Adotou a gente, o trabalho, a casa, e aos poucos ele veio morar aqui. Ele tem uma irmã gêmea, que é a Vitória. E a mãe queria que eles viessem embora e aí eles vieram e estão aí. O Vitor está no Sesi, começando a fazer Comunicação Visual. A Vitória vai fazer Escola Normal. WR: Ele tinha uma condição difícil em casa, a família não tinha mais sustento, uma situação desesperadora. MD: Aqueles que viviam do tráfico de repente se viram sem emprego. Alguns caíram no crack, outros caíram na Igreja Evangélica, a maioria caiu nos dois, de um pro outro. É o caso da mãe do Vitor. Ela passa de Testemunha de Jeová para o crack, vai e volta, e tem dez filhos. O Vitor tinha 10 anos e ele é um conversador, um sedutor. Acho que ele viu na gente uma possibilidade. Ele tem uma coisa forte com desenho, com imagem, com teatro, é um contador de piadas nato. Era uma coisa estranha e ele gosta de coisas estranhas, como todo mundo. Como Oswald de Andrade: “Quero tudo aquilo que não me pertence, tudo aquilo que eu não sou”. Outras vezes que a gente foi filmar, ele estava lá de novo, depois descobriu meu telefone, começou a me ligar. Um dia ele disse: “Quando é que você vem me buscar?” Aí eu falei: eu vou te levar pra passear. Cheguei lá e ele estava de banho tomado, de tênis, e falou: “Estou pronto e essa é a Vitória, minha irmã gêmea, ela também vai te adotar”. E aí começou. Foi que nem uma história de amor básica. Tudo o que eu fazia eu achava muito melhor com eles. Se eu fosse ao cinema, à praia, a um restaurante, tudo era mais legal com eles. E eu fiquei apaixonado, e eles ficaram apaixonados e essa paixão virou uma família. SELECT.ART.BR
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Funk Staden (2007) reencena no Morro Santa Marta episódios de texto do navegador alemão Hans Staden. Ao aproximar o universo do funk à descrição de rituais de canibalismo dos índios tupinambás, a obra denuncia preconceito contra o movimento carioca
WR: Eles transformaram toda a vida nessa casa, transformaram a nossa relação com o entorno da casa, eu conheço todos os jovens de Santa Teresa. Eles nos presentearam com uma vida normal. MD: Pequenas Histórias de Modéstia e Dúvida foi feito nos lugares onde eles nos levaram nessa época que estavam entrando na nossa vida. Sábado à noite no parquinho da favela era um programa com Vitor e Vitória. A cidade fora dela é o anoitecer da birosca de Santa Marta. Agora vocês têm trabalhado com pacientes psiquiátricos, envolvendo encenação e riscos. MD: Em 2012, recebemos um convite da Coleção Prinzhorn, que é um museu de art brut na Alemanha, que tem a famosa coleção de pacientes psiquiátricos que Hitler colocou com os modernistas para fazer a exposição da Arte Degenerada, em Munique. Esse museu foi fundado por um psiquiatra, precursor de Nise da Silveira, que começou a inserir essas questões da arte como possibilidade terapêutica. Quando fizeram 150 anos, eles pediram a vários artistas contemporâneos trabalhos que refletissem a coleção. O que nos chamou a atenção foi a representação da indumentária, muito exuberante. Traziam os arquétipos da farda militar, roupa de mãe, viúva, sacerdotes, mas de forma muito burlesca. Refizemos as roupas com carnavalescos e propôs fazer um vídeo com pacientes internados em um hospício aqui no Rio, o Instituto de Psiquiatria da Universidade do Brasil (Ipub), atualmente UFRJ. Achamos em um dos pátios do hospício um teatro do século 19, lindo, com palco italiano, que se chamava Corpo Santo. Estava interditado, repleto de latrinas, uma pirâmide de escombros. Usamos durante meses para fazer ioga, exercícios de teatro. Um belo dia, quando os loucos entraram lá, encontraram uma penteadeira e um espelho. Em volta, 20 dessas roupas exuberantes. Não precisamos dizer nada. Cada um pegou uma roupa. A gente gravava, eles gravavam e tudo era aplaudido por eles mesmos. Usamos o vídeo como se fosse um cabaré de sketches. Na única externa, eles estão com as roupas e entram no mar. Virou uma coisa operística e profunda, coFOTOS: ATELIER DIAS & RIEDWEG
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RICARDO RENDÓN PENDURADO POR UM FIO
Em individual na Zipper Galeria, em São Paulo, obras do artista mexicano contemplam as formas visuais e metafóricas da presença e da ausência
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Tudo falha. Ricardo Rendón sabe disso. Como o modelo de gestão de riscos originalmente proposto por Dante Orlandella e James T. Reason, da Universidade de Manchester, e comumente chamado de Teoria do Queijo Suíço para causas de acidentes, o princípio por trás do trabalho de Rendón é o efeito cumulativo das camadas. Seu trabalho se relaciona intrinsecamente a sistemas complexos, em que diversas camadas são arranjadas lado a lado, organizadas como uma estrutura de defesa contra o fracasso. O artista escolhe materiais bióticos e inorgânicos, como madeira, compensado, fibras naturais, granito, calcário, cobre ou papelão. Com eles cria composições formadas por elementos que sofreram perfurações, cortes e recortes. Tudo vaza. Todos os materiais são cheios de buracos e, com frequ-
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Momento de Relação (2015), da série Memória Possível, evoca efeito de delicado equilíbrio em sistema visual instável e precário
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ência, dispostos em camadas. Os buracos debilitam os elementos e representam fraquezas nas partes individuais de um sistema. Além disso, as fissuras constantemente variam de tamanho e de posição nas fatias. Nessas estruturas, modeladas como séries de obstáculos ou fatias, o risco de uma ameaça se tornar realidade é atenuado pelos diferentes tipos e camadas de defesas, que são “ocultadas” umas atrás das outras. Portanto, lapsos e fraquezas em uma defesa não permitem que o risco se materialize, já que existem outras defesas, para evitar que se forme um ponto único de fraqueza. O sistema produzido só falhará se os buracos de cada fatia se alinharem momentaneamente, permitindo que uma trajetória de oportunidade de acidente ou risco atravesse todas as fatias. Mesmo que falhas ativas e latentes coexistam, o resultado é uma configuração forte e resiliente. PRESENÇA DA AUSÊNCIA
Por outro lado, devemos enfocar e repensar o que não está presente. Para onde foram os pedaços redondos? Onde acabaram os grandes confetes de madeira? O trabalho de Rendón consiste em elementos com mais buracos que matéria. E não somos capazes de ver o componente todo, às vezes só o que restou de um processo de corte, às vezes uma vaga silhueta, ou absolutamente nada, por isso nunca temos certeza se o objeto estava lá ou se, de fato, existiu. Suas obras contemplam as formas visuais e metafóricas da presença e da ausência. Como disse Lyotard em Discourse, Figure: “O que é cuspido é o que é cuspido, e não mais existe para o corpo do prazer: é obliterado. Pois, para que aquilo que foi rejeitado seja algo, de todo modo, o ímpeto para destruir deve ser suplementado SELECT.ART.BR
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pelo poder oposto de apresentar ausência. Então, a perda pode ser contada como perda, a presença de uma ausência, e o objeto pode contar como realidade, algo que está presente mesmo quando não está. Mas o que é exatamente esse poder de tornar presente, de ‘reproduzir como representação’ um objeto ausente?” Por meio de sua obra, o artista apresenta duas faces da realidade, com base na oposição entre ausência e presença, que incorpora ambos os sistemas de significado e designação. Ela valoriza o que permanece oculto – a força que a ausência não é autorizada a mostrar. E isso não é uma reconciliação melancólica de uma situação impossível, mas a afirmação daquilo que está ausente: o que nos lembra que sempre há “algo em vez de nada” e que qualquer compreensão supostamente total é ilusória. Noções de ausência e presença, visibilidade e invi-
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Noções de visibilidade e invisibilidade, na obra de Rendón, assumem significados de alta carga política quando consideradas no contexto do Brasil ou da América do Sul, onde o fenômeno dos “desaparecidos” criou uma cultura caracterizada por perdas profundas
sibilidade em uma escala global são muitas vezes refletidas por cismas do conhecimento percebido, e foram abordadas historicamente por artistas de todas as partes do mundo. Isso assume significados de alta carga política quando considerado no contexto do Brasil ou da América do Sul, onde o fenômeno generalizado dos “desaparecidos” criou uma cultura caracterizada por perdas profundas. Referências a essas práticas podem ser contempladas, por exemplo, na obra Aire (2003), de Teresa Margolles, ou mesmo na exposição fundamental Doris Salcedo, Presenting Absence, no Museu de Arte Contemporânea de Chicago. ABRAÇO RADICAL DO VAZIO
Outras práticas como a célebre exposição Le Vide, de Yves Klein, de 1958, ou Experimental Situation, de Robert Irwin, de 1970, em que o abraço radical do
Na página à esquerda, Instável I; acima Acumulado II
vazio nominal foi rapidamente adotado por outros artistas e ainda repercute nas estratégias expositivas de numerosas figuras contemporâneas. A obra de Rendón diverge do demagógico e sua pesquisa e processos adotam o abstrato como instrumento essencial do fazer artístico. Um exemplo é uma de suas últimas peças, Momento de Relação (da série Memória Possível), em exibição na Zipper Galeria, em São Paulo, que evoca um sistema visual instável e precário – mas profundamente elegante –, em que dois objetos estão pendurados por uma linha fina. Duas pesadas pedras retangulares com buracos estruturais são sobrepostas e suspensas por um fio de aço, dando o efeito de potencial movimento e delicado equilíbrio, conforme o espectador se aproxima. Também na individual na Zipper há esculturas que podem ser interpretadas como evoluções do movimento latino-americano de abstração geométrica. FOTOS: GALERÍA NUEVEOCHENTA, BOGOTÁ / RICARDO RENDÓN
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REENCENAÇÕES DA ARTE PAULA ALZUGARAY
Filme-ensaio de Dora Longo Bahia, que inaugura sala de projeção da Vermelho, analisa o papel da arte e a condição do artista a partir de uma interpretação da histeria O Caso Dora, primeiro longa-metragem de Dora Longo Bahia, faz referência ao primeiro caso publicado por Sigmund Freud em 1905, em que o psicanalista expõe as condições de tratamento de uma paciente de 18 anos, diagnosticada com histeria. Por resultar de pesquisa acadêmica (na Faculdade de Filosofia da USP), o filme tem uma densidade incomum. De fato, devem-se contabilizar aqui não apenas os dois anos de estudo pós-doutoral, mas camadas de pesquisas acumuladas em trabalhos anteriores, que conferem à presente obra de Dora Longo Bahia uma dupla condição de maturidade e frescor. As identidades complexas e complementares de seus objetos de estudo anteriores – Marcelo do Campo 1968-1975 (2006) e Do Campo à Cidade (2010) – se sobrepõem para formar a identidade difusa da personagem protagonista de O Caso Dora, Rosa. “Essencialmente dividida e alienada, torna-se o locus de uma identidade impossível”, define a artista no relatório final da tese. “Enterra-se em realidades falsificadas, queima-se em revoluções impossíveis e afoga-se em reencenações.” SELECT.ART.BR
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O Caso Dora é construído com imagens de arquivo e reencenações de obras da história da arte, como Olympia, de Manet, que, na versão de Dora Longo Bahia, lê o Petit Livre Rouge de Mao deitada em um divã O Caso Dora, Sala de Projeção, Galeria Vermelho, de 8/4 a 4/6, Rua Minas Gerais, 350, http:// www.galeriavermelho. com.br/
Se para Freud a histeria é uma patologia que gira em torno da problemática da identidade de gênero feminina, para compor esse alter ego com o difícil papel de fazer uma reflexão autobiográfica sobre a posição do artista na contemporaneidade, Dora Longo Bahia se serve do conceito de histeria de Lacan. Segundo o discípulo de Freud, o histérico é o indivíduo que apresenta um desconforto em relação ao seu papel simbólico. Essa personagem de máscara simbólica indefinida e rarefeita criada por Longo Bahia, portanto, coloca a arte no divã e questiona seu papel de artista. O filme é construído em dois tempos “simétricos” e três eixos “que se intercalam e contaminam – ficção, documentação e falsificação”, define a artista. A primeira parte diz respeito aos acontecimentos derivados de maio de 68, das estratégias de controle social e das teorias da Sociedade do Espetáculo – exploradas previamente em Marcelo do Campo. A segunda parte atualiza essas questões no contexto do Movimento Passe Livre, em junho de 2013, São Paulo. Em um hábil jogo de espelhamentos, o filme sobrepõe tempos e espaços, trazendo para essa sessão de análise da condição do artista contemporâneo elementos como a peça Ricardo II, de Shakespeare, O Livro Verde do ditador líbio Muammar Kaddafi, e A Negra, de Carmela Gross – editados e recontextualizados em uma narrativa fragmentária composta no rastro das Passagens de Walter Benjamin. No contexto de distopia e desilusão que o brasileiro vive hoje em relação às instituições políticas, o filme traz respostas, afirmando a arte e a rua como lugares de liberdade e propondo a arte contemporânea como “o último refúgio do pensamento revolucionário”.
RIO DE JANEIRO
O FUTURO DESAPARECEU, CREIO NO AMANHÃ ULISSES CARRILHO
Um jogo de forças políticas tensiona as possibilidades artísticas de construir um mundo além do presente A instabilidade do atual cenário político, que atinge proporções olímpicas e requer propostas emergenciais, é o contexto em que a curadora Daniela Labra organizou a exposição Depois do Futuro, na EAV Parque Lage. A mostra não acontece apenas em uma escola, mas foi concebida para ela, tendo como lastro um processo pedagógico que aposta em novos modos de viver em sociedade. Assustadoramente coerente e fundamental para o amanhã, a quarta exposição do programa Curador Visitante é resultado de uma consistente pesquisa pós-doutoral. A mostra revela uma potência da arte, aventa cenários em que a espécie humana consegue driblar massacres cotidianos. A cadência narrada em uma das salas – vejo uma casa de máquinas – inicia-se pela sucessão das imagens pós-nucleares de Alice Miceli, sucedida pelo instrumento sonoro de Tiago Rubini. A peça ecoa um zumbido que, ao soar, revela sempre ter existido – se não em som, na indeterminação do tempo presente. Ao fundo, a escultura de Guto Nóbrega apoia-se na cinética para resguardar-se da escuridão provocada pelo corpo do visitante. Num movimento estratégico, vai ao encontro de seu direito à luz. De Franz Manata e Saulo Laudares, Bandeira é um alvo bicolor que grita em denúncia, acompanhado do sutil e potente trabalho de Runo Lagomarsino, We Support.
Fotografia da série Não é um motim (2014), de Pedro Victor Brandão. Depois do Futuro, até 1º/5, EAV Parque Lage, Rua Jardim Botânico, 414, RJ, http://eavparquelage. rj.gov.br/
Tamíris Spinelli transfere a responsabilidade de construir futuros aos corpos, um exemplo contundente da possibilidade poética do ativismo. Nas Cavalariças, o trabalho de Ricardo Càstro transborda um tom ritualístico numa alegoria do porvir. A pulverização das categorias estéticas é um dado real, é notável como a indignação perante o mundo ganha na pesquisa de Labra ao apresentar-se como resistência clubber, com o vídeo Donde na Ocurre (2012) da espanhola Irene de Andrés. A obra de Cristiano Lenhardt, instalada na primeira sala do Palacete, tem o mérito de dessacralizar o ambiente institucional com uma projeção de imagens que habitam nosso mundo-jegue. A globalização não acontece de forma igual para todos. Uma problematização de poderes relacionados ao direito à terra encontra-se na potente O Artista como Bandeirante, de Maria Thereza Alves. A bandeira do colombiano Leonardo Herrero, que poderia ser desfraldada em meio à Floresta da Tijuca, lembra ao visitante as idiossincrasias de uma América Latina que sofre com tráficos que se atualizam cotidianamente. Esperávamos o futuro, o progresso, e nada chegou – nem a revolução. Se não foi o tempo que trouxe a esperança, a desilusão não pode ser constante. Depois do Futuro planta a criação como uma possibilidade real, incisiva, de construir mundos outros em que cooperação e subsistência estejam na ordem do dia. Ao sair, o luminoso EXST nos lembra, sobretudo, de resistir. FOTO: PEDRO VICTOR BRANDÃO, DIVULGAÇÃO
REVIEWS LIVROS
DISTOPIA CÍNICA E SEXY LUCIANA PAREJA NORBIATO
Em saga sobre o mundo pós-contemporâneo, Fausto Fawcett cola SP no Rio e descarta noções apaziguadoras em troca da inquietude de estar vivo Em Favelost deve-se entrar com os dois pés, e de sola. Nada de leitura estrutural, pausada e densa, como pedem textos de pensadores frankfurtianos que o autor, Fausto Fawcett, critica mais de uma vez na narrativa. Para alcançar a ascese que o livro constrói em seu ritmo frenético, é preciso fazer o trajeto entre Rio e São Paulo de um só fôlego. Nessa distopia cínica e sexy, as duas cidades já não existem separadas, tornaram-se Rio Paulo de Janeiro São, ligadas por um conglomerado de casas paupérrimas, microindústrias clandestinas e pontos comerciais que tomaram a Via Dutra. Ou Favelost, território da hipérbole capitalista tecnológica por excelência. Quase como um ritual alucinógeno, o livro rompe as sinapses coloquiais do leitor. Como um Bret Easton Ellis futurista brasileiro, Fawcett consegue esse efeito pela saturação estilística de sua verborragia pulsante, em mash-ups de referências pop; de períodos históricos; de gadgets; de práticas sexuais das mais comuns às mais bizarras; de correntes políticas, sociais, místicas e filosóficas; de cânones culturais; e uma infinidade mais de temas. Depois de tantas imagens bizarras maximizadas e perfiladas sem descanso uma após a outra, quem mergulha na aventura de Júpiter Alighieri e Eminência Paula sai num leve nirvana, em paz com o caos da existência diária. SELECT.ART.BR
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Favelost (The Book), Fausto Fawcett, 2012, Martins Fontes – Selo Martins, 244 págs., R$ 40
Os protagonistas são membros de uma organização chamada Intensidade Vital, que deve manter a ordem entre a população de Favelost. Esse conglomerado urbano, meio clandestino, meio Eldorado do mal, não é aberto a qualquer um. Só às pessoas que buscam o Mefistófeles em cada entrada escondida, tentando arrefecer um desejo indefinido e angustiante para o qual as benesses da vida comum não bastam. E o casal humano, mas com um quê de Blade Runner, tem 24 horas para se encontrar, fazer sexo e chegar ao orgasmo que vai desarmar o chip autodestrutivo implantado em seus corpos. Com agudeza e sem dó, Fawcett desmonta as certezas atávicas da normatividade ao construir um caleidoscópio de imagens sedutoras e horripilantes, a exemplo de sua declarada inspiração, Hyeronimus Bosch e seu Jardim das Delícias Terrenas (que ilustra a capa do livro). A cada instante o leitor é confrontado com suas próprias pulsões diante de cenas de vingança, sexo, fraqueza ou nostalgia. Assim é levado a questões complexas que o autor enxerta subliminarmente na ação. Se o niilismo anda à espreita a cada curva, há sempre o contato humano, coroado pelo sexo, para lembrar a graça da vida. Como Fawcett define, cria-se o território da disputopia.
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GAME-EDUCAÇÃO Status Quo é o vilão combatido em jogo criado por Stephan Doitschinoff para exposição sobre arte e educação Entre as contribuições de Paulo Freire à pedagogia no Brasil está a concepção da educação como prática de liberdade e o jogo como condição para o aprendizado. O videogame como instrumento mediador de formação e veículo para a construção de conhecimento e autonomia é hoje um debate mundial, entre várias linhas pedagógicas. A questão está em pauta também no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP), que realiza uma exposição para marcar os 20 anos de seu setor Educativo e reafirmar sua premissa de que “um museu de arte tem como missão fundamental a educação”. A mostra reúne sete artistas contemporâneos que utilizam processos educativos em suas produções. A estrutura lúdica do jogo entra nas propostas de Luis Camnitzer – referência mundial quando o assunto é arte e educação –, Amilcar Packer e, mais especificamente, na obra concebida pelo artista paulistano Stephan Doitschinoff, uma game-instalação. Consumo, religião e tradição militar são instituições subvertidas nos trabalhos de Doitschinoff. A esse tripé que tradicionalmente sustenta os valores do establishment agrega-se hoje o sistema educacional. O game 3 Planets – Panoptic Wave (2016) convida o usuário a se ajoelhar para jogar e o coloca diante de um enredo fictício em que a escolarização, financiada pelo capitalismo, atende a leis formatadas por um modelo de produção industrial. Segundo o modo de funcionamento básico de um game – que coloca o usuário na posição de mocinho lutando contra vilões
Educação como Matéria-Prima, curadoria Felipe Chaimovich e Daina Leyton, até 5/6, Museu de Arte Moderna de São Paulo, Parque do Ibirapuera, s/nº, Portão 3, http://mam.org.br/
–, o jogador deve driblar todo tipo de estratégia macabra de manipulação de sua formação intelectual e de cerceamento de sua liberdade de escolha. O projeto de Doitschinoff inclui uma performance, em 4/4, com a presença de seis músicos, entre eles, a cantora Lia Paris. Aqui a instituição apropriada e subvertida será o hino, peça composta especificamente para louvor ou adoração patriótica e religiosa. PA
3 Planets – Panoptic Wave (2016), game de Stephan Doitschinoff
FOTO: RAFAEL RONCATO. NA PÁGINA AO LADO, DIVULGAÇÃO
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À SOMBRA DO CASTELO Coleção “exuma” crônicas, textos de teatro, folhetim de João do Rio, inventor do jornalismo moderno brasileiro Entre março de 2016, quando a repórter Malu Gaspar escreveu para a piauí sobre o prefeito Eduardo Paes e sua máquina urbana movida a combustível olímpico (O Samba do Prefeito), e maio de 1903, quando o jornal Gazeta de Notícias publicou uma crônica de João do Rio sobre o prefeito Pereira Passos (A Vida do Rio – O Prefeito), o Rio de Janeiro viveu as três maiores “cirurgias” de sua história (a segunda teve assinatura de Carlos Lacerda, que expandiu a cidade para a Barra da Tijuca). Na alvorada do século 20, sob a poeira levantada pelo desmantelamento do Morro do Castelo, o jornalista Paulo Barreto inventou o autor que varreria ruas e subterrâneos do Rio, dando protagonismo aos personagens de uma cidade em transformação. A Cidade, coluna diária assinada pelo pseudôniSELECT.ART.BR
ABR/MAI 2016
João do Rio, em caricatura de Emilio Cardoso Ayres, 1911
Coleção João do Rio – Crônica, Folhetim, Teatro (3 volumes), Seleção e apresentação Graziela Beting, Editora Carambaia, R$ 149,90, 2015
mo João do Rio, foi criada para acompanhar o passo a passo do “renascimento”. O texto de estreia tratava o Rio de Janeiro como convalescente, sob os cuidados do médico e da família. “Um aviso, um conselho, um reparo, uma censura, um elogio – tudo haverá, de quando em quando, nesta curta e sóbria coluna”, escrevia o autor. “Os médicos têm bastante competência, mas nunca é demais a solicitude de um filho carinhoso.” Foram justamente os carinhos desse filho pródigo do Rio que produziram não apenas o mais precioso documento da vida carioca do início do século passado, como vieram a inaugurar o jornalismo moderno brasileiro. “Se a minha ação no jornalismo brasileiro pode ser notada é apenas porque desde o meu primeiro artigo assinado João do Rio eu nunca separei jornalismo de literatura, e procurei sempre fazer do jornalismo grande arte”, dizia o autor em texto encontrado entre seus arquivos, dois anos após sua morte, em 1921. Escrita quase sempre na forma de diálogos travados com interlocutores que lhe servem de “guias”, a crônica de João do Rio relata suas saídas a campo com sabor e estilo únicos. Nela está documentada a cidade doente e sua “pobre gente”, vivenciada nos presídios, nas ruelas insalubres ao sopé do Morro do Castelo, no interior das fumeries de ópio traficado por chineses, ou na favela – foi o primeiro repórter a subir o Morro da Providência. Mas é nessa crônica que também se revela a “frívola city” e as altas rodas de uma sociedade habituada a destilar uma língua “marchetada de palavras estrangeiras, que fala com grande conhecimento da Europa, da vida elegante da Riviera, das croisières em yachts pelos mares do Norte”. Sob a caneta de João do Rio se delinearam características marcantes do carioca. Seu gosto por espiar à janela, por exemplo – detectado pelo estrangeiro que passeava de carro com o jornalista pela Avenida Beira-Mar –, anteciparia a poderosa cultura da telenovela, nascida no Rio nos anos 1960 e exportada para o mundo como traço indelével da sociedade brasileira. PA
SÃO PAULO
PERFEITO CARIOCA CAMILA REGIS
Uma das figuras centrais do Modernismo nacional, Di Cavalcanti ganha exposição que evidencia seu papel na criação do imaginário brasileiro “Ser um autêntico carioca é possuir a dignidade de existir sem ambições supérfluas. É bastar-se a si mesmo, na certeza de ser um privilegiado do destino. Deus deu o alimento sonho ao carioca”, escreveu Emiliano Di Cavalcanti. Um dos grandes nomes do Modernismo brasileiro e agente importante para a Semana de Arte Moderna de 1922, o artista, criado em São Cristóvão, tomou o cenário suburbano fluminense, o samba, o carnaval e as mulheres como temas de seus trabalhos. Escreveu sobre a cidade no livro Reminiscências Líricas de um Perfeito Carioca – publicado em 1964, por ocasião do quarto centenário do Rio de Janeiro –, no qual fala do “alimento sonho”, e pintou cenários que mais tarde seriam consagrados pela historiografia como símbolos da brasilidade. Parte dessa produção dedicada à sua terra natal, entre outras obras, integra a mostra Di Cavalcanti – Conquistador de Lirismos, na Galeria Almeida e Dale, em São Paulo. Responsável por outras quatro exposições sobre o artista, entre elas a mostra do centenário de Di, em 1997, a curadora Denise Mattar selecionou cerca de 50 obras produzidas entre 1925 e 1949. As datas foram demarcadas, segundo Mattar, devido à relevância desses anos na trajetória do pintor. “Quando ele participa da Semana de 1922, seu trabalho está mais vinculado à caricatura do que às artes plásticas. Em 1923, ele vai à Europa e isso muda a visão sobre seu próprio trabalho. Dois
Bailarina de Circo, de Di Cavalcanti, óleo sobre tela, 1938
Di Cavalcanti – Conquistador de Lirismos, até 28/5, Galeria Almeida e Dale, Rua Caconde, 152, Jardim Paulista, SP
anos depois, volta ao Brasil e começa a fazer o que conhecemos como Di Cavalcanti. Ele escolhe como tema o povo”, explica em entrevista à seLecT. Em 1949, o artista estreita laços com muralistas mexicanos, o que muda radicalmente sua produção. Essa quebra marca justamente seu retorno ao Rio de Janeiro e fim do ciclo de 24 anos escolhido por Mattar. Dividida em eixos temáticos que não seguem necessariamente uma cronologia, a mostra tem como traço marcante elementos intimamente interligados na história do pensamento social brasileiro, como raça, miscigenação, identidade nacional – e, de certa maneira, a relação desses aspectos com o regionalismo carioca. O período de datação das obras deixa essa característica mais evidente, já que a preocupação com a formação “de um povo brasileiro” torna-se mais pulsante entre meados do século 19 e o fim do Estado Novo de Getúlio Vargas. Nesse sentido, o conjunto de obras ganha um caráter essencialmente político, criado por quem observa um Brasil (e por associação, um Rio) popular, gigantesco e mestiço. “O Rio de Janeiro do Di Cavalcanti não é a zona sul”, finaliza a curadora.
FOTOS: DIVULGAÇÃO.
REVIEWS
CINEMA
PROVA DE FORÇA, QUESTÃO DE FÉ
Em viagem pelo Brasil, Marina Abramovic´ passou por regiões como Abadiânia (GO), Vale do Amanhecer (DF) e Chapada Diamantina (BA)
LUCIANA PAREJA NORBIATO
Passando perto de clichês sentimentalistas, filme mantém potência da experiência cinematográfica graças à espiritualidade brasileira Poder-se-ia começar este texto afirmando que a habilidade de Marina Abramović em capitalizar sua imagem é o motor de Espaço Além, longa-metragem com direção de Marco Del Fiol, e estreia prevista em maio. Ponto pacífico, só esse argumento não explica a potência do filme, que mostra a viagem da uber artista pelos grotões do Brasil, em 2012, investigando procedimentos e rituais ligados à espiritualidade e SELECT.ART.BR
ABR/MAI 2016
Espaço Além – Marina Abramovic´ e o Brasil, direção Marco Del Fiol, estreia prevista para 19/5
tomando parte neles. É assim em Abadiânia (Goiás), onde ela vai se juntar às hostes energizantes de João de Deus, o famoso médium que faz operações espirituais por meio de intervenções nos corpos físicos de seus pacientes. É assim em terreiros de candomblé e em uma comunidade no sul do Paraná, que oferece purificações com ervas aos angustiados. Dois eixos seguram a produção nos trilhos do sucesso: a fotografia impecável, ajudada pela miríade de cores, filigranas e preciosidades da paisagem natural e da cultura popular do País; e um roteiro que sabe alternar momentos cômicos, ternos e diáfanos, dando leveza à narrativa. Respaldada por eles, Marina Abramović está presente e consegue criar empatia e verossimilhança com sua retórica mística, mesmo quando resvala em clichês sentimentalistas, como na evocação do abandono pelo ex-marido. O protagonismo de Abramović é, em si, a questão de fé que se coloca ao espectador: ela está realmente sentindo tudo o que diz para a câmera ou é uma ótima marqueteira de si mesma? Se o nosso lado cínico está certo da última alternativa, é aos poucos dissuadido pelo passeio entre tantas almas crentes. Colocando-se inteira em situações extremas, cômicas ou melancólicas, a artista sérvia joga para escanteio a solenidade que se costuma usar diante das câmeras, trazendo a performatividade – e a verdade – para primeiro plano. Caso das cenas em que prova um dente de alho forte demais ou de sua primeira incursão ao Santo Daime. Sua nudez sólida extrapola o mero exibicionismo e a humaniza na tela, e então podemos não só acreditar em sua verdade, mas nos identificar com ela. O âmago do filme é sintetizado no grand finale da volta a São Paulo, em 2015: a ideia de que a arte tem o poder de resgatar a plenitude espiritual do habitante das metrópoles, amputado do contato com a divindade-natureza. Ideia cara ao Romantismo, não deixa de ser uma golfada de ar fresco em tempos onde todo mundo tem uma verdade racional embalsamada no gatilho. FOTO: MARCO ANELLI
LONDRES
DROGUINHAS KIKI MAZZUCCHELLI Mesmo operando no perigoso território do vício, Jac Leirner mantém equilíbrio entre rigor construtivo e conceitual que caracteriza sua produção Três anos após sua primeira individual na galeria, Jac Leirner retorna à White Cube de Mason’s Yard com a exposição Junkie, que reúne um conjunto de obras inéditas elaboradas a partir de materiais que começaram a ser colecionados pela artista 30 anos atrás. Aqui, Leirner continua a explorar alguns dos elementos mais característicos de sua produção: a utilização de objetos acumulados obsessivamente ao longo dos anos e a precisão formal com que executa suas peças, caracterizadas por um impressionante equilíbrio entre rigor construtivo e conceitual. O título da mostra londrina já revela de antemão que a conhecida compulsão de Leirner voltou-se, num determinado momento, para o território autodestrutivo do vício. A mostra, porém, começa na grande sala do andar térreo, que é perpassada por cabos de aço estirados e afixados em diferentes pontos e alturas das paredes, formando linhas num desenho geométrico-espacial que faz com que os visitantes tenham de se desviar deles para atravessar o espaço. Neste que é um dos trabalhos mais delicados da artista, cada um dos cabos é perpassado por elementos distintos, que são organizados de acordo com critérios de escala ou de cor. Numa das linhas, os milhares de minúsculos papeizinhos torcidos e colocados individualmente ou em pequenos grupos entre círculos de plástico transparente lembram uma versão das Droguinhas de Mira Schendel executadas a partir dos restos da droga: a pontinha de papel arrancada an-
A obra Gay (2016), de Jac Leirner, que integra individual na White Cube
Jac Leirner – Junkie, White Cube Mason’s Yard, Londres, até 14/5, http://whitecube.com
tes de se acender um baseado. Em outra, uma sequência cromática de outros milhares de filtros improvisados com a embalagem do papel de seda. A instalação The End (2016) é a prova material de dias, talvez anos, de consumo sistemático; um excesso purgado e transformado em ordem, equilíbrio e – por que não? – beleza absoluta. Mas é no vasto subsolo da galeria que Leirner expõe, pela primeira vez, as imagens das pequenas esculturas realizadas em 2010, quando passou três dias consumindo cocaína ininterruptamente e entalhando obsessivamente as pedras de droga. São fotografias pequenas, impressas linearmente sobre faixas de compensado arranjadas horizontalmente em linhas que se sobrepõem nas paredes, que mostram uma variedade de composições nas quais esculturas foram cuidadosamente posicionadas junto a objetos relacionados ou não ao hábito da artista. As minúsculas esculturas de cocaína são às vezes quase abstratas, mas há também corações e rostos esculpidos em escala mínima. É preciso dizer que Leirner sempre foi muito aberta em relação aos seus problemas com o vício, portanto, o fato de abordar o tema tão diretamente nesta série não significa que busque causar nenhum choque. No entanto, por seu próprio teor potencialmente polêmico, o tema poderia se sobressair a outros aspectos igualmente fundamentais do trabalho. Felizmente, a artista conseguiu produzir uma série plena de variações: em alguns momentos sufocante, em outros evocativa das Cosmococas de Oiticica, às vezes apenas capturando nossa atenção com as centenas de arranjos formais que nos absorvem nesse transe alucinado.
FOTO: CORTESIA WHITE CUBE
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EM CONSTRUÇÃO
A CARPINTARIA DA FORTES VILAÇA COM A INAUGURAÇÃO DA SEDE CARIOCA DA GALERIA FORTES VILAÇA, prevista para setembro próximo, o
Rio de Janeiro ganha um reforço de peso em seu circuito artístico. O espaço funcionará na antiga carpintaria do Jockey Club Brasileiro, no bairro da Gávea. A reforma começou após o carnaval e deve durar cinco meses. Com assinatura do escritório Rua Arquitetos – Pedro Évora e Pedro Rivera –, o projeto é pautado por um princípio de simplicidade e não intervenção. A área de 300 metros quadrados inclui teleiro, salas de trabalho e recepção e um espaço expositivo de 15 x 8 metros, livre de pilares, com pé-direito alto e telhado aparente. Além de oferecer à cidade a reabilitação e o acesso a um sítio histórico, a Carpintaria – como o espaço vem sendo chamado pelos diretores Marcia Fortes, Alex Gabriel e Alessandra D’Aloia – terá um FOTOS: DANIELA OMETTO SELECT.ART.BR FEV/MAR 2016
projeto institucional novo e identidade própria, incorporando outras expressões artísticas, como música, filme, poesia e teatro, além das artes visuais. “A ideia é ocupar o espaço da maneira mais agregadora possível. Será uma expansão da galeria paulistana do que já fazemos em São Paulo, com mais liberdade”, diz Alessandra D’Aloia, que afirma atender não só a um desejo de expansão da galeria paulistana como a uma necessidade de transformação de antigos modelos. “Escolhemos abrir mais uma galeria no Brasil, porque acreditamos no País. O momento exige muita determinação e muita criatividade. Em toda parte existe hoje um desejo de mudança e a dificuldade é o grande trunfo em nossas mãos.” Em busca do novo, a Carpintaria deverá abrir os trabalhos com uma exposição dedicada à música, que incluirá performances e obras sonoras. PA
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