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LIVRO PRIMEIRO - Mistérios e Sacramentos I Introdução

LIVRO PRIMEIRO Mistérios e Sacramentos

I Introdução

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Desde que o cristianismo raiou sobre a terra, três espécies de inimigos o guerrearam: os heresiarcas, os sofistas, e esses homens, aparentemente frívolos, que destroem, zombando. Numerosos defensores responderam vitoriosamente às argúcias e às mentiras; mas contra a zombaria foram menos destros. Santo Inácio de Antioquia, 2

Santo Irineu, bispo de Leão, 3 Tertuliano no seu Tratado das Prescrições, que Bossuet chama divino, combateram os inovadores, cujas soberbas interpretações corrompiam a simplicidade da fé.

A calúnia foi a princípio rebatida por Quadrato e Aristides, filósofos de Atenas: afora um fragmento da primeira, conservada por Eusébio, perderam-se as apologias aqueles. S. Jerônimo e o bispo de Cesaréia mencionam a segunda como obra-prima. 4

2 Ignat., in Patr. apost., Epist. 80, ad Smyrn., n.° 1. 3 In hæres., lib. IV. 4 Euseb., lib. IV, 3; Hieronym., Epist. 80; Fleury, Híst. Eccl., tom. I; Tillemont, Mém. pour l’Hist. Eccl.

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Os pagãos inculpavam os fiéis de ateísmo, incesto, e certos banquetes abomináveis, onde se comia carne de criança recém-nascida — diziam eles. S. Justino advogou a causa dos cristãos depois de Quadrato e Aristides: escreve sem ornatos; e as atas do seu martírio provam que ele derramou sangue por sua religião, com simplicidade igual à dos seus escritos a favor dela. Atenágoras foi mais primoroso em sua defesa; mas não tem a originalidade de Justino, nem a veemência do autor da Apologética. Tertuliano é o Bossuet africano e bárbaro; Teófilo, nos três livros a seu amigo Autólico, revela imaginação e saber; e o Otávio de Minúcio Felix, dá-nos o formoso quadro de um cristão e dois idólatras, que praticam acerca da religião e da natureza de Deus, passeando à beira-mar. 5

Arnóbio, o retórico, Lactando, Eusébio, S. Cipriano, defenderam também o cristianismo; mas curaram mais de revelar-lhe a grandeza, que de desenvolver os absurdos da idolatria. Orígenes combateu os sofistas; conhece-se-lhe vantagem de erudição, raciocínio e estilo sobre Celso, seu adversário. O grego de Orígenes é de uma doçura singular, mescla-o, porém, de hebraísmos, e locuções estranhas, como usualmente acontece aos escritores versados em muitas línguas.

No reinado de Juliano, foi exposta a igreja a perseguição mais perigosa. Os cristãos foram desprezados, e não perseguidos. Primeiro, despojaram-lhes os altares; depois, vedaram-lhes o estudo e o magistério das letras. 6 O imperador, porém, conhecendo a vantagem das instituições cristãs, quis imitá-las, aniquilando-as: fundou hospitais e mosteiros; e, à semelhança do culto evangélico, tentou vincular a moral com a religião, fazendo proferir nos templos discursos à maneira de sermões. 7

Os sofistas, que rodeavam Juliano, embraveceram-se contra o cristianismo; o próprio Juliano não julgou descer lutando com os galileus. Não chegou a nós a obra que ele escreveu; mas S. Cirilo, patriarca de Alexandria, cita fragmentos dela, na refutação que lhe fez e nós conhecemos. Se Juliano disputa seriamente, S. Cirilo vence o filósofo; mas, se o imperador recorre à ironia, o patriarca fica-lhe inferior. O estilo de Juliano é vivo, chistoso, e animado; nos arrebatamentos, S. Cirilo é extravagante, escuro e afetado. Desde Juliano a Lutero, a igreja, robustecida já, dispensou os defensores. Formado o cisma do Ocidente, surgiram novos apologistas a par dos novos agressores. Confessemo-lo: os protestantes avantajaram-se, ao princípio, sobre os católicos, nas formas ao menos, como nota Montesquieu. O próprio Erasmo

5 Vede com os autores supracitados, Dupin, Dom Cellier, e elegante tradução francesa dos antigos apologistas, pelo abade de Gourcy. 6 Zac., 3, c. X, 11; Gregor. Naz., 3, p. 51-97, etc. 7 VedeFleury, Hist. Eccl.

fraqueia contra Lutero, e Teodoro de Beza logrou uma flexibilidade de linguagem, que os adversários raras vezes tiveram.

Entra, porém, Bossuet na arena; a vitória decide-se depressa; a hidra da heresia é novamente esmagada. A História das variações e a Exposição da doutrina católica são duas obras de cunho imortal.

É natural que o cisma conduza à incredulidade, e o ateísmo siga a heresia. Bayle e Espinoza sucederam a Calvino; afrontou-os Clarke e Leibniz, gênios vigorosos para refutar os sofismas deles. Abbadia escreveu em pró da religião uma apologia distinta em método e raciocínio. Desgraçadamente é débil de estilo, ainda que em pensamentos tem tal ou qual esplendor. “Se os antigos filósofos” — diz Abbadia — “adoravam as virtudes, essa adoração não passava de uma formosa idolatria”.

Ainda a igreja gozava seus triunfos, quando Voltaire ressuscitou a perseguição de Juliano. Teve ele a funesta arte de fazer moda a incredulidade, em uma nação de caprichos e fantasias. Recrutou para esta milícia insensata todas as vaidades, atacou a religião com todas as armas, desde o folheto até ao in-fólio, desde o epigrama até ao sofisma. Se um livro religioso aparecia, o autor dele era imediatamente chasqueado, ao passo que se glorificavam obras, das quais Voltaire e seus privados eram os primeiros a zombar: tão superior ele era a seus discípulos, que mal podia suster o riso da veemência irreligiosa deles. Todavia, o sistema destruidor derramava-se sobre a França, estabelecendo-se nas academias provinciais, que tantas vezes hão sido foco de fações e abrigo de desacertos. Mulheres de boa sociedade, filósofos sérios, professavam a incredulidade. Ao cabo, reconheceu-se que o cristianismo era um sistema bárbaro, de cuja próxima queda dependia a liberdade humana, o progredir das luzes, as doçuras da vida, e a elegância das artes.

Não falando do abismo em que semelhantes príncipes nos lançaram, as imediatas conseqüências deste ódio contra o Evangelho foram um retrocesso mais fingido que sincero aos deuses da Grécia e Roma, aos quais se atribuíam os milagres da antigüidade. 8 Não houve pejo em anhelar esse culto, que convertia o gênero humano em rebanho de insensatos, impudicos, ou bestas-feras. Daí necessariamente devia vir o desprezo pelos escritores do século de Luís XIV, os quais, se tão alta perfectibilidade atingiram, é porque foram religiosos. Se não ousaram injuriá-los de face por medo de seu renome, atacaram-nos de soslaio. Divulgou-se que eles eram secretamente incrédulos, ou viriam a sê-lo se fossem do nosso tempo. Cada autor bendisse o destino que o fez nascer no belo século dos Diderot e d’Alembert, século em que as provas

8 A antigüidade foi mais conhecida ao século de Luís XIV que ao nosso; e, contudo, mais que o nosso era aquele século cristão.

do saber humano estavam classificadas e ordenadas alfabeticamente na Enciclopédia 9 , Babel das ciências e da razão.

A tal torrente quiseram pôr diques homens de grande doutrina e espírito distinto; baldada resistência: vozearam no fragor das multidões; e, se venciam, eram vitórias ignoradas da frívola sociedade que então dominava a França, aquela justamente a quem mais convinha doutrinar. 10

Assim pois a fatalidade que fizera triunfar os sofistas, imperando Juliano, declarou-se a favor deles, neste século. Os defensores dos cristãos reincidiram no antigo desacerto que os perdera: esqueceram que o essencial não era discutir tal ou tal dogma, por isso que apresentavam para todos rejeição absoluta. Partindo da missão de Jesus Cristo, e derivando de conseqüência em conseqüência, estabeleciam, por certo, mui solidamente as verdades da fé; mas este método de argumentação, bom no século XVII, quando o essencial não era contestado, vinha a baldar-se em nossos dias. Urgia entrar no caminho oposto, passar do efeito à causa, pospor a prova de que o cristianismo é excelente por vir de Deus; mas provar que vem de Deus, porque é excelente.

Erraram ainda mais ocupando-se em responder a sofistas, casta de gente que é impossível convencer, porque o seu fito é disparatarem sempre. Deviam saber que os tais nunca de boa-fé averiguaram a verdade, e só professam seus sistemas enquanto eles fazem ruído, sendo fáceis em substituí-los logo que a opinião pública não os bafeja.

Se se desse reparo nisto, poupar-se-iam muito trabalho e tempo. Não importava conciliar os sofistas com a religião; o que convinha era chamar os desvairados por eles. A sedução conseguiram-na, dizendo-lhes que o cristianismo era um culto oriundo da barbárie, absurdo nos dogmas, ridículo nas cerimônias, inimigo das artes e letras, da razão e da beleza; um culto que só tinha servido para derramar sangue, agrilhoar os homens, e estorvar a felicidade e luzes do gênero humano: dever-se-ia, pois, curar de provar que, pelo contrário, de quantas religiões existiram, a cristã é a mais poética, a mais humana e favorável à liberdade, às letras, e às artes; que o moderno mundo tudo lhe deve, desde a agricultura até às essências abstratas, desde os hospícios de desgraçados até aos templos edificados por Michelangelo, e opulentados pelo gênio de Rafael. Dever-se-ia mostrar que a sua moral é o que há de mais divino; e seus dogmas, doutrina e culto o que há de mais pomposo e amável. Dever-se-ia

9 Vede no fim a nota 1.ª. 10 As Cartas de alguns judeus portugueses vogaram por algum tempo; mas desapareceram no redemoinho da irreligião.

dizer que ela instiga o gênio, aperfeiçoa o gosto, germina e desenvolve as paixões honestas, vigoriza o pensamento, ocorre ao escritor com modelos novos, e com perfeitos moldes ao artista; que não é vergonhoso crer com Newton e Bossuet, Pascal e Racine: enfim, urgia invocar todos os encantos da fantasia e todos os interesses do coração em auxilio dessa mesma religião, contra a qual andavam revoltos.

Já o leitor vê o que a nossa obra é. Os demais gêneros de apologias estão gastos, e seriam, talvez, inúteis hoje. Quem leria agora uma obra teológica? Algumas almas piedosas que não precisam ser convencidas, alguns verdadeiros cristãos convencidos já. Será, todavia, perigoso, considerar-se a religião somente em relação ao homem? Por que há de sê-lo? A nossa religião teme a luz? A mais sólida prova da sua celeste origem, é que ela comporta o mais severo e minucioso exame da razão. Querem que eternamente nos acusem de escondermos nossos dogmas em mística escuridão para lhes não descobrirem as falsidades? Será menos verdadeiro o cristianismo quando se ostentar mais formoso? Longo de nós pusilânimes receios: não deixemos perecer a religião por excesso de religião. Já lá vai o tempo em que se podia dizer: Crede e não examineis: o exame há de fazer-se, queiramos ou não; e o nosso tímido silêncio o que faz é aumentar o triunfo dos incrédulos, e diminuir o número dos fiéis.

É tempo, enfim, de saber-se a que se reduzem os apodos de absurdo, grosseria, e mesquinhez, dados continuamente ao cristianismo; é tempo de mostrar que ele, longe de acanhar o pensamento, se presta maravilhosamente aos vôos da alma, e pode encantar o espírito tão divinamente como os deuses de Virgílio e Homero. A vantagem de nossas razões será o pormo-las ao alcance de todos, de modo que baste o reto juízo para avaliá-las. Em obras desta natureza, costuma haver pouco cuidado em falar a linguagem dos leitores: convém ser doutor com doutor, e poeta com poeta. Deus não veda as sendas foridas, quando por elas a ele caminhamos, e não é sempre por veredas agras e íngremes que a ovelha tresmalhada volve ao aprisco.

Afoita-nos a crença de que este modo de ver o cristianismo oferece perspectivas menos conhecidas: sublime pela antigüidade de suas memórias que se ligam ao berço do mundo, inefável nos mistérios, adorável nos sacramentos, interessante na história, celeste na moral, pomposo e deslumbrante em suas galas, requer todas as variedades na pintura. Quereis vê-lo na poesia? Tasso, Milton, Corneille, Racine, Voltaire, vos descrevem as maravilhas dele. Nas belas letras, na eloqüência, na história, na filosofia? Como dele se inspiram Bossuet, Fénelon, Massillon, Bourdaloue, Bacon, Pascal, Euler, Newton, Leibniz! Nas artes? Que primores! Se no culto o examinais, que coisas vos não dizem as velhas igrejas góticas, e suas preces admiráveis, e suas soberbas cerimônias! Ao seu clero pertencem todos esses homens que vos transmitiram a

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