4 minute read

II Da natureza do mistério

linguagem e obras de Roma e Grécia, os solitários da Tebaida e de outros asilos de infelizes, os missionários da China, do Canadá, do Paraguai, e bem assim as ordens militares, geradoras da cavalaria. Antigos usos, pintura de velhos tempos, poesia, romances até, o secreto da vida, tudo fizemos cooperar em nossa causa. Pedimos sorrisos ao berço, e lagrimas à sepultura: umas vezes, estanciamos nas cumeadas do Carmelo e Líbano com o monge maronita; outras, velamos à cabeceira do enfermo com a filha da caridade; aqui, dois esposos americanos nos chamam ao interior dos seus desertos; além, ouvimos gemer a virgem nas solidões do claustro; da glória de Homero e Virgílio compartem Tasso e Milton; às ruinas de Mênfis e Atenas contrapomos as dos monumentos cristãos, aos mausoléus de Ossian as lousas dos nossos cemitérios aldeãos; em S. Diniz, visitamos o cinerário dos reis; e, se o assunto nos manda tratar o dogma da existência de Deus, bastam-nos as provas que nos dão as maravilhas da natureza: finalmente, o nosso fito é abalar o coração do incrédulo, com tudo que pudermos; não nos jactamos, porém, de possuir a vara miraculosa da religião que faz brotar da rocha as águas vivas.

Esta obra compõe-se de quatro partes, e cada uma se subdivide em seis livros. A primeira trata dos dogmas e da doutrina. A segunda e terceira encerram a “poética” do cristianismo, ou as alianças desta religião com a poesia, literatura, e artes. A quarta contém o culto, isto é, tudo que diz respeito a cerimônias de igreja, e ao clero secular e regular.

Advertisement

Além de que, muitas vezes comparamos os dogmas e doutrina dos outros cultos com dogmas, doutrina, e cultos evangélicos: com o intuito de comprazer a todas as classes de leitores, algumas vezes bosquejamos a parte histórica e mística da religião. Agora que o leitor conhece o plano geral da obra, entremos no exame dos Dogmas e da doutrina, e, para melhor entendermos os mistérios cristãos, analisemos primeiro a natureza das coisas misteriosas.

II Da natureza do mistério

As coisas misteriosas são o que há mais belo, grandioso, e doce na existência. Os mais maravilhosos sentimentos são os que nos agitam com certa confusão: pudor, amor casto, amizade virtuosa, rescendem misterioso perfume. Diríeis que os corações amantes com meias palavras se compreendem e se franqueiam. A inocência, santa ignorância, não é per si o mais inefável dos mistérios? Exulta a infância porque tudo

ignora; amisera-se a velhice porque tudo sabe: felizmente para ela, principiam os mistérios da morte onde fenecem os da vida. Dá-se nos afetos o que se dá nas virtudes: as mais angélicas são as que, derivadas imediatamente de Deus, à maneira da caridade, folgam de esconder-se à vista, como a origem delas.

Se perscrutarmos nossa alma, segredos se nos mostram as delícias do pensamento. É tão divina a natureza do segredo, que os primitivos homens da Ásia entendiam-se por símbolos. Que ciência mais nos deleita? A que mais nos esconde os seus segredos, e dilata nossos olhares por uma perspectiva infinita. Se divagamos na solidão, uma espécie de instinto nos faz evitar os plainos, onde tudo se vê dum lance de olhos: voltamo-nos para essas florestas, berço da religião, florestas, cuja sombra, ruído e silêncio encantam com prodígios; esses ermos em que os corvos e abelhas alimentavam os primeiros Padres da Igreja, onde esses santos homens saboreavam tamanhas delícias, que exclamavam: Basta, Senhor, que eu faleço de gozo, se me não diminuis! Finalmente, não é ao pé do monumento moderno de origem sabida que o viajante para; porém, se em erma ilha, no seio do oceano, se nos depara, de repente, uma estátua de bronze, cujo braço estendido aponta as regiões ocidentais, e cuja base é esculpida de geoglifos e carcomida das ondas e dos séculos, que manancial aí de contemplações para o viajante! No universo é tudo oculto e desconhecido. O homem que é senão mistério? Donde vem o resplendor que denominamos vida, e em que trevas se apaga? O eterno afigurou o nascimento e a morte sob o aspecto de dois fantasmas velados nas duas extremas da nossa carreira: um produz o incompreensível momento da vida que o outro prestes devora.

Atenta a propensão do homem para os mistérios, não admira que as religiões de todos os povos tenham segredos impenetráveis. Os Selas estudavam as palavras prodigiosas das pombas de Dodona; a Índia, a Pérsia, a Etiópia, a Cítia, as Gálias, a Escandinávia tinham cavernas, montes santos, carvalhos sagrados, onde os brâmanes, magos, gimnosofistas, druidas, proferiam o oráculo inexplicável dos mortais.

Deus nos livre de comparar estes mistérios com os da verdadeira religião, e as imutáveis profundezas do Soberano celestial com as movediças obscuridades desses deuses, feitura de homens. 11 Quisemos, apenas, fazer notar que não há religião sem mistérios; e que são eles, juntos ao sacrifício, os que formam o culto essencialmente. O próprio Deus é o máximo segredo da natureza; um véu escondia a divindade do Egito, e, nos umbrais dos seus templos, sentava-se a esfinge.

11 Sab., cap. XII, v. 10.

This article is from: