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PREFÁCIO

PREFÁCIO 1

Ressurgia a França do caos revolucionário, quando o Gênio do Cristianismo apareceu; todos os elementos da sociedade estavam confusos: a mão terrível que intentara ordená-los, não conseguira ainda seu intento: despotismo e glória não tinham podido criar a ordem.

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Foi, pois, entre as ruínas dos nossos templos que eu publiquei o Gênio do Cristianismo, chamando a esses templos as pompas do culto e os ministros dos altares. S. Diniz estava deserto: era cedo ainda para que Bonaparte se lembrasse de que havia mister uma sepultura: difícil lhe seria vaticinar o torrão em que a providência lhe destinara. Relíquias de igrejas e mosteiros, que se esboroavam, era o que em toda a parte se via: vaguear por entre essas ruínas era uma espécie de recreio.

Se os críticos contemporâneos, os jornais, os panfletos e os livros sonegavam a influência do Gênio do Cristianismo, não me compete a mim dizê-lo; porém, não me tendo eu nunca arrogado influência pessoal, aliando-me sempre nos destinos do meu país na generalidade, sou forçado a reconhecer verdades que ninguém me contesta: julgassem-nas embora sob diversas faces; que elas existiram, isso está evidenciado.

A literatura, até certo ponto, adotou o colorido do Gênio do Cristianismo; escritores houve que me honraram imitando frases de René e Atala; e bem assim o púlpito repetiu e repete ainda o que eu disse acerca das cerimônias, missões, e benefícios do cristianismo.

Creram-se salvos os fiéis com a aparição de um livro que tão cabalmente quadrava com as suas íntimas disposições: sentia-se sede de fé, avidez de consolações

1 Prefácio do autor à edição francesa de 1828.

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religiosas, nascida da tão longa privação dessas consolações. Era necessária grande força sobrenatural para suportar adversidades tamanhas! Quantas famílias mutiladas a pedirem ao Pai comum os perdidos filhos! Quantos corações lacerados, quantas almas em soledade invocariam mão divina que as curasse! Corria-se à casa de Deus como a casa de médico em dias de pestilencial contágio. As vítimas das nossas desordens (e que vítimas!) socorriam-se ao altar, à maneira de naufragados que se agarram ao rochedo onde buscam salvamento.

O Gênio do Cristianismo, refletindo memórias de nossos antigos costumes, da glória e monumentos de nossos reis, tinha o sabor da antiga monarquia: o legítimo herdeiro estava como que recluso no seio do santuário, cujo véu eu erguia, e a coroa de S. Luís suspensa sobre o altar do Deus de S. Luís. Os franceses afizeram-se a ver com saudade o seu passado; preparou-se a estrada do futuro, e reanimaram-se esperanças quase extintas.

Bonaparte, que anhelava então fundamentar o seu poderio sobre a primeira base da sociedade, e que para isso acordara negociações com Roma, não estorvou a publicação de uma obra útil à popularidade de suas traças. Urgia-lhe lutar contra os homens, que o rodeavam, figadais inimigos de todas as concessões religiosas; e, por isso, folgou de ter por si, fora de França, a opinião apregoada pelo Gênio do Cristianismo. Custou-lhe mais tarde arrependimento o seu descuido; e, no momento da queda, confessou que a obra mais nociva ao seu poder fora o Gênio do Cristianismo.

Bonaparte, porém, amante da glória, deixava-se embair por tudo que a simulasse: fascinava-o o estrondo; e, posto que a fama alheia o inquietasse logo, diligenciava ligar a si o homem que se lhe afigurasse poderoso. Foi por isso que o Instituto, excluindo o Gênio do Cristianismo das obras concorrentes ao prêmio decenal, recebeu ordem de dar o seu juízo acerca desta obra; e, sem embargo de eu haver então mortalmente ferido Bonaparte, este dominador do mundo praticava a miúdo com M. de Fontanes a respeito dos empregos que projetava criar para mim, e benefícios extraordinários que planizava para o meu adiantamento.

Esse tempo passou: fugiram vinte anos, sobrevieram novas gerações, ressurgiu em França um velho mundo que estava fora. Essa sociedade desfrutou trabalhos que ela não fizera, desconhecendo o custo deles: achou desprezada a zombaria que Voltaire cuspira sobre a religião, viu a mocidade afoita buscar o altar, e os padres venerados por seu martírio; e essa velha sociedade julgou que esse reviramento fora natural, e desajudado de mão humana.

Não tardou muito que sentissem ruins vontades contra aquele que lhes abrira as portas do templo, pregando a moderação evangélica, e desejara fazer amar o cristia-

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nismo pela majestade do seu culto, pelo talento de seus oradores, pela ciência de seus doutores, pelas virtudes de seus apóstolos e discípulos. Seria preciso ir mais adiante. Eu não podia: vedava-me a consciência.

Há vinte e cinco anos que a minha vida é uma peleja contra o que se me afigura falsidade em religião, em filosofia, em política, contra crimes e erros deste século, contra homens que abusam da força para corromper ou agrilhoar os povos. Jamais calculei o grau de elevação desses homens; e desde Bonaparte, que fazia tremer o mundo, e nunca me fez tremer a mim, até aos opressores obscuros, só conhecidos por meu desprezo, tenho ousado dizer tudo a quem a tudo se atreve. Quanto em mim cabe, hei dado a mão ao infortúnio; da prosperidade é que nada sei; prestes sempre a devotar-me aos desgraçados, retiro o meu voto às paixões triunfantes.

Seria bom entrar na estrada que eu traçara para restituir à religião a sua salutar influência? Creio que sim. Assimilando-se o espírito de nossas instituições, compenetrando-se da ciência do século, retemperando-se as virtudes da fé com as da caridade, atingir-se-ia seguramente a baliza. Vivemos em tempo de muito precisarmos tolerância e misericórdia. A generosa mocidade está prestes a lançar-se nos braços de quem lhe pregar os nobres sentimentos que tão bem se aliam aos sublimes preceitos do Evangelho; mas não lhe quadra a submissão servil; e, sedenta de instruir-se, tem um paladar difícil para as iguarias da razão.

O Gênio do Cristianismo reaparece agora desligado das circunstâncias, às quais se poderia atribuir o bom acolhimento d´outrora. Os altares restauraram-se, os padres voltaram do exílio, os prelados revestiram-se das principais dignidades do estado. A espécie de desfavor com que, em geral, se desabona o poder, deve igualmente desabonar a iniciativa que preparou a restauração desse poder. Dura por ora o alvoroto da peleja; ainda se não saboreia a vitória. Pode ser que, para certa gente, o nome do autor prejudique a obra. Não sei como é que os serviços que eu tive a fortuna de prestar, raro tenham sido motivo de benevolência para mim daqueles a quem os fiz, entretanto que os homens, que eu sempre impugnei, prezam meu nome e meus escritos: as calúnias não me vem dos inimigos. Será o vício de natural ingratidão das opiniões que apoiei, porque até certo ponto eram minhas? De certo não: o culpado sou eu só.

Por considerações de tempo, lugares, e indivíduos, sou forçado a concluir que se o Gênio do Cristianismo continua a ser lido, a causa é diversa da que lhe deu o primeiro aplauso: os favores de então desfavorecem-no hoje. Sem embargo, a obra reimprime-se apesar das numerosas edições antigas, e eu avalio-a sempre como o meu principal crédito à benevolência pública.

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