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VII Da comunhão

Considerado, porém, em mais alta esfera, e como figura do mistério da nossa redenção, o batismo é um banho que restitui à alma o seu primeiro vigor. Não se recorda sem saudade a formosura dos antigos tempos, quando o silêncio das florestas e a profundeza das covas não eram de mais para os fiéis que aí vinham meditar nos mistérios! Os primitivos cristãos, coevos da renovação do mundo, viviam de pensamentos muito diversos destes que nos pendem agora para a terra, a nós, cristãos envelhecidos no século, e não na fé! Nesses tempos morava a sabedoria nas cavernas como os leões, e os reis iam consultar o solitário às fraguras. Dias tão depressa idos! Já não há um S. João no deserto; o ditoso neófito não sentirá jamais inundarem-no as águas do Jordão, que para o mar lhe levavam as impurezas.

A confissão vem após o batismo, e a igreja, com a prudência que só ela usa, marcou a época da confissão na idade em que é concebível a idéia do crime: aos sete anos tem, de certo, um menino conhecimento do bem e do mal. Os homens todos, incluindo até os filósofos, ainda os mais desavindos em opiniões, tiveram o sacramento da penitência em conta de fortíssima barreira contra vícios, e obra-prima da sabedoria. “A quantas restituições e reparações”, diz Rousseau, “não obriga a confissão entre os católicos!” 23 No dizer de Voltaire, “a confissão é mui excelente coisa, é freio ao crime, inventado na mais remota antigüidade: na celebração de todos os antigos mistérios, havia confissão. Imitamos e santificamos este uso: ótimo é ele para incitar ao perdão corações afistulados de ódio”. 24

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O culpado cairia em desespero, se não tivesse este salutar instituto. Em que seio aliviaria ele o peso de seu coração? Seria no de um amigo? Quem pode confiar-se à amizade de homens? Fará seus confidentes os ermos? Os ermos representam sempre no crime os ruídos das tubas que o parricida Nero cuidava ouvir em redor do tumulo materno. 25 Quando natureza e homens são inexoráveis, é doce achar um Deus que perdoa; só à religião cristã coube fazer irmãs a inocência e o arrependimento.

VII Da comunhão

Na primavera da vida, aos doze anos, une-se o adolescente ao seu Criador. Depois de haver chorado a morte do Redentor do mundo com os montes de Sião, e

23 Emilio, tom. III, pág. 201, na nota. 24 Quest. sur l’encycl., t. III, pág. 234, artigo Curé de campagne, section II. 25 Tacit. Hist.

contemplado as trevas que assombraram a terra, emerge a cristandade da sua dor: retinem as torres, descobrem-se as imagens; o brado festival, a antiga alleluia de Abraão e Jacó, ressoa nas naves das igrejas. Donzelas de alvos vestidos, e moços enfeitados de folhagem, caminham sobre tapetes das primeiras flores; ao pé do templo repetem novos cantares, seguidos da parentela: não tarda que desça Cristo ao altar para essas almas maviosas. O pão dos anjos é dado à língua verdadeira, imaculada de mentira, enquanto o sacerdote bebe, no vinho puro, o sangue meritório do Cordeiro.

Nesta solenidade, recorda Deus um cruento sacrifício, sob as mais pacíficas aparências. Aliam-se às incomensuráveis alturas desses mistérios as recordações de cenas alegríssimas. A natureza ressuscita com seu Criador, e o anjo da primavera parece descerrar-lhe as portas do túmulo, como o espírito de luz afastou a lousa do glorioso sepulcro. A idade dos tenros comungadores e a do ano nascente entrelaçam suas verduras, harmonias e inocências. O pão e o vinho anunciam as dádivas da terra quase maduras, e aformoseiam os quadros da vida agrícola; Deus, em suma, desce às almas desses meninos a fecundá-las, como desce, em tal sazão, ao seio da terra para a enflorar e enriquecer de frutos. Dirão, porém: que quer dizer essa comunhão mística em que a razão é obrigada a submeter-se a um absurdo, sem aproveitamento algum para os bons costumes?

Seja-nos lícito, desde já, responder em geral com referência a todos os ritos cristãos, que eles são da mais alta moralidade, só porque nossos pais os praticaram, só porque nossas mães foram cristãs ao pé dos nossos berços; finalmente, porque a religião entoou seus hinos ao pé da campa dos nossos avós, e invocou eterno descanso para as cinzas deles.

Supondo ainda que a comunhão seja uma pueril cerimônia, é mister grande cegueira para não ver que uma solenidade, precedida de uma confissão geral, e que só pede ser seqüência de uma série de virtuosos atos, há de favorecer para muito os bons costumes. E tanto favorece, que se um homem se aproximasse dignamente, uma vez só cada mês, do sacramento da Eucaristia, este homem necessariamente seria o mais virtuoso da terra. Transportai o raciocínio do individual para o coletivo, do homem para o povo, e vereis que a comunhão é uma legislação completa.

“Eis-aqui homens”, diz Voltaire (cuja autoridade é insuspeita), “eis-aqui homens que recebem Deus em si, por intermédio de uma cerimônia augusta, ao clarão de cem círios, ouvindo harmonias que lhes enlevam os sentidos, ao pé de um altar resplendente de ouro. A imaginação está subjugada, e a alma enternecida e extática; embarga-se a respiração; vem o desapego dos bens terrenos; sente-se Deus no íntimo, na carne e no sangue. Quem ousará ou poderá cometer, depois disto, uma só falta,

imaginar sequer o cometê-la? É impossível imaginar mistério que retenha mais eficazmente os homens na virtude”. 26

Se com igual força nos exprimíssemos, alcunhar-nos-iam de fanático.

Foi, na Ceia, que nasceu a Eucaristia: os pintores; que digam a formosura do quadro em que Jesus Cristo é representado, pronunciando estas palavras: Hoc est corpus meum. Quatro coisas resultam deste mistério:

No pão e vinho materiais, vê-se a consagração do alimento dos homens, que vem de Deus, e da sua munificência recebemos. Ainda que mais não houvera na comunhão senão o holocausto das riquezas da terra oferecido àquele que as dispensa, bastaria isto para comparar-se aos mais gentis costumes das mitologias gregas.

A Eucaristia recorda a páscoa dos Israelitas, que recua à época dos Faraós; anuncia o extermínio dos sacrifícios sanguentos; é outrossim a imagem da vocação de Abrahão, e da primeira aliança de Deus com o homem. Todo o grandioso da antigüidade, da história, da legislação, das figuras sagradas, está reunido na comunhão cristã.

A Eucaristia significa a reunião dos homens em uma grande família; reprova as inimizades; estabelece a igualdade natural e a nova lei, que não descriminará judeus de gentios, e chamará todos os filhos de Adão ao mesmo banquete.

Enfim, o quarto descobrimento que fazemos na Eucaristia, é o mistério direto da presença real de Deus no pão consagrado. Aqui, deixa alar-se, um momento, a alma para o mundo intelectual que, antes da queda, lhe fora patente.

Logo que o Onipotente criou o homem à sua imagem, e lhe bafejou o hálito da vida, fez aliança com ele. Adão e Deus praticavam juntos na solidão. A aliança foi rescindida pela desobediência. O eterno ser não podia comunicar com a morte, a espiritualidade com a matéria. Ora, entre duas coisas de propriedades diferentes, só pode dar-se contato por um intermédio. O primeiro esforço, que fez o amor divino para se aproximar de nós, foi a vocação de Abrahão, e o estabelecimento dos sacrifícios: figuras que anunciavam ao mundo a vinda do Messias. O Salvador, restaurando-nos para os nossos fins, como já dissemos a propósito da redenção, deveu reintegrar-nos em nossos privilégios e o mais belo desses privilégios era, sem dúvida, comunicar com o Criador. Esta comunicação, porém, não podia dar-se imediatamente como no paraíso terrestre: primeiro, porque a nossa origem ficou manchada; depois, porque o nosso corpo, hoje sujeito ao túmulo, ficou tão débil, que não poderia comunicar com Deus diretamente sem perecer. Era urgente, pois, um mediador; prestou-se o Filho, dando-se ao homem na Eucaristia, e abrindo-nos o sublime acesso Àquele de onde a nossa alma emanou.

26 Quest. sur l’encycl., tom. IV, édit. de Généve.

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