10 minute read

IV Da redenção

dos lábios lhe fluía um rio de luz. Os sete espíritos de Deus, diante dele, como sete lâmpadas cintilavam, e debaixo do seu supedâneo saíam vozes, raios e relâmpagos”. 19

IV Da redenção

Advertisement

Assim como a Trindade encerra os segredos da ordem metafísica, a redenção encerra as maravilhas do homem, com a história dos seus desígnios e do seu coração. Com que assombro, se nos detivéssemos breve espaço em tais meditações, não veríamos enlaçarem-se aqueles dois mistérios que em seus arcanos escondem as primeiras intenções de Deus, e o sistema do universo! A Trindade confunde a nossa pequenez, deslumbra-nos os sentidos, e afugenta-nos desalentados. Mas a afetuosa redenção, velando-nos de lágrimas os olhos, não nos deixa deslumbrar, e deixa-nos fitá-los, um momento, na cruz.

Deste mistério vê-se primeiramente sair a doutrina do pecado original, que explica o homem. Rejeitada esta verdade, identificada à tradição universal, é tudo trevas. Sem a primitiva mácula, como se há de explicar a propensão viciosa de nossa natureza, contrastada por uma voz que nos diz termos sido formados para a virtude? Como explicar-se esta nossa aptidão para a do? E os suores que fecundam um sulco de angústias? E as lágrimas, as tristezas, e as desgraças do justo? E os triunfos e as vitórias impunes do mal? Repito, como, sem a queda primitiva, se há de isto explicar? Por ignorância desta degeneração é que os filósofos da antigüidade desvairaram absurdamente, e inventaram o dogma da reminiscência. A maldição proferida contra Eva, maldição que, todos os dias, se cumpre à nossa vista, é sobeja prova da fatal verdade, que é origem do mistério do resgate. Que coisas não vão aí nesse doer de entranhas, e ao mesmo tempo nas delícias da maternidade! Que misteriosos vaticínios do homem e do seu duplo destino, predito conjuntamente pela dor e pela alegria da mulher parturiente! Não é possível desconhecer os desígnios do Altíssimo, descortinando os dois máximos destinos do homem no padecer maternal, e força é confessar um Deus até na maldição!

E, além de tanto, nós vemos aí, cada dia, o filho expiando as culpas do pai, e a repercussão do crime de um mau ir ferir um descendente virtuoso: sobeja prova do

19 Apoc., cap. I e IV.

pecado original. Um Deus, porém, bom e paciente, sabendo que desta queda morreríamos, veio salvar-nos. Frágeis e criminosos, não perguntemos ao nosso espírito, mas ao nosso coração, como pôde morrer um Deus. Se aquele perfeito modelo de bom filho, exemplar de amigos fiéis, se aquele retiro no Monte das Oliveiras, aquele amargoso cálice, aquele suor de sangue, aquela doçura de alma, aquela sublimidade de espírito, aquela cruz, aquele véu rasgado, aqueles rochedos fendidos, aquelas trevas da natureza; se aquele Deus, enfim, expirando pelos homens, nos não arrebata o coração, nem abrasa os pensamentos, é para temer que em nossas obras jamais se encontrem como nas do poeta “esplêndidos milagres” — speciosa miracula.

“Imagens não são razões” — dir-se-á, talvez —; “estamos em século de luzes, em que tudo não provado se rejeita”.

Se estamos em século de luzes, alguém duvida; mas a precedente objeção era de esperar. Os Orígenes, os Clarke, os Bossuet respondiam, quando contra o cristianismo lhes saíam sérios argumentadores. A estes formidáveis adversários, era costume fugir atribuindo-lhes o disputar metafísico em que tramavam enredá-los. Diziam, como Ário, Celso e Porfírio, que a nossa religião é uma rede de sutilezas, que nada prestam ao coração, nem à imaginativa, e só acareiam sectários entre os tolos e os idiotas. 20 Surja alguém, que, refutando essas últimas argüições, venha a demonstrar que o culto evangélico é o do poeta e o das almas ternas, respondem logo: “que prova isso se não que vós pintais bem ou mal um quadro?” De modo que se quereis pintar e comover, pedem-vos logo axiomas e corolários. Se raciocinais, escasseiam-vos imagens e sentimentos. Não há inimigos mais volúveis, e impermanentes no posto onde os buscamos.

Aventuraremos, pois, algumas palavras acerca da Redenção, para mostrar que a teologia do Cristianismo não é tão absurda como afetadamente inculcam.

A universal tradição nos ensina que o homem foi criado em estado mais perfeito que o presente, do qual degenerou. Fortalecem esta tradição as opiniões dos filósofos de todas as idades e nações, os quais nunca puderam compreender o homem moral sem pressupor uma primitiva perfeição, de onde a natureza humana se despenha por sua culpa. 21

Se o homem foi criado, criado foi para algum fim; ora, sendo criado perfeito, destino a que era chamado, só podia ser perfeito. Mas a causa final do homem seria alterada pela queda? Não; porquanto, o homem não foi de novo criado; não; porquanto, a raça humana não foi extinta para dar lugar a outra raça.

20 Ogir., C. Cel., I. III, p. 144. Porph., Ap. Eus., Hist. Eccl, VI, c. IX. 21 Vede Plat., Arist., Sen., os SS. PP., Pascal, Grot. Arn., etc.

Assim, pois, o homem tornado mortal e imperfeito por sua desobediência, ficou, todavia, com fins imortais e perfeitos. Como atingirá esses fins no estado atual de sua imperfeição? Não o pode com energia própria, do mesmo modo que um enfermo não pode altear-se a pensamentos onde se eleva o homem são. Há, pois, desproporção entre a força e o peso a levantar com essa força: aqui já se entrevê a necessidade de um auxílio ou de uma redenção.

“Tal raciocínio” — nos dirão — “seria bom com aplicação ao primeiro homem; nós, porém, somos aptos para nossos fins. Injustiça seria, e absurdo é pensar que pagamos todos a culpa do nosso primeiro pai!”

Não decidiremos aqui se Deus tem ou não tem razão de nos tornar solidários: o que sabemos, e mais importa saber por ora, é que esta lei existe. Vemos, em toda a parte, o filho inocente expiar a culpa do pai: tão identificada está esta lei ao princípio das coisas, que até na ordem física do mundo se repete. Quando uma criança vem à vida, fistulada das libertinagens do pai, porque vos não queixais da natureza? Que fez esse inocente que merecesse a pena de alheios vícios? Aí tendes que as moléstias da alma se perpetuam como as moléstias do corpo, e o homem, na sua derradeira posteridade, paga a falta que lhe legou o primeiro crime.

Evidenciada assim a queda pela tradição universal, pela transmissão ou geração do mal moral e físico; — e, de mais, permanecendo perfeitos, quais eram antes da desobediência, os fins do homem, conquanto em si degenerado, segue-se que uma redenção, ou qualquer meio de tornar o homem apto para seus fins, é natural conseqüência do despenho da natureza humana.

Admitida a necessidade de redenção, busquemos-lhe a ação onde a pudermos encontrar. Esta ação há de exercê-la o homem, ou ator mais elevado que o homem.

O homem. É preciso que o preço seja, ao menos, igual à coisa resgatada para se dar uma redenção. Ora, como se há de admitir que o homem, imperfeito e mortal, possa por si oferecer-se para reaver um fim perfeito e imortal? Quinhoeiro na primitiva culpa, seria suficiente o homem, já pecador em si, já cúmplice na culpa do gênero humano? Tal dedicação não exigiria amor e virtude sobrenatural? Parece que o céu quis deixar correr quatro mil anos, desde a queda até à reabilitação, para dar tempo à humanidade de resolver por si quanto suas forças degeneradas eram minguadas para tamanho sacrifício.

A segunda conjectura é a única aceitável; a saber: que a redenção devia proceder de uma condição sobre-humana. Vejamos se ela podia vir de seres interpostos a Deus e ao homem.

Milton teve uma bela idéia, quando supôs que, após o pecado, o Eterno perguntou ao céu consternado se lá havia algum poder que quisesse sacrificar-se à salvação do homem. As divinas hierarquias ficaram silenciosas, e, entre tantos serafins, tronos, querubins, dominações, anjos e arcanjos, ninguém se animou ao sacrifício. Este pensamento do poeta é rigorosamente verdadeiro em teologia. Na verdade, onde tomariam os anjos para dar ao homem o imenso amor, encerrado no mistério da cruz? Ainda mais diremos que a suprema das potências criadas não teria bastante força para cumprir o sacrifício. Nenhuma substancia angélica, por débil em sua essência, poderia sujeitar-se a dores, que, no dizer de Massillon, aglomeraram sobre a cabeça de Jesus Cristo todas as angústias físicas, que a punição de todos os pecados cometidos desde a origem das raças podia supor, e todas as penas morais, todos os remorsos, que deveriam ter remordido os pecadores, quando pecaram. Se o próprio Filho do homem achou amargo o cálice, como o roçaria com os lábios um anjo? As fezes jamais as tragaria, e o sacrifício não seria consumado.

Só, pois, podíamos ser remidos por uma das três pessoas existentes ab aeterno: ora, das três divinas pessoas, o filho, por sua natureza, devia ser o único a resgatar- -nos. Reconciliar Deus com o homem, só ele, por ser o amor que ata entre si as partes do universo, meio que liga os extremos, princípio vivificante da natureza. Veio, novo Adão, homem segundo a carne por Maria, homem segundo a moral por seu evangelho, homem segundo Deus por sua essência. Nasceu de uma Virgem, para vir ileso do pecado original, e ser vítima sem mácula; veio à luz em um estábulo, no ínfimo grau das humanas condições, por isso que de orgulhosos caíramos; aqui principia a profundeza do mistério; perturba-se o entendimento, e cerra-se o sacrário.

De novo se nos dá a vencer a baliza que nos fora dada antes da desobediência; mas diverso é o caminho para alcançá-la. Adão, inocente, iria lá por estrada deleitosa; Adão, pecador, só lá iria por sendas escabrosas. A natureza é outra depois da culpa de nosso primeiro pai, e a Redenção não delineou fazer uma nova criação, mas restaurar, ao cabo, a salvação da primeira. Tudo caiu, pois, em degeneração com o homem; e esse rei do universo, que nascera imortal, e devera sublimar-se, sem variar de existência, à felicidade das potências celestiais, não pode agora fruir a presença de Deus, sem atravessar, os desertos do túmulo, como pondera S. Crisóstomo. A Redenção remiu-lhe a alma da final destruição; mas a sentença primitiva, em todo o seu rigor, fulminou-lhe o corpo, naturalmente frágil, e mais frágil ainda com o acidente do pecado: a sentença é o cair, o dissolver-se, o aniquilar-se. Deus, depois do desastre de nossos primeiros pais, cedendo à súplica de seu Filho, e não querendo destruir o

homem, inventou a morte como um semi-nada, para que o pecador sentisse o horror do inteiro nada, ao, qual seria condenado sem os prodígios do amor celestial.

Ousamos presumir que se alguma coisa há clara em metafísica é a cadeia deste raciocínio. Aqui não se torturam as palavras, não se fazem divisões e subdivisões, não há termos obscuros e bárbaros. O cristianismo não adota esses expedientes que o sarcasmo da incredulidade lhe atribui. O Evangelho foi pregado ao pobre de espírito, e foi entendido do pobre de espírito: é o mais inteligível livro que há, cuja doutrina vai toda ao coração e não à cabeça, ensinando a bem viver, e não a argumentar. É certo, porém, que tem arcanos. O que há mais inefável na Escritura é a conjunção continuada dos mais profundos mistérios com a mais extrema simplicidade, de onde procede o afetuoso e sublime dela. Assim, pois, não é para espantar a soberana eloqüência da obra de Jesus Cristo; tão válidas são ainda as verdades da religião, conquanto desaparelhadas de enfeites científicos, que o mesmo é admitir um ponto que admiti-los todos. Ainda mais: se pensais evadir-vos negando um princípio, o pecado original, por exemplo, para logo, apertados de conseqüência em conseqüência, sereis compelidos ao ateísmo. Logo que reconheceis um Deus, a religião cristã, com os seus dogmas, se vos insinua, ainda que vos pese, como advertem Clarke e Pascal. Eis-aqui, a nosso ver, uma das vigorosíssimas provas em favor do cristianismo.

Por último, não se admirem se aquele que faz girar, sem confusão, milhões de globos sobre nossas cabeças, travou tão harmoniosos os princípios de um culto, por ele instituído: não se admirem do giro em que ele fez entrar os seus magníficos e donosos mistérios como em círculo de lógica infalível, do mesmo modo que os astros se revezam para nos revezarem estações de flores e de coriscos. Custa a compreender o desenfreamento desta geração contra o cristianismo. Se é verdade que a religião é necessária aos homens, segundo o assentimento de todos os filósofos, qual culto nos antepõe ao de nossos pais? Serão perpetuamente lembrados esses dias em que homens sanguinários pretenderam erigir aras às virtudes sobre as ruínas do cristianismo. Erguiam patíbulos com a mão direita, e com a outra, sobre o frontispício dos nossos templos, a eternidade para Deus e a morte para o homem. Esses templos, outrora receptáculos do Deus universal e da Virgem consoladora, dedicaram- -nos à Verdade, que ninguém conhece, e à Razão, que nunca enxugou uma lágrima.

This article is from: