10 minute read
VII Da confirmação, ordem, e matrimônio
Se o Filho, porém, permanecesse na sua primitiva essência, é evidente que a mesma separação existiria, aqui, entre Deus e o homem, pois que não pode haver junção entre pureza e crime, entre uma realidade eterna e o sonho da nossa vida. Ora, o Verbo, encarnando no seio de uma mulher, consentiu fazer-se semelhante a nós. De um lado, confina com o Pai pela espiritualidade, do outro une-se à carne pela efígie humana. E assim se faz a aproximação do filho culpado e do pai misericordioso. Ocultando-se sob o emblema do pão, é para os olhos corporais um objeto sensível, e para os olhos da alma fica sendo objeto intelectual. Se preferiu velar-se no pão, é que o pão é um emblema nobre e puro do divinal sustento.
Se esta alta e misteriosa teologia, que bosquejamos: com ligeiros traços, assusta os leitores, que examinem eles quanto é luminosa esta metafísica confrontada com a de Pitágoras, de Platão, de Timeu, de Aristóteles, de Carnéades, de Epicuro. Não se nos deparam aí abstrações de idéias que nos forcem a criar linguagem ininteligível ao maior número.
Advertisement
Epilogando o que dissemos da comunhão, vemo-la apresentar-se com encantadora magnificência, ensinar a moral, porque repele de si os impuros; ser a oferenda dos dons da terra ao Criador; e recordar a sublime e afetuosa história do Filho do homem. Ligada às recordações da páscoa e da primeira aliança, a comunhão é coeva dos tempos mais remotos; participa das primitivas idéias da natureza do homem religioso e político, e exprime a antiga igualdade do gênero humano: enfim, perpetua a memória do nosso primitivo desastre, da nossa restauração, e da nossa união com Deus.
VII Da confirmação, ordem, e matrimônio
EXAME DO VOTO DE CELIBATO NO QUE RESPEITA À MORAL
Não cansa o espanto, quando se reflete na época da vida em que a religião aprazou o sublime consórcio do homem com o Criador. É no momento em que o coração vai abrasar-se em fogo de paixões, e no momento também em que ele pode conceber o Supremo Ente: Deus vem saciar os anseios do adolescente, responder às faculdades do espírito alvoroçado, engrandecendo-lhe. O perigo, porém, aumenta: novos auxílios há mister este peregrino inexperto, lançado às veredas do mundo. A religião não o desamparará porque lhe reserva um apoio. Como cajado em mão de
viageiro, ou como esses cetros que passavam de geração em geração nos reis antigos, e aos quais se arrimavam Evandro e Nestor, pastores de homens, julgando os povos, assim a confirmação lhes esteia os tremidos passos. Advirtamos que toda a moral da vida se encerra no sacramento da confirmação: todo aquele que tem força de confessar a Deus, praticará infalivelmente a virtude, pois que praticar o crime é renegar do Criador.
O mesmo espírito de sabedoria colocou a ordem e matrimônio depois da confirmação. Ao homem de hoje, que era ontem menino, dará a religião, que o vigiara carinhosa no estado de natureza, amparo novo no estado de sociedade. Admirai agora os profundos juízos do legislador dos cristãos. Só dois sacramentos sociais, se assim ousamos dizer, ele instituiu, porque são só dois os estados na vida: celibato e casamento. Sem curar das distinções civis engenhadas pela nossa acanhada razão, Jesus Cristo divide a sociedade em duas classes. A essas classes não deu leis políticas, mas sim morais, e assim se harmoniza com todos os legisladores da antigüidade. Os antigos sábios do Oriente, que deixaram magnífico renome, não congregavam homens vindos por acaso, para meditar impraticáveis instituições. Esses sábios eram veneráveis solitários que viajaram longo tempo, e cantavam os Deuses em suas liras. Repletos de riquezas hauridas em estranhos países, mais ricos ainda em dons de santa vida, com a teorba em punho, e os cabelos cingidos de áurea grinalda, esses homens divinos, sentados sob a copa do plátano, ditavam lições a um povo inteiro embebecido. E que eram as instituições de Anfião, de Cadmo, de Orfeu? Uma donosa música chamada lei, danças, cantares, algumas árvores sagradas, velhos encaminhando crianças, um consórcio enlaçado ao pé de um túmulo, e a religião, e Deus em toda a parte. O mesmo fez o cristianismo, mas por mais admiráveis processos.
As mais sábias instituições sofrem detratores, porque não é possível concordarem todas as opiniões. Ultimamente, declararam guerra ao voto de celibato, ligado ao sacramento da ordem. Uns, buscando em tudo armas contra a religião, creram achá- -las na própria religião; para isso revalidaram a antiga disciplina da igreja, que, segundo eles, consentia o casamento do padre. Outros contentaram-se com chasquearem a virgindade cristã. Responderemos primeiro aos ânimos sérios e às objecções morais.
É indubitável que o sétimo cânon do segundo concílio de Latrão do ano 1139, decreta definitivamente o celibato do clero católico: em épocas anteriores podem citar-se algumas disposições do concílio Lateranense em 1123, 27 do Triburiense em
27 Cap. XXI.
895, 28 do Troliense em 909, 29 do Toledano em 633, 30 e o Calcedonense em 451. 31
Barônio prova que o voto do celibato era geral no clero desde o sexto século. 32 Um cânon do primeiro concílio Turonense excomunga qualquer presbítero, diácono, ou subdiácono que conservasse sua mulher depois de recebidas as ordens: Si inventus fuerit presbyter cum sua presbytera, aut diaconus cum sua diaconissa, aut subdiaconus cum sua subdiaconissa annum integrum excomunicatus habeatur. 33 Já no tempo de S. Paulo a virgindade era tida em conta de perfeitíssimo estado para o cristão.
Admitindo, porém, que o casamento dos padres foi tolerado na primitiva Igreja, o que é insustentável histórica e canonicamente, não se deduzia daí que devesse hoje ser permitido aos eclesiásticos. Os modernos costumes se opõem a esta inovação, que aluiria desde os alicerces a disciplina da Igreja.
Nos primitivos tempos da religião, tempos de combater e triunfar, os cristãos, poucos, mas robustos de virtude, viviam fraternalmente, saboreavam os mesmos prazeres, e aquinhoavam as mesmas amarguras à mesa do Senhor. No grêmio desta sociedade santa, que era em si uma família, bem pudera ter o pastor família sua; seus próprios filhos não o fariam esquecer às outras ovelhas, porque tinham parte no mesmo rebanho; não haveria receio de que ele delatasse aos seus os segredos dos pecadores, porque não havia crimes a esconder, e as confissões faziam-se em voz alta nas basílicas da morte, 34 onde os fiéis se congregavam em oração sobre as cinzas dos mártires. Esses cristãos receberam do céu um sacerdócio que nós perdemos. O que hoje é ajuntamento de povo, era então uma comunidade de levitas e religiosos: o batismo criara-os padres e confessores de Jesus Cristo.
S. Justino, o filósofo, na primeira Apologia, pinta admiravelmente o viver dos fiéis desse tempo: 35 “ Acusam-nos, diz ele, de perturbarmos a tranqüilidade do estado, e, todavia, um dos principais dogmas da nossa fé é que nada se esconde aos olhos de Deus, e que ele julgará um dia nossas boas e más ações: porém, ó poderoso imperador, as penas que decretaste contra nós, o que fazem é afervorar-nos na nossa devoção, pois que todas essas perseguições nos foram preditas pelo nosso Mestre, Filho do soberano Deus, Pai e Senhor do universo.
28 Cap. XXVIII. 29 Cap. VIII. 30 Can. LII. 31 Can. XVI. 32 Baron., An., LXXVIII. 33 Can. XX. 34 Hieron. 35 Vede no fim a nota 2.ª.
“No dia do sol (domingo) todos os moradores da cidade e do campo se ajuntam num lugar comum. Lê-se as sagradas Escrituras; um ancião 36 exorta, depois, o povo à imitação de tão bons exemplos. Levantam-se, oram outra vez; apresenta-se água, pão e vinho; o prelado diz a ação de graças, e os assistentes respondem: Amen. Por estes se distribui uma parte das coisas sagradas, e os diáconos levam o remanescente aos ausentes. Faz-se uma coleta; os ricos dão o que lhes apraz. O prelado arrecada estas esmolas, com as quais socorre a viúva, o órfão, o doente, o preso, o pobre, o estrangeiro, numa palavra, todos os necessitados, encargo especial do prelado. Se nos ajuntamos no dia do sol, é porque Deus fez o mundo nesse dia, e em igual dia ressurgiu seu Filho, para confirmar aos discípulos a doutrina que te expusemos.
“Se a achas boa, respeita-a; se desprezível, rejeita-a, mas não entregues, por isso, aos verdugos quem te não fez algum mal; porquanto, ousamos dizer-te que não te esquivarás ao julgamento de Deus, se te obstinares na iniqüidade: demais, seja qual for nosso destino, faça-se a vontade de Deus. Poderíamos apelar de ti para a carta de teu pai César Adriano, de ilustre e gloriosa memória; antes queremos, porém, confiar-nos à justiça de nossa causa”. 37
A Apologia de Justino devia maravilhar o mundo! Era a revelação de uma idade de ouro no meio da corrupção, o descobrimento de um povo nos subterrâneos do antigo império. Esses costumes deviam de parecer tanto mais belos, quanto estavam ao contrário do princípio do mundo, longe da natureza e das leis, contrariando o restante da sociedade. O que realça acima de tudo o viver desses fiéis mais de encantar que a vida dos homens perfeitos divinizados pela Fábula, é que estes representam-se felizes, e aqueles afiguram-se-nos através das delícias da desgraça. Não é sob a folhagem dos bosques e à beira das fontes que a virtude nos aparece mais poderosa; importa vê-la no escuro das masmorras, por entre ondas de sangue e lágrimas. Quão divina é a religião, se no fundo de um subterrâneo, na calada escuridade dos túmulos, um pastor, rodeado de perigos, celebra, ao clarão do lampadário, em frente de alguns fiéis, os mistérios de um Deus perseguido!
Urgia-nos estabelecer solidamente a inocência dos cristãos primitivos, para demonstrar que, se com tanta pureza o casamento dos padres foi julgado então inconveniente, hoje seria absolutamente impossível admiti-lo.
Multiplicados os cristãos, ampliada com os homens a corrupção, como poderia o sacerdote cuidar da sua família e da sua igreja? Se a esposa degenerasse da castidade,
36 Um padre. 37 Just., Apol, édit. Marc., fol. 1742,
poderia ser ele casto? Repliquem-nos com os países protestantes, e nós redargüiremos que nesses países foi forçoso abolir uma grande parte do culto externo; que o ministro vai ao templo duas ou três vezes por semana, apenas; que entre o rebanho e pastor poucas relações subsistem; e que o pastor é o mais das vezes um homem de bailes e festas e recreios da sua família. Acerca de certas seitas sombrias que simulam simplicidade evangélica, e querem uma religião sem culto, esperamos que as não trarão como argumento. Finalmente, nos países onde o casamento dos padres é estatuído, a confissão, a mais sublime entre as instituições morais, caducou, e devia logo caducar. É natural que ninguém queira confiar seus segredos a um homem que confia os próprios a uma mulher; é racional o receio de confiar no padre que rescindiu o seu contrato de fidelidade com Deus, e repudiou o Criador para esposar a criatura.
Faltava responder à objeção que se faz da lei geral da população.
Enquanto a nós, uma das primeiras leis naturais, que, pela nova aliança, se deveram abolir, foi a que favorecia a população além de certos limites. Em Jesus Cristo as circunstâncias diversificavam das de Abraão. Este veio em tempo de inocência, quando a terra era pouco povoada; Jesus Cristo veio no auge da corrupção humana, quando a terra já não era a solidão que fora. Hoje há o pudor que vela o seio da mulher; a segunda Eva, delindo as máculas da primeira, fez baixar do céu a virgindade para dar-nos longes do estado de pureza e alegria, que precedeu as dores da mãe primitiva.
O legislador dos cristãos nasceu de uma virgem, virgem morreu. Não quis ele, por tal meio, ensinar-nos que a terra, tanto em relação à natureza como à política, chegara ao seu complemento de população, e que, longe de multiplicar as gerações, convinha restringi-las? Esteia-se esta opinião no deperecimento dos estados por causa do grande número, e nunca pela falta de habitantes. A população excessiva é o flagelo dos impérios. Os bárbaros do norte devastaram o globo quando as suas florestas trasbordaram; a Suíça foi obrigada a derramar por estrangeiros países os seus industriosos habitantes, como derrama suas correntes fertilizadoras; e até entre nós se está vendo não deperecer a cultura, pelo contrário florescer, quando tantos agricultores se perderam. Miseráveis insetos que nós somos! Zumbindo em redor de uma taça de absinto, onde casualmente caíram algumas gotas de mel, devoramo-nos uns aos outros quando o espaço nos falta! Para cúmulo de infortúnio, quanto mais nos multiplicamos, maior espaço cobiçamos. Desse terreno que se encurta sempre, e dessas paixões crescentes, devem, cedo ou tarde, resultar revoluções terríveis. 38
38 Vede no fim a nota 3.ª.