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Além das paredes físicas das grandes instituições de saúde

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QUANDO VIVEMOS UMA CRISE DE SAÚDE SEM PRECEDENTES É MAIS DO QUE NUNCA URGENTE QUE HAJA UM ACOMPANHAMENTO E UMA MONITORIZAÇÃO MULTIPROFISSIONAL DE LONGA DURAÇÃO DA DOENÇA CRÓNICA, CRIANDO-SE UM ECOSSISTEMA DE SERVIÇOS QUE ENGLOBE TODOS OS STAKEHOLDERS DA SAÚDE.

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Autor: José Inácio Faria, Ex-Eurodeputado

De acordo com o Perfil de Saúde em Portugal referente ao ano de 2019 (num trabalho conjunto da OCDE e do Observatório Europeu de Políticas e Sistemas de Saúde, em cooperação com a Comissão Europeia), cerca de metade das pessoas com 65 anos ou mais comunicaram sofrer de pelo menos uma doença crónica e muitas outras de duas ou mais afeções crónicas.

Nos dias que correm as doenças crónicas são responsáveis por mais de 80% da carga assistencial dos cuidados de saúde primários, bem como pela maioria dos internamentos hospitalares e por grande parte dos episódios de urgência. São elas ainda as principais destinatárias da quase totalidade dos cuidados continuados.

A grandeza destes números e os custos sociais e económicos que lhes estão associados vêem-se agora agravados pela pandemia devido à particular vulnerabilidade dos doentes crónicos às complicações da COVID-19, ao impacto da restrição de recursos e da interrupção de rastreios, tratamentos e acompanhamento (quer de rotina, quer de carácter urgente) nas situações não COVID-19, à suspensão da entrega de proximidade da medicação hospitalar. E ainda ao facto das medidas adotadas para conter a pandemia, em particular o confinamento, terem aumentado certos comportamentos de risco de doentes crónicos, como o sedentarismo, as dietas pouco saudáveis e o consumo abusivo de álcool.

Mas a verdade é que só agora começamos realmente a ter a perceção das consequências do confinamento, do distanciamento social e do medo generalizado que se instalou, com doentes a chegarem às unidades de saúde com quadros clínicos gravemente descompensados que, em condições de normalidade, seriam largamente evitados.

Perante este cenário preocupante que vivemos, torna-se cada vez mais imperioso que os profissionais de saúde mais próximos dos doentes crónicos, como é o caso dos farmacêuticos comunitários, possam garantir que estes mantêm as suas enfermidades o mais estabilizadas possível, que não interrompem as suas medicações crónicas e que possam continuar a recorrer aos serviços de atendimento permanente em caso de descompensação da sua situação clínica.

Dados divulgados pelo Eurostat em setembro de 2020, apresentam Portugal como o oitavo país da União Europeia com mais profissionais na área da Farmácia em 2018 (cerca de 91 farmacêuticos por cada 100 mil habitantes) e indicam que os farmacêuticos comunitários realizam mais de 120 milhões de atos por ano, atendem cerca de 4,2 milhões de cidadãos e dedicam a esse trabalho mais de 11 milhões de horas. Toda esta atividade contribuiu efetivamente para uma redução do consumo anual de cuidados de saúde, como consultas não programadas, urgências e internamentos hospitalares, estimada em mais de seis milhões de intervenções. Outro estudo recente, promovido pela Ordem dos Farmacêuticos, estima que a intervenção dos farmacêuticos nas farmácias comunitárias gera uma poupança anual de cerca de 880 milhões de euros.

A possibilidade destes serviços poderem vir a ser prestados nas mais

de 3000 farmácias espalhadas por todo o país justificam um maior aproveitamento e a sua progressiva inserção em novos modelos de prestação de serviços complementares no âmbito do Serviço Nacional de Saúde e nas estratégias de imunização da população (estabelecendo, como é óbvio, um preço adequado ao serviço a ser prestado), em estreita articulação com as prioridades definidas pelas autoridades sanitárias nacionais e evitando nesta abordagem multissectorial o desperdício ou a duplicação de recursos.

Mas, enquanto que nalguns países assistimos ao aparecimento de projetos-piloto baseados em modelos de boas práticas onde o farmacêutico integra as equipas multidisciplinares de cuidados de saúde primários, atuando essencialmente como clínico na prestação de cuidados ao doente (um bom exemplo disto é o programa “GP super clinics program”, financiado pelo governo australiano, que integra o farmacêutico na prática clínica prestando serviços de revisão da terapêutica como “Home Medicines Review” ou ”Residential Management Review Services”), em Portugal iniciamos com alguma timidez experiências de serviços farmacêuticos críticos para a saúde dos portugueses, com processos que se arrastam no tempo e sem qualquer investimento público, desperdiçando quer o fator proximidade, quer o potencial na prestação de cuidados primários no alívio das urgências hospitalares, dos internamentos e das listas de espera.

E o facto insofismável é que a realidade nos tem demonstrado que a prestação de cuidados de saúde se estende muito para além das paredes físicas das grandes instituições de saúde. E que hoje, quando vivemos uma crise de saúde sem precedentes com os hospitais sob enorme pressão, com milhares de pessoas internadas e os cuidados intensivos no limite, é mais do que nunca urgente que haja um acompanhamento e uma monitorização multiprofissional de longa duração da doença crónica, criando-se um ecossistema de serviços que englobe todos os stakeholders da saúde (médicos, pacientes, farmacêuticos, associações de doentes crónicos e órgãos reguladores).

Seja como for uma coisa é certa, nenhum doente, crónico ou não, pode ficar para trás neste momento de emergência médica! •

Um estudo recente, promovido pela Ordem dos Farmacêuticos, estima que a intervenção dos farmacêuticos nas farmácias comunitárias gera uma poupança anual de cerca de 880 milhões de euros

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