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Impactos da pandemia COVID-19
from Infopharma nº3
by editorialmic
A ELEVADA PRESSÃO ADICIONAL SOBRE AS INSTITUIÇÕES QUE FOI GERADA PELA ATUAL PANDEMIA E O SEU IMPACTO NA ATIVIDADE NÃO-COVID IMPÕE A PREPARAÇÃO E ARTICULAÇÃO DE RESPOSTAS DE GOVERNAÇÃO E DE ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA, DE MODO ARTICULADO, QUE CRIEM CONDIÇÕES PARA UMA RESPOSTA E MITIGAÇÃO QUE ASSEGURE ACESSO E EQUIDADE.
Autor: José Carlos Fernandes Pereira, Administrador Hospitalar
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1. IMPACTO NA PRESTAÇÃO DE CUIDADOS DE SAÚDE
O período de emergência internacional de saúde pública e de pandemia pelo vírus SARS-CoV-2, declarado pela Organização Mundial da Saúde em 11 de março de 2020, está a impactar profundamente na atividade das instituições prestadoras de cuidados de saúde.
A concentração de uma elevada quantidade de recursos materiais e humanos na gestão da pandemia alterou a atividade dos hospitais e dos centros de saúde e sobrecarregou os profissionais alocados a atividades COVID-19, muitas delas invisíveis, gerando maior redução da procura, agravada por barreiras autoimpostas (receio de contágio ou isolamento) ou que resultaram de cancelamento ou adiamento de atos clínicos.
O impacto na prestação de cuidados de saúde em Portugal foi analisado pela Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares (APAH) e pela Ordem dos Médicos, no âmbito da iniciativa conjunta, denominada de Movimento Saúde em Dia (www.saudeemdia.pt).
Através dos dados de 2020 (janeiro a dezembro), disponíveis no Portal da Transparência do SNS, comparados com o período homólogo de 2019, foram analisadas diversas áreas de prestação de cuidados.
Iniciando pelos cuidados de saúde primários, relativamente a consultas ou contactos médicos nos centros de saúde, este estudo assinala em 2020 um crescimento global de 4,7% (+1,4 milhões) face a 2019:
Redução de 38% das consultas médicas presenciais nos centros de saúde (-7,8 milhões), com maior discrepância em abril; Crescimento de 101% dos contactos médicos não presenciais ou inespecíficos, passando de 9,1 milhões para 18,5 milhões, com maior discrepância em novembro; Redução de 37% das consultas médicas ao domicílio (-72 mil), com maior discrepância em abril; e Mais de 7,8 milhões de contactos presenciais médicos por realizar em 2020.
Relativamente aos contactos de enfermagem nos centros de saúde, de registar em 2020 uma redução global de 13% (-2,7 milhões) face a 2019:
Redução de 18% dos contactos presenciais de enfermagem (-3,6 milhões), com maior discrepância em abril; Crescimento de 62% dos contactos não presenciais de enfermagem (+844 mil), com maior discrepância também em abril; e Mais de 3,6 milhões de contactos presenciais de enfermagem por realizar em 2020, comparativamente a 2019.
Em termos de MCDT (meios complementares de diagnóstico e terapêutica), globalmente, foram realizados em 2020 menos um quarto dos exames e análises:
Redução de 25% de exames convencionados (-25 milhões de atos realizados), com maior discrepância em abril; Maior expressão desta redução em áreas como a Medicina Física e de Reabilitação (-12,4 milhões), Análises Clínicas (-9,9 milhões), Radiologia (-1,6 milhões), Cardiologia (-414 mil) ou endoscopia gastroenterológica (-366 mil), entre outras.
No âmbito do Programa de Rastreios Oncológicos, foram igualmente observadas quebras:
Redução de 21% de mulheres com registo de mamografia nos últi-
mos dois anos, com mais de 169 mil rastreios por realizar; Redução de 12% de mulheres com colpocitologia atualizada, com mais de 140 mil rastreios por realizar; e Redução de 7% de utentes inscritos com rastreio do cancro do cólon e reto efetuado, com mais de 125 mil portugueses sem rastreio.
Na análise dos cuidados de saúde hospitalares, foram observados os dados das principais linhas de atividade. Globalmente, entre consultas, cirurgias e urgências houve em 2020 menos 3,4 milhões de contactos comparativamente com 2019:
Redução de 11% das consultas externas (-1,3 milhões), com maior discrepância em abril, das quais se desdobra numa diminuição de 16% de primeiras consultas (-584 mil) e de 8% nas subsequentes (-726 mil); Redução de 18% das cirurgias (-126 mil), com maior discrepância em abril, das quais se desdobra numa diminuição de 19% das intervenções programadas (-115 mil) e de 11% das intervenções urgentes (-10 mil); e Redução de 31% de episódios de urgência (-2 milhões), igualmente com maior discrepância em abril, dos quais se desdobra numa diminuição de 30% dos atendimentos por Triagem de Manchester emergentes, muito urgente ou urgentes (-1 milhão), e de 28% nos pouco urgentes ou não urgentes.
O relatório deste estudo pode ser consultado no site da APAH (www.apah.pt).
Em sentido semelhante seguem as conclusões de um outro estudo realizado pela IASIST Portugal. A partir dos dados disponibilizados pela Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), foi comparada a atividade hospitalar dos meses de março a setembro dos anos de 2019 e 2020, tendo concluído por uma redução de 14% das consultas externas (-1 milhão), uma queda de 35% de observações urgentes (-1,3 milhões de atendimentos), menos 23% de internamentos (-72 mil altas), uma redução global de 30% de intervenções cirúrgicas e uma redução generalizada na atividade de transplantação. Num inquérito realizado entre os dias 28 de agosto a 8 de setembro de 2020 à população portuguesa pela GfK Metris, sobre o acesso a cuidados de saúde durante a pandemia, aproximadamente 2 milhões declararam sofrer de uma ou mais doenças crónicas. Doze por cento destes doentes sentiu um agravamento da sua doença, dos quais 76% recorreu a cuidados médicos. Os restantes (um em cada quatro doentes) não procuraram cuidados médicos por desvalorização da gravidade ou receio de contágio.
Destaque positivo neste inquérito da GfK Metris para o acesso seguro e agilizado ao medicamento durante a pandemia, com realce para a não ocorrência de rutura de stocks, facilidades no acesso às prescrições ou no pedido/renovação de receituários à distância (por telefone ou email, com comunicação direta para as farmácias comunitárias).
O fornecimento de medicamentos dispensados pelas farmácias hospitalares aos doentes em regime ambulatório, através das farmácias comunitárias e da entrega ao domicílio, foi ainda positivamente percecionado por 60% dos doentes crónicos inquiridos. Esta medida permitiu manter continuidade no fornecimento de medicamentos, suplementos, nutrição clínica – entre outros dispensados em regime ambulatório da farmácia hospitalar –, manter as terapêuticas e incrementar acesso e proximidade.
Apesar de empiricamente percecionarmos impactos na saúde pública que resultarão do cancelamento ou adiamento da resposta, não é ainda possível determinar a dimensão ou os efeitos desse impacto na saúde dos portugueses, designadamente nos 3,9 milhões (57,8%) que reportaram ter pelo menos uma doença crónica (INSEF 2015).
Certo é que os cancelamentos ou adiamentos limitaram o acesso à prestação de cuidados de saúde ou a meios de diagnóstico e agravaram as listas de espera.
2. RESPOSTA E MITIGAÇÃO
As instituições do SNS há muito revelam fragilidades como as que constatamos aquando do aumento da incidência das infeções respiratórias na população, designadamente as devidas à epidemia sazonal da gripe. A elevada pressão adicional sobre as instituições que foi gerada pela atual pandemia e o seu impacto na atividade não-COVID impõe a preparação e articulação de respostas de governação e de organização do sistema, de modo articulado, que criem condições para uma resposta e mitigação que assegure acesso e equidade.
O Plano da Saúde para o Outono-Inverno 2020-21, uma estratégia em vista a dar resposta à evolução da pandemia COVID-19 e às necessidades de saúde da população noutras áreas, foi apresentado pelo Ministério da Saúde em setembro de 2020.
Em termos de resposta não-COVID-19, esta estratégia previu: (i) a formaliza-
ção de uma task-force; (ii) a maximização da resposta nos cuidados de saúde primários, com atendimento presencial, não presencial e domiciliário; (iii) reforçar as respostas de proximidade, incluindo dispensa de medicamentos; (iv) maximizar a resposta nos hospitais através de maior articulação com cuidados de saúde primários, incluindo o encaminhamento de situações não urgentes; (v) incentivar a cirurgia eletiva e de ambulatório com avaliação pré-operatória em modelo drive-through; (vi) definir unidades hospitalares “COVID-19 free”; (vii) e continuar a expansão da hospitalização domiciliária.
Aguarda-se com elevada expectativa novos desenvolvimentos sobre este plano.
3. IMPACTO NO MERCADO DO
MEDICAMENTO
Comparando os dados disponibilizados pela monitorização do mercado do medicamento (www.infarmed.pt), o consumo nacional de medicamentos em meio ambulatório em 2019 e 2020, acumulado a setembro, registou um aumento de 3,3% da despesa do SNS (32 milhões de euros) e uma redução de 0,8% (-4,1 milhões de euros) da despesa do utente. Tal poderá sugerir a manutenção do acesso ao medicamento no período pandémico, apesar de uma desaceleração da trajetória quando comparado 2019 com 2018 (+5,4%).
As classes terapêuticas com maior aumento na despesa foram os antidiabéticos (11,9%), os anticoagulantes (6,1%) e os modificadores do eixo renina angiotensina (9,8%). Os medicamentos com maior aumento na despesa foram o apixabano (18,3%), o sacubitril + valsartan (73,7%) e o dulaglutido (62,3%).
Relativamente ao consumo nacional de medicamentos em meio hospitalar em 2019 e 2020, igualmente acumulado a setembro, é possível observar um aumento de 2,8% da despesa do SNS (27,8 milhões de euros), representando uma aceleração da trajetória em 1% quando comparado 2019 com 2018.
As áreas terapêuticas com maior aumento de despesa são a oncologia (10,6%), a esclerose múltipla (11,0%) e a amiloidose (16,5%). Os medicamentos com maior aumento de despesa são o darunavir + cobicistate + embicitabina + tenofovir alafenamida (64%), o dolutegravir + abacavir + lamivudina (14,5%), e o osimertinib (65%).
4. CONTRIBUTO DAS
FARMÁCIAS COMUNITÁRIAS
Os stakeholders da saúde passaram a adaptar-se a uma nova realidade e a reformular as suas atividades de modo a assegurar continuidade e respostas adequadas à pandemia.
O setor farmacêutico não foi exceção e passou a seguir novas normas do INFARMED e da DGS em vista a assegurar medidas de segurança sanitária para colaboradores e utentes. Estas medidas permitiram salvaguardar o papel fundamental no sistema de saúde de uma rede de 2.804 farmácias comunitárias, assim como um efetivo acesso ao medicamento por todo o território nacional, dando um precioso contributo para a equidade na prestação de cuidados de saúde.
Para muitos cidadãos, as farmácias são a estrutura de saúde mais acessível para prestar cuidados de proximidade. Pela sua abrangência geográfica e qualificação dos seus profissionais, as farmácias comunitárias assumem uma importância fundamental no ecossistema da saúde, designadamente no acesso e gestão da terapêutica, administração de medicamentos, determinação de parâmetros, identificação de pessoas em risco, deteção precoce de diversas doenças, promoção de estilos de vida saudáveis ou no processo de vacinação.
No âmbito da COVID-19, as farmácias comunitárias passaram a contribuir diariamente para incrementar a literacia e o esclarecimento de dúvidas dos cidadãos sobre prevenção da infeção pelo SARS-CoV-2 ou a segurança das novas vacinas.
Com acesso a uma operação logística robusta e um universo de farmacêuticos com formação e competência reconhecida pela Ordem dos Farmacêuticos em administração de vacinas e medicamentos injetáveis, as farmácias comunitárias portuguesas estão aptas a dar um contributo adicional significativo para o alargamento e diversificação dos locais de vacinação contra a gripe sazonal (desde 2007) e contra a COVID-19, alavancando a estratégia nacional de vacinação e libertando hospitais e centros de saúde.
Após experiências bem-sucedidas (v.g. terapêuticas antirretrovirais), as farmácias comunitárias passaram a fornecer, em proximidade, os medicamentos dispensados nas farmácias hospitalares em regime de ambulatório, sem descurar a qualidade, eficácia e segurança, mantendo as boas práticas de distribuição de medicamentos de uso humano.
Através de Circular Normativa do INFARMED, de 7 de abril de 2020, foram emitidas orientações para o acesso de proximidade a medicamentos dispensados em regime ambulatório de farmácia hospitalar, no atual contexto de pandemia por COVID-19, tendo por objetivos assegurar a continuidade do fornecimento de medicamentos ou outros produtos, evitar deslocações aos hospitais e minimizar riscos de exposição, quer por dispensa na farmácia comunitária, quer por entrega dos medicamentos no domicílio do utente.
Nesta matéria, a APAH promoveu um estudo populacional sobre a acessibilidade e dispensa de proximidade ao medicamento hospitalar, efetuado através de entrevistas online entre 20 de outubro e 4 de novembro. Em dezembro publicou as seguintes conclusões do estudo (nº 23 da revista Gestão Hospitalar):
35,8% dos inquiridos mudaram o local de levantamento/dispensa da medicação hospitalar, do período pré-pandemia para o pós-confinamento; Dos 75,9% das pessoas que antes do confinamento faziam o levantamento através do modelo hospitalar, 41,1% mantiveram esse levantamento durante e após o confinamento e 23,2% mudaram para o modelo de proximidade durante o confinamento e mantiveram-se no pós-confinamento (farmácia comunitária ou entrega ao domicílio); Os doentes que mudaram para o modelo de proximidade manifestaram-se muito mais satisfeitos, com uma avaliação de 4,6 numa escala de 1 (nada satisfeito) a 5 (muito satisfeito); Antes do confinamento, 61,2% das pessoas precisava da receita em papel para levantar a medicação, depois do confinamento as receitas eletrónicas ou por sms passaram a ser uma realidade para 61% das pessoas; Antes do confinamento, em 42,2% dos casos a dispensa era para um período mensal, depois do confinamento 65,9% das dispensas passaram a ser para períodos superiores a dois e três meses; Cada utente poupou em média 112km nas suas deslocações de ida e volta; Antes do confinamento, 28,6% gastava mais de 20 euros em deslocações, depois do confinamento 92% passaram a gastar menos de 5 euros; Antes do confinamento, 58,9% esperava entre 15 a 60 minutos no local de entrega (hospital), depois do confinamento 80,5% passaram a esperar menos de 15 minutos (farmácia comunitária ou domicílio); Antes do confinamento, 55% dos doentes que mudaram para o modelo de proximidade tinham que faltar ou tirar férias no trabalho, depois do confinamento 90% dos inquiridos deixaram de ter a necessidade de faltar ao trabalho ou tirar férias; Para o futuro, 82,9% dos inquiridos gostaria que o levantamento/ dispensa da medicação fosse feito numa farmácia perto de si (43,7%) ou em casa (39,2%); 65% dos inquiridos estão dispostos a pagar para receber a medicação no local que pretendem, independentemente do pagamento ou não de taxas moderadoras; Os meios de contacto com os profissionais de saúde sofreram alterações durante o confinamento e no pós-confinamento, privilegiando-se o email, whatsapp, sms e chamadas telefónicas; No futuro, a utilização de uma aplicação para consultar o ponto de situação da entrega da medicação é considerada pelos inquiridos como muito útil, com uma avaliação de 4,17 numa escala de 1 (nada útil) a 5 (muito útil).
Por sua vez, um estudo da NOVA Information Management School (NOVA-IMS) sobre a dispensa de medicamentos em farmácia hospitalar, divulgado em setembro de 2020, revelou que cerca de 6,4% dos portugueses que fazem terapêutica regular tomam medicamentos de dispensa exclusiva em farmácia hospitalar. Destes, 85,7% levanta os medicamentos no hospital onde tem a consulta e 14,3% noutro hospital. Para tal, cada doente faz 7,6 deslocações por ano ao hospital, para levantamento dos medicamentos, o que representa, para o utente 5h27 de tempo despendido e um custo de 14,30€/ida.
Acrescenta que o custo total das idas dos doentes ao hospital, somado ao valor económico do tempo despendido, representa um custo anual de 185 milhões de euros para o seu bolso. Juntando o valor económico do tempo despendido por parte do hospital, no total, a dispensa de medicamentos em farmácia hospitalar tem um custo anual de 199 milhões de euros.
Conclui este estudo que, no atual contexto pandémico, é possível retirar dos hospitais atividades como a dispensa de medicamentos e, consequentemente, reduzir pressão sobre os mesmos, reduzir custos e beneficiar a proximidade e o acesso ao medicamento. •