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A Farmácia de Sabóia e a Assistência Farmacêutica em meio rural (Parte I

A HISTÓRIA DE UMA FARMÁCIA DO MUNDO RURAL DE MEADOS DO SÉCULO PASSADO QUE SE ESPERA TER CUMPRIDO PARA COM O POVO DE SABÓIA O SEU DEVER NA PRESTAÇÃO DA ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA E CUJO ACERVO ESTÁ EM EXPOSIÇÃO NA BIBLIOTECA DA FFUL.

Autor: José Cabrita, Professor Catedrático da Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa

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Em novembro de 2020 doei à Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa (FFUL) o recheio da antiga Farmácia Popular, sita em Sabóia, que foi propriedade da minha família durante quase um século.

O seu espólio constituído por armários, balcões, centenas de frascos de vidro rotulados e contendo ainda os respetivos produtos medicinais, louças, balanças, equipamentos e material de apoio à prestação de cuidados de saúde, bem como livros técnicos e documentação, permitiu recrear parte da Farmácia Popular, tal como existia nas décadas de 40 a 70 do século passado na aldeia alentejana de Sabóia.

Esta recriação deu origem a uma exposição permanente integrada no acervo da Biblioteca da FFUL no âmbito do seu projeto Memória & Património.

Aquando da sua inauguração foi-me proposto que escrevesse um pequeno texto para enquadramento da exposição. É esse texto que aqui transcrevo. A FARMÁCIA DE SABÓIA EM MEADOS DO SÉCULO XX (DÉCADAS DE 40 A 60)

A Aldeia Sabóia é uma das freguesias mais antigas do concelho de Odemira. Situa-se no interior sul daquele concelho, nos contrafortes da serra de Monchique, em terras do Alto Mira. Em meados do século XX era uma das mais importantes freguesias rurais do concelho com uma população média superior a 4.500 habitantes entre 1940 e 1960.

Embora tipicamente alentejana, a freguesia de Sabóia não pertence ao Alentejo latifundiário e da grande planície. Ao contrário, predominam aqui as herdades de pequena e média dimensão, as altas serranias e corgos profundos onde serpenteia o Mira e suas ribeiras.

Naquela época, a maioria dos seus habitantes trabalhavam a terra como assalariados rurais, pequenos proprietários e rendeiros, ou eram artesãos, carpinteiros, ferreiros e outros artífices que produziam os utensílios e ferramentas indispensáveis à vida daquela pequena comunidade rural. No entanto, à sua dimensão, Sabóia tinha atividade comercial considerável, com dezenas de lojas, mercearias e tabernas. Existiam ainda algumas fábricas artesanais de moagem, cerâmica e cozimento de cortiça que empregavam algumas dezenas de trabalhadores.

A partir da década de 60 a estrutura da aldeia, tipicamente agrária, alterou-se em consequência da construção da barragem de Santa Clara, do aumento da emigração para o estrangeiro e para as colónias, bem como das migrações para o Algarve, originando um progressivo abandono dos campos e da atividade agrícola.

Sabóia dispunha na década de 40 e 50 algumas estruturas ou serviços muito pouco comuns em aldeias da sua dimensão, muito provavelmente devido à influência política de alguns dos seus habitantes mais ilustres. Entre elas salientamos: a estação ferroviária a funcionar desde o século XIX e onde paravam todos os comboios, de mercadorias e de passageiros, assegurando a ligação ao Algarve ou a Lisboa; a Casa do Povo, inaugurada em 1934, sendo a primeira criada no concelho de Odemira e uma das mais antigas do distrito de Beja e que dispunha de uma sala de espetáculos e de consultório médico apetrechado com um aparelho de RX; um Dispensário da Associação Nacional dos Tuberculosos (ANT) edificado em 1932, um dos 4 do Distrito de Beja e do total de 83 existentes em todo o país; um posto da Guarda Nacional Republicana; um jornal quinzenário regionalista, o “Ecos da Serra” editado desde 1925 e mantido, com algumas interrupções, até à década de 40.

Por outro lado, as características orográficas da região e a deficiente rede viária tornavam Sabóia uma aldeia muito isolada. Não existia estrada alcatroada nem transporte público para a sede do concelho. No inverno, em tempo de chuvas, as cheias das ribeiras impediam o acesso a muitos pequenos povoados das redondezas.

Até ao final da década de 60 a rede elétrica e o saneamento básico ainda não tinham chegado à aldeia. A maioria da população vivia em habitações exíguas, sem conforto e sem saneamento básico, esgotos ou abastecimento de água canalizada. A água dos poços e fontes da região era muito salobra e imprópria para consumo e a “água de beber” era distribuída por aguadeiros que a transportavam em pipas desde a Fonte do Vale Bispo, a cerca de 15 quilómetros, em carros puxados por mulas durante várias horas.

Assim, em Sabóia, como na generalidade das aldeias alentejanas da época, as condições sanitárias e socioeconómicas eram muito precárias, o que criava condições desfavoráveis e era frequente a ocorrência de doenças entéricas, zoonoses e sobretudo de tuberculose.

A assistência sanitária pública era muito deficiente. O contributo do Estado era exercido quase exclusivamente através da Casa do Povo que pagava, através de uma avença ao médico e à enfermeira, a assistência médica e custeava uma parte dos medicamentos dos seus associados.

Na época apenas os lavradores e os trabalhadores rurais poderiam ser sócios da Casa do Povo, e assim parte da população não era abrangida pela Previdência, por não estar ligada à atividade agrícola. Além destes, também muitos trabalhadores rurais, sócios da Casa do Povo, por não terem meios para pagar regularmente as suas quotizações, ficavam privados do acesso às consultas e da comparticipação nos medicamentos.

Assim, para a maioria da população e principalmente para os mais carenciados, a assistência na doença a que tinham acesso era a que era prestada de forma solidária pelo médico, pela enfermeira e pela farmácia. As consultas e os tratamentos eram pagos quando fosse possível e na maioria das vezes em géneros: os ovos da capoeira, os peixes da ribeira, as perdizes ou lebres de uma caçada bem-sucedida, ou quando havia algum dinheiro disponível, geralmente depois das mondas e das ceifas. Havia pobreza, mas também honradez e as dívidas do rol de medicamentos, de consultas e de curativos, acabavam sempre, ou quase sempre, por ser saldadas.

Nas décadas em análise, em Sabóia houve sempre um médico residente, uma enfermeira dedicada e uma farmácia com porta aberta todos os dias. Os saboianos desses tempos recordarão os médicos Dr. Damas Mora, Dr. Pratas, Dr. Amaral, Dr. Tito e Dr. Nata, a enfermeira D. Rosa e os ajudantes de Farmácia, o Sr. Joaquim Talhinhas e o Sr. José Cabrita. •

(Continua na próxima edição)

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