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Apresentação

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Índices

Índices

! NOS BH .20A UMDOC . f O r O é! Ev

> Moi, un Noir, devir negro Oumarou Ganda, um imigrante que trabalha como estivador na cidade de Abidjan, na Costa do Marfim e mora no bairro pobre de Treichville mudou pra sempre minha relação com o cinema e, posso dizer, com a antropologia, em uma sessão do primeiro forumdoc (e desde então, me emocionar pelo esforço da partilha ou por achar beleza demais em um filme tem sido uma coisa só). Oumarou e seus amigos encenam suas vidas diante da câmera, Oumarou interpreta a si mesmo e também a Edward G. Robinson, um boxeador americano. Oumaroutoma para si o filme, comenta, inventa. De uma falta, Rouch faz, com seus amigos migrantes uma grande invenção: Moi, un Noir foi realizado sem som – o filme é de 1958 – e é na pós-sincronização que ainda mais compartilha o cinema, a invenção, o real e a invenção do real. Oumarou toma para si o papel que se atribui ao longo do filme. A fala de Oumarou Ganda descreve os lugares que se oferecem à imagem, uma descrição que não é uma interpretação nos termos de um observador, mas uma reivindicação pela apropriação de um sentido que não se submete a uma análise exterior e se afirma em sua autonomia. Enquanto encenam, os protagonistas inventam uma realidade, seu próprio mundo e o constituem. “O cinema verdade não é a verdade no filme. É a verdade do filme” (Vertov). Impossível buscar um ponto de vista único, impossível buscar uma evidência unívoca. Impossível buscar o documentário ou a ficção, o cinema ou a antropologia, Rouch ou Oumarou, o autor ou o personagem. E nunca se aprendeu tanto sobre Treichville. Em Moi, un Noir a existência é pouco a pouco percebida como uma escolha possível, uma construção autônoma e original, um campo de invenção, de criação e não uma simples etapa na ordem de um determinismo geral. Como disse Marc Piault, essa é uma das mais fortes propostas do filme: seus protagonistas não somente falam em seu próprio nome, mas olham do outro lado da tela em direção ao espectador que os espera em algum lugar. Precisamos repetir, tantas vezes, Moi, in Noir, Jean Rouch, Oumarou Ganda. [Junia Torres]

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> 1997. O forumdoc.bh estreia como 1º Festival do Filme Documentário e Etnográfico. Fórum de Cinema, Vídeo e Antropologia. A abertura, dia 24 de novembro de 1997, às 19h, no Cine Humberto Mauro (PA), com os filmes Segredos da Mata, de Dominique Gallois e Vincent Carelli [Vídeo nas Aldeias] e Zapatista Women (1995), de Guadalupe Miranda e Maria Inês Roqué [Mostra Internacional do Filme Etnográfico]. Mas foi a sessão, dentre outras tantas memoráveis dessa edição de abertura, da película Nordeste Cordel, Repente Canção (1975), de Tânia Quaresma, aquela que não me sai da memória. Como esquecer da música de abertura do filme,um desafio de viola entre Zé Ramalho e Geraldo Azevedo. De Vezúvio, um cachorro de quintal, insistindo em fazer parte da cena enquanto sua dona tece com ele um diálogo surreal, levando a sala de cinema abaixo. Agabito Francisco Correia, Cego Oliveira, Palito - o invisível, Pinto do Monteiro, Olho de Gato, Beija Flor e Oliveira, dentre tantos outros artistas nordestinos, como esquecer, Caju & Castanha ainda crianças, cantando e tocando cocos e emboladas. O filme focado na divulgação de folhetos de cordel na música de cantadores, nas festas e feiras populares nos encantou tanto com suas cores e sons que iria figurar em diversas outras edições do festival, a ponto da diretora certa vez nos ter indagado o porquê de tantas exibições! Saudades das projeções de Nordeste Cordel, Repente Canção (1975) e toda aquela empolgação! [Paulo Maia]

> Como éramos verdes quando começou esse devaneio, tudo se passava como se fôssemos íntimos dos cineastas mais incríveis. Ficamos tão amigos de Jean Rouch! Vimos tantos de seus filmes! As festas Segui, as baterias Dogon, Horendi, Yenendi ... seus ralenti: a dançarina flutuando... Uma nação inteira em festa, ornamentada em vermelho e amarelo! A voz off! As casas na terra e em tom de terra, os bosques baixos e as cavernas, longos caminhos! Caçada ao leão, aos hipopótamos, um filhote, brinquedo da meninada na beira do rio! O olhos dos Mestres Loucos! A camiseta branca do Negro, o Jaguar! Também nos tornamos familiares dos bosquímanos do Kalahari, caçadores de girafa! Que gaiata! Fugia depois de flechada, ia longe, andava em círculos, voltando de onde vinha. Aprendemos com de John Marshall as artimanhas vãs de um animal gigante para não se deixar capturar por humanos tão pequenos. Os bosquímanos estalam e assobiam para falar! Vimos a Amazônia, os últimos isolados, a década da destruição. Era a filmografia de Adrian Cowell denunciando o fim dos tempos, a colisão dos mundos! Mas antes, a beleza, a leveza elegante do caçador caiapó cercando a anta, correndo na ponta dos pés, acuando o animal no campo aberto até conseguir desfechar

a borduna fatal! Desde o começo, houve Vídeo nas Aldeias! Como cada filme era um mundo! Era possível reconhecer a riqueza das diferenças indígenas, mas também nossa parte nos índios, como a parte deles em nós! Ficamos mais indígenas com o capitão Vincent, Divino... O Glauber estava na derradeira sessão de domingo! Era dele o dever de encerrar a maratona. Glauber prevenia o próximo ano! Antes, no catálogo, havia um texto do Gato! Ah! os catálogos! A vaca! A boneca parida de Terezinha Maxakali! Os mutantes do Pedro Moraleida! É verdade, faz tempo, eu vi! Vimos coisas… [Renata Otto]

> Conversas dentro de conversas. Assim me referi a Santo Forte, em um texto escrito por ocasião dos 10 anos do forumdoc. Folheando os catálogos à procura de um filme, reencontro inúmeras possibilidades... Tenho dificuldade de escolher, então deixo falar a velha obsessão, retornando a este filme tão importante. Para, quem sabe, reter um pouco da presença sempre lúcida de Coutinho entre nós. Em 1999, terceira edição, o festival abriu com Santo Forte. Era a primeira (e então única) cópia do filme. Coutinho estava aqui, fumando intensamente, com sua bolsa a tiracolo, esperando para entrar na Humberto Mauro no final da projeção. O impacto da sessão foi imenso, e a conversa se estendeu. Algo do que a gente pensava, nós do forumdoc, antes mesmo da visita de Comolli (em 2001), encontrava em Santo Forte uma expressão poderosa. Um documentário do encontro, sem roteiro prévio, aberto ao mundo, menos retórico e mais indagativo, econômico nos recursos narrativos, deixando exposta a relação básica, constitutiva de qualquer documentário: aquela entre quem filma e quem é filmado. Além do mais, capaz de criar a cena provisória na qual aquelas mulheres pobres de Vila Parque da Cidade, como Dona Thereza (grandiosa!), podiam se afirmar narradoras criativas e potentes, insubmetidas a preconceitos e estereótipos, livres das amarras e normatizações cotidianas, desamarradas dos clichês narrativos e de posições rígidas... Sujeitas, em suma, de suas experiências e histórias, contadas de um jeito belamente “conversante”. Pois suas narrativas apareciam dramatizadas na forma de diálogos - ao narrar, entrevistadas e entrevistados interpretam as várias personagens envolvidas na cena narrada, construindo suas histórias “em diálogo”: conversando com outros homens e mulheres e com os espíritos. O diálogo, principal forma de narrar, parecia então formalizar um modo de vida, um movimento de troca e interação constantes. O fato de Coutinho também adotar a conversa como abordagem duplicava o dialogismo já presente nas falas de todas as narradoras. Conversas abrigadas em conversas. Não me canso de admirar essa “forma”, e acho

que persigo esse filme desde aquela noite. Cada entrevista em Santo Forte abre para uma cena teatral complexa. Se ele lapida algo do que Coutinho já vinha gestando (um modo de abordar e compor a experiência), Santo Forte também inaugura: nas cenas de André e Dona Thereza, encontro agora prefigurações de Jogo de Cena e de Moscou. Os filmes de Coutinho prosseguem com a gente. [Cláudia Mesquita]

> São muitos filmes marcantes em tantos forumdocs – plural complicado porque em latim seria foradocs, sendo que se quer o fora Temer, embora o que possa vir depois talvez seja péssimo também. Mas, virão outros fora, e voltando ao que interessa aqui e agora, há muitas imagens e sons, como socos, em minha cabeça, de um longo longa, meu segundo filme sobre esquimós, depois de Nanook, com a diferença de que Atanarjuat, o Veloz foi feito por esquimós. Até hoje a cabeça, atordoada, recorda. Há também Serras da desordem, outro longa longo em que outro indígena, também veloz, corre e se delonga pelas estradas e tarda em minha lembrança. Um dos fotógrafos desse filme fez, por sua vez, um curta que curto e curtimos, O Tigre e a Gazela, no qual o olhar que captura também é o da presa. Já No quarto da Vanda, o confinamento liberta, e a destruição abre espaço aos fantasmas da memória, via carta do Ventura, em Juventude em marcha. Enfim, rememoro a câmera ambulante das andanças e danças de Jonas Mekas, sua rememontagem poética de tantas história(s) do cinema vivido. Paro por aqui, pois acabou o parágrafo, mas a marcha continua, vinte anos depois. [Jair Tadeu da Fonseca]

> forumdoc.bh.2007: no quarto da Vanda, ela tosse. A cena é um claro -escuro em tons de verde, ela e sua irmã fumam heroína. Escavadeiras destroem o bairro de Fontainhas. Um homem nu se banha entre os escombros. O Russo acaricia um passarinho. O Pango ocupa o quarto daquela que matou o filho. Elas fumam, eles se aplicam, ela tosse. Sua mãe cheira rapé e assiste novelas brasileiras. Dona, quer alface ou couve? Vanda oferece aos que ainda vivem por ali. Vanda tosse e raspa os restos de heroína de uma lista telefônica. Lá fora há sempre o barulho da vizinhança sendo destruída. Morar em casas fantasmas que outras pessoas deixaram. Estive em casas que nem uma bruxa queria lá morar. Mas também estive em casas que valiam a pena. Foram casas que as pessoas abandonaram, mas, se estivesse lá uma pessoa de bem, eles até nem mandavam abaixo. Foi assim... casa atrás de casa, diz o Pango. Vanda tosse, tosse, e fuma heroína. Uma velha está sentada num quarto, e lá fora uma criança brinca com uma bicicleta. É a vida que a gente quer, acha a Vanda. [Marilá Dardot]

> Em 2003, nos surpreendemos com A Kalahari Family. Não foi uma sessão, foi uma semana todas as manhãs no Auditório Sônia Viegas, pois o filme tem 5 episódios. Quando tinha 18 anos, John Marshall e sua família fizeram uma expedição pelo deserto da Namíbia, atraídos por conhecer os coletores/caçadores da área de Nyae Nyae. Encontraram os Ju/’hoansi, bosquímanos nômades, dando início a uma grande amizade. Movida pelo deslumbramento da viagem, a família Marshall não imaginou que os rastros de pneus da sua expedição levariam colonizadores ocidentais a encontrar estes mesmos povos, introduzindo nas suas terras a cultura de gado e outras práticas cuja consequência trágica foi a progressiva destruição das formas de vida dos Ju/’hoansi. Desde os anos 1950, Marshall voltou inúmeras vezes ao Nyae Nyae portando sempre uma câmera, e até o fim da sua vida filmou os Ju/’hoansi, porque cinema é amizade, como o forumdoc sempre me fez pensar. Marshall filmou intensa e extensivamente por 50 anos (filmou desde a caçada às girafas até as ameaças às formas de vida dos seus amigos), procurando fazer do cinema uma forma de luta em favor dos Ju/’hoansi. Por esse motivo, a cada passo refletia sobre que imagens estava criando, sobre como filmar, o que mostrar – trabalho que resultou em mais de 40 filmes. No fim de sua vida, Marshall reviu todo o material que tinha filmado e montou A Kalahari family, uma enorme reflexão sobre o encontro, o tempo, o cinema, a amizade e a resistência.

[Daniel Ribeiro Duarte]

> Foi na anti-penúltima sessão do forumdoc.bh.2005, edição repleta de experiências novas, dentro e fora da sala de cinema, fosse ela a do Cine Humberto Mauro, a do Centro Cultural da UFMG, lendo as legendas para os jovens em formação como agentes Cultura Viva, ou as da Fafich, onde os filmes de John Marshall reverberavam ainda para mais além. Na noite anterior, havíamos degustado as delícias de mais uma inesquecível festa, o que tornava a insistência em estar na sala atenta às imagens projetadas, mais uma prova de resistência. O primeiro filme, estranhei. A língua francesa com as imagens capturadas num desentendimento entre ficção e realidade me tiraram do lugar. A ficção científica, quase premonitória – talvez sim – me assombrou. Estranhei mais uma vez aquele cineasta que durante toda a mostra de autor me colocava sempre em dúvida. Então, começa o segundo filme, aquele que ainda me faz tremer toda vez que encontro um gato grafitado com pinta de querer dizer mais do que apenas ronronar… O filme caminha pelos telhados de Paris, esbarrando em sorrisos amarelos felinos ou em manifestações contra uma virada política à direita, com as sobras das feiras semanais e entre os monumentos que

guardam a história oficial... Monsieur Chat e Chris Marker me acompanham pelas salas de aula a que sou convidada a participar, pelas ruas de Paris e trilhos da Petite Ceinture – onde atuam ainda hoje – pela vontade de vestir as pinturas de luta e ir para a rua sussurrar pela micropolítica do anti-espetacular. Semana passada, em São Paulo, eis que me deparo com mais um jeito, desta vez em traço contínuo, de desenhar a cabeça de um gato, e o coração já disparou alegre em rememorar de novo Les chats perchés. [Milene Migliano]

> Pouco ou nada acontecia naquele filme – uma mulher cozinhava, lavava os pratos, tomava banho, recebia um cliente no quarto, servia o jantar para o único filho, lia a carta da irmã, preparava a cama para dormir, apagava cuidadosamente a luz de cada cômodo ao sair, circulava pela casa e pelas ruas de Bruxelas como um autômato, expressão impassível, gestos medidos, passos ritmados. Pouco ou nada acontecia e tudo se repetia – a cada vez, um pouco diferente – ao longo de pouco mais de três horas de sessão. Antes de ter início Jeanne Dielman, 23, Quai du Commerce, 1080 Bruxelles (1975), Ivone Margulies, convidada para comentar a modesta porém significativa retrospectiva de Chantal Akerman que organizamos em 2006, pediu a todos os presentes: “fiquem até o fim”. Para surpresa da pesquisadora, habituada com a impaciência do público diante de um filme escasso em grandes acontecimentos e de tamanha duração, a expressiva maioria dos espectadores atendeu ao chamado. Ficaram, ficamos, silenciosamente irmanados, imóveis diante do que víamos, afetados pela luz que emanava da tela como que a marcar em definitivo nossas retinas. Saímos com a sensação de que havíamos partilhado naquela sala uma experiência rara de cinema. Eu dava início a uma pesquisa de mestrado sobre a diretora e aquele filme, aquela mostra, teve ressonâncias que nem agora, dez anos depois, consigo racionalizar ou sistematizar, como convém às grandes histórias de amor. Amor pela cineasta, amor pelo festival, amor pela equipe que viabilizara tudo aquilo, amor pela senhora que, ao fim do debate, se aproximou e nos agradeceu por ter visto o filme, “não serei mais a mesma”, ela disse comovida. Há filmes que provocam esse efeito em nós. Naquela noite, naquela sessão, foi tudo semente – e sou grata por até hoje colher, dela, os frutos. [Carla Maia]

> Ao assistir a Soleil Ô, de Med Hondo, fui arrebatada por um sentimento que tantas vezes experimentei no forumdoc, desde a primeiríssima edição: assombro. Como poderia esse filme existir? Como poderia até então

não ter tomado conhecimento dessa obra tão potente? Como é escrita e reescrita a história do cinema? Filme-manifesto, contra todas as formas de escravidão, filme-canto, como no que era entoado por escravos haitianos e dá nome à obra, filmegrito, de revolta, de uma irredutível não assimilação, filme de descolonização. Dolorosamente atual e decididamente moderno, Soleil Ô nos interpela, nos desconcerta, nos perturba, explode a forma filme com sua liberdade radical, inegociável. No catálogo de 2009, o texto que apresentava a mostra de cineastas africanos já nos alertava, abrindo com uma citação de Frantz Fanon: “A descolonização jamais passa despercebida porque atinge o ser, modifica fundamentalmente o ser, transforma espectadores sobrecarregados de inessencialidadeem atores privilegiados, colhidos de modo quase grandioso pela roda-viva da história. Introduz no ser um ritmo próprio, transmitido por homens novos, uma nova linguagem, uma nova humanidade. A descolonização é, na verdade, criação de homens novos”. [Ana Siqueira]

> Acompanhar os primeiros passos de um bebê, ou atentar para os sutis sinais que conduzem à primavera, pode parecer tarefa difícil em meio aos tantos fragmentos de som e imagem que costura Jonas Mekas. No forumdoc de 2013 ajudei a organizar sua retrospectiva, curadoria compartilhada entre as Carlas xarás. Na mostra, a sessão de Ao caminhar entrevi lampejos de beleza foi especial de um jeito raro. Quase 5 horas de projeção no Cine104, com seus puffs e ar intimista, lanches passados de mão em mão no escuro do cinema, garrafas de vinho bebidas do gargalo na troca das (várias) bobinas 16mm. Em meio a esse cinema mobilizado por afetos, vivenciamos momentos íntimos e também coletivos, em que partilhamos a experiência de estar junto com os ilustres desconhecidos vistos em tela, e com os amigos reunidos na sala de projeção, essa comunidade afetiva que toca o próprio festival. Ao final, a sensação que tenho é de ter encontrado muitos lampejos de felicidade e beleza nesses poucos (e intensos!) anos em que meu caminho felizmente cruzou com o do forumdoc. [Carla Italiano]

> Durante muito tempo, escrevi em guardanapos as impressões de cada encontro no café, jardins, corredores e dentro da sala escura. Eleger um filme é, portanto, fabular. Isso porque o forumdoc sempre renovou meu espírito – a alegria de partilhar sessões com esta comunidade de cinema que se reúne todo novembro. Ano 2004, não me recordo o dia, mas me

recordo do homem em pé – e de costas – contemplando o infinito, da criança a transbordar ternura – ambos nus – e de uma cabra morta nos seixos. Essa imagem circular, nunca me saiu da cabeça. Como quando Agnès Varda evocou Baudelaire em Les dites Cariatides. Mulheres-colunas que sustentam o mundo com um entablamento na cabeça. Assim, também Maria que sobe o morro e não se cansa, pela mão leva a criança, lata d’água ___________, como diz a música.

Ulysse, um ensaio comovente sobre um menino – agora adulto – e uma mãe, Bienvenida, que se emociona ao lembrar que restava a esperança para a cura do filho, esperança depositada nos dias quentes do mediterrâneo. Ulysse sofria de uma doença nos ossos, se recorda da dor, mas não da fotografia. Varda insiste. E Ulysse a olha como quem olha o horizonte, perplexo pela imensidão, incerteza reservada à memória. Um filme que fala do amor pelas pessoas que estão à volta, do amor pela profissão como fotógrafa, entomologista do cotidiano, catadora de imagens. Do amor, do amor, do amor.

Ulysse, de Varda, passou a acompanhar as aulas que ministrei e até hoje afaga meu imaginário quando já não tenho mais ideias ou desisto de escrever em guardanapos. O desafio de aceitar a aventura e partir, como se fossemos personagens da Odisseia. [Glaura Cardoso Vale]

> Entrei pra “turma forumdoquiana” e da Filmes de Quintal em 2007, mas o interessante foi descobrir anos depois, através da minha assinatura na ata de abertura, que eu estava na primeira edição, quando vim fazer vestibular em BH, uma alegria sem fim, estava escrito! Ao longo desse tempo, assisti inúmeros filmes que me emocionaram muito, esse festival é uma riqueza só! Pra mencionar algo que me marcou vos levo à Mostra Direto.doc da edição de 2010, pois – por ter um pezinho no bom e velho roquenrol – enlouqueci ao ver os filmes Gimme Shelter e Monterey Pop, já que representam muito do que eu gostaria de ter vivido e que, mesmo não o tendo, me influenciou bastante e faz parte da minha vida hoje. [Diana Gebrim Costa]

> Somente havia visto aquelas imagens como um videoclipe de uma canção muito conhecida. O cantor e sua fama de arredio conhecia muito bem. Mas os relatos quase sempre o desenhavam como alguém mal educado, como se a grosseria não tivesse razão de ser. Contudo, ao ver seu encontro com o jornalista mal informado da Time Magazine, com sua contraparte inocente inglesa, ou com o espectador que o chama de Judas, tornou-se clara a justiça do notório mal temperamento de Dylan.

Esclarecia-se também a potência do gesto de entrar com uma banda elétrica para tocar em um festival de música folk. Definitivamente,ali aprendi o sentido de “Não olhar pra trás”. [Pedro Marra]

> Não me lembro do filme, mas, após o término de uma sessão, quando as luzes se acenderam, me surpreendi com você ao lado. O inesperado foi tanto que aquele filme, na minha memória, passou a se chamar Terra Treme, mas acho que era mesmo o Perdida do CAPC. [Frederico Sabino]

> Com licença poética dos ladrões de cinema, o filme quis dizer: onde jaz o teu sorriso? Moi? Une noir neguinha... Aqui? Favela, o rap representa. Nos olhos de mariquinha leio erosões e matéria de composição. Meu primeiro contato? Sim, o dia em que a lua menstruou, maxakaly or not, tupy! Saute ma ville nha cretcheu! (Exploda minha cidade minha querida!). Antes e agora: braços cruzados, máquinas paradas. Em história do brasil leio inventário da rapina. Là-bas além dos trilhos roda terra em transe, um cabaret mineiro. Serras da desordem, tempos de guerra e sans soleil, vejo grey gardens tout une nuit. Margem terceira de duas aldeias e uma caminhada. Os mestres loucos, o guru e os guris , o santo forte, o cabra marcado, os catadores e eu. Das crianças ikpeng para o mundo, dos aprendizados, o maior: shuku shukuwe, afinal, a vida é para sempre! O cinema? Aussi, oxalá, amém! Um brinde forumdoc.bh.2016: stolat! [Raquel Junqueira]

> Era um sábado à noite. 23 de novembro de 2013. Na tela, Noites Paraguayas, o único longa-metragem dirigido por Aloysio Raulino, cineasta cuja obra autoral era objeto de uma retrospectiva naquele ano. A mostra deveria ser uma ocasião para celebrar uma vez mais a presença luminosa de Raul entre nós (ele, um habitué do forumdoc), mas fora abruptamente transformada em homenagem póstuma por um golpe brutal do acaso, e tudo isso enchia a sala de uma emoção rara. Foi então que a expectativa deu lugar à estreia triunfal da nova cópia do filme em 35mm, restaurada recentemente, tinindo. A cada novo enquadramento insubstituível, a cada golpe de montagem, a cada canção, a cada rosto inesquecível, o filme fulgurava, tilintava, e muito do que eu imaginava saber sobre as potências do cinema parecia ruir, ao passo que a intuição sobre uma espécie qualquer de virtude mágica dessa máquina tão humana ganhava uma evidência inconteste, ainda que misteriosa. Nas noites anteriores, havíamos visto seguidamente os inacreditáveis curtas dos anos 70 e 80. Para mim, que conhecia apenas três ou quatro, era todo um continente que se abria

de uma vezada: nalgum momento entre a descoberta arrebatadora de Teremos Infância e a revisão poderosa de O Tigre e a Gazela, tive a certeza de que estava diante de um dos maiores homens a ter empunhado uma câmera sobre esta terra. O balé da câmera diante de um rosto era, a cada vez, um mergulho vertiginoso e incomparável na espessura do gesto de filmar alguém. Na saída da sessão do Noites, o que era encantamento virou obsessão. Eu falava pelos cotovelos sobre o filme nos corredores do Palácio, na subida da Bahia, no Maletta, e não me aguentando de ansiedade, resolvi ir embora. Insone, escrevi com esganação, mal dormi agitado e acordei um molambo qualquer. De manhã, revisitei as linhas e intuí que se aninhava ali um projeto de vida: daquela noite em diante, o cinema de Raulino passou a me acompanhar todos os dias e a me habitar para sempre. [Victor Guimarães]

> Em 2007 comemorávamos 10 anos de furumdoc, apelido carinhoso do festival! Naquele ano, como agora, preparávamos, entusiasmados, uma edição festiva. Não que todo ano não seja uma grande festa e também uma grande bronca, rs! Em meio a uma incrível programação e ao inesquecível baile da saudade da Flash Dance da rua Padre Pedro Pinto, abríamos os olhos e a alma para a filmografia de Pedro Costa, com uma retrospectiva até então inédita no país. Foi na noite de 25 de novembro, na última sessão do dia, comentada pelo querido Ribão, que fomos surpreendidos e inebriados pela projeção de Casa de Lava. Filme que se passa entre Cabo Verde e Lisboa, entre o português e o criolo, entre a opressão do Estado Novo português e a opressão da exploração do imigrante de agora. Um filme sobre um grupo de mulheres misteriosas, povoado e atravessado, como elas, pela magia que emana da existência caboverdiana. Casa de Lava é o vulcão em erupção, filme magma, filme enigma. [Rafa Barros]

> Mostra O Inimigo e câmera – forumdoc 2013. Estamos diante de Duch – o mestre das forças do inferno – secretário do partido que coordenou o sistema de torturas e execuções durante a ditadura no Camboja, na década de 70. Quase 2h de filme. Sofrimento puro... Eu não conseguia acreditar na frieza daquele homem... nos relatos... eu pensava: “meu Deus, não existe um pingo de sentimento de culpa ou sofrimento na cara desse senhor”.

Duch é frio, com os pensamentos organizados, a fala pausada, não hesita e descreve detalhamento como coordenouo processo de tortura e morte de mais 12 mil pessoas. Lembro que ao final ele dizia que não sentia culpa, poisapenas seguia ordens. Foi profissional. Trabalhou como foi ensinado. “Era o contexto da época”. E lembrar que hoje vivendo tempos sombrios... Vendo a foto do Duch, na divulgação do filme, me lembrei de outros ditadores de então… Cruz credo. [Luana Gonçalves]

> Em 2009 havia uma disciplina de documentário na Fafich. Um amigo. Dois professores amigos. Uma turma da night, outra do cinema. Sempre tem. Um trabalho para escrever também. A primeira sessão do forumdoc. UFMG desse ano exibiriaA tribo que se esconde do homem. O filme e todos os presentes, incluindo o diretor Adrian Cowell, me mostraram pela primeira vez que a antropologia não era só dos antropólogos. Mas das pessoas, do cinema, dos indigenistas, da night e o que mais eu quisesse.

[Pedro Leal]

> Dentre tantos mundos, devires outros e olhares, o forumdoc abriu para mim uma fresta muito luminosa, através da qual pude espiar um pouco os espelhos resplandecentes das florestas onde vivem os nossos ancestrais e seus espíritos. Foi na sessão de abertura de 2012, quando vi os Yanomami dançarem com seus xapiri na tela, que eu quis visitar, mesmo que ainda no pensamento, a origem invisível do mundo. A partir de então quis entender melhor os dizeres dos índios, que, sábios, lutam pela preservação de suas crenças e ritos – e para que o céu não desabe sobre nós. Obrigada forumdoc, pelas experiências de luz e reflexão.

[Ana C. Bahia]

> Um grande pajé quis ajudar aquele cariú, um inglês militar que acabara de chegar na Floresta com seu exército armado. Tornaram-se amigos, criaram afeição um pelo outro. O pajé virou seu guia. Um dia, em uma grande expedição, o chefe inglês foi subitamente atacado por uma onça, mas o grande pajé se adiantou e a flechou fatalmente. A morte dela lhe perturbou muito. O espírito da onça vinha constantemente em seus sonhos e seus sentidos começaram a bagunçar; ele não conseguiu retomar a harmonia da vida com os seres da Floresta. O amigo inglês, muito

agradecido pelo feito, o convidou para conhecer sua casa na cidade. O pajé aceitou. Na casa do amigo ele não conseguia se levantar. Só ficava sentado, olhando pela janela as árvores e os pássaros lá da rua. Um dia ele saiu de casa e morreu lá fora, ao cruzar a linha de trem. Foi ter com a onça. Dersu Uzala, sessão de encerramento do forumdoc.bh.2011.

[Carolina Canguçu]

> Na escuridão, guiada apenas pela luz de uma lanterna, a câmera se aproxima da bichinha. Uma mão avança sobre ela e a captura. Presa, as pernas compridas atadas por um fio de cipó, ela esperneia, grita. Através do seu corpo úmido, cintilante, dá pra ver o coraçãozinho escuro. Ela gosta da noite. Sobre um tronco seco, ensaia um salto impossível. Agarra-se novamente ao tronco, assustada. A sua barriguinha está inchada. Os olhos, arregalados. O queixo tremendo querendo cantar. Em algum lugar fora do campo, seus parentes se reúnem. Deve chover hoje. Por isso estão todos alegres, cantando. Nunca, na história do cinema, uma perereca foi filmada tão de perto. (Sobre A Iniciação dos Filhos da Terra (2015), de Isael Maxakali.) [Roberto Romero]

> Aquilo não havia sido visto antes. Digo, nada parecido com aquilo. Os corpos saltavam de um extremo ao outro da tela girando no ar. Um zumbido contínuo, obsedante, instaurava uma atmosfera sonora compacta, quase claustrofóbica, e na qual possivelmente o ar começaria a rarefazer-se em breve. Os corpos, espíritos deste mundo –e de outros mundos –, coloridos precisa e apressadamente, envoltos em pedaços de trapo, marcados com canetas hidrocores fosforescentes, tufos de algodão, borrões feitos por corretores ortográficos, nos circundavam, a nós, na sala de projeção. As mulheres em tela viam aproximar-se de si corpos desfalecidos de crianças nos braços dos espíritos, e a um discreto toque nessas crianças, irrompiam em um choro compulsivo. Não sabíamos muito bem localizar o perigo em jogo, sairíamos dali a salvo? Avaliando o estado de nosso corpo na sala de exibição podíamos perceber um frio no estômago, daqueles que sentimos quando estamos apaixonados, ou quando experimentamos uma sensação de tristeza ou alegria muito grande para nosso corpo. Não seríamos mais os mesmos. Entre nós, brancos, a coisa mais próxima daquilo talvez houvesse sido vista em filmes de Glauber –e a surpresa ao constatar que efeitos expressivos semelhantes podiam talvez convergir em tela a partir de experiências de mundo tão distintas. Diante e ao redor de nós estava Tatakox – o primeiro de uma série de incríveis experiências brindadas pelos indígenas Maxakali ao mundo, inclusive ao dos

brancos – ainda que estes, passados mais de dez anos daquela sessão, permaneçam quase totalmente surdos diante dos cantos e reivindicações daqueles povos. [Bruno Vasconcelos]

> O primeiro a deixar a cena é o Alemão. Sai de quadro esgotado, arrasado. Marcelo o segue e, então, Vincent, segurando a câmera. Estamos também nós arrasados, dilacerados frente à vulnerabilidade e resistência silenciosa do “Índio do buraco”, que se recusa obstinadamente ao cerco liderado pelo indigenista Marcelo Santos em busca da imagem que afinal prova a existência e garante proteção ao único sobrevivente de um grupo desconhecido, vítima de uma chacina que levou ao extermínio de seu povo e dizimou dois grupos isolados na gleba de Corumbiara, no sul de Rondônia. A imagem do contato nos coloca frente a dilemas éticos insolúveis, ao mesmo tempo em que dar a ver a luta pela sobrevivência levada ao limite, revelando nossa total incapacidade de conviver com os povos nativos no Brasil, o desrespeito aos seus direitos fundamentais e à vida. Corumbiara, de Vincent Carelli, provocou em mim um deslocamento fundamental. Experimentei, na primeira visionagem coletiva, ainda na sala de montagem, e na sessão de abertura do forumdoc.bh, em 2009, a mesma comoção e sensação de que o mundo afinal tinha chegado ao fim. De fato, o filme narra o fim do mundo (de muitos mundos), o contato com o desconhecido (também este uma espécie de fim de mundo que se abre para outro) e uma história sem fim de violência e extermínio. Quase dez anos depois, Corumbiara ainda ressoa em nossas memórias, e o nascimento de Martírio, filme mais recente de Vincent e que, não por acaso abre os vinte anos deste festival, nos coloca mais uma vez frente aos equívocos da nossa história, revelando as entranhas de um país arruinado pela exploração predatória da terra, pelo avanço do agronegócio e pelo genocídio em curso dos povos Guarani e Kaiowá. Numa construção arrebatadora, Martírio narra o movimento pacífico de retomada deste povo pela reconquista de seus territórios sagrados. No entanto, embora diante do mesmo estado de violência e extermínio de um povo, já presente em Corumbiara, Martírio nos chama para a luta e provoca em nós o desejo de insurgência. Que tenhamos aprendido, ao longo desses vinte anos, na resistência dos filmes que assistimos e que nos formaram, no contato com os povos indígenas e comunidades tradicionais com as quais trabalhamos nas construção de nossos próprios filmes, a mesma resistência (e alegria) desses grupos na luta pela sobrevivência e pela defesa de seus territórios. Ainda temos tempo. E não estamos sós. [Ana Carvalho]

>Hoje, passado pouco tempo do falecimento de nosso incansável Aloysio Raulino, ficam as imagens, os sons e a memória de sua presença forte na bela noite em que vimos O tigre e a gazela pela primeira vez e em sua companhia. Ressoou na sala a urgência das palavras de Fanon, ditas por ele: "Porque se dão conta de que estão na iminência de naufragar, de perder-se portanto para seu povo, esses homens obstinam-se com o coração cheio de fúria e o cérebro ardente, em retomar contato com a seiva mais antiga, mais précolonial de seu povo. (...) Ao colonialismo não basta encerrar o povo em suas malhas, escravizar o cérebro colonizado de toda forma e todo conteúdo. Por uma espécie de perversão da lógica, ele se orienta para o passado do povo oprimido, deforma-o, desfigura-o, aniquila-o. (...) Apesar de toda a sua técnica e de sua potência de fogo, o inimigo dá a impressão de chafurdar e desaparecer pouco a pouco na lama. Nós cantamos, cantamos. (...)" E a mulher negra entoa seu grito: "Todo negro pode ser doutor, deputado, senador, não há mais preconceito de cor." Uh Raul!!! O sonho continua! [Pedro Aspahan]

> Plantar uma semente de árvore ou uma muda de grama? Uma nasce e cresce para o alto, outra se alastra e espalha pelo chão. A árvore, quando cresce, abriga na sua sombra aqueles que chegam (as futuras gerações), pois é sempre possível voltar para a “raiz”. A grama se dispersa, o centro originário desaparece na confusão, nos obriga ir adiante, procurar outras fontes. O ideal seria ter ou saber de um lugar para onde voltar, mas é sempre bom poder se perder. O ideal é ter uma crença a qual se apegar, mas muito mais importante é não querer julgar a crença do outro. É sempre muito bom ter alguém para nos ensinar, só para não ter que segui-lo. Antes de tudo, no cinema documentário é necessário ouvir e dar a palavra. É preciso manter firme a fé na força do cinema documentário para transformar o mundo, mas, mais importante, é preciso saber contemplar a fé do outro ou saber que mesmo na tristeza ou na penúria material há uma alegria e uma dignidade a serem desveladas. Se dermos razão à ideia de Walter Benjamin de que “articular historicamente algo passado não significa reconhecê-lo como realmente foi”, então, podemos fazer da máquina cinematográfica um dispositivo para pensar, criar, imaginar, inventar. Formei algumas destas ideias a partir de 1999, quando vi Santo Forte de Eduardo Coutinho no forumdoc. Naquele ano, o catálogo no formato grande (e na fortuna crítica) sucedeu aos dois pequenos livretos que fundaram este lugar de encontro de afetos e ideias em torno de cinema e antropologia. A árvore cresceu e, ao mesmo tempo, se ramificou. 20 anos depois já não temos mais Coutinho e tantos outros que nós seguimos e que nos seguiram neste caminho. Certamente suas diferentes maneiras de fazer cinema nos seguem e nos desapegam. [Ruben Caixeta]

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