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André Brasil

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Índices

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HIST ór IA DE CONCEITO O E SOB r : TESES rETOMADA

André Brasil

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1. Mbaraka

Sob a imagem ainda abstrata, ouvimos o canto, seu desenho circular, ritmado pelo bater dos pés: as vozes das mulheres cuidam para guardar uma leve defasagem em relação ao coro dos homens. A abertura do enquadramento permite então perceber o Mbaraka, que se agita em primeiro plano, diante do fundo noturno. Agora, são vários os chocalhos, empunhados pelos rezadores que cantam em uma linha transversal ao quadro. A manhã dá seus primeiros sinais, nos sugerindo que o grupo atravessou a noite em vigília. O close no rosto de um rezador leva a intuir um parlamento que liga visível e invisível. Martírio (2016), de Vincent Carelli, inicia-se pelas imagens feitas pelo diretor, ainda em 1988, quando esteve no Mato Grosso do Sul para acompanhar o Jerokyguasu, a grande reza guarani -kaiowá: como nos diz a narração, a consulta aos espíritos durante a noite indicava o rumo das discussões políticas do dia seguinte. Ao nos mostrar o encontro entre lideranças, o filme não desfaz nossa ignorância sobre o debate em curso: compartilhamos com Carelli, que filmou a conversa “às surdas”, o desconhecimento da língua ali falada, identificando uma ou outra palavra em português, entre elas esta: “capitalismo”. Figura-se assim o sentido de um movimento “invisível para o país”, que o diretor acompanhou por cerca de 10 anos: a retomada das terras pelos Guarani-Kaiowá, que vinculava, de modo indissociável, a luta política ao trabalho espiritual, em uma experiência que hoje chamaríamos de cosmopolítica. Em um mesmo

gesto, os chocalhos dos rezadores movem o cosmos e a história, fazem atravessar a política pelos sonhos, ligam a vida dos homens àquela dos espíritos, uma a vibrar na outra.

2. Deserto

Destas cenas iniciais, que nos convidam a acompanhar a mínima variação dos rostos, dos gestos e dos cantos, a cuidadosa enunciação das palavras, passamos ao trânsito ininterrupto dos caminhões e ao travelling pelo interminável deserto de soja. Recorrente em Martírio, esse travelling confere materialidade e, ao mesmo tempo, cifra conceitualmente, o modo como o imaginário expansionista do agronegócio confina e cerceia a vida dos índios, empurrando-os para as margens estreitas das rodovias, que eles atravessam com dificuldade, levando suas crianças pelas mãos.

3. Pedagogia do corte

Não sem espanto, vemos então o discurso da senadora Kátia Abreu, bandeira do Brasil ao fundo, a nos indagar quando terão paz os fazendeiros. À cínica retórica ruralista, Martírio responde com um corte, digamos,

godardiano: sem mais, a cartela com o título do filme vem interromper o discurso, como a interpelá-lo. A elipse que o corte abriga dá o tom da pedagogia do filme: quando o direito à propriedade se impõe ao direito à vida, a paz de uns estará inelutavelmente ligada ao martírio de outros. Ou, na conhecida fórmula benjaminiana, não há imagem do progresso que não seja, ao mesmo tempo, imagem da barbárie.

4. reencontros

Como nos mostra Clarisse Alvarenga (2016), Corumbiara (2009), filme anterior de Carelli, se move pela cena equívoca do “contato”, cena que não cessa de se atualizar e de espalhar vestígios dos desastres que produz. Lá, o cineasta hesita em filmar, se arrisca, recua (lembremos da sequência do “índio do buraco”, escondido na cabana de palha, lança aguda, a recusar o contato com os brancos, entre eles, aquele que empunha a câmera). São os próprios termos da relação que estão em jogo, em uma aliança ainda por se construir ou por se recusar. Agora não há hesitação: trata-se, afinal, de rever companheiros de luta, buscar velhos aliados, reencontrar inesperadamente aqueles com quem se conversou há pouco, ou há muitos anos. A história que Martírio nos conta é feita de desterros, de reencontros e de retomadas. É assim desde o começo do filme, quando Carelli reencontra os companheiros Celso e Myriam, que o ajudarão nas conversas com os Guarani-Kaiowá. O casal, por sua vez, se alegra ao rever seus amigos José Benites e Emília Romero, sobreviventes das primeiras invasões dos fazendeiros na região do Jaguapiré. E ainda, mais adiante, somos tocados pelo reencontro de Carelli com Velho Ambrósio em Pyelito Kue, local de onde foi expulso em 1950 e para onde manifestava o desejo de regressar quando exilado na reserva de Sassoró.

Reencontrar pessoas e imagens, reencontrar pessoas nas imagens, fazer as pessoas reencontrarem imagens da própria história: esse parece ser o procedimento do filme, sua tessitura mesma. Vem daí, quem sabe, a força afetiva e política deste corte seco, que aproxima a imagem de Emília Romero, já velhinha, quase cega, e seu rosto mais jovem, redescoberto por Vincent Carelli em meio a um registro que fez em 1994. Entre uma e outra imagem, um longo arco temporal; a terra, na qual está enterrado o avô; a história de despejos e de retomadas; a expressão, ao mesmo tempo firme e afetuosa.

5. “Estar com”

Essa história feita de retornos e reencontros, que dispersa seus traços pelos arquivos de imagens, é a história de um povo cuja errância não contradiz a estreita ligação com a terra, com a qual mantém relação espiritual, ética e estética. Afinal, para os Guarani, a terra é um corpo que respira; que fala, sussurra, que vê e se adorna. Corpo com o qual mantêm relação de reciprocidade (diz um ancião que a árvore que dá bons frutos deve ser plantada por outros, que a deixam para aqueles que estão por vir).1 Se o discurso dos ruralistas distorce deliberadamente a fórmula do nomadismo para usá-la contra os índios (ao dizer que eles não se fixam à terra e, portanto, não podem ser donos dela), o filme faz o trabalho inverso: retorna aos locais, refaz os percursos, recolhe os testemunhos e reencontra os traços que religam os sujeitos à terra, em um vínculo que não se define pela propriedade. Não se trata da circunscrição de um domínio – o próprio –, mas de estabelecer trocas e traçar relações com o entorno. Se as linhas da propriedade são limites, aqui os vínculos com

a terra se dão por linhas de errância e de avizinhamento, cujos traçados não se abstraem da experiência vivida e cuja circunscrição é centrífuga, excêntrica, atraída pelas relações com o fora. Não à toa, acompanhando a luta dos Guarani-Kaiowá pela demarcação de suas terras, a câmera de Carelli e de Ernesto de Carvalho (que divide com Tita a co-autoria do filme) precisa desrespeitar os limites da propriedade, atravessando com eles cercas, fronteiras e espaços institucionais. Ganha todo sentido aqui a citação de Rithy Panh que encerra Martírio – “filmar é ‘estar com’, de corpo e alma”: adentrar a terra retomada; esperar o barqueiro sob a chuva fina, atravessar o rio; percorrer a plantação de soja para descobrir ali a roça rara de Bonifácio.

6. Cenário da resistência

A roça, nos diz a narração, é um verdadeiro “cenário da resistência” Guarani-Kaiowá. A mandioca e as bananeiras de Bonifácio persistem, brotando resilientes do solo coberto pela soja. Essa persistência demonstra como, ao contrário da perspectiva cristã que projeta o paraíso além desta vida, yvy marã’ey, a terra sem males que move os Guarani em suas buscas, deve nascer de um trabalho terreno: em meio ao deserto de soja, cultivar a roça é como cuidar de um corpo que adoece, curando-o para o bem viver (ñande reko).

7. Narrar, participar

São vários os caminhos que ligariam Martírio à herança de Cabra marcado para morrer, de Eduardo Coutinho. Como lembra Victor Guimarães em seu belo texto sobre o filme, ambos, Cabra e Martírio (assim como Serras da Desordem, de Andrea Tonacci) assumem a responsabilidade de edificar uma contra-narrativa de ampla envergadura histórica.2 Não teríamos aqui como tirar consequências dessa comparação, mas um ponto mereceria atenção: ambos os filmes se apresentam, cada qual a seu modo, como uma resposta cinematográfica ao impasse que a história nos impõe, impasse que nos levaria a opor, como inconciliáveis, os gestos de narrar e participar (para narrar devo me distanciar e “perspectivar” o acontecimento; para participar devo me lançar ao interior do acontecimento, adiando, portanto, a tarefa de narrá-lo). Aqui também Vincent Carelli alia-se aos Guarani-Kaiowá para recusar essa fronteira, demonstrando como narrar pode ser um gesto de engajamento e como se pode passar de um a outro, da narração à intervenção e desta de volta à narração, tornando indissociáveis esses gestos, sem os quais a experiência histórica não se constitui enquanto tal. Ao trabalho de pesquisa nos arquivos da história; ao trabalho de observação e escuta do testemunho dos Guarani-Kaiowá, e ao trabalho de narração e comentário às imagens, o diretor acrescenta a tarefa de engajar-se, implicar-se e intervir no curso dos acontecimentos, recusando-se a respeitar os limites da cena, para adentrá-la e se posicionar em seu interior. Na visita às comunidades de M’barakai e de Pyelito Kue, depois de uma fala desesperançada de Celso, Carelli pede a palavra: “como Celso tá falando, nós não somos autoridade. Mas, se depender das autoridades, vocês têm que tomar a frente. E é importante que as imagens, a fala de vocês cheguem nas cidades”. Ao não se conter e lançar-se em cena, ele acusa a percepção de que narrar a história é intervir em seu curso e de que a intervenção no presente faz parte da narração que dele se produzirá. Ao final do filme, o gesto máximo dessa postura: depois de voltar a Pyelito Kue, onde o grupo havia ocupado a sede da fazenda, e de testemunhar as marcas de bala, resultado dos ataques dos pistoleiros, Carelli e seus aliados retornam uma vez mais, agora trazendo uma câmera, que será deixada para a comunidade. Como se ao cinema se exigisse tarefa mais urgente.

8. Encontrar a palavra3

O filme reafirma uma crença na palavra, em sua possibilidade. No momento em que o martírio do povo Guarani e Kaiowá, parece não encontrar mais palavras para designá-lo – dada a situação de etnocídio a que estão submetidos os índios – o movimento de Martírio é oposto: acreditar na palavra, reencontrá-la ali, nos locais em que ela se mistura à luta; tomá-la como testemunho e como intervenção no presente. Abrindo-se ao testemunho de uma luta em curso, o filme novamente aproxima, torna intercambiáveis narrar e intervir. Por isso mesmo, os testemunhos são sempre situados: ao mesmo tempo em que observa e escuta com atenção, a câmera está disponível a percorrer o território com os sujeitos para com eles buscar os vestígios dos massacres, reencontrar os cemitérios onde enterraram seus ancestrais, acompanhar os cantos que, novamente, religam testemunho histórico e palavra mítico-poética. Se as palavras não devem ser dissociadas dos espaços de onde nascem é por conta de uma mútua implicação: de um lado, situada e incorporada, a palavra ganha a força da experiência que tem na terra seu lastro e seu sentido. De outro lado, as falas são capazes de transfigurar o espaço visível, fenomênico, do filme, fazendo-o atravessar por imagens que o testemunho ou o canto evocam. Dessa mútua transfiguração – da palavra pelo espaço e do espaço pela palavra – parece vir a força do testemunho de Damiana, cacique de Apyka’i que, há 12 anos, acampa à beira da estrada, enfrentando uma luta desigual para retornar ao seu tekoha. Ela nos conta sobre a história do lugar, lembra o despejo que a comunidade sofreu pela usina São

3 Empresto essa ideia ao curso que vem sendo ministrado na UFMG, no âmbito do Programa de Formação Transversal em Saberes Tradicionais, denominado Ojuhu Ñe’e/Mbopaje Ñe’e – Encontrar a Palavra/Encantar a palavra. Em parceria com a professora Luciana de Oliveira, o curso vem sendo ministrado pelos Guarani-Kaiowá Daniel Vasquez, Genito Gomes e Valdomiro Flores.

Fernando, que destruiu a trator a roça de milho, feijão, arroz e mandioca; narra o assassinato de sete parentes, entre eles dois filhos. Então, toma seu mbaraka e canta para o dono da vida, para o dono do céu, o dono da terra e da água. “O brilho do sol e nossas rezas os brancos nunca poderão impedir.” O gesto de Damiana prolonga-se em vários outros, tantos deles por mulheres que dividem a luta com os companheiros, lideranças assassinadas pelos pistoleiros. Gesto assertivo, de afirmação e de interpelação, ele também parece ligar o plano histórico ao mítico, como a convocar para a luta terrena a companhia dos deuses.

9. Medida do insustentável

A testemunha, nos diz Jeanne Marie Gagnebin, não é somente quem viu com os próprios olhos, mas também “aquele que não vai embora, que consegue ouvir a narração insuportável do outro e que aceita que suas palavras levem adiante, como num revezamento, a história do outro”.4 A equipe de Martírio assume a tarefa da testemunha. Aquele que porta a

câmera observa, escuta, se avizinha, é aliado, sem deixar de reconhecer-se estrangeiro ao mundo que filma. A câmera é ao mesmo tempo dispositivo de escuta e de enquadramento; de aproximação e de distanciamento; de afinidade e de diferenciação. Assim, a força dos testemunhos encontra no enquadramento, não apenas abrigo, mas transformação fílmica: não se trata, portanto, de uma fala auto-evidente. É preciso que a palavra se ligue ao espaço, aos percursos pelo espaço, que suas modulações encontrem na câmera ao mesmo tempo acolhimento e elaboração: acolher o testemunho é encontrar a medida do enquadramento, a distância a se tomar, o ritmo do movimento da câmera ditado pelos corpos, pelas caminhadas, pelos cantos e pelas danças. Se a gravidade de cada testemunho, de cada morte, de cada lamento e de cada reivindicação é motivo de atenção, sua elaboração dramática – a ênfase que a modula – nunca demasiada. O modo de filmar, seja por Vincent, seja por Ernesto, ao mesmo tempo em que transforma a experiência em filme, retira da própria experiência a medida sensível dessa transformação. Se, a começar pela narração em voz over, tudo no filme parece se esforçar por encontrar essa medida, ela não está dada a priori: ainda que os enquadramentos sejam sóbrios e ainda que a voz seja clara e determinada, variam os tons e os efeitos que produzem. Do tom pedagógico, que retoma os arquivos da história do país para reposicioná-los, ao comentário militante, que analisa com parcialidade a situação política, passando pelo confessional que, novamente sem arroubos, expressa quase em segredo para a câmera o insustentável da situação.

10. O rosto e o coletivo

São poucos os planos-detalhe em Martírio. Passa-se dos coletivos aos corpos e destes aos rostos. Uma breve galeria deles e, novamente, a medida é a da experiência da qual são provisoriamente recortados: um ritual, um testemunho, um lamento, um enfrentamento. O close, contudo, nunca será recurso dramático, não se enfatiza o rosto para reiterar seu sofrimento. Muitas vezes, os rostos estão pensativos, a participar de uma reunião em que são diretamente implicados. Ali vemos rostos que talvez não nos vejam, compenetrados em definir os rumos da própria luta. Vez ou outra, um ou outro nos interpela; cada qual a seu modo, consciente ou inconscientemente, endereçam um olhar ao futuro da imagem. Diante destes olhares serenos, pensativos, consternados, esquivos, altivos, vulneráveis, nos perguntamos de onde retiram sua força.

Se por um momento, estes rostos nos olham, ainda sem nome, inscrevendo no filme sua inapreensível singularidade, não demora e eles serão devolvidos a um conjunto de outros rostos, a uma assembleia, a uma dança, a uma manifestação, a um ritual de guerra.

11. Tradução

A clareza de propósitos que caracteriza o projeto do filme não desfaz totalmente o desconhecimento que permanece em relação à experiência política e cultural ali implicada. A despeito da lúcida generosidade e, para alguns, do didatismo que marcam Martírio, preservar essa opacidade e esse não-saber será, no filme, um modo de reafirmar a autonomia e a autoafirmação dos Guarani-Kaiowá. O fato é que a profunda elaboração histórica a que o filme se dedica, valendo-se para isso da retomada dos arquivos, acaba por coincidir com o diagnóstico feito pelas lideranças, ainda em 1988. É o que percebe Carelli ao traduzir, muitos anos depois, os registros da reunião que filmara “às surdas”, apresentada sem tradução no início do filme. Ali, constatamos a acuidade da análise histórica feita pelas lideranças: na conversa, percebese a consciência que guardam em relação ao Estado, desde quando o Serviço de Proteção aos Índios (SPI) leva adiante o projeto de progressiva

“desindianização” e integração dos índios ao sistema de trabalho. “Nós, índios, estamos envolvidos no capitalismo”, nos diz uma das lideranças, e continua: “É por isso que eles nos acusam de ser aculturados”. Ao que o companheiro responde: “eles vão entender que não somos aculturados. Nem brancos, nem brasileiros. Resistiremos se estivermos na nossa terra retomada”. Estamos em um momento posterior ao Projeto de Emancipação formulado pelo ministro do governo Geisel, Rangel Reis (que visava com a tal “emancipação” a extinção da condição de indígena e a liberação das terras ocupadas pelos índios para o mercado), e próximos ao fortalecimento da luta indígena com emergência de importantes lideranças, entre elas, o Kaiowá Marçal de Souza, brutalmente assassinado. Ao retomar o registro da conversa das lideranças, agora traduzida, Martírio produz um inventivo gesto reflexivo. Reitera a busca do filme, justificando-a: encontrar a palavra dos Kaiowá, reconhecer o que ela porta de lucidez e o que produz também, em nós, de opacidade.

12. Mise-en-scène do poder

Martírio nos coloca diante de uma mise-en-scène implacável que se desenvolve no interior do Congresso Nacional, esse espaço em tudo distante daqueles que o filme visita: ali dentro, o governador do Mato Grosso do Sul exibe aos parlamentares o vídeo intitulado “Índios assassinos”, que circulou na internet, com a imagem de um homem ensanguentado dominado pelos índios. O vídeo é tomado como peça retórica pelo governador que conclui: “se vocês não ficaram chocados, eu fiquei”. Em sua narração, Carelli responde ter se sentido, ele também, chocado diante dos milhares de compartilhamentos do vídeo e, ainda mais, com seu título: afinal, nos diz, cinquenta lideranças indígenas foram assassinadas nos últimos trinta anos, enquanto três policiais foram mortos no mesmo período. Enquanto o diretor narra, retorna o travelling que nos mostra, pela janela do carro, as infindáveis plantações de soja que circundam e cerceiam as retomadas guarani-kaiowá. A equipe do filme viaja a Itay, acampamento na região de Douradina, para reconstituir, com os índios, os momentos anteriores ao registro do vídeo. Novamente, Martírio trabalha para retomar o acontecimento histórico por meio dos testemunhos, religando-o a uma rede de outros acontecimentos que adensam seu sentido. Em outra sequência, acompanhamos os discursos inflamados da bancada ruralista em uma discussão em torno da PEC 215 na Comissão de Agricultura. O trabalho de montagem se faz notar, situando a sequência entre dois conflitos vividos pelos Guarani-Kaiowá: antes, o despejo em Ivy Katu, que termina com a fala contundente de uma liderança na Aty

Guasu (assembleia político-espiritual dos Garani-Kaiowá). Um corte seco nos leva à imagem do Congresso Nacional, no interior do qual transcorre a discussão, em si mesma didática: aos discursos dos ruralistas, nesse espaço sem qualquer porosidade com o entorno, não pode haver resposta, já que os índios que assistem na plateia são retirados da sala. Restará apenas a voz solitariamente lúcida do deputado Ivan Valente que apresenta uma constatação desconcertante em sua obviedade: “nós devíamos ter colocado na mesa um cacique indígena”. Senão, inúmeros. Reencontramos então um gesto recorrente, também definidor do filme: quando a história parece por demais massacrante, quando o poder se mostra insuportavelmente cínico, Vincent Carelli desvia o carro da rodovia para tomar uma estrada de terra, uma via menor: ele vai então se encontrar com outra comunidade, em outra retomada, agora em Pyelito Kue. Esse é o procedimento a que recorre para lidar com as imagens da mídia e com as mises-en-scène do poder institucional, quando elas se mostram por demais insuportáveis, quando o poder se mostra inviável, inviolável. Trata-se então de voltar às terras guarani-kaiowá em busca de outra política.

13. filmar o inimigo

Em Martírio, os inimigos não aparecem apenas nas imagens que vêm da TV. Eles podem permanecer no fora de campo – como usina, que expulsou Damiana de Apyka’i ou o Estado, que despejou Emília Romero lançando um trator sobre sua casa. Mas, assim como acontece em Corumbiara, a equipe se esforça – e se arrisca – para filmar o inimigo, para trazê-lo ao interior da cena. Entra-se na fazenda recém-desapropriada para ouvir o discurso do advogado e do fazendeiro, a defenderem a tese de que não existem índios na região; filma-se em frente à empresa de segurança privada, para se descobrir que, obrigada pela justiça a encerrar suas atividades, ela seria reaberta com outro nome. Acompanha-se ainda a ação do delegado da Polícia Federal, que, sem constrangimento, ameaça de morte os homens e mulheres da comunidade de Ivy Katu. Mais uma vez, a cena é pedagógica e a lição política vem dos índios: enquanto o delegado procura lideranças a serem responsabilizadas, o coletivo se define sem líderes, estabelecendo na conversa uma espécie de enunciação coletiva. Modo de enunciação política que está na base da

Aty Guasu, assembleia guarani-kaiowá em que a palavra é franca e na qual homens e mulheres, guerreiros, dividem o parlamento com os rezadores.

14. Cena do desentendimento

A ocupação da Câmara por indígenas de 73 etnias em luta contra a PEC 215 é uma situação reveladora, verdadeira cena do desentendimento,5 que expõe como litígio não apenas uma pauta, mas a própria cena em que ela se debate; a própria ideia, portanto, de política. Diante da entrada repentina dos indígenas – tornando presentes aqueles a quem as decisões da Câmara costumam atingir a uma distância segura – os deputados correm em alvoroço. O tumulto no plenário, com a gradativa multiplicidade de corpos, cores e vozes a abrir caminho no espaço monocromático, expõe a coabitação de duas cenas: na primeira, se decidem sobre temáticas de cuja discussão não participam os principais implicados; na segunda, eles surgem inesperadamente como sujeitos, exigindo a alteração – formal, sensível e argumentativa – da política. Uma cena de força pedagógica semelhante já havia aparecido em Martírio, encampada ali, não por uma multidão, mas por único índio: em sua histórica performance, tão bela quanto contundente, Ailton Krenak pinta o rosto, enquanto discursa contra o artigo que excluiria, dos direitos da Constituição de 1988, os índios tidos como aculturados. “O povo indígena”, ele conclui com o rosto coberto pela tinta preta, “tem regado com sangue, cada hectare dos 8 milhões de quilômetros quadrados do Brasil”.

15. filmar a morte

Regressando ao Mato Grosso do Sul para realizar novas imagens, Vincent Carelli dirige o carro, pela noite densa da região de Amambai. No rádio,

o noticiário local informa sobre a prisão de uma ex-miss da região por transporte de armas e munição de grosso calibre. Além de uma pistola, ela carregava cerca de 5 mil munições e um fuzil. Sobre a imagem escura, que pouco nos dá a ver, o diálogo entrecortado nos aproxima de uma morte terrível, um atropelamento em Apyka’i, no acampamento de Damiana. É o segundo atropelamento em um mês em Apyka’i. No Mato Grosso do Sul, a frase de Ailton Krenak parece ecoar em cada retomada. As festas e rodeios, com suas coreografias aeróbicas e a macabra celebração das Hilux; os leilões dos ruralistas para arrecadar fundos para as milícias armadas, estes são rituais de morte, iluminados pela luz do espetáculo. Como filmar a morte? Antes de tudo e novamente, “filmar com”, colocar-se ao lado daqueles que sofrem, aprendendo com eles como retirar do sofrimento a força para permanecer na terra e lutar por ela. Silenciosa e discretamente, a equipe entra no acampamento para acompanhar o ritual de luto. Diante do barraco do tio, o grupo canta enquanto agita os chocalhos: “Ele se foi cantando e rezando pelo horizonte iluminado e pelas estradas encantadas”. A sobrinha chora a morte do tio, para então prometer que serão um dia felizes na terra em que ele caiu. Um longo e belo plano-sequência acompanha o grupo a percorrer uma pequena trilha, Damiana à frente, dançando, a aparência de uma nhandesy, a agitar seu mbaraka. Depois de desviar sua rota por uma estreita estrada de terra para compartilhar o luto com seus aliados, o filme recobra, em novos moldes, a investigação histórica de larga amplitude, com a histórica manifestação indígena em Brasília.

16. Povos

Seja porque subexpostos pela invisibilidade a que são submetidos, seja porque sobreexpostos pela luz do espetáculo, os povos, nos diz DidiHuberman, estão expostos a desaparecer. Como então fazer para que “se exponham a si mesmos e não ao seu desaparecimento?”6 Ao entrelaçar a história de um povo àquela de uma nação, evitando a todo custo que uma se sobreponha à outra, Martírio nos questiona, então, sobre o que seria afinal um povo. O filme parece explicitar aquela fratura que, para Giorgio Agamben, divide a ideia em duas metades dialéticas:

6 DIDI-HUBERMAN, George. Coisa pública, Coisa dos povos, Coisa plural. In: A república por vir: Arte, Política e Pensamento para o Século XXI. Lisboa: Gulbenkian, 2011, p. 41.

de um lado, o povo como corpo político integral, unitário; de outro, “o subconjunto povo como multiplicidade fragmentária de corpos necessitados e excluídos”.7 Nossa época não seria senão a tentativa implacável de eliminar o povo dos excluídos, de modo a produzir um corpo uno, indivisível. O que se deveria então reivindicar ao aparecer político dos povos? A resposta não deve vir na forma de uma prescrição, ela não está garantida a priori. Em Martírio, digamos que ela poderia se encontrar nesses inúmeros planos-sequência, dispersos pelo filme, em que a câmera acompanha o percurso de um pequeno coletivo em um pedaço de terra: são rostos que guardam nomes e trajetórias singulares; quando se reúnem, produzem uma fala coletiva, em que se fala pela boca uns dos outros. Ao filmá-los, a câmera acompanha um evento que é, a um só tempo, ritual e manifestação política. Ela filma uma aliança e também uma distância intransponível. Ao montar as imagens, procura-se encontrar para elas um sentido histórico, mas se preserva o modo opaco, disperso, precário de seu aparecer.

7 AGAMBEN, Giorgio. O que é um povo: análise de uma fratura biopolítica. In: Folha de São Paulo, 16 nov. 2014. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/ ilustrissima/2014/11/1547789-o-que-e-um-povo-analise-de-uma-fratura-biopolitica. shtml.

Calculadamente e em cada um de seus passos, Martírio se nega a colocar o cinema adiante da causa que ele decidiu encampar; talvez Vincent Carelli preferisse recusar o “cinema” a ter que deixar de “filmar com”, lado a lado e aprendendo com aqueles que filma, engajado em suas lutas. Ao engajar-se tão clara e firmemente na luta dos Guarani-Kaiowá, Martírio parece mesmo endereçar ao cinema novas exigências, que teriam como medida sua capacidade de intervir e contribuir efetivamente para a causa a que se dedica. Essas exigências levariam o cinema sair de si mesmo, a lançar-se, digamos, em uma tarefa não cinematográfica, ou, ao menos, não primeiramente cinematográfica. Mas, o produtivo paradoxo aqui não é o de que essa tarefa – a de lançar-se para fora do cinema – se faça, justamente, por meio do cinema? As linhas de ação que o filme carrega – seu “fazer com” os Kaiowá – não é isso o que força sua forma para constituí-la e alterá-la? Atravessar e alterar o cinema por uma experiência que o ultrapassa, não é esse o trabalho de invenção que se pede a um filme?

18. Cinema II

Vincent Carelli deixa na retomada de Pyelito Kue a pequena câmera que produz as imagens que encerram o filme. Nelas, vemos a ação dos pistoleiros que atiram impunemente contra homens, mulheres e crianças, crivando de balas as paredes dos barracos. Não teria muito a acrescentar à análise precisa que Amaranta César fez destas imagens urgentes, que ganham força política ao ter reativado seu poder de evidência. “A fragilidade do corpo que segura a câmera e a usa como um escudo precário imprime-se na tensão que faz tremer as bordas do quadro e na profundidade de campo através da qual se negocia a distancia segura para o olhar”. Em risco, na busca estreita pela justa distância, o cinema se faz, resume a autora, como “questão material de justiça”.8 Antes de Martírio ser finalizado, as imagens circularam pela internet, valendo inclusive como evidência para ações na justiça. Situadas pela montagem ao final do filme, elas talvez prosseguem o trabalho de Martírio, que, de modo aberto e inacabado, entrelaça o cinema à ação; a tomada

8 CÉSAR, Amaranta. Palestra na sessão “A cidade e seus dissensos”, parte da programação do IV Colóquio Internacional Cinema, Estética e Política, realizado pelo Grupo de Pesquisa Poéticas da Experiência, na UFMG, entre 24 e 26 de junho de 2015.

de posição de uma câmera diante do acontecimento e a intervenção em sua emergência e em seu curso.

19. Materialismo histórico

De um modo que não poderíamos ainda explicar, as primeiras imagens de Martírio parecem ecoar as teses de Walter Benjamin Sobre o conceito de história.9 Esse texto-manifesto inicia-se pela célebre alegoria do autômato, um boneco de trajes turcos, exímio jogador de xadrez. Por um sistema de fios, um anão corcunda conduzia, sem ser visto, as mãos do boneco. Este boneco, nos diz Benjamin, é o materialismo histórico e o anão que ele toma a seu serviço é a pequena e feia teologia, que permanece atuando ao fundo da história. Como vimos, na grande assembleia, os rezadores cantam, dançam e agitam seus chocalhos; consultam os espíritos para dar o rumo das discussões políticas do dia seguinte. Ali, a espiritualidade não é velada, dividindo a cena política por meio dos cantos e dos chocalhos dos rezadores; os deuses não se querem unos, nem únicos. A terra não é propriedade, mas tekoha (lugar de reciprocidade e autonomia) e o povo são povos, dentre outros. Reconhecer esse outro modo de atravessamento da política pela espiritualidade – não seria uma forma de abrigar a abertura e a heterogeneidade da história tão caras a Benjamin? De que materialismo histórico nos fala Martírio, em seu aprendizado com os Guarani-Kaiowá?

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