Retomada: teses sobre o conceito de história
André Brasil
1. Mbaraka Sob a imagem ainda abstrata, ouvimos o canto, seu desenho circular, ritmado pelo bater dos pés: as vozes das mulheres cuidam para guardar uma leve defasagem em relação ao coro dos homens. A abertura do enquadramento permite então perceber o Mbaraka, que se agita em primeiro plano, diante do fundo noturno. Agora, são vários os chocalhos, empunhados pelos rezadores que cantam em uma linha transversal ao quadro. A manhã dá seus primeiros sinais, nos sugerindo que o grupo atravessou a noite em vigília. O close no rosto de um rezador leva a intuir um parlamento que liga visível e invisível. Martírio (2016), de Vincent Carelli, inicia-se pelas imagens feitas pelo diretor, ainda em 1988, quando esteve no Mato Grosso do Sul para acompanhar o Jerokyguasu, a grande reza guarani -kaiowá: como nos diz a narração, a consulta aos espíritos durante a noite indicava o rumo das discussões políticas do dia seguinte. Ao nos mostrar o encontro entre lideranças, o filme não desfaz nossa ignorância sobre o debate em curso: compartilhamos com Carelli, que filmou a conversa “às surdas”, o desconhecimento da língua ali falada, identificando uma ou outra palavra em português, entre elas esta: “capitalismo”. Figura-se assim o sentido de um movimento “invisível para o país”, que o diretor acompanhou por cerca de 10 anos: a retomada das terras pelos Guarani-Kaiowá, que vinculava, de modo indissociável, a luta política ao trabalho espiritual, em uma experiência que hoje chamaríamos de cosmopolítica. Em um mesmo
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