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Leandro Saraiva

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Índices

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CAPITAL O CONT r A k OHA TE – O A ME r â AC r M A

Leandro Saraiva

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Se Jean Rouch inventou o cine-transe, fazendo de sua câmera na mão um personagem ritualizado, como se vê em sua dançafilmagem, sem cortes, em Les tambours d´avant, Vincent Carelli, em Martírio, faz de seu cinema – câmera e montagem – um instrumento parceiro do maracá dos pajés. Vincent busca, pelo corpo e fala dos vivos, os espíritos dos mortos, para revelar, sob a terra árida dos desertos de soja do Mato Grosso do Sul, a presença do tekoha – o território de vida Guarani-Kaiowá. Sua visão convoca e entretece, em torno da teia mortal, sólida e pesada, de imagens do capital – caminhonetes, rodeios, colheitadeiras, monoculturas, bancada ruralista, pistoleiros – a teia diáfana e profética da vida tradicional dos donos (no sentido indígena de mestre e cuidador) da terra, feita de corpos e espíritos. O filme começa com imagens feitas por Vincent em 1988, de um Jerokyguasu, as assembléias político-espirituais que deram origem ao atual movimento indígena, e avança daí para o presente, buscando – de um modo que lembra Cabra Marcado para Morrer – seus antigos conhecidos, os reencontrando envelhecidos, ainda mais sofridos, mas ainda, e sempre, de pé. E a partir destes encontros, que narram a resistência épica do povo indígena do Mato Grosso do Sul, em sua marcha de quase trinta anos, o pajé Vincent chama espíritos mais antigos, mergulhando nos primórdios daquela fronteira brutal. Fronteiras costumam fornecer um ponto de vista privilegiado para entender processos históricos, e Martírio consegue dar forma

cinematográfica ao processo de formação nacional, que se confunde com o massacre indígena. O passado emerge na narrativa, pontuando e pondo em perspectiva o presente trágico, no qual 12 mil Guarani-Kaiowá, de um total de mais de 50 mil, vivem em situações de franca violência, em acampamentos de retomada, resposta desesperada ao conluio entre o poder público e o agronegócio, enquanto outros 40 mil ou estão nas superpopulosas reservas-gueto, ou, ainda, vagam pela região, desgarrados, sem teto ou direitos. O cinema de Vincent, ao longo das décadas de trabalho do Vídeo nas Aldeias, costuma se fazer pela presença (“nas” aldeias), num corpo a corpo, junto aos indígenas, e volta e meia, cara a cara com seus inimigos. Este cinema de vivência e urgência, em Martírio, alcança uma dimensão a mais, de memória reflexiva, na qual se amalgamam a memória viva, dos velhos, e a história oficial do Mato Grosso do Sul, garimpada em arquivos públicos de imagens. A dança de Martírio se faz na dialética entre os testemunhos da luta do presente e dos últimos 25 anos, e imagens da Guerra do Paraguai, da concessão imperial das terras da região à Companhia Matte Laranjeira (o primeiro “agronegócio”), da “integração” (ou apagamento indígena) promovida pelo SPI, da modernização da colonização e das usurpações, com a Marcha para o Oeste de Vargas, e da gerência militarizada e ditatorial da “questão indígena”, com a FUNAI, até chegar à onda do atual agronegócio latifundiário e exportador, a partir das migrações dos fazendeiros sulistas. Jornada ao coração das trevas da história, que evidencia como, a cada etapa de expansão do capitalismo brasileiro, os Guarani-Kaiowá foram submetidos a metamorfoses – soldados, trabalhadores rurais tutelados em processo de integração, até à atual negação da própria existência –, e a cada passo resistiram. Um lance magistral de montagem mostra bem o princípio de composição de Martírio: das imagens do campos abertos pelos próprios índios, com o fim do arrendamento das terras para a Matte Laranjeira, salta-se para o atual mar de soja, no meio do qual surge uma pequena ilha, com um acampamento de retomada: é a imagem da terra feita capital, em tudo oposto ao tekoha. A história oficial dos arquivos, remontada em relação com as imagens dos sucessivos encontros de Vincent com os Guarani-Kaiowá do Mato Grosso do Sul, produz uma história a contrapelo. O resultado é um acontecimento cultural e político, que extrapola o terreno puramente cinematográfico. Entre a profecia do tekoha e o processo do capital, a dialética de Martírio compõe uma arqueologia cinematográfica. Algo semelhante,

talvez, ao que Benjamin vislumbrou com sua ideia de imagens dialéticas, capazes de romper a teleologia do progresso da civilização burguesa, revelando a barbárie e ruína a ela subjacente. Ou, como disse Heiner Muller, outro pajé dialético, “é preciso aceitar a presença dos mortos como parceiros de diálogo ou como destruidores - somente o diálogo com os mortos engendra o futuro”. O choque provocado – que nos faz imaginar o impacto de Noite e Neblina, para os europeus do pós-guerra – nos joga na cara a história de sangue sobre a qual nosso país está construído, desde “sempre”. O nosso sempre, de senhores brancos do mundo e da história. Não há fuga possível: se alguém não quiser suportar o peso desta história, que não assista a Martírio. Quem assistir terá que conviver com o terror que nos fez e faz, com o abismo que nos separa de qualquer decência social mínima.

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