Catálogo forumdoc.bh.2016

Page 141

Maracâmera – o tekoha contra o capital

Leandro Saraiva

Se Jean Rouch inventou o cine-transe, fazendo de sua câmera na mão um personagem ritualizado, como se vê em sua dançafilmagem, sem cortes, em Les tambours d´avant, Vincent Carelli, em Martírio, faz de seu cinema – câmera e montagem – um instrumento parceiro do maracá dos pajés. Vincent busca, pelo corpo e fala dos vivos, os espíritos dos mortos, para revelar, sob a terra árida dos desertos de soja do Mato Grosso do Sul, a presença do tekoha – o território de vida Guarani-Kaiowá. Sua visão convoca e entretece, em torno da teia mortal, sólida e pesada, de imagens do capital – caminhonetes, rodeios, colheitadeiras, monoculturas, bancada ruralista, pistoleiros – a teia diáfana e profética da vida tradicional dos donos (no sentido indígena de mestre e cuidador) da terra, feita de corpos e espíritos. O filme começa com imagens feitas por Vincent em 1988, de um Jerokyguasu, as assembléias político-espirituais que deram origem ao atual movimento indígena, e avança daí para o presente, buscando – de um modo que lembra Cabra Marcado para Morrer – seus antigos conhecidos, os reencontrando envelhecidos, ainda mais sofridos, mas ainda, e sempre, de pé. E a partir destes encontros, que narram a resistência épica do povo indígena do Mato Grosso do Sul, em sua marcha de quase trinta anos, o pajé Vincent chama espíritos mais antigos, mergulhando nos primórdios daquela fronteira brutal. Fronteiras costumam fornecer um ponto de vista privilegiado para entender processos históricos, e Martírio consegue dar forma

141


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.