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22. Carta de Plínio, o Jovem, a um amigo falando mal de um tribuno (61/62-113

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Carta de Plínio, o Jovem, a um amigo falando mal de um tribuno (61/62-113)

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Gaius Plinius Caecilius Secundus, advogado e escritor romano conhecido como Plínio, o Jovem, deixou uma coleção de cartas que dão o quadro mais completo disponível da vida pública e privada em Roma ao fim do século I. Nasceu na Itália do norte, na Novum Comum (hoje Como) e foi adotado como herdeiro por seu tio, o cientista e historiador Plínio, o Velho. Exerceu a advocacia desde os dezoito anos; sua honestidade e habilidades financeiras trouxeram-lhe sucesso em casos de herança e como promotor de funcionários corruptos. Nesta carta ele relata a um amigo o que parece ter sido um elenco de negridão incomum no caráter do tribuno Marco Régulo; caso contrário, o benevolente Plínio não o teria citado tanto, como o faz nesta e em várias outras cartas, como assunto de seu mais fervoroso desprezo e indignação.

Para Vocônio Romano

Já encontraste alguma vez criatura mais miserável e abjeta que Marco Régulo desde a morte de Domiciano, em cujo reinado sua conduta não foi menos infame, embora mais escondida, que sob Nero? Ele começou a temer que eu estivesse irritado com ele, e suas apreensões estavam perfeitamente corretas; eu estava irritado. Ele não só fez o possível para aumentar o perigo da posição em que Rústico Aruleno2 estava, mas exultou com

2 Um aluno e amigo íntimo de Peto Trasea, um renomado filósofo estoico. Aruleno foi condenado à morte por Domiciano por escrever um panegírico a Trasea.

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sua morte; e ainda mais que, de fato, recitou e publicou uma calúnia em sua memória, na qual o chama de “o macaco dos estoicos”: acrescentando, “estigmatizado3 com a cicatriz vitelina”.4 Tu conheces a veia eloquente de Régulo! Ele caiu com tal fúria no caráter de Herênio Senécio, que Mécio Caro lhe disse, um dia, “Que negócio tens com meus mortos? Já me meti alguma vez nos afazeres de Crasso5 ou Camerino?”, 6 vítimas, tu sabes, de Régulo, nos tempos de Nero. Por estas razões, ele imaginou que eu estivesse altamente exasperado, e assim, à recitação de sua última peça não recebi nenhum convite. Além disso, parece que não esqueceu com que mortal propósito me atacou uma vez no Tribunal dos Cem.7 Rústico havia desejado que eu agisse como conselheiro de Arionila, a esposa de Timon: Régulo estava engajado contra mim. Numa parte do caso, eu estava insistindo fortemente num julgamento particular dado por Mécio Modesto, um homem excelente, naquele momento em exílio por ordem de Domiciano. Agora, então, por Régulo, “Ora”, diz ele, “qual é vossa opinião sobre Modesto?” Vês que risco eu teria corrido se houvesse respondido que tinha uma alta opinião sobre ele, como poderia ter-me desgraçado, por outro lado, se houvesse respondido que tinha uma opinião ruim. Mas algum poder guardião, estou persuadido, deve ter se levantado para me ajudar nessa emergência. “Eu vos contarei minha opinião”, eu disse, “Se isso for uma questão para ser trazida diante do tribunal”, “Eu pergunto”, ele repetiu, “qual é a vossa opinião sobre Modesto?” Respondi-lhe que era habitual examinar testemunhos do caráter de um acusado, não do caráter de alguém cuja sentença já havia sido passada. Ele me apertou uma terceira vez. “Não inquiro agora”, disse ele, “vossa opinião geral sobre Modesto, só peço vossa opinião sobre sua lealdade.” “Considerando, então, que tereis minha opinião”, acrescentei, “penso ser ilegal até mesmo fazer tal pergunta a uma pessoa que se declara condenada.” Com isso ele se sentou, completamente em silêncio; e eu recebi aplausos e congratulações de todos os lados, isso sem prejudicar minha reputação por uma vantagem, simplesmente por fazer como ele diz. Bem, alguns dias depois disso, Régulo me encontrou enquanto eu estava no praetor; manteve-se perto de mim e pediu-me uma palavra em particular; quando ele disse que estava com medo, eu profundamente ressenti uma expressão que ele havia usado uma vez em sua réplica a Sátrio e a mim, diante do Tribunal dos Cem, para este efeito: “Sátrio Rufo, que não se empenha em rivalizar Cícero e que se contenta com a eloquência de nosso próprio dia”. Respondi, agora percebo realmente, em sua própria confissão, que ele havia dito aquilo com más intenções; caso contrário poderia ter passado

3 Um aluno e amigo íntimo de Peto Trasea, um renomado filósofo estoico. Aruleno foi condenado à morte por Domiciano por escrever um panegírico a Trasea. A impropriedade desta expressão, no original, parece estar na palavra stigmosum, que Régulo provavelmente cunhou por afetação ou usou por ignorância. É uma palavra que, no mínimo, não ocorre em qualquer autor de gabarito. 4 Uma alusão a uma ferida que ele havia recebido na guerra entre Vitélio e Vespasiano. 5 Um irmão do filho adotivo de Piso Galba. Foi condenado à morte por Nero. 6 Sulpício Camerino, condenado à morte pelo mesmo imperador por alguma acusação frívola. 7 Um corpo seleto de homens que formavam um tribunal de judicatura, chamado a corte centunviral. Sua jurisdição se estendeu principalmente, se não completamente, a questões de testamentos e propriedades interestaduais. O número dessas cortes parece ter chegado a 105.

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por um elogio. “Pois sou livre para admitir”, eu disse, “que me empenho em rivalizar Cícero e não estou contente com a eloquência de nosso próprio dia. Pois considero alto grau de loucura não copiar os melhores modelos de todo tipo. Mas como acontece que tu, que tens tão boa lembrança do que se passou naquela ocasião, possas tê-lo esquecido, quando me perguntaste minha opinião sobre a lealdade de Modesto?” Branco como sempre foi, ficou simplesmente pálido a isso e gaguejou, “Não pretendia ferir-te quando fiz esta pergunta, mas a Modesto”. Observa a crueldade vingativa do companheiro, que não escondeu de forma alguma sua vontade de prejudicar um homem banido. Mas a razão que ele alegou para justificar sua conduta é engraçada. Modesto, ele explicou numa carta sua que foi lida a Domiciano, havia usado a seguinte expressão: “Régulo, o maior patife que caminha sobre dois pés”: e o que Modesto havia escrito era a simples verdade, além de qualquer tipo de controvérsia. Por aqui, nossa conversa chegou ao fim, porque não desejei ir mais adiante, estando desejoso de manter os assuntos abertos até que Maurício8 volte. Não é matéria fácil, estou bem ciente disso, destruir Régulo; ele é rico, é o cabeça de um partido; cortejado por muitos, temido por muitos mais: uma paixão que muitas vezes prevalecerá até mesmo sobre a própria amizade. Mas, afinal de contas, laços desse tipo não são tão fortes e podem ser afrouxados; porque o crédito de um homem mau é tão safado quanto ele. Porém (para repetir), estou esperando até que Maurício volte. Ele é um homem de julgamento sadio e grande sagacidade, formado em longa experiência, e que, por suas observações do passado, bem sabe como julgar o futuro. Falarei sobre o assunto com ele e me considero justificado tanto prosseguindo quanto desistindo desses casos, conforme ele aconselhar. Enquanto isso, pensei que te devia este relato por causa de nossa mútua amizade, que te dá o direito indubitável de saber não só de todos os meus atos, mas também de todos os meus planos. Adeus.

8 Júnio Maurício, irmão de Rústico Aruleno. Ambos os irmãos foram condenados no mesmo dia, Aruleno à execução e Maurício, ao banimento.

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