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28. Carta de santo Agostinho a Eusébio sobre maus hábitos dos clérigos (396

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Carta de santo Agostinho a Eusébio sobre maus hábitos dos clérigos (396)

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Agostinho (Tagasta, 354-430), filho de santa Mônica, depois de uma juventude agitada foi atraído à vida religiosa pelas prédicas de santo Ambrósio e tornou-se o mais célebre dos padres da Igreja latina. Foi o “doutor da graça” e grande adversário dos pelagianos. Escreveu esta carta depois de ter-se tornado bispo de Hipona e antes da conferência levada com os donatistas em Cartago e da descoberta da heresia de Pelágio na África.

Para Eusébio, meu senhor excelente e irmão, merecedor de afeto e estima, Agostinho envia saudação.

1. Não vos impus, por exortação inoportuna ou solicitação apesar de vossa relutância, o dever, como o chamais, de arbitrar entre bispos. Mesmo se houvesse desejado mover-vos a isto, poderia ter mostrado, talvez facilmente, quão competente sois para julgar entre nós numa causa tão clara e simples; não, eu poderia mostrar como já o estais fazendo, ainda mais que vós, que tendes medo do ofício de juiz, não hesitais pronunciar sentença em favor de uma das partes antes de ouvir a ambas. Mas disto, como já disse, por enquanto não falo nada. Pois nada mais pedi de vossa honorável boa natureza — e rogo-vos o

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obséquio de observá-lo nesta carta, se não o fizestes na anterior —, senão que deveríeis perguntar a Proculeano se ele disse a seu presbítero Vítor o que os registros públicos lhe designaram por relatório oficial, ou se os que foram enviados escreveram nos registros públicos não o que ouviram de Vítor, mas uma falsidade; e ademais, qual é a opinião dele sobre discutirmos a questão toda entre nós. Penso que ele não esteja constituído juiz entre as partes, que só é requisitado por uma para colocar uma questão à outra e condescenda escrever qual resposta recebeu. Isto também vos peço agora novamente que não recuseis fazer, porque, como sei pela experiência, ele não deseja receber carta minha, caso contrário eu não empregaria a mediação de Vossa Excelência. Desde que, então, ele não deseja isto, o que poderia eu fazer de menos provável para dar ofensa que aplicar-vos, assim tão bom homem e tão amigo dele, para uma resposta relativa a um assunto sobre o qual o fardo de minha responsabilidade me proíbe de manter minha paz? Além disso, dizeis (pois a punição do filho pela mãe é desaprovada por vosso sadio julgamento), “Se Proculeano houvesse sabido disto, teria excluído aquele homem da comunhão com o seu partido”. Respondo em uma sentença, “Ele agora o sabe, que agora o exclua”.

2. Deixai-me mencionar outra coisa. Quando um homem que foi antigamente subdiácono da igreja de Spana, por nome Primo, tendo sido proibido o relacionamento com freiras por infringir as leis da Igreja, tratou com desprezo os sábios e os regulamentos estabelecidos, foi privado de seu ofício clerical — este homem também, sendo provocado por discípulos divinamente autorizados, passou para a outra parte e foi por eles rebatizado. Duas freiras também, que estavam instaladas consigo nas mesmas terras da Igreja católica, quer levadas por ele para o outro partido quer o seguindo, foram igualmente rebatizadas, e agora, entre bandos de circumcelliones e tropas de mulheres sem lar que recusaram matrimônio para que pudessem evitar a restrição, ele orgulhosamente se ostenta em excessos de detestável orgia, regozijando-se de ter, agora sem obstáculo, a extrema liberdade nesse desregramento do qual na Igreja católica era coibido. Talvez Proculeano também não saiba nada sobre esse caso. Deixai, então, por meio de vós, como homem de espírito grave e imparcial, que disso ele tome conhecimento; e que ordene esse homem ser dispensado de sua congregação, a que escolheu não por outra razão senão a que havia, por conta de insubordinação e hábitos dissolutos, abdicado de seu ofício clerical na Igreja católica.

3. De minha própria parte, se for do agrado de Deus, pretendo aderir a esta regra que, quem quer que seja, depois que for deposto dentre eles por uma sentença de disciplina, ao expressar desejo de passar para a Igreja católica, deva ser recebido em condição de submeter-se às mesmas provas de penitência que, talvez, teriam ficado constrangidos de lhe aplicar se houvesse permanecido entre eles. Mas peço-vos considerar quão merecedor de aversão é o procedimento deles em relação àqueles que apontamos por meio de censuras eclesiásticas pelo viver profano, persuadindo-os primeiro a terem um segundo batismo, a fim de estarem qualificados pelo que se declaram ser pagãos (e quanto sangue de mártires foi despejado antes que tal declaração devesse proceder da boca de um cristão!); e depois

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disso, como que renovados e santificados, mas em verdade mais endurecidos em pecado, a desafiarem com a impiedade da nova loucura, sob o disfarce de graça nova, aquela disciplina à qual não puderam submeter-se. Se, todavia estou errado tentando obter a correção desses abusos por vossa interseção benevolente, que ninguém me ache falta por causar que sejam levados ao conhecimento de Proculeano pelos registros públicos — um meio de notificação que nesta cidade romana não me pode, creio, ser recusado. Pois, desde que o Senhor nos ordena falar e proclamar a verdade, ensinando-nos a reprovar o que está errado e a labutar de estação a estação, como posso provar pelas palavras do Senhor e dos apóstolos, que nenhum homem pense que estou sendo persuadido a permanecer silencioso a respeito dessas coisas. Se meditam qualquer audaciosa medida de violência ou fúria, o Senhor, que subjugou sob Seu poder todos os reinos terrestres no seio de Sua Igreja espalhada pelo mundo todo, não falhará em defendê-la do erro.

4. A filha de um dos lavradores da propriedade da Igreja daqui, que havia sido uma de nossas catecúmenas, foi, contra a vontade de seus pais, afastada para a outra parte, e depois de ser batizada entre eles, assumiu a profissão de freira. Agora seu pai a desejava compelir, por meio de tratamento severo, a voltar à Igreja católica; mas eu estava descrente de que essa mulher, cuja mente era tão pervertida, devesse ser recebida por nós, a menos que por sua própria vontade, escolhendo, no livre exercício de julgamento, o que for melhor; e quando o camponês começou a tentar compelir sua filha a submeter-se à sua autoridade por meio de surras, eu imediatamente o proibi de usar tais meios. Todavia, afinal de contas, quando eu estava atravessando o distrito spaniano, um presbítero de Proculeano, de um terreno que pertence a uma excelente mulher católica, gritou atrás de mim com a voz mais insolente que eu era um traidor e um perseguidor; e lançou a mesma repreensão contra aquela mulher, pertencente à nossa congregação, em cuja propriedade ele estava. Mas quando ouvi suas palavras, não só me abstive de procurar uma querela, mas também segurei a numerosa companhia que me cercou. Ainda, se digo, indaguemos e averiguemos quem são ou foram realmente os traidores e perseguidores, eles respondem: “Não debateremos, mas rebatizaremos. Deixai-nos atacar vossos rebanhos com crueldade astuciosa, como lobos; e se fordes bons pastores, suportai em silêncio”. Para o que mais tem Proculeano governado senão isso, se de fato a ordem é prescrita justamente por ele: “Se fores um cristão”, disse ele, “deixa isto ao julgamento de Deus; não importa o que façamos, segura Sua paz”. Além disso, o mesmo presbítero ousou proferir uma ameaça contra um camponês que é o inspetor de uma das fazendas pertencentes à Igreja.

5. Peço-vos informar Proculeano de todas essas coisas. Que ele reprima a loucura de seu clero, a qual, honorável Eusébio, sim, fiquei constrangido de vos informar! Seja de vosso agrado escrever-me, não vossa própria opinião relativa a tudo isso, para que não penseis que está por mim posta sobre vós a responsabilidade de um juiz, mas a resposta que darão às minhas perguntas. Possa a clemência de Deus vos preservar de dano, meu excelente senhor e irmão, mui merecedor de afeto e estima.

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