guilherme trevizani ribeiro
O INÍCIO, FIM E O MEIO trabalho de conclusão de curso escola da cidade - faculdade de arquitetura e urbanismo orientador: valdemir lúcio rosa são paulo - 2020
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação - CIP
R484
RIBEIRO, Guilherme Trevizani. O início, fim e o meio. / Guilherme Trevizani Ribeiro. – São Paulo, 2020. 151 p..: il.; 29 cm.
Orientador: Valdemir Lúcio Rosa TC (Trabalho de Curso) – Associação Escola da Cidade Arquitetura e Urbanismo, 2020. 1.Prototipagem. 2. Entulho. 3. Reciclagem. 4. Recursos. 5. Pré-fabricados. I Título. CDD 711.13
Porque todo tijolo já foi barro e o suor de trabalho de alguém.
Porque todo cimento já foi cal de mais de 200 metros de profundidade em uma pedreira.
Porque todo vidro já foi grão, nos desertos que atualmente se esgotam.
Porque todo azulejo já foi sonho, Conquista e escolha de alguém.
Porque todo piso de madeira já foi uma árvore centenária.
E porque quem constrói e destrói tudo isso, o faz sem a paz de quem manda fazer.
Este trabalho é em homenagem a todos eles.
Para o meus pais, que juntos trabalham para construir o meu privilégio de não só ser um ser pensante, mas sonhador.
E para minha irmã, que amorteceu o meu caminho de crescimento.
RESUMO Falar “O início, fim e o meio” é compreender que o ciclo produtivo não tem exatamente essas etapas como imaginamos, é entender que existem infinitos tipos de início de vida um material, de uma política pública, de um espaço livre. É tentar entender que o “fim” é uma ilusão propagandeada pelo sistema econômico vigente e que o verdadeiro fim para um objeto – uma pessoa ou um espaço – reside dentro de nós e na memória que geramos deste objeto. Por final, o meio acaba por ser, ao mesmo tempo, o conglomerado de ações e vivências entre estes “inícios” e “fins”, mas também o território e as condições que todas essas ações e vivências têm palco. Este trabalho busca a proposição de uma resposta prática à segregação urbana e desigualdade de oferta e uso do espaço público na cidade de São Paulo. Entende-se que está em discussão duas problemáticas nesta pesquisa: o uso do espaço público e a produção de entulho na cidade. Em primeiro momento, a reflexão sobre os processos coletivos (consolidação da cidade de São Paulo, uso do espaço urbano e recursos materiais no campo da construção civil) quanto dos individuais a esta pesquisa (levantamentos sobre a atualidade e processo de experimentação já percorridos) se faz necessária para o embasamento da seguinte etapa: a prática. Nela, propõe-se se debruçar no problema como ferramenta para sua própria solução. E se os resíduos da construção civil e demolição fossem utilizados para reativar os espaços públicos da cidade? Ainda, na proposição prática, busca-se que esta solução funcione tanto no campo físico e urbano (a reativação dos espaços públicos) quanto no campo social (o fomento de práticas individuais e coletivas de economia solidária e sustentável). Assim, o intuito final deste trabalho é relatar dois anos de estudo sobre os resíduos da construção civil, permeados de início ao fim por processos práticos de experimentação, desde a concepção e testagem de uma nova tecnologia construtiva até o emprego desta em objetos de design. Utilizando-se de misturas de concreto com agregado reciclado este trabalho traça possíveis empregos para esta tecnologia, que ao final são resumidos a pequenas peças modulares projetadas buscando ativar o uso do espaço público de áreas não utilizadas ou reativar o tecido urbano em áreas livres abandonadas pela população civil.
PALAVRAS-CHAVE Prototipagem; Entulho; Reciclagem; Recursos; Pré-fabricados.
ABSTRACT To say “O início, fim e o meio” -”The start, end and middle”- is to understand that the production cycle does not have exactly these steps as imagined, it is to acknowledge that there are infinite types of beginning of lifes, materials, public policies, or free spaces. It is trying to understand that the “end” is an illusion propagated by the current economic system and that the true end for an object - a person or space - resides within us and in the memory that we generate from that object. Finally, the environment ends up being, at the same time, the conglomerate of actions and experiences between these “beginnings” and “ends”, but also the territory and conditions that all these actions and experiences took a stage. This paper seeks to propose a practical response to urban segregation and inequality in the supply and use of public space in São Paulo city. Two issues are being discussed in this research: the use of public space and the production of rubble in the city. Firstly, the reflection on the collective processes (consolidation of São Paulo, use of urban space and material resources in the civil construction field) as well as the individual in this research (surveys on the current situation and the process of experimentation already done) makes it necessary to support the following stage: practice. It is proposed to address the problem as a tool for its own solution. What if civil construction and demolition waste were used to reactivate the city’s public spaces? Still, in the practical proposition, it is sought that this solution works both in the physical and urban field (the reactivation of public spaces) and in the social field (the promotion of individual and collective practices of solidarity and sustainable economy). Thus, the final purpose of this work is to report two years of study on civil construction residues, permeated from beginning to its end by practical experimentation processes, from the conception and testing of new constructive technology to its use in design objects. Using mixtures of concrete with recycled aggregate, this work traces possible uses for this technology, which in the end are summarized in small modular pieces designed to activate the use of public space in unused areas or reactivate the urban fabric in free areas abandoned by the civilian population.
KEY-WORDS Prototyping; Rubble; Recycling; Resources; Prefabricated.
RESUMEN Hablar “El principio, el fin y el medio” es entender que el ciclo productivo no tiene exactamente estos pasos cómo imaginamos, es entender que hay infinitos tipos de inicio de vida de un material, una política pública, un espacio libre. Se trata de intentar entender que el “fin” es una ilusión propagada por el sistema económico actual y que el verdadero fin de un objeto - una persona o un espacio - reside dentro de nosotros y en la memoria que generamos a partir de ese objeto. Al fin de cuentas, el medio acaba siendo, al mismo tiempo, el conjunto de acciones y experiencias entre estos “inicios” y “finales”, pero también el territorio y las condiciones en que todas estas acciones y experiencias tienen un escenario. Este trabajo busca proponer una respuesta práctica a la segregación urbana y la desigualdad en la oferta y uso del espacio público en la ciudad de São Paulo. Entendemos que en esta investigación se están discutiendo dos temas: el uso del espacio público y la producción de escombros en la ciudad. En primer lugar, la reflexión sobre los procesos colectivos (consolidación de la ciudad de São Paulo, uso del espacio urbano y recursos materiales en el campo de la construcción civil) como de los individuales en esta investigación (encuestas sobre la situación actual y el proceso de experimentación ya vivido) se hace necesaria apoyar la siguiente etapa: la práctica. En ella, se propone insistir en el problema como una herramienta para su propia solución. ¿Y si se utilizaran residuos de la construcción civil y demolición para reactivar los espacios públicos de la ciudad? Aún así, en la propuesta práctica, se busca que esta solución funcione tanto en el ámbito físico y urbano (la reactivación de espacios públicos) como en el ámbito social (promover prácticas individuales y colectivas de economía solidaria y sostenible). Así, el objetivo final de este trabajo es informar de dos años de estudio sobre residuos de la construcción civil, impregnados de principio a fin por procesos prácticos de experimentación, desde la concepción y prueba de una nueva tecnología constructiva hasta el uso de esta en objetos de diseño. Utilizando mezclas de hormigón con áridos reciclados, este trabajo traza posibles usos de esta tecnología, que al final se resumen en pequeñas piezas modulares diseñadas para activar el uso del espacio público en zonas no utilizadas o reactivar el tejido urbano en zonas libres abandonadas por la población civil.
PALABRAS CLAVE Prototipos; Escombros; Reciclaje; Recursos; Prefabricados.
SUMÁRIO PREÂMBULO ................................................................... 13 MEIO ............................................................................... 21 HISTÓRIA 26 PANORAMA ATUAL 42 INÍCIO ............................................................................. 51 PRIMEIRO PROCESSO PRÁTICO 54 CONCLUSÕES DO PROCESSO PRÁTICO 70 FIM.................................................................................. 73 PROJETO 78 CONCLUSÕES DO SEGUNDO PROCESSO PRÁTICO 94 ENSAIO FOTOGRÁFICO 98 CONCLUSÃO ................................................................... 113 REF. IMAGEM .................................................................. 118 REF. MAPAS .................................................................... 119 REF. TABELAS ................................................................. 119 BIBLIOGRAFIA ................................................................ 121 ANEXOS .......................................................................... 123 ANEXO I A PNRS E A PGIRS 124 ANEXO II O QUE É UM ECOPONTO 136 ANEXO III MANUAL 139 ANEXO IV PENEIRA I 141 ANEXO V PENEIRA II 143 ANEXO VI PEÇA CUBO 145 ANEXO VII PEÇA QUARTO DE CUBO 147 ANEXO VIII PEÇA ABÓBADA 149
Resíduos da construção civil são testemunhos de ideias e práticas de trabalho que constituem importantes documentos para os estudos da arquitetura, da cidade, das artes, das técnicas, das profissões e suas relações com a sociedade. Representam um patrimônio cultural que precisa ser preservado, estudado e divulgado. São compostos por materiais de variadas origens, cujas especificidades exigem tratamentos distintos de salvaguarda, organização, catalogação e reciclagem de modo a permitir ampla difusão de sua memória entre todos os seres pensantes, não só apenas entre pesquisadores e interessados. Atirados a aterros ou em áreas públicas sem escrúpulos ou qualquer intuito de reciclagem, os resíduos da arquitetura e urbanismo servem tanto a pesquisa quanto a difusão da cultura técnica, artística e social brasileira. Este trabalho foi produzido sob a visão de que a arquitetura pode capacitar a população e servir como ferramenta para uma sociedade mais sustentável em todos os seus sentidos: economicamente viável, ambientalmente correta e socialmente justa. Por sua vez, o espaço público é o ambiente do encontro por excelência. Ao mesmo tempo que se refere ao lugar físico que pertence a todos, pode ter também um sentido político, quando se refere à esfera pública, o ambiente onde se discutem temas da cidade. Essa discussão, ou melhor, a troca de ideias, ações e até olhares entre pessoas que não são de mesma origem é a gênese do que seria a vida em espaço público. Esse espaço pode ser resumido ao único espaço que resta a humanidade onde há alteridade, ou onde ela é praticada. A alteridade é a natureza ou condição do que é outro, do que é distinto. É reconhecer a sua individualidade enxergando no outro as suas diferenças, mas livre de preconceito ou juízo de valor, só o reconhecimento de diversas individualidades formando um grupo coletivo que são os habitantes deste mesmo lugar. Ainda, ao estudar os espaços públicos recaise sobre a conotação poética e política deste ambiente, que – não nos esqueçamos – é por um lado o resultado de determinada visão da sociedade na qual ele está inserido, e, por outro, também molda essa sociedade. O espaço público é sinônimo de disputa política, uma vez que é território neutro para a manifestação de todas as artes e vontades humanas. Este espaço não se democratiza pela supressão suscetiva de conflitos, mas talvez a simples constatação de sua existência seja o passo inicial para que pessoas diferentes usufruam de um mesmo lugar civilizadamente. A ocupação de um espaço público, físico e simbólico, remete a um ato político. Ao pensar-se em manifestações políticas na cidade de São Paulo
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1. Manifestação das Diretas Já, em 1984. 2. Manifestações contra o aumento da passagem de ônibus, em 2013.
somos levados diretamente para o Vale do Anhangabaú1 , para a Av. Paulista2 ou para o Largo da Batata3, todos espaços públicos de caráter transitório (multiplicidade de fluxos, usos e públicos), verdadeiros catalisadores de vida humana.
3. Manifestação a favor da educação, em 2019.
Imagem 01: Vale do Anhangabaú em reformas, março de 2020.
O espaço público é um verdadeiro termômetro para reconhecer a qualidade de vida de uma população. Em São Paulo, meio em que estamos inseridos, isto não seria diferente: a cidade vive uma verdadeira disputa política. Além de uma segregação no uso e na distribuição de suas áreas públicas, há uma diferença
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gritante entre o significado que esses espaços têm para as pessoas com mais ou menos poder político. O resultado é a situação que vive-se hoje: os privilegiados com acesso á áreas públicas de qualidade gozam da sua recente redescoberta, enquanto o grupo oposto usa as poucas áreas livres próximas a suas ocupações urbanas para o descarte de resíduos, principalmente o de entulhos da construção civil e demolição. Este trabalho busca a proposição, autônoma e replicável, de uma resposta prática à segregação urbana e desigualdade de oferta e uso do espaço público na cidade de São Paulo. Entendese que está em discussão duas problemáticas nesta pesquisa: o uso do espaço público e a produção de entulho na cidade. Para cada um destes temas – lixo e espaço público – ainda existem duas aproximações, de acordo com a classe social: a classe imperante econômica e politicamente goza de recursos, mas os desperdiça (tanto as áreas públicas quanto materiais de construção civil); já a classe dominada, que sofre os efeitos da desigualdade respaldada pelas ações do Estado, vive desconexa dos poucos espaços livres públicos disponíveis nas suas adjacências e não tem acesso aos serviços públicos de coleta e gestão de resíduos. Ao se falar de “resíduos” neste trabalho, refere-se ao descarte da construção civil, que se difere dos nomeados “rejeitos”4 por ainda poder ser reutilizado e reciclado, estendendo o seu ciclo produtivo por mais tempo. Mesmo que chamado vulgarmente de lixo, estes resíduos têm nome específico: são os entulhos excedentes de obras, e são um problema para aqueles que não podem pagar a sua correta disposição ambiental. De acordo com o Dicionário Michaelis, embora as definições encontradas sejam similares, inclusive o verbete “entulho” seja citado como sinônimo de “lixo”, e “entulho” ser mencionado como qualquer coisa inaproveitável que vai para o “lixo”, é possível compreender pelas definições que o entulho é a parte “grande” do lixo, cuja ideia está relacionada ao tamanho e a materiais volumosos. O verbete “entulho” também se refere aos resíduos da construção civil e demolição, chamados também de RCD (Resíduos da Construção e Demolição civil), dando uma pista sobre a categorização deste tipo de resíduo. O CONAMA dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, regulamentada pelo Decreto 99.274/90. O Conselho é um colegiado representativo de cinco setores: órgãos federais, estaduais e municipais, setor empresarial e sociedade civil. Nesta política fica mais clara a diferenciação entre os tipos de resíduos gerados pela vida humana e suas diretrizes para
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4. De acordo com a resolução nº302 do CONAMA, de 2002.
o manejo e disposição em meios urbanos. A resolução mais marcante do CONAMA é a de nº 307 do ano de 2002, na qual estabelece diretrizes, critérios e procedimentos para a gestão dos RCD, disciplinando, dessa forma, as ações necessárias de forma a minimizar os impactos ambientais. A classificação dos resíduos da construção civil no Brasil se dá através da seguinte forma: Resolução CONAMA 307 Art. 3°: Os resíduos da construção civil deverão ser classificados, para efeito desta Resolução, da seguinte forma: I – Classe A – são os resíduos reutilizáveis ou recicláveis como agregados, tais como: a) de construção, demolição, reformas e reparos de pavimentação e de outras obras de infraestrutura, inclusive solos provenientes de terraplanagem; b) de construção, demolição, reformas e reparos de edificações: componentes cerâmicos (tijolos, blocos, telhas, placas de revestimento etc.), argamassa e concreto; c) de processo de fabricação e/ou demolição de peças pré-moldadas em concreto (blocos, tubos, meios-fios etc.) produzidas nos canteiros de obras; II – Classe B – são os resíduos recicláveis para outras destinações, tais como: plásticos, papel, papelão, metais, vidros, madeiras e gesso; III – Classe C – são os resíduos para os quais não foram desenvolvidas tecnologias ou aplicações economicamente viáveis que permitam a sua reciclagem ou recuperação; IV – Classe D – são resíduos perigosos oriundos do processo de construção, tais como tintas, solventes, óleos e outros ou aqueles contaminados ou prejudiciais à saúde oriundos de demolições, reformas e reparos de clínicas radiológicas, instalações industriais e outros bem como telhas e demais objetos e materiais que contenham amianto ou outros produtos nocivos à saúde.
Assim sendo, fica claro que os termos lixo e entulho também são tratados pelas normas técnicas como sendo materiais diferentes, uma vez que as próprias normas para a triagem de cada um são diferentes. Embora “lixo” e “entulho” são usados como sinônimos, o entulho – ou RCD – a que se refere este trabalho é referente a materiais da construção civil, de constituição inorgânica, e que se resume basicamente a classe A, desenvolvida pela resolução do CONAMA. Ademais, a mesma resolução do CONAMA – e suas alterações – tornou obrigatório para todos os municípios a implantação, pelo
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Estado, de um Plano Integrado de Gerenciamento de Resíduos (PGIRS), incluindo os da construção civil. Para mais informações sobre a situação legal da gestão de resíduos sólidos em São Paulo, vide o Anexo I “A PNRS e a PGIRS” (p.124). Este plano é voltado para os pequenos e os grandes geradores de lixo, permitindo disciplinar a atuação de todos os agentes envolvidos. Ainda, a resolução define um conjunto de áreas de manejo para os RCD e como deve ser a destinação de cada tipo de resíduo nessas áreas.
Imagem 02: Rua Nova no Jardim Elba, bairro no extremo leste paulistano.
Aprofundando os temas, procura-se agir dentro de dois eixos de raciocínio que estruturam essa pesquisa: o espaço público e o lixo, mais especificamente o RCD. Para isso , a pesquisa organizase em duas partes: a primeira, de caráter histórico, teórico e técnico, procura encadear e elucidar o processo de consolidação da cidade de São Paulo até a contemporaneidade, bem como o processo passado de pesquisa técnica do autor; já a segunda parte lança a mão sobre a experimentação prática, prototipando peças prémoldadas de concreto reciclado, propondo uma possível resposta as mazelas urbanas resultantes da sua segregação urbana.
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Em suma, esta pesquisa busca agir prepositivamente sobre esta realidade já explanada. Em primeiro momento, tanto a reflexão sobre os processos coletivos (consolidação da cidade de São Paulo, uso do espaço urbano e recursos materiais no campo da construção civil) quanto dos individuais a esta pesquisa (levantamentos sobre a atualidade e processo de experimentação já percorridos) se faz necessária para o embasamento da seguinte etapa: a prática. Nela, propõe-se se debruçar no problema como ferramenta para sua própria solução. E se os resíduos da construção civil e demolição fossem utilizados para reativar os espaços públicos da cidade? Ainda, na proposição prática, buscase que esta solução funcione tanto no campo físico e urbano (a reativação dos espaços públicos) quanto no campo social (o fomento de práticas individuais e coletivas de economia solidária e sustentável). Existem diversas formas de repensar as ações humanas e seus impactos sobre o planeta terra e sua biosfera, e como trabalho de conclusão de curso de arquitetura, estuda-se a construção e a cidade. Assim, tem-se como objetivo traçar um novo final, ou melhor, um novo início, para aqueles espaços e materiais que já eram considerados “fim”. Pretende-se prototipar peças para reativar o tecido urbano que nos mantém unidos com sanidade e qualidade de vida, de uma forma que o próprio repelente de atividade – o resíduo – se torna a ferramenta de reativação. Valoriza-se que o design de espaços não é só o projeto e desenho de ambientes, mas também a construção de personagens e memórias que tem como pano de fundo o espaço público. Este trabalho, além de entender o processo consumista em que estamos inseridos, busca tecer um futuro possível, quebrando este ciclo consumista. Para isto, esta pesquisa não parte de uma discussão casual, mas gravita em uma constelação de discussões que tomam o campo de debate atual. Mais especificamente, ela é um segundo passo após um ano de pesquisa científica dentro da Escola da Cidade feita por este mesmo autor, que a frente será introduzida (CAP. 02 - INÍCIO) para compreensão do cenário total da pesquisa.
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Busca-se inciar esse trabalho com uma reflexão que o arquiteto Flávio Villaça fez em um artigo para a revista Estudos Avançados nº71, de que “[...] nenhum aspecto da sociedade brasileira poderá ser jamais explicado/compreendido se não for considerada a enorme desigualdade econômica e de poder político que ocorre em nossa sociedade.” (VILLAÇA, 2011, P.02). Parte-se então do pressuposto que espaço urbano da cidade mais populosa do hemisfério sul não é um dado da natureza, mas um produto do trabalho humano. Trabalho este que não foge das regras do sistema capitalista, e consequentemente também de seus abusos e desigualdades. No mais, compreende-se que a segregação espacial-urbana é uma manifestação – se não a mais importante – da desigualdade que impera na nossa sociedade.
Imagem 03: Jardim Público da cidade de São Paulo (atual Jardim da Luz) em 1887. Um parque de desenho romântico em meio à um cenário tropical ainda não urbanizado.
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Ainda, o processo de segregação espacial-social se inicia por volta de 1850 junto a Lei de Terras no Brasil, que aponta que nenhuma porção de terra da nação deve permanecer sem dono. Lotes privados tinham um dono bem identificado – que podia pagar por ele – e os lotes públicos se tornaram propriedade do Estado e serviriam ao interesse político. A partir daí inicia-se o processo de grilagem de diversas áreas tanto urbanas quanto rurais, onde o poder econômico da classe dominante paga a melhor, mais bem localizada e maior porção de terra, ao gosto do futuro proprietário.
5. Em específico a Várzea do Carmo, às margens do rio Tamanduateí e porção originária da cidade, era onde a população humilde tanto trabalhava lavando roupas como gozava de seu breve tempo livre, banhando-se. Ainda, em porções mais distantes do pequeno centro de São Paulo, as várzeas do rio Tietê e o próprio rio eram destino de lazer para aqueles que desejavam um momento em contato com a natureza e lazer aquático no rio, além da prática de esportes. 6. O principal e o primeiro deles, o Chafariz de Tebas, obra de escravo livre e inaugurado em 1788 onde escravos e serviçais se encontravam ao buscar água limpa para as casas em que trabalhavam. 7. Nota para os três largos que conformavam o “triângulo histórico” da cidade de São Paulo: Largo São Bento (1630), Largo do Mosteiro do Carmo (1594), e Largo de são Francisco (1647), além do Largo da Matriz (atual Praça da Sé) e o largo do Pátio do Colégio. Estes espaços livres eram onde toda a população da antiga vila se aglomerava em eventos religiosos como missas e procissões.
A importância econômica e política da cidade de São Paulo é fruto da eleição, em tempos do primeiro Império Brasileiro (18221889), da pequena vila jesuítica como capital da província, sendo subordinada politicamente a capital, no ano de 1681. A mudança administrativa fez com que os fazendeiros – monocultores detentores do capital – voltassem à cidade, e então se preocupassem com as questões da mesma. Esta elite buscava ainda, no início do século XIX, um embelezamento tanto dos prédios públicos quanto das áreas comuns da cidade, mostrando uma forte influência iluminista vinda da Europa. Agora que os ricos habitavam o espaço urbano, os edifícios públicos deveriam se apresentar à altura da sua importância, e a cidade se acondicionaria de acordo com as memórias de uma metrópole europeia, cidade qual só os ricos e poderosos sabiam como era. Junto dessa súbita importância para a ambiência e caracterização dada para o espaço urbano sob os mandos da elite política e econômica, cresce também a importância dada para os serviços públicos. Varrição das ruas, iluminação pública, oferta de água: todos estes temas entraram no debate urbano, claro que sempre carregado pelas elites. Por isso que eram primeiro implantados em suas casas e ruas, para depois se espraiarem para os bairros menos influentes e favorecidos. A partir desta migração das elites para residência oficial em território urbano e não mais em meio rural a cidade começa a rachar-se em duas, de acordo com o poder econômico de cada camada. A sociedade não era mais homogênea de acordo ao patriarcado e colonialismo presente, entrava e cena um verdadeiro choque de classes sociais, entre os fazendeiros ricos e o resto da população mais humilde (incluindo os servos e escravos). O espaço público, que até o momento era resumido às várzeas dos rios5, aos chafarizes6, e largos das igrejas7, agora era local de conflito e desconforto social, onde uma elite desejava exclusividade. Como alternativa à essa realidade, uma das
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primeiras empreitadas do governo provinciano foi a construção de um Horto Botânico, em 1825, jardim botânico privado que viria a se tornar o atual Jardim da Luz. A classe social dominante não pode ser dissociada da classe política atuante no território urbano, visto que são fatores codependentes e cíclicos: desde as fazendas de café que controlavam dinheiro e o poder político, e os donos desse poder trabalhavam por mantê-lo e enriquecer mais. Essa manutenção de poder se torna viável por meio da legislação urbanística e da atuação do Estado sobre o território, priorizando sempre os interesses da classe dominante, – social, econômica e politicamente. Essa atuação do Estado alimentou a desigualdade espacial especialmente sobre o sistema de transportes (produtor de localizações privilegiadas) e a localização dos aparelhos do estado (saneamento, saúde, educação e, em foco neste estudo, lazer). Não bastando a desigualdade espacial conduzida pela elite política, a desigualdade de serviços públicos prestados é um fator de extrema importância para este trabalho. Ao escolherem qual bairro recebe uma nova escola, ou esgoto tratado, ou até uma intervenção urbana mais agressiva, a classe política também escolhe qual rua é varrida e em qual periodicidade. O ponto é: os bairros dos mais abastados são priorizados tanto com políticas urbanas físicas quanto por práticas públicas cotidianas. A classe política que tomou palco na cidade de São Paulo sempre buscou optar pela priorização dos seus iguais, e o campo de políticas públicas e gestão urbana não foi diferente. As camadas mais ricas da população, desde a sua primeira ocupação do espaço urbano, são priorizadas pelo seu poder econômico e consequentemente político, tendo suas necessidades atendidas pelo Estado. Em contraponto, o Estado foi incapaz de suprir as necessidades básicas das camadas mais pobres da população desde o início da sua ação sobre o território, tratando-a sempre com descaso e como um “problema” a ser resolvido. Assim, as classes populares se submetem, até os dias atuais, ao mercado informal de solo (que segue a razão do capital e, portanto, do maior lucro), que desde seu início foi tratado com vista grossa pelo Estado. Essa informalidade urbana é composta por um conjunto de irregularidades em relação aos direitos – ambiental, urbanístico, construtivo e em relação ao direito de propriedade de terra – que em primeiro momento parecem desnecessários, mas adotados sistematicamente, refletem na cidade em que vivemos hoje.
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8. Dados da Fundação Seade, a partir de tabulação especial de Resolo.
O mercado informal de solo é responsável pelos 102,670 loteamentos (até 2005)8 irregulares da cidade de São Paulo. Um grileiro produz documentos de uma área até então não formalmente urbanizada e a urbaniza, da forma mais econômica possível, não respeitando as dimensões de vias públicas, áreas verdes, recuos etc.). Depois, vende seus lotes da maneira mais lucrativa, entregando as rebarbas do loteamento para o Estado como percentual de lotes públicos para a implantação de infraestruturas. A compra de um lote irregular por parte dos menos afortunados é uma exclusão destes cidadãos da cidade Legal, onde os impostos são revertidos para o seu benefício local, construindo um pertencimento daqueles que habitam um espaço com as suas propriedades públicas.
Imagem 04: Vista aérea da Rua Nova no Jardim Elba, bairro no extremo leste paulistano. Nota-se que o espaço verde da periferia é o mesmo que não se é possível edificar com facilidade
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HISTÓRIA A economia do país – e de São Paulo, em específico – cresceu em descompasso com a capacidade de gestão dos problemas gerados pelo aumento da concentração de pessoas em meio urbano. Inicia-se então uma intensificação dos conflitos dentro do tecido urbano: onde jogar os dejetos? Como lidar com a nudez nas várzeas, frente a nova moralidade pública? O que fazer com animais soltos? Todas estas questões foram títulos de atas da câmara municipal da cidade, em meio ao século XIX. O equilíbrio social anterior da cidade, baseado na estrutura patriarcal e escravocrata foi rompido, uma vez que a cidade crescia não só com população local, mas imigrante. Mauro Calliari escreve em sua tese de mestrado um comentário que ilustra bem o posicionamento da elite econômica e política, em relação ao conflito de modos na São Paulo do fim do século XIX: A atitude da elite talvez tenha deixado de lado a construção da noção de civilidade para toda a cidade, e se deu por outra via. O caminho escolhido acabou sendo o do isolamento: a demarcação do território para as áreas de fruição burguesa foi construída a partir de vários instrumentos, com aval da legislação. (CALLIARI, 2016, P.107).
Um ponto importante que o autor traz na sua reflexão é o respaldo legislativo às ações da elite, se tornando também um instrumento de dominação da mesma. Uma ferramenta importante para a segregação espacial na época foi o Código de Posturas, promulgado em 1875 e revisado em 1886. “Posturas”, como referido no código, fazia jus a edificação, arruamento, higiene, segurança, lazer e vida cotidiana. Dentre diversas seleções, o código proibia que as portas abrissem para fora, gritaria nas ruas, e investiu pesadamente contra os cortiços, construções ocupadas por famílias além do seu limite salubre, sendo alvo de diversas investidas “sanificadoras”. Calliari completa: Em que pese a preocupação com as condições sanitárias, é possível também entender a lei como uma maneira de isolar as habitações mais ricas do convívio com habitantes das casas mais modestas, que, com as leis sanitárias, foram obrigados a deixar as regiões centrais onde moravam. Separadas, as classes sociais perderam as oportunidades de contatos diários, tão importantes para a consciência e respeito pela diversidade. (CALLIARI, 2016, P.108)
Pontuo aqui o Código de Posturas e a forte política governamental contra os cortiços – e consequentemente, contra a existência das rendas mais baixas em terrenos e lotes centrais da cidade – como o início da política excludente territorial da cidade de São Paulo. A partir disto e, impulsionado pelo desenvolvimento
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dos transportes da cidade (dos trens, bondes e posteriormente, os ônibus) a mancha da cidade começa a se espraiar cada vez mais. Nas porções centrais bem servidas de transporte e serviços públicos estão localizadas as moradias das elites, enquanto nos tentáculos crescentes da mancha urbana, na fronte da expansão urbana sobre a rural, as camadas pobres agonizam autoconstruindo suas casas em áreas desprovidas de infraestruturas básicas como esgoto, luz e arruamento, quem dirá de limpeza pública.
9. Av. São João, alargada entre 1912 e 1930, tinha um plano urbanístico de ocupação desenhado pela prefeitura, onde fachadas deveriam ser alinhadas e aprovadas pela mesma, não permitindo gabarito menor que 3 andares de altura. 10. Primeira solicitação à prefeitura para embelezamento da Várzea do Carmo é do ano de 1888. 11. A construção da segunda Estação da Luz (atual) durou de 1895 a 1901, absorvendo parte do Jardim Público da Luz. 12. De acordo com Calliari, o Positivismo prega a ciência como único viés da verdade. Com o advento do secularismo (a separação entre estado e religião), antes do sistema capitalista tomar controle das relações inter-humanas e intraespaciais, a fé na ciência era o motor das futuras potências. No caso de São Paulo, o sanitarismo e as medidas médicas de bem-estar humano e espacial eram a principal ferramenta do positivismo, também funcionando como ferramenta de desigualdade socioespacial.
Ao mesmo tempo, no lado rico do espectro social, a classe dominante que costuma não se acomodar em sua posição de privilégio junto aos seus iguais, procura, em seu âmago, se destacar entre os mesmos. Literalmente, a falta de amparo Estatal no meio urbano fazia que, ao mesmo tempo, uns batalhassem por saneamento básico, enquanto outros podiam escolher entre mudar-se do bairro X para o Y pois este último é mais moderno e exclusivo. Essa busca das elites pela distinção socioespacial se mostra um fator determinante nas escolhas residenciais, uma vez que busca se distanciar da população mais desigual de si e se aproximar dos seus iguais, uma convenção urbana característica de todos os grupos sociais. Consequentemente, essa inovação sistemática promove a homogeneidade do produto (imobiliário ou de material de construção), gerando a busca por nova inovação, um efeito caleidoscópico. A partir da década de noventa do século XIX, o centro da cidade vivia o início da ascensão de sua atividade, passando por inúmeros embelezamentos. A desapropriação de quarteirões inteiros com cortiços era respaldada pela política adotada pela prefeitura de ampliação de avenidas9, embelezamento de áreas públicas10, construção de estações11 e novos loteamentos. Com a proclamação da República em 1889 e a difusão dos ideais positivistas12, há a necessidade de se reforçar o papel do Estado na vida dos cidadãos, e isso se dava principalmente pela oferta de espaços de representação social dos ricos e da classe política. É neste período que as várzeas dos rios Anhangabaú e Tamanduateí são saneadas, a partir do projeto do projeto do arquiteto francês e diretor de obras públicas de Paris, Joseph-Antoine Bouvard, em 1910. O Brasil sempre foi um país rico de recursos, tanto físicos quanto humanos. Para os tais embelezamentos no início do século XX a ação do Estado não era pontual e cuidadosa como um tipo de acupuntura urbana, focada no patrimônio histórico e cultural, mas sim do estilo tábula rasa de Haussmann, contemporâneo às remodelações paulistanas. Não importava quem habitou esse
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Imagem 05: Visual a partir da Praça do Patriarca do primeiro Viaduto do Chá (1892-1938), no ano de 1911. No primeiro plano, a direita, vê-se o parcialmente demolido e remodelado Solar dos Barões de Itapetininga (demolido em 1912). Em segundo plano vêse o vale ocupado por pequenas casas e ao fundo, os dois teatros.
espaço, que histórias foram vividas ali, muito menos o tipo de piso ou os acabamentos empregados: tudo era lixo. E como todo o lixo, deveria ser transportado para longe dos olhos da elite e o novo construído no lugar não deveria dar uma pista do que antes ali existia. No início do século XIX, o imaginário romântico das elites visualizava jardins públicos e praças como vistas na capital francesa, inglesa e até portuguesa. A título de um valor estético, o território comum das várzeas da cidade fora mutilado e superado, roubando do bioma paulistano o direito de cheia e baixa de seus rios. Ainda, era tomado das camadas populares não só o espaço público no seu caráter ambiental, mas de lazer e sociabilidade. As novas várzeas eram propriedades do Estado e espaços pensados
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Imagem 06: Visual a partir da Praça do Patriarca do primeiro Viaduto do Chá (1892-1938), no ano de 1916. O Solar dos Barões de Itapetininga já se encontra demolido por conta do alargamento da Rua Libero Badaró, junto com todas as residências que davam os fundos para o córrego Anhangabaú.
para o lazer e o desfrute essencialmente burguês, desconectando este espaço público da realidade das porções mais pobres. Em 1884, a opinião higienista das elites sobre a antiga Várzea do Carmo já era compartilhada no jornal A Província de São Paulo: [...] A várzea ali está prometendo ser um excelente auxiliar da morte se a cólera chegar até cá, o que é bem possível. Aos lados da linha de bondes fazem-se despejos e ao aterro em regra é com lixo. As exalações são incomodas na parte mais próxima da cidade, principalmente no espaço entre as duas pontes. Estão mais resguardados das imundícias e garantidos contra as tais exalações os moradores do lado do Gasômetro, porque se acham afastados dos depósitos de lixo e em melhor posição quanto à ação dos ventos. (PESTANA, 1884).
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08 Imagem 07: Cartão postal veiculado em 1936 que apresenta, do ponto de vista da Rua Libero Badaró no ano de 1911, a construção do Palacete Prates nº1 (no antigo local do Solar dos Barões de Itapetininga). Em segundo plano vê-se a várzea do córrego Anhangabaú canalizado, mas ainda com algumas propriedades. Mais a fundo estão, à direita, o Teatro Municipal (1911) e à esquerda, o segundo Teatro São José (1909-1924).
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Imagem 08: Parque Anhangabaú, projeto do francês Joseph-Antoine Bouvard, na comemoração do centenário da independência brasileira (1922). O parque se conecta à Praça Ramos de Azevedo, e ao fundo vê-se a mancha arbórea da Praça da República.
A elite sempre determinou o que é espaço público digno para a cidade ou não. Por isso cria-se jardins botânicos com espécies exóticas e aterra seus córregos e várzeas, porque repete-se aqui o que é padrão internacional, desconsiderando as especificidades do bioma tropical paulistano. O saneamento de áreas e a política higienista das elites funcionou como ferramenta de propaganda do que é “bom” ou “ruim” para a população em geral. Banhar-se e lavar as roupas nas várzeas do Tamanduateí não era digno da moral e bons costumes de uma elite que almejava os padrões parisienses de meio urbano. Ao mesmo tempo, sujeitar-se ao meio coletivo da cidade era permitir-se estar em meio á diferentes e praticar a alteridade, duas práticas que estes grupos sociais dominantes se opuseram.
Imagem 09: Parque Anhangabaú em 1919, a partir da vista do Viaduto do Chá. No lado direito observa-se o Palacete Prates no2 - sede da prefeitura de São Paulo. Na porção central observa-se os fundos da delegacia fiscal, que tem frente para a Av. São João.
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Ainda, a classe política transvertia o “bom” e “ruim” para todos com o “positivo” e “negativo” para ela mesma. Por isso que as vias e espaços públicos eram padrão europeu, e por isso que as camadas populares não combinavam com o cenário montado. A exclusão das camadas populares do centro histórico (provido de infraestrutura urbana) e posteriormente dos bairros bem implantados na cidade foi a única política social-espacial pensada pela camada dominante para a camada dominada. Destruíase a alteridade no tecido urbano e as camadas populares eram dominadas pela quantidade de tempo despendido por elas mesmas nos trajetos entre sua casa (no bairro isolado sem infraestrutura) e seu trabalho (no bairro central regado de serviços e consumo ligados a burguesia política). Para as elites, a política urbana do governo municipal era a de estruturação de bairros com altíssima qualidade de vida e disponibilidade de áreas públicas e verdes, mesmo que pouco fossem utilizadas por essa população que nunca teve interesse em fomentar vivências coletivas em espaço público. Ao passo que a expansão da mancha urbana sentido bairros de elite era resultado de realizações planejadas – Av. Paulista (1891), Av. Nove de Julho
Imagem 10: Construção do túnel da Av. Nove de Julho (vetor sudoeste da cidade) no ano de 1939, sob o Belvedere Trianon e a Av. Paulista.
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(1928), bairros jardins (1910) – a sentido leste e periferia eram resultado de loteamento ilegais e irregulares frente ao Estado. Para os pobres, a ausência de políticas urbanas deixava os cidadãos sob o controle do capital e dos loteamentos irregulares altamente rentáveis para os seus idealizadores, todos os lotes vendíveis foram vendidos, sobra para a área pública e estatal as de difícil acesso, ou as de difícil construção. Temos então uma cidade em que os ricos dispõem de áreas verdes públicas não utilizadas, enquanto os pobres contam nos dedos as árvores de seu bairro. Esta desconexão entre população e espaço nada mais é que um projeto da elite dominante para a perpetuação de sua dominação sobre as classes dominadas. Um cidadão que não se reconhece como parte de seu bairro não é um cidadão que reconhece seus vizinhos, sua comunidade. Não é um cidadão que preza por áreas públicas limpas ou acessíveis pois nunca teve isso na sua vida. É um cidadão que sempre foi acostumado a jogar lixo naquilo que não é terreno de alguém, uma pessoa imersa em um grupo onde não existe coletivo. No mais, por viver em um eterno estágio de construção e demolição (de acordo com o CAU, em 2019 somente 15% das edificações em São Paulo foi construída sob a supervisão de um profissional), o cidadão pobre está acostumado e se livrar dos seus entulhos mensais nas proximidades da sua casa (naqueles terrenos sem dono), não tendo que arcar com as despesas da disposição correta de seus resíduos. Enquanto a urbanização dos bairros de alta classe era pautada por desenvolvimentos urbanísticos focados para o automóvel, as linhas férreas do trem e dos bondes faziam a ponte com os bairros populares, para além da Várzea do Carmo. E o transporte de massa se mostrou imprescindível para a gestão e mantimento das classes populares vivendo mal e longe do centro. A escala da cidade vai se alongando, a partir das distâncias alcançadas pela malha de bondes elétricos de 1889 até 1927, quando a proposta da empresa São Paulo Tramway, Light and Power Company projeta novos eixos de transporte rápido por bondes subterrâneos e prolongamentos por vias expressas sobre a terra. Infelizmente, esta proposta foi perdedora frente a proposta dos engenheiros municipais Francisco Prestes Maia e João Florence D’Ulhôa Cintra, o Plano de Avenidas. Mesmo determinando que a cidade necessitava de um plano de trânsito rápido e de alta capacidade, sendo efetuado em pouco tempo com pouco dinheiro, a argumentação do plano de Prestes Maia contra o monopólio da administração das linhas de ônibus – demanda da Empresa Light em seu plano de bondes
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de alta velocidade – era inviável e até antidemocrático, uma vez que os preços das passagens subiriam e seriam destinados ao exterior, uma vez que a empresa é canadense. O Plano de Avenidas é um marco territorial do poder público, centralizado e coordenado a um conjunto de intervenções para implantar uma estrutura “ideal”, capaz de ordenar o crescimento urbano. Óbvio que este ideal atende a imaginação desta mesma classe política que sempre se manteve no poder. O foco do plano é de crescimento, uma vez que a concepção de urbanismo de Prestes Maia era contrária a qualquer bloqueio de crescimento físico à expansão da mancha urbana. Começava-se, no início da década de 1930, a implantar um raciocínio dos espaços dedicados ao fluxo ao invés do estar.
Imagem 11: Em 1950, crianças banham-se no chafariz construído junto ao túnel da Av. Nove de Julho.
Embora Prestes Maia referiu “descentralização” à expansão geográfica da área central catalisada pelos novos eixos de transporte, o resultado concreto do seu modelo de anéis e radiais acentuou o processo de especialização do centro, com a consequente segregação e expulsão dos tipos de programas e usos do espaço que não podiam pagar a valorização resultante
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dos melhoramentos urbanos, como habitação, comércio e lazer de baixa renda. Os fundos de vale que ainda não tinham sido sanitizados pelo Estado ainda estavam abandonados pela iniciativa privada devido às dificuldades de acesso e de ocupação. Constituíamse de áreas desvalorizadas, relativamente vazias e insalubres, por causa da relação construída com os meios aquáticos, – água vira esgoto – e pelo raciocínio permanente de despejo de resíduos em áreas públicas comuns. O Plano de Avenida aproveitou-as para, simultaneamente, sanear estes córregos e construir as avenidas de fluxo rápido. Até os dias atuais, somos dependentes deste sistema que visa a rápida e simples implantação, com o menor despendimento de recursos e com o maior retorno aos cofres públicos. A implantação parcial do plano funcionou como uma faca de dois gumes, até mesmo para o poder público. Ao mesmo tempo que toda nova localidade criada na periferia poderia ser monetizada, gerando lucros, a repaginação de bairros inteiros no centro pós cisão, feita pelas novas avenidas, desestimulava o uso do espaço público e afastava os investimentos econômicos para uma nova centralidade da cidade. Além disso, é válido retomar a ideia de que as elites também desproveram as camadas populares do seu direito de uso do espaço público e de noção do pertencimento. Ao expulsar os pobres da região central com medidas higienistas, os que lá restaram (no bairro do Bexiga ou Marechal Deodoro, por exemplo) testemunharam quarteirões e praças inteiras serem desmanteladas para o novo traçado das avenidas que contemplavam o transporte dos automóveis dos ricos, e do transporte público sobre rodas. Sabe-se já que os resíduos têm papel importante na nossa – não – relação com os espaços públicos em geral e em específico na cidade de São Paulo. Até meados do início do governo militar (década de 60) o lixo dos grandes centros urbanos era desprezado pelo poder público em sua proporção e encaminhado para lixões a céu aberto e aterros privados. Este raciocínio de desprezo pode ser sobreposto até os dias atuais, uma vez que a cidade de São Paulo continua não enfrentando maior parte do lixo dentro do seu município, mas delegando para aterros sanitários em cidades vizinhas. Originalmente, os aterros privados e os primeiros aterros públicos eram terrenos livres que se localizavam, em sua maioria, às margens da mancha urbana da cidade, e quando não, em terrenos planos das antigas várzeas dos rios Pinheiros e Tietê, que já eram foco de despejos irregulares.
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Imagem 12: Praça Marechal Deodoro, zona Oeste da cidade em 1924. Foto a partir do edifício no cruzamento entre R. das Palmeiras e R. Pirineus.
Imagem 13: Construção da via elevada João Goulart sobre a Praça Marechal Deodoro, em 1970. Foto a partir do edifício no cruzamento da Av. São João com R. dos Pirineus.
Na década de 1970, em meio ao governo militar, entraram para a pauta populista do poder público municipal as discussões sobre questões ambientais urbanas, em específico a destinação dos resíduos sólidos, cujo volume crescera exponencialmente em função da explosão demográfica paulistana, intensificada nas décadas anteriores. É nesse contexto que surgem as propostas de construção dos primeiros aterros de São Paulo de administração pública, visando ordenar a disposição e destinação final dos resíduos urbanos, ainda que carecessem da infraestrutura sanitária dos aterros atuais. Os primeiros aterros paulistanos a serem inaugurados foram o de Lauzane Paulista, em 1974, e o Jardim Damasceno, em 1975, ambos na franja norte da cidade de São Paulo, quase fronteira com o Parque Ecológico da Cantareira. No mesmo ano inaugurou-se o aterro Engenheiro Goulart, hoje absorvido pelo terreno do Parque Ecológico do Tietê. Na mesma linha de terrenos de várzea dos rios, em 1977 é inaugurado oficialmente o aterro do Carandiru – atual terreno da Cidade Center Norte e adjacentes –, “oficialmente” porque tem-se registro de despejos de lixo irregulares na região desde meados da retificação do Rio Tietê, no final do século XIX. No Pinheiros há o caso exemplar do antigo lixão do CEAGESP, que operou até 1989 junto aos terrenos vizinhos, onde funcionavam um outro lixão particular e um terreno público onde era depositado o material dragado do rio durante a sua retificação, que hoje dão lugar ao Parque Villa Lobos. Todos os aterros públicos citados são considerados somente aterros, mas não “sanitários”. O que “sanitiza” um aterro são as medidas tomadas para a correta disposição dos produtos da decomposição do lixo aterrado (chorume e gás metano), que caso não atendidas podem acarretar grandes problemas, como o caso do Shopping Center Norte (aterro Carandiru), que foi fechado às pressas por dois dias no ano de 2007, quando constatou-se que o gás metano do lixo já alcançava a superfície, sendo passível de combustão e explosão. Todavia, nem todo aterro é passivo de males diretos à população, um bom exemplo é o Parque Villa Lobos que possui monitoramento completo desde a sua inauguração e até os dias atuais não foi necessária a instalação de chaminés de metano.
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Os dois primeiros aterros públicos sanitários do Município de São Paulo foram o Bandeirantes, situado no distrito de Perus (extrema zona noroeste) e inaugurado em 1979 e o São João, situado no distrito de Sapopemba (extrema zona leste), instalado em dezembro de 1992. Ambos foram dotados de manta protetora do solo, controle de efluentes e monitoramento geotécnico de gases. Atingiram sua capacidade e tiveram as suas atividades encerradas respectivamente em 2007 e 2009, inexistindo até o momento qualquer registro de contaminação em seus entornos. Caminhando sentido à recuperação ambiental, mas por outra via, o primeiro parque de lazer instalado sobre um aterro foi na cidade de São Paulo. O depósito de lixo Raposo Tavares foi transformado em aterro em 1975 e funcionou até 1979 em um terreno que margeia a rodovia de mesmo nome, no limite oeste da cidade, quase fronteira com a cidade de Cotia. Naquele terreno, a partir de 1981 o aterro daria lugar a uma porção de cidade totalmente rearticulada a função de lazer e prática de esportes, o que se repetiria em 1995 com o Parque Villa Lobos. A disposição final é apenas uma das atividades gerenciais ligadas ao lixo urbano. Todas as etapas – geração, acondicionamento, coleta, transporte, transbordo, tratamento e
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Imagem 14: Imagem aérea do terreno do Shopping Center Norte em construção (1964-1984).
disposição final – apresentam problemas e dificuldades específicas, fazendo o problema se tornar sistemático e não apenas pontual. O território urbano atual é fruto de decisões e anseios de uma classe dominante que visava se isolar das camadas mais pobres, focada em viver confortavelmente entre seus iguais. Deste modo temos historicamente o apagamento de espaços de consumo populares – em específico aqui, os de lazer e moradia – para a reafirmação das visões burguesas e elitistas de cidade. O pobre não podia mais morar no centro porque sua situação domiciliar não era salubre, então foi desapropriado para a periferia. Seu espaço de lazer, as várzeas e jardins públicos, ou foram inicialmente mutilados para atender padrões europeus de paisagem ou foram removidos para, posteriormente, para dar lugar ao espaço de fluxo dos ricos.
Imagem 15: Capa da revista Veja São Paulo em Abril de 1988, comemorando a conquista de área para o lazer do bairro de classe média-alta da zona Oeste da cidade.
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Expulso das regiões providas de infraestrutura e serviços públicos de qualidade, o cidadão de baixa renda se sujeita a um habitat insalubre e não urbanizado, vivendo uma não-civilização, onde o seu direito à cidade (lazer, educação, saúde, saneamento e qualidade de vida no geral) é negado. Coincidentemente, ao estudar-se a segregação espacial e social urbana entre classes ricas e pobres na cidade de São Paulo, é impossível se desvencilhar da temática dos resíduos urbanos. Lixo é fator de exclusão na sociedade, e as camadas pobres são tratadas que nem o próprio. O sistema – tanto econômico quanto administrativo político – é cíclico e movido pelo valor agregado às coisas. Ele não dá ponto sem nó. Se loteamentos são construídos cada vez mais longe do centro, com o mínimo de qualidade de vida, é porque é mais lucrativo para aqueles que estão no comando, assim como manter a população nessa situação e supri-la de infraestrutura apenas quando lhes for interessante. Os ricos mudam constantemente de domicilio em busca de novos produtos imobiliários, ou então reformam suas casas, atendendo aos novos conceitos de “estilo” – que muitas vezes transfigura um mal gosto reacionário – buscando se destacar em seu meio. Por outro lado, os pobres nunca chegam a finalizar a casa em que vivem, visto que estão presos em um constante processo de autoconstrução e demolição. Há, nos dois extremos do espectro, a produção de resíduos oriundos da construção civil e da demolição, que na maioria das vezes têm seu tempo de vida encurtado por vontades maiores. Para os ricos, a sobreposição da moda e a obsolescência acelerada pelas tendências faz com que se reforme com muito mais velocidade; para os pobres, as contínuas reformas sem supervisão técnica são feitas de forma errônea, o que acarreta no encurtamento da vida útil dos materiais que já tem menor qualidade. São Paulo vive, entre as décadas de 10 e de 60 do século XX uma explosão em sua escala. Explode-se sua população, e consequentemente sua mancha urbana e a quantidade de recursos – água, habitação, cultura, lixo, educação, alimentação, trabalho etc. – necessários para o seu mantimento com qualidade de vida. Até hoje vive-se os reflexos da incapacidade espacialadministrativa do Estado na cidade. Os loteamentos irregulares foram se regularizando com o tempo, mas sem sinal de pararem de existir. Ainda se segue o raciocínio de uma pós-urbanização, uma vez que a área já se encontra ocupada pela população necessitada. Após loteada, aí sim a prefeitura aparece com planos e projetos de encanamento de córregos, construção de um sistema de saneamento básico e ocupação e urbanização das áreas ainda
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não urbanizadas. Estas áreas comumente são encostas muito inclinadas ou margens de rios, onde é difícil a estruturação barata de edifícios. Ao mesmo tempo em que a periferia é fruto de um território urbano desestruturado, a relação que se constrói frente às áreas públicas é incomparável a ética e modos da elite sobre as mesmas. Enquanto um grupo sabe que não se joga lixo na rua, o outro cresceu e vive em um bairro onde não há coleta de lixo ou tratamento de esgoto. Contudo, a elite ainda nega as áreas públicas por desconexão que ela mesma, historicamente, se propôs, alimentando então o desinteresse, comodismo e, principalmente, a reiteração do apartheid social das camadas menos abastadas, que voltam a ocupar estes espaços. Ainda, os economicamente dominantes nunca se preocuparam com a gestão dos seus resíduos, porque isso sempre foi política pública: descartar o indesejado. Sejam rejeitos, resíduos, coisas e até pessoas, o sistema foi construído para atender às vontades e idealizações da classe política que é a economicamente mais rica. Estas e somente estas pessoas merecem áreas verdes renovadas, iluminação pública, varrição das ruas semanalmente. Já os outros, vivem meio à sujeira e perigando a falta de água para seu consumo. Enquanto os afortunados têm os recursos para o que bem entenderem, inclusive a correta disposição de seus resíduos, os menos afortunados vivem numa condição eterna de instabilidade. Sem saber se terá dinheiro suficiente até o final do mês para pagar o aluguel, ninguém pode gastar em torno de 300 reais (1/3 do salário mínimo brasileiro) numa diária de uma caçamba para o seu entulho. A saída para o entulho daquele puxadinho feito no seu lote pro seu filho que casou? Despejar numa encosta abandonada, fruto de uma obra de infraestrutura viária malfeita nas proximidades da sua casa, ou naquele barranco ao lado de um córrego não canalizado, ou até naquele quarteirão separado há anos para uma grande obra pública de urbanização. Opta-se por degradar ainda mais aquele espaço que deveria ser de todos, mas acaba não sendo de ninguém. Ao mesmo tempo que as classes dominantes pecam na sua produção de resíduos pelo seu excesso, as dominadas o descartam nas proximidades de sua casa, em um terreno baldio. Isto ocorre porque as populações humildes não construíram uma conexão com seu entorno e muito menos estas áreas verdes que nunca foram prioridade de investimento público. Vive-se em uma situação dicotômica gritante em que os ricos descartam produtos
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de extrema qualidade e ainda com uma possível vida útil pelo simples desejo, enquanto os pobres sobrevivem com o que lhes é oferecido. Em linhas gerais, podemos concluir que, ao mesmo tempo que o espaço urbano (em especial o público) é cenário dos desmandes da aristocracia política, a sua consolidação como espaço de memória na cidade o torna agente sobre a população que o habita. Perdemos a nossa conexão com os espaços urbanos por eles terem sido um direito negado das camadas mais pobres da cidade e renegado pela elite, em momento em que o cenário urbano estava sendo determinado. Agora, quase cem anos depois do Plano de Avenidas, agonizamos sobre um território urbano pensado para a passagem, e não para o ficar. Este pequeno contexto de gestão de serviços públicos, neste caso a gestão integrada de resíduos sólidos, só é mais uma conceituação sobre a desigualdade na oferta de ações estatais no território. Espera-se que fique claro que esta desigualdade não foi fruto do acaso, mas sim de contínuas políticas públicas de segregação e desigualdade socioespacial em São Paulo. Este trabalho procura traçar paralelos entre duas faces deste desequilíbrio: a oferta de espaços públicos de qualidade e a oferta de políticas de gestão de resíduos.
PANORAMA ATUAL Ao se tratar dos resíduos da construção civil e demolição, sua gestão em grandes quantidades só é aceita de modo privado, em que se terceiriza a coleta e triagem dos materiais por empresas de caçambistas com pequenos depósitos de disposição de resíduos. Se você não pode pagar o aluguel diário de uma caçamba, só se é permitida a entrega de 1m³ por munícipe por dia nos Ecopontos da cidade, isso se há algum nas proximidades da sua residência. Vide o Anexo II “O que são Ecopontos?” (p.136). Falando da democratização do acesso a pontos de disposição correta de entulho, aqueles que há até 30 ou 40 anos atrás eram vizinhos de um lixão a céu aberto ou a um aterro irregular – ou seja, viviam em meio ao lixo literalmente – ainda não têm o direito a uma coleta e disposição democrática e aceitável dos seus resíduos produzidos. Como uma forma de ilustrar melhor o raciocínio traçado até aqui sobre o sistema de consumo de materiais de construção, foi proposto um exercício de levantamento para compreender o volume de entulho gerado atualmente (página seguinte). Durante os dias 30 e 31 de julho de 2020 (quinta e sexta feira) foi levantado
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PONTO DE DESPEJO IRREGULAR DE ENTULHO CAÇAMBA DE 3M2 PARA ENTULHO EMPREENDIMENTO IMOBILIÁRIO EM CONSTRUÇÃO EMPREENDIMENTO IMOBILIÁRIO CONCLUIDO HÁ ATÉ 10 ANOS ATRÁS BAIRRO DO ITAIM BIBI PARQUE MUNICIPAL DO POVO
100
50
0
100
350m
I
MAPA I CAÇAMBAS DO ITAIM BIBI
FONTES: SEHAB, SVMA, CET, levantamento de caçambas, pontos de despejo e empreendimentos imobiliários feitos pelo autor.
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o número e a localização de caçambas em uso no bairro do Itaim Bibi. Este levantamento se mostrou interessante uma vez que foi observado que durante os tempos de distanciamento social devido ao COVID-19 o número de obras no bairro aumentou, e consequentemente o número de caçambas para o despejo de entulho gerado nessas obras. Para estruturar a base cartográfica para o levantamento, buscou-se a base de edificações disponibilizada pela SEHAB. Infelizmente, esta tem data de 2004, estando desatualizada em mais de quinze anos. Foi necessária a atualização da base, deixando evidenciados os terrenos em que houveram lançamentos nos últimos 15 anos (novos edifícios residenciais e comerciais) e os empreendimento em lançamento atualmente (em construção ou entrega). O levantamento durou dois dias pela demora em percorrer todas as ruas do bairro, além de compreender se havia ou não um fluxo diário de acréscimo ou decréscimo de caçambas, o que não foi observado. É válido citar que o processo de aluguel de uma caçamba constitui-se do pagamento – de em torno de R$300 por dia, segundo pesquisas – pelo pacote de entrega da caçamba, diária e retirada, além da correta disposição dos resíduos nos aterros oficializados pela prefeitura e com suas devidas taxas de bota-fora pagas.
Imagem 16: Ponto de descarte irregular de entulho no 6º maior IDH da cidade de São Paulo.
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A partir da leitura do mapeamento concluído, observou-se que, apesar de ser uma região de classe média-alta, até mesmo a fronteira dos bairros Itaim-Bibi e Moema não escapa de possuir um ponto de despejo irregular de entulho, às margens da avenida Antônio de Joaquim Moura Andrade, início da avenida Juscelino Kubitschek. O ponto de despejo são os portões de entrada para uma subestação da Enel, onde a circulação de pedestres é baixa, porém a de carros é intensa, uma vez que faz parte da conexão norte-sul da cidade, sendo acesso à Av. São Gabriel e Santo Amaro. Ainda, o levantamento chegou ao valor de 82 caçambas em todo o bairro, sua esmagadora maioria cheias, para o encaminhamento para aterros ou usinas de reciclagem na madrugada de sexta para sábado. As caçambas em sua totalidade são a de modelo que comporta 3m² de entulho, chegando à marca de 5 toneladas de lixo carregado por invólucro. É possível assim apontar que, de acordo com o levantamento feito, estavam dispostos pelas ruas do Itaim Bibi 410 toneladas de entulho pronto para ser encaminhado para o fim do seu ciclo produtivo
Imagem 17: Interior de uma caçamba de Entulho no Bairro do Itaim Bibi, em 2020.
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e energético. Essas mesmas 410 toneladas custaram em média, diariamente para a soma de seus geradores, quase 25 mil reais, só para a sua coleta e descarga em ponto permitido, e nem sempre se é certificado que o ponto de despejo é o ambiental e legalmente correto. Em linhas gerais, a maioria do entulho observado passível de apropriação (três a cada quatro caçambas aproximadamente) era resultante de reformas internas de apartamentos. Esse entulho consistia basicamente em resíduos cerâmicos e de cimento – pias, bacias sanitárias, pisos, azulejos e paredes – além de forros de gesso e alguns mobiliários em madeira. Em menor quantidade era possível reconhecer caçambas com entulhos provenientes de reformas em conjuntos comerciais – compostos majoritariamente por placas de gesso acartonado e estruturas metálicas para forros – e de obras de construção de edifícios. Estas ultimas, eram as que possuíam um conteúdo mais diversificado, visto que as obras estavam nos mais diferentes estágios, desde a escavação do subsolo até a finalização dos acabamentos. Nas caçambas próximas a empreendimentos imobiliários em construção era possível encontrar grandes rochas descobertas em escavação e terraplenagem, restos de fôrmas de madeira, estruturas metálicas de sustentação de fôrmas, recortes de gesso, podas de árvores e a totalidade das poucas caçambas vazias encontradas, a espera de serem utilizadas. Por fim, é válido ressaltar que é nesta última categoria de caçambas – as destinadas a resíduos de uma obra de construção de um empreendimento – que é mais recorrente a presença de lixo doméstico em meio aos resíduos já citados. A disposição de resíduos domésticos – restos de comida, papeis, papelões, plásticos e agora máscaras descartáveis – junto ao entulho dificulta sua possível triagem e reciclagem, uma vez que é complexo dividir esses resíduos, sendo uma tarefa manual e, portanto, muito onerosa para ser despendida sobre resíduos.
13. Um processo produtivo integral refere-se ao percurso de transformação de insumos básicos em produtos finais, como a produção de cimento desde a mineração de calcário até a entrega do saco industrializado nas lojas e armazéns de construção.
A reciclagem, embora demande energia para promover a triagem e reutilização dos resíduos, é uma opção econômica de recursos energéticos (e de insumos), se comparada com os processos produtivos integrais13. Seguindo este mesmo raciocínio econômico, infelizmente, mesmo que “ambientalmente corretos”, os aterros sanitários até então não tem como pré-requisito de funcionamento a triagem e reciclagem de materiais. Deste modo, o destino geral e inevitável de todos os resíduos que para um aterro são destinados é o enterro e o esquecimento, o fim do ciclo produtivo.
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Ao mesmo tempo o governo municipal propõe mais uma vez despender extensos recursos para a ressignificação de um dos espaços públicos mais marcantes da cidade: o Vale do Anhangabaú. Território característico de conflito entre o desejo dos dominantes e a apropriação dos dominados, sua reforma sem precedentes é mais um lembrete de quem está no comando. Cinco mil e quinhentos metros quadrados de superfície em materiais de 1990 – carregados de memória e significado para a população – são encaminhados para o aterro público. São lixo. Junto, a concepção de um espaço público de sua época que, por falta de zeladoria pública, dá lugar a mais um empreendimento de interesse das classes dominantes. Agora o antigo parque de acesso público cede espaço para um boulevard com shows, comércios e a possibilidade de ser completamente fechado para eventos privados duas vezes ao mês.
Imagem 18: Vista aérea da obra do Vale do Anhangabaú, 2020.
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20 Imagem 19: Entulho gerado na reforma de 2020 do Vale do Anhangabaú.
Imagem 20: Trilhos de bonde aterrados da Av. São João reaparecem com a nova obra do vale. Ao fundo edifício da sede dos Correios.
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No ano de 2018, dentro dos moldes de bolsas de pesquisa da Escola da Cidade, fora desenvolvida a pesquisa experimental intitulada “Manual para o reuso dos resíduos da construção civil”, terminada no segundo semestre de 2019. A pesquisa, que durou um ano, contou com a mesma divisão de trabalho e cronograma que esta: metade bibliográfica e de referências e metade prática e de produção. Sob a mesma orientação que o trabalho atual, a parte inicial de pesquisa incluía a compreensão de iniciativas de coletivos e escritórios de arquitetura no campo da reciclagem de materiais construtivos, além da produção de material didático para ampliar a apropriação destes raciocínios sustentáveis. No mais, buscou-se compreender o amparo legal e técnico para a compreensão e desenvolvimento de novos materiais para o emprego na construção civil. O cruzamento das pesquisas sobre a legislação de materiais, resíduos e reciclagem com iniciativas locais e comunitárias aproximou o autor da realidade paulistana de condicionamento e triagem de entulho. Leis, conselhos, planos nacionais, concessões e práticas tiveram que ser assimiladas para um amarrado do panorama legal deste campo de atuação: as mais necessárias destas serão apresentadas no Anexo I - A PNRS e a PGIRS (p.124). Aqui neste capítulo procura-se ressaltar alguns aprendizados do processo, além de reproduzir o método de trabalho prático realizado. Uma das principais descobertas da pesquisa bibliográfica foi a da já existência de um manual para reuso de materiais recicláveis, o Manual de Aplicação do Agregado Reciclado (MARE), publicado pela Associação Brasileira para Reciclagem de Resíduos da Construção Civil e Demolição (ABRECON), que faz parte do plano de metas do Plano Nacional de Gestão Integrada de Resíduos (PNRS), de 2014. O MARE foi publicado pela primeira vez em dezembro de 2018 pela ABRECON. Nele foi compilado uma variedade de empregos para o RCD14 no campo da construção civil, divididos em quatro grandes temas: Jardinagem, Saneamento e Energia Elétrica; Concreto e Argamassa; Artefatos de Concreto; e Pavimentação. Dentro da estrutura do manual, cada exemplo de reapropriação de RCD - como “Execução de Dreno de solo” ou “Fabricação de Sarjeta Pré-Moldada” -, possui duas páginas, em que é definido o emprego do agregado e a granulometria correta para o seu uso.
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14. Referente a resíduo da construção civil e demolição daqui em diante.
15. Expansibilidade é o valor em que internamente a mistura do cimento pode se expandir e comprimir. Essas tensões podem causar microfissuração, e futuramente a degradação do material. 16. O Teor de Umidade é uma porcentagem de umidade dos agregados na mistura com o concreto para que o volume da mistura e, portanto, seu resultado, não saia do esperado.
Essa informação é respaldada por uma série de requisitos listados em uma tabela na mesma página, contando com propriedades, parâmetros e normas de ensaios que esse RCD deve obedecer para ser utilizado no caso específico. Além disso, ainda são listados alguns requisitos técnicos específicos do produto em que o RCD vai ser empregado, tais como expansibilidade15 ou teor de umidade16. Com o manual foi possível conhecer uma outra classificação dos RCD, uma vez que todas as páginas tinham uma divisão para o emprego nos novos materiais: O Agregado Reciclado Cinza ou Agregado de Resíduo de Concreto (ARC) é o agregado reciclado obtido do beneficiamento de resíduos pertencentes da classe A, tendo composição de 90% de cimento Portland; O Agregado Reciclado Vermelho ou Agregado de Resíduo Misto (ARM) é o agregado reciclado que tem menos de 90% de cimento Portland de composição, sendo também atribuído a esse grupo todos os resíduos cerâmicos e solo. Apesar do manual contar até com fotos coloridas dos exemplos de uso para cada emprego do RCD, a compreensão se torna um pouco difícil uma vez que os dados estão dispostos em tabelas e sem quantificação de porções para a utilização nas misturas, fazendo referência sempre às normas ABNT. Assim, esse manual acaba se tornando um grande compilado de propriedades e parâmetros que as misturas de RCD devem obedecer, sempre referente às NBR que as regulam, mas a função de orientar na apropriação prática do RCD deixa a desejar. Ainda, o processo experimental desta primeira pesquisa foi imprescindível para a estruturação já mais avançada deste segundo trabalho. A experimentação proposta em 2018 foi a de estudo técnico da resistência do agregado reciclado de diferentes granulometrias em diferentes misturas de concreto. Nela, foi possível compreender se esse material poderia ser estruturalmente validado ou simplesmente resistente à menores tensões e, portanto, sem o emprego estrutural validado pelas normas brasileiras de tecnologia. Para melhor compreensão da primeira pesquisa, no final desse trabalho é anexado seu produto final, datado de 2019, o “Manual para reuso dos resíduos da construção civil” (Anexo III - p.139).
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PRIMEIRO PROCESSO PRÁTICO Para a parte prática da pesquisa experimental de 2018 foram coletados dois sacos próprios para entulho, cheios até a metade. O peso não foi medido, uma vez que não havia disponível no local um equipamento adequado para a medição deste. O entulho, que foi coletado diretamente de uma caçamba posicionada em frente ao edifício Marquês de Marialva (Rua Tabapuã – Itaim Bibi), provinha da demolição de paredes de divisórias de um apartamento construído para a classe média, na década de 60. Os produtos da demolição incluíam principalmente pedaços de paredes demolidas e partes de azulejos e pisos, identificados como os de um banheiro. Uma vez que a composição material de todo o RCD poderia ser dividida apenas entre ARM e ARC, deixou-se de lado a necessidade de buscar o entulho em um local específico. Assim sendo, o quesito levado em consideração para a recolha do entulho foi a comodidade para a sua coleta, triagem e transporte.
Imagem 21: Caçamba de entulho em um dos dias em que as amostras de RCD foram coletadas
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Após sua coleta, o RCD foi manualmente moído com uma marreta a fim de diminuir o tamanho dos blocos de entulho para grãos de diversos tamanhos, com o intuito de então serem peneirados. Somente após a redução do tamanho dos grãos do RCD até um tamanho homogêneo (por volta de 30x30mm) que a maceração dos dois sacos foi cessada.
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23
Imagem 22 e 23: RCD antes e depois da maceração; elástico roxo para escala.
O entulho macerado foi levado para uma peneira projetada, concebida para dividir o RCD em diferentes granulometrias. Idealizada como um gaveteiro em marcenaria com quatro gavetas, a peneira teve o fundo de cada “gaveta” substituído por uma ou mais telas metálicas para segregar os grãos de diferentes tamanhos, do maior para o menor, de cima para baixo. Para a trepidação do conjunto como um todo foi pensando em um sistema feito com molas de tapeçaria presas na base do gaveteiro. Assim, com o movimento das mãos, seria possível balançar toda a estrutura e segregar os diferentes grãos de RCD. O design final da peneira para a pesquisa de 2018-2019 foi registrado em fotografias e desenhado, que se encontram como anexo (Anexo IV - p.141) no final do relatório. Junto a ele, para este novo trabalho, o design da peneira foi repensado e atualizado,
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para a segregação granulométrica ser realizada de forma mais fácil, e o manejo das peneiras simplificado (Anexo V - p.143). A primeira gaveta tinha como fundo duas telas 50x50mm intercaladas, formando uma malha de 25x25mm; a segunda era fechada por um aramado 15x15mm; a terceira, possuía uma malha metálica 10x10mm e a última, uma tela de metal com aberturas 5x5mm. Assim, o RCD triturado poderia ser dividido em cinco grupos distintos:
A.
Grãos > 25mm;
B.
Grãos >15mm e ≤ 25mm;
C.
Grãos > 10mm e ≤ 15mm;
D.
Grãos > 5mm e ≤ 10mm;
E.
Grãos < 5mm.
A partir dos cinco tipos de agregados gerados pelo peneiramento de RCD foi possível projetar três tipos de misturas para a incorporação do entulho nos compostos de concreto e argamassa. Paras o misto de concreto, foi adotada a proporção 1:2:3, onde se tem uma parte de cimento para duas partes de areia e três de agregado. Já para a argamassa, foi adotada a mistura 1:3, onde a divisão seria feita em uma parte de cimento para três de areia. Todavia, para a incorporação do RCD nas misturas, no composto de concreto foi-se decidido que o entulho seria incorporado como agregado, ou seja, em seu formato (granulometria) maior. Já na mistura para argamassa, o RCD deveria ser introduzido como areia na mistura, isto é, em menor granulometria. Assim, foram determinadas as seguintes misturas: 1a. Para o concreto 1:2:3, as três partes de agregada são compostas por 1A+1B+1C (mistura 1); 2a. Para a argamassa duas misturas 1:3, as três partes de areia são determinadas separadamente por 1,5 D + 1,5 E e 3E (misturas 2 e 3).
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27 Imagem 24 a 27: RCD (de A a D, em sentido horário) em cada gaveta após a ação da peneira.
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A B C D E A
> 25mm
B
>15mm <25mm
1
mistura concreto 1:2:3
C
>10mm <15mm
D
>5mm <10mm
2
E
<5mm
3
mistura argamassa mistura argamassa 1:3 1:3
1 parte de A areia 1 parte de B cimento 1 parte de C
1,5 parte de D 1,5 parte de E cimento
E cimento
Imagem 28: Diagrama de composição das misturas.
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17. O CP V-ARI é um tipo de cimento que tem a peculiaridade de atingir altas resistências já nos primeiros dias da aplicação. O desenvolvimento da alta resistência inicial é atingido pelas condições especiais de fabricação e geralmente exibe resistência, aos 7 dias, da mesma magnitude que os demais levam 28 dias para atingir. É indicado na indústria de pré-moldados e, especialmente, na aplicação da protensão. 18. A trabalhabilidade do concreto determina a facilidade com qual a mistura fresca pode ser manipulada com perda mínima de homogeneidade.
Ambas as misturas continham cimento CP V-ARI17, que influencia diretamente nos resultados de resistência das peças desde os resultados do primeiro teste, aos 7 dias de cura. No mais, a areia utilizada foi a convencional de construção civil, para a mistura de concreto. Vale lembrar que para as misturas criadas foi adotado a medida aproximada de uma parte de cimento para 0,5 de água. A relação água-cimento está diretamente ligada à resistência do concreto endurecido, uma vez que quanto mais água adicionada à mistura, menor será a resistência final do concreto. Entretanto, água é comumente adicionada a misturas de concreto e argamassa já que melhora a trabalhabilidade18 do material. Ainda, cada mistura de concreto ou argamassa pode atender, ou não, determinados valores de retenção de água. A retenção de água está ligada a porcentagem de agregados finos na mistura (que absorvem a água) ou a quantidade de água colocada na mistura. Se há água excedente ela sobe para a superfície da mistura, indicando a pouca porosidade do material. Uma mistura menos porosa significa um concreto mais resistente quando endurecido. Todas essas propriedades da mistura podem ser experimentadas em obra pelo chamado “Slump Test”. Esse teste consiste na comparação entre a altura da mistura de concreto logo após seu despejo e compactação e a altura determinada da fôrma do teste. Quanto maior o valor do slump, maior a diferença de altura entre a mistura ainda molhada e altura da fôrma, ou seja, mais maleável o composto é.
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31 Imagem 29 a 31: Da esquerda para a direita: misturas 1, 2 e 3.
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Para cada mistura de argamassa foram fabricados dez CPs cilíndricos em moldes de cano de PVC de duas polegadas, com 5 cm de base e 10 cm de altura. Três desses corpos de prova seriam rompidos aos 7 dias de cura, três aos 14 dias e mais três aos 28 dias de cura. Os CPs restantes serão usados como amostras para as apresentações. No caso da mistura de concreto, foram feitos sete corpos de prova em fôrmas de madeira no formato de paralelepípedo (20x40x5cm) e dois CPs cilíndricos em fôrmas de cano de PVC de quatro polegadas, com 10cm de base e 20cm de altura. Para a mistura de concreto, os tempos de rompimento adotados nos paralelepípedos seriam de 14 dias (2 corpos), 21 dias (2 corpos) e 28 dias (2 corpos), sobrando uma peça para a amostra. Ambos os corpos de prova cilíndricos seriam rompidos ao completar 28 dias de cura. Após quatro horas de cura, os CPs cilíndricos foram completamente imersos em água, deixando de fora apenas três corpos de prova de cada mistura de argamassa, referentes um a cada dia de rompimento, para comparar os efeitos da umidade na cura dos compostos.
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33 Imagem 32 e 33: CPs fundidos antes da imersão (à esquerda) e imersos n’água.
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Após cinco dias de cura em fôrmas os corpos de prova foram desenformados com o auxílio de uma serra circular, lavados e devidamente etiquetados de acordo com o tipo de mistura, e ainda se havia sido ou não submerso (apenas no caso da mistura de argamassa).
34
35 Imagem 34 e 35: CPs desenformados da mistura 1.
Após seis dias de cura, os corpos de prova cilíndricos das três misturas foram encaminhados para a empresa Texte, laboratório de engenharia acreditado pela CGCRE (Coordenação Geral de Acreditação do INMETRO) para ensaios de variados tipos de materiais e produtos. O ensaio a ser realizado era o de compressão de corpos de prova cilíndricos, seguindo a norma ABNT NBR 5739:2007, porém o laboratório tem a permissão de executar uma série de outros ensaios, sempre atendendo à norma que determina as predefinições do ensaio. Para os testes de compressão de CPs cilíndricos, os corpos de prova de diferentes materialidades são tratados distintamente. Os de concreto são armazenados em uma câmara úmida, onde permanecem enclausurados até o dia de seu rompimento, já os de argamassa devem ser conservados longe da umidade, uma vez que esta interfere nos resultados de resistência final do material.
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37 Imagem 36 e 37: CPs desinformados das mistura 2 e 3, respectivamente.
Para a compressão é utilizada uma prensa hidráulica de acionamento elétrico e módulo eletrônico de leitura; deste modo, uma força de 0,5 Mpa por segundo é aplicada no CP. Ao alcançar a tensão máxima, ou tensão de ruptura, calcula-se então a resistência do concreto à compressão, gerando um gráfico onde são mostrados os dados do material testado. Para o teste nas prensas, os corpos de prova devem ser retificados, ou seja, as faces planas opostas do cilindro devem ser paralelas, para que as pressões da prensa sejam distribuídas igualmente pela peça. O efeito da retífica nos corpos de prova é o de uma lixa, deixando mais a mostra do agregado que compõe as misturas. As resistências obtidas nos corpos de prova das misturas 2 e 3 nos três dias de rompimento estão dispostas a seguir, na tabela 2. Com os valores da resistência dos materiais é possível calcular o quanto o composto pode aguentar de carga distribuída por m² e então ensaiar possíveis usos e apropriações para a mistura.
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38
39
40 Imagem 38 a 40: Da esquerda para a direita: CPs retificados das misturas 1, 2 e 3.
Média (MPa)
Resistència em MPa Mistura 2
Dias de cura
Média (MPa)
Resistència em MPa Mistura 3
7 (17/07/19)
1.2
2.1
2.5
1.93
1.3
1.0
1.3
1.20
14 (24/07/19)
3.6
3.8
3.9
3.76
1.3
3.3
3.6
2.73
28 (07/08/19)
5.9
6.5
6.6
6.33
3.4
0.6
4.4
2.80
Tabela 1 Resistência à compressão dos CPs das misturas 2 e 3.
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41
42
43
44 Imagem 41 e 42: CPs rompidos da mistura 2, com cura de 7 e 28 dias, respectivamente.
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Imagem 43 e 44: CPs rompidos da mistura 3, com cura de 7 e 28 dias, respectivamente.
Como só foi possível fazer dois corpos de prova da mistura 1, ambos foram rompidos após 28 dias de cura, para o cálculo da resistência final do composto, como rege a ABNT.
Dias de cura Tabela 2 Resistência à compressão dos CPs da mistura 1 em 28 dias de cura.
28 (07/08/19)
Resistència em MPa Mistura 1
14.9
15.4
Média (MPa)
15.15
Além do formato em peças cilíndricas, a mistura 1 foi testada também em corpos de prova em forma de paralelepípedo, para ensaiar o carregamento da peça como se fosse uma viga. Esse teste foi concebido para compreender qual a resistência da mistura aos esforços de tração. Para testá-las utilizou-se uma carga mínima de 5 kg: um galão de óleo para motor cheio d’água. Ao completar 40 kg a carga d’água era substituída por um saco de cimento de mesmo peso, e assim as peças foram testadas.
45
46
47 Imagem 45 a 47: Preparação dos CPs em forma de bloco retangular para o teste.
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No mais, como a espessura das peças sofreu variação - entre 4 e 5 cm - os resultados de carregamento também variaram, para além dentre os dias de cura. A tabela 3 abaixo compila os dados dos carregamentos suportados pelas peças até a ruptura.
Dias de cura Espessura (cm) Carga aguentada (kg) Média (kg)
14 (24/07/19) 4
4
180
175
177,5
21 (31/07/19) 4,5 285
4,5 255
270
28 (07/08/19) 4,5 205
5 215
210
Tabela 3 Resistência até rompimento dos CPs da mistura 1 em formato de bloco retangular.
A partir dos resultados obtidos nos testes de carga dos corpos de prova foi possível tecer alguns comentários. Em primeiro lugar, chegou-se à conclusão de que os CPs de argamassa não deviam ter sido imersos em água para sua cura, uma vez que esta imersão só é recomendada para misturas de concreto, com a finalidade de aumentar sua resistência final. Os corpos de prova, ainda úmidos no primeiro dia de teste, demostravam esfarelamento de suas arestas com um aperto mais forte, indicando a fragilidade da mistura ainda úmida.
48
49 Imagem 48 e 49: Rompimento de um CP aos 21 dias de cura.
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50
51
19. ABNT NBR 7211: Agregados para concreto - Especificação
Imagem 50 e 51: CP rompido aos 21 dias de cura.
Desta forma, considerando que grande parte do entulho coletado era composto por materiais friáveis , argila e - no caso do RCD triado como agregado miúdo para as misturas de argamassa - material pulverulento, a composição não era resistente, comparado a uma argamassa comum. A mistura 3, composta por agregado miúdo do tipo E, possuía uma porcentagem de material pulverulento superior à da mistura 2, justificando sua menor resistência nos testes em laboratório. No mais, a partir do regido pela NBR 721119, toda a composição do agregado miúdo está dentro da tabela de substâncias nocivas a mistura, mostrada abaixo.
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Tabela 4 Limites máximos aceitáveis de substâncias nocivas no agregado miúdo com relação à massa do material.
Desta forma, considerando que grande parte do entulho coletado era composto por materiais friáveis20, argila e - no caso do RCD triado como agregado miúdo para as misturas de argamassa - material pulverulento, a composição não era resistente, comparado a uma argamassa comum. A mistura 3, composta por agregado miúdo do tipo E, possuía uma porcentagem de material pulverulento superior à da mistura 2, justificando sua menor resistência nos testes em laboratório. Já no que tange a mistura 1, os testes em laboratório apresentaram uma resistência média de 154,5kgf/cm². Pode-se considerar esse um bom resultado, visto que até a década de 90 essa faixa era considerada a resistência padrão do concreto, que atualmente pode chegar à marca de 500kgf/cm² ao se utilizar o cimento CP-V ARI. Ao nos voltarmos para os testes feitos na faculdade, com os corpos de prova em forma de paralelepípedo,
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20. Materiais que se fragmentam facilmente.
foi possível compreender melhor a diferença entre os resultados obtidos no segundo dia de testes (média de 270kg suportados) e o terceiro (média de 210kg).
21. O chamado Momento Fletor é o valor gerado por cargas aplicadas transversalmente ao eixo longitudinal da peça estudada. Esses esforços tendem a curvar o eixo longitudinal, provocando tensões normal de tração e compressão na estrutura (CP).
Tabela 5 Tabela de resistências à tração dos CPs retangulares.
Dado que esses testes focaram em encontrar a resistência da mistura a tração, procurou-se carregar as peças nos diferentes dias de formas diferentes. O primeiro e terceiro teste (14 e 28 dias de cura) tiveram suas cargas apoiadas em um ponto, exatamente o meio do vão, enquanto o segundo teste (21 dias) foi feito com dois apoios entre as cargas e o CP, como mostrado anteriormente (p.59). A variação entre o número de apoios e seu posicionamento no corpo de prova determinam diferentes valores de Momento21 na peça, diversificando os valores de tensão de tração sofridas. Como observado, os CPs do segundo teste aguentaram mais peso sobre eles porque a distribuição das cargas auxiliou a peça a sofrer menos esforços de tração, rompendo ao atingir 16,65 kgf/ cm², porém carregando em média 270 kg. O primeiro teste, com todas as forças concentradas no meio do corpo de prova, alcançou a marca de 15,98 kgf/cm² de resistência à tração, carregando 177,5 kg em média. Já o último, a 28 dias de cura, atingiu a marca surpreendente de 19,35 kgf/cm², todavia carregando apenas 215 kg em média. Acredita-se que os dados ficaram próximos nas idades que os CPs foram rompidos em função do cimento CP V-ARI, que têm resistência que cresce rapidamente na primeira semana, e depois tem crescimento em ritmo menor.
Dias de cura
14 (24/07/19)
21 (31/07/19)
28 (07/08/19)
Carga média
180kg
280kg
215kg
Resistência a tração
15,98kg/cm2
16,65kg/cm2
19,35kg/cm2
Com esses dados podemos fazer a conta inversa da resistência do material à tração para descobrir quais os limites de tamanho para se utilizar a mistura para vencer vãos, não funcionando apenas para suportar esforços de compressão. No mais, a resistência à tração é comumente estimada como 10% da resistência do material a compressão. Se cruzarmos os dados do corpo de prova cilíndrico com os em forma de paralelepípedo podemos concluir que os nossos resultados de resistência à tração são compatíveis à 10% da resistência à compressão média obtida em 28 dias de cura, que é de 15,5 kgf/cm².
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CONCLUSÕES DO PROCESSO PRÁTICO É possível imaginar algumas apropriações para o RCD-R22 após as experimentações feitas. De início, é válido ressaltar que, devido à quantidade de materiais cerâmicos dentro da mistura, a impermeabilização das superfícies expostas do composto é imprescindível, uma vez que a água absorvida pela cerâmica cria fissuras no objeto fundido. Assim sendo, ou as misturas devem ser apropriadas em locais em que não haja contato com água (como um contrapiso, por exemplo) ou elas devem ser devidamente impermeabilizadas. Vale ressaltar que as conclusões aqui tecidas se baseiam somente na granulometria e nos traços estudados com RCD-R. Desta maneira, diversos resultados podem ser atingidos se o RCD for dividido em diferentes granulometrias e apropriado em outros traços. A importância de se estudar novos traços e proporções é que se pode baratear ainda mais as misturas, utilizando menos cimento em proporção ao RCD-R. Ao voltar-nos para as granulometrias divididas e os compostos criados, pode-se concluir que misturas agregando os grãos de tipo “E” têm a sua resistência diminuída, uma vez que os grãos cerâmicos muito pequenos fragilizam a mistura. Portanto, para os grãos triados de RCD que passam pela peneira de malha 0,5 x 0,5 cm, recomenda-se uma apropriação em algo que não seja propriamente feito para aguentar pressões, como por exemplo um reboco de acabamento para paredes, uma camada de emboço inferior ao acabamento final ou até mesmo massa única. A mistura 2 apresentou uma boa resistência de argamassa para ser utilizada como base para apropriações não estruturais. Dentre elas é possível indicar a utilização como blocos modulares e de vedação, telhas de concreto e também como possíveis peças leves e pré-moldadas (como lixeiras e vasos), uma vez que sua resistência é de 6,6 MPa, compatível a de blocos cerâmicos. Já o composto 1, produzido com os RCD-R de maior tamanho, pode ser apropriado à uma quantidade maior de aplicações, tangendo até materiais estruturais. Dentre eles, é possível considerar o emprego em placas pré-moldadas para jardim, contrapisos para assentamento de pisos acabados, pisos de concreto externos (devidamente impermeabilizados), canaletas pré-moldadas, mobiliários, pavimentos intertravados (sem tráfego
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22. O último “R” é referente a palavra reciclado.
de veículos), peças modulares para a composição de muros de arrimo, além da utilização em objetos em que se é possível utilizar a mistura 2. Ademais, o emprego do RCD-R pode se dar não só dentro de compostos com cimento, mas também como agregado solto. Alguns possíveis empregos visados são de utilização dos grãos em maior tamanho para o nivelamento e compactação do solo para construção (de vias ou construções) sobre o chão nivelado. Além disso, é possível usar os agregados de uma forma visível como forração de jardins ou como preenchimento de calhas drenantes, no lugar de brita comprada em lojas.
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A partir de uma revisão histórica, tornou-se possível propor, de forma prática, caminhos para tanto a carência de políticas públicas de implantação e gestão de espaços livres e verdes de lazer nas franjas da cidade, quanto também para a falta de ações governamentais de gestão e disposição de RCD das camadas vulneráveis da população de São Paulo. Para propor e agir sob o território público urbano e, mais especificamente, nas áreas de lazer, foi necessária uma revisão bibliográfica das fontes utilizadas por Calliari em sua tese, como Jane Jacobs e William Whyte. Só a partir da compreensão de o que faz um espaço público viver - ou, deixar de - que é possível propor ferramentas para reativar seu uso ou mantê-lo, qualificando-o. Para Mauro Calliari, um espaço munido de significado é o espaço vivido pelos cidadãos, o que torna o espaço um lugar. Ainda, é favorável que aqueles que usam o espaço possam entender e ler um ambiente. O espaço urbano é mais confortável quanto mais reconhecível ele é pelos seus habitantes. Um ambiente organizado, poético e simbólico no qual cada particularidade não só ajuda os transeuntes a orientar-se como também aumenta a sensação de pertencimento. E mais, se é a vida humana que dá sentido a determinado espaço, é sob essa escala, a escala do homem, que devemos buscar analisar o território urbano. Outro fator importantíssimo para a ativação do espaço público é a diversidade. Como falado anteriormente, a alteridade e a formação da identidade individual se dão a partir do seu papel na coletividade. A diversidade se dá pela segurança e possibilidade de contato, e a segurança é a infraestrutura necessária para receber os estranhos sem medo deles. Para um cidadão se sentir seguro, deve se sentir minimamente vigiado por uma vizinhança ativa. Já descrito como “olhos da rua” pela escritora Jane Jacobs, é necessária uma distância aceitável entre diferentes usos do espaço, até mesmo nas edificações que delimitam um espaço público. Em seu livro “Morte e vida das grandes cidades” a escritora relata: Como todos os parques urbanos, ela [a praça] é fruto de sua vizinhança e da maneira como a vizinhança gera uma sustentação mútua por meio de usos diferentes ou deixa gerar essa sustentação. (JACOBS, 2011, P.74).
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Se atualmente o cidadão que está no ambiente privado está cada vez mais longe do território público – vide o mercado imobiliário que comumente ultrapassa os 20 andares de altura sobre três lajes de estacionamento –, a presença de gente nos espaços públicos ao longo de um dia inteiro só poderá ocorrer se houver usos diversos desse espaço, de modo a atrair diferentes pessoas. Jane Jacobs identifica em seu texto quatro fatores necessários para que um parque urbano de uso genérico atraia o maior número de tipos de pessoas: complexidade, centralidade, insolação e delimitação espacial. A variação arquitetônica superficial pode parecer diversidade, mas só uma conjuntura genuína de diversidade econômica e social, que resulta em pessoas com horários diferentes, faz sentido para um parque e tem o poder de conceder-lhe a dádiva da vida. (JACOBS, 2011, P.76)
Quando a autora se refere a complexidade, concorda com Calliari ao dizer que a multiplicidade de motivos para que as pessoas frequentem o espaço é frutífera por gerar diversidade na esfera pública. Por isso a escritora aponta que o espaço deve ser complexo, se apropriando de locais de destaque ou pontos de parada para gerar pequenas centralidades no espaço. Unido a esses fatores espaciais que atraem mais usos e mais pessoas – como uma apresentação de dança, ou um músico tocando por dinheiro –, os espaços públicos que se abrem para as ruas, acessíveis a pé - sem escadas, ou muros - são aqueles que mais atraem pessoas. Assim, é válido ressaltar que quanto mais acessível é a área pública, mais utilizada ela é. Ainda, no que tange a escala humana, e não só da cidade, a concepção espacial específica das áreas verdes de lazer pública também deve ser complexa para gerar interesse, aos nossos olhos. Para fazer com que os passantes parem e desfrutem, devese pensar que degraus baixos e bem projetados que podem ser usados para sentar, bem como pequenas placas de concreto sobre o piso. Os bancos fixos devem ter no mínimo a largura de duas pessoas sentadas de costas uma para a outra, para ativar os dois lados na ocupação do mobiliário. Ainda, mobiliários leves ou cadeiras soltas são melhores que bancos presos, pois podem ser reposicionadas, o que frequentemente acontece para abrigar grupos. As pessoas preferem se abrigar sob árvores e suas sombras ao usar o espaço público, além também serem atraídas pela presença de água.
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Ainda, Calliari apresenta a obra do americano William H. Whyte, “The social life of small urban spaces” como primeiro estudo do uso do espaço público, na cidade de Nova Iorque. Em seu livro, resultado de uma série de documentários em estilo timelapse, o autor afirma que Idealmente, sentar-se deveria ser fisicamente confortável – bancos com encosto, cadeiras bem contornadas. Todavia, é mais importante que seja socialmente confortável. Isso significa escolha: sentar-se na frente, no fundo, de lado, no sol, na sombra, em grupos, sozinho. A escolha deveria ser incorporada no design básico. Mesmo que bancos e cadeiras podem ser adicionados, o melhor caminho é maximizar a adequação dos recursos inerentes. (WHYTE, 1980, P.28).
É também afirmado diversas vezes que, para o relacionamento interpessoal, é importante que o espaço ofereça diferentes triangulações entre pessoas, em relação a um ponto focal. Mesmo estranhos, pessoas sorriem juntos ou trocam algum tipo de olhar quando assistem apresentações públicas. No final do estudo, é possível concluir que o ponto de partida do funcionamento de uma área pública é o significado. O espaço ganha sentido a partir do próprio uso humano, e da história que ele carrega. Este ambiente é mais passível de ser experimentado quanto mais legível ele for para a população. Em adição, é mais seguro e propício as trocas entre as pessoas e a alteridade na medida em que abriga uma diversidade maior de pessoas. Uma grande proporção de pessoas em grupo é um indicio de seletividade. Quando pessoas vão a um lugar em dois ou três ou se encontram lá, é provável que isso tenha sido decidido. Esse espaço de sociabilização não é menos agradável para nenhum dos indivíduos. (WHYTE, 1980, P.17).
A partir desta breve digressão teórica, é possível concluir os conceitos a serem levados para a etapa de projeto das peças pré-fabricadas em concreto reciclado. Para esta pesquisa foram elencados o conceito de significado, diversidade e acessibilidade. Na parte prática, ao lidar com o conceito de significado, entendese que o espaço público e as possíveis intervenções propostas devem ser carregadas de significado para a população a quem ela serve, para que a partir deste vínculo afetivo a população se sinta responsável por este espaço, além de o estimar limpo e bem utilizado. Sobre diversidade, pensa-se que os mobiliários préfabricados propostos devem atender tanto uma diversidade de funções (brincar, admirar, sentar, apoiar etc.) como de pessoas (todos os sexos e faixas etárias), para que a área ativada pelos
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mobiliários tenha usos abrangentes para diferentes públicos em diferentes períodos do dia. Por fim, ao tratar-se de acessibilidade, pensa-se que as peças propostas devam possibilitar aos usuários do espaço as condições mínimas para o acesso e uso, uma vez que as áreas verdes livres nas margens de São Paulo são as áreas de difícil acesso, sendo muito onerosa sua ocupação por residências. Ainda sobre o significado, um espaço urbano só é verdadeiramente valorizado e importante para a população se esta cria algum vinculo ou laço com o espaço em questão. Trazendo essa afirmação para o contexto da pesquisa, é imprescindível para a conexão da população com o espaço livre que elas participem da totalidade do processo de intervenção, desde a concepção inicial do desenho das peças até a implantação das mesmas e acabamento paisagístico do terreno. Fazendo parte da história do lugar e da sua criação, a população reconhece a significância do espaço livre para si e para o coletivo de habitantes, defendendo-o de possíveis degradações e reconhecendo-o como um direito irrefutável. Ao se tratar da diversidade que as peças podem fomentar nos usos e nos públicos que as utilizam, pensa-se que as peças devem ser de pequeno tamanho para que sejam portáteis em até duas pessoas. Ainda, o design deve ser minimamente modular para que a peça possa ser dividida ou unida a outra, formando outros conjuntos de mobiliários ou até sustentando outros usos, ainda a serem criados por aqueles que usam o mobiliário. Por fim, considerando a acessibilidade, o acesso e o uso seguro do espaço, pensa-se em um só desafio: transpor os barrancos de forma segura, principalmente convertendo essa antiga área de risco em uma área segura de desabamentos. Para isso, pensa-se tanto em peças que possam funcionar como arrimo para os barrancos, quanto também em outra que possa funcionar como degrau, para acesso dessas áreas de ribanceira.
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PROJETO Entendidas quais poderiam ser as potencialidades atingidas pelas peças projetadas, a concepção partiu do princípio que os componentes deveriam ser os mais leves possíveis de acordo com a sua função. Ainda, as peças deveriam funcionar a partir de esforços de compressão, eliminando as telas e armações metálicas e simplificando suas manufaturas. Para isso, foi adotada a espessura mínima de 4cm para as peças em concreto reciclado, além de uma geometria que beneficie o desempenho estrutural desejado. Para os usos propostos as peças poderiam ser utilizadas como bancos, apoios, vasos, lixeiras e até bebedouros, mas principalmente possibilitando à população a sua utilização de formas não previstas pelo projetista.
Imagem 52: Croquis em giz pastel de intenções de peças e partidos de design.
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Imagem 53 a 55: Croquis dos três tipos de peça pensados, com dimensões e cálculo de pesos iniciais.
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Tendo também como premissa a modularidade das peças, pensou-se em aproveitar das diferentes alturas de parábolas e geometrias simples facilmente modularizadas, como cubos e círculos. As dimensões pensadas foram as de 20cm e 40cm, para altura de apoios, e 1m para a largura de escadarias. Devido ao limite de tempo para o trabalho, decidiu-se pelo aprofundamento do projeto de três tipos de peças: um degrau e dois conjuntos de bancos. O degrau foi desenhado a partir da geometria necessária para que a peça não deslize ao ser implantada em um arrimo improvisado, alcançando o peso de 80kg por peça. Para os bancos, pensou-se em peças mais leves que permitam a ampla apropriação de sua geometria. Balizando pelas dimensões de 20x40cm ou 40x40cm, o resultado foi de peças em formas de cubo, paralelepípedo e catenária (abóbada). Assim que foram decididas as formas das peças, os esforços moveram-se para o campo prático, para a preparação das matrizes e matéria prima. Para os moldes das peças em concreto foram construídas na Fábrica da Escola da Cidade (FAEH) seis fôrmas, duas para cada peça levada a diante para a prototipagem. O principal desafio para o desenvolvimento dos moldes era encontrar um material resistente o bastante para aguentar a fundição mais de uma vez, porém maleável o suficiente para alcançar as curvas desejadas. Para isso, foram utilizados pedaços de laminado melamínico de 2mm1, que poderia ser facilmente incorporado nas fôrmas de madeira. Para as partes planas do molde, chapas de compensado foram cortadas e encapadas com laminado plástico autoadesivo2, nas faces internas da matriz. Para a fixação das peças dos moldes entre si foram utilizados parafusos e barras roscadas com porcas borboletas, de acordo com o encaixe e desforma pensada. Ainda, para os acabamentos arredondados nas quinas das peças cúbicas e em forma de paralelepípedo, utilizou-se de perfis de PVC para acabamento de tetos e paredes. Listados todos os materiais utilizados para a confecção dos moldes para as peças, vale-se comentar de que os elementos mais utilizados são fruto do reuso de materiais deixados na FAEH como o compensado e o laminado melamínico, sendo um fator para a confecção das peças a facilidade para se encontrar materiais para construir seus moldes. Já para a matéria prima, desde a conclusão do primeiro processo prático – em agosto de 2019 – foi possível armazenar para essa segunda empreitada uma serie de RCDs coletados de forma espontânea, em caçambas no bairro da Barra Funda,
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1. Material que se tornou popular a partir do produto da marca Fórmica. 2. Material que se tornou popular a partir do produzido pela marca Contact.
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Imagem 56 a 63: Processo de construção dos moldes em marcenaria com laminado melamínico. Aplicação do lamina plástico autoadesivo (56); Instalação dos perfis PVC para acabamento (57); Confecção do cilindro vazio para a fôrma cúbica (58 e 59); Confecção das fôrmas em formato de abóbada (60 e 61) e fôrma cúbica (62) e de quarto de cubo (63) finalizadas.
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centro de São Paulo. Um diferencial destas coletas é que nelas foram recolhidos materiais de mesma composição, uma vez que foi possível triar, na própria caçamba, os elementos coletados para a experimentação. Assim sendo, a coleta de matéria prima para a experimentação contava com aproximadamente 60kg de entulho cerâmico3, de concreto4 e de gesso5 cada. Em adição ao RCD já coletado e triado, foram recolhidos mais nove sacos de entulho (80x50cm) sem triagem, de uma caçamba próxima a área de experimentação – Centro de São Paulo – que continha entulho de tijolos comuns, vazados cerâmicos e pedaços de pisos e azulejos cerâmicos, que de acordo com a idade da construção de que o entulho saia deveriam ser da década de 60. Todo o RCD foi coletado e armazenado na FAEH, para então ser triado, moído e peneirado.
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3. Material proveniente da troca de fachada de azulejos de um edifício, e restos derevestimentos de pequenas obras próprias. 4. Corpos de prova em concreto anteriormente utilizados como gola de um canteiro nas proximidades da FAEH. 5. Pedaços de Drywall descartados pela Escola Nossa Senhora das Graças - Gracinha.
Imagem 64 a 69:
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Processo de triagem e trituração dos entulhos de gesso (64 e 65), concreto (66 e 67) e de RCD sem separação (68 e 69).
A triagem do RCD resumiu-se em retirar dos sacos coletados materiais que não seriam moídos e testados na pesquisa, ao passo que se despejava parte do conteúdo do saco para a moagem. Dentre os materiais encontrados, os mais recorrentes eram bitucas de cigarro, tampas de garrafas PET e restos de canos PVC. O material triado era então moído manualmente com o auxilio de uma marreta em pequenas porções, e então peneirado. Para este segundo processo prático da pesquisa, a peneira projetada em 2019 foi redesenhada para o fortalecimento da sua estrutura e criação de um coletor de poeira em sua base. O Anexo V (p.143) é uma coletânea de registros do projeto, apresentando desenhos técnicos e fotos da nova peneira. Não obstante, é válido lembrar que a triagem inicial dos materiais foi respeitada até após a peneira, resultando em cinco granulometrias diversas de RCD
Imagem 70: RCDs coletados, triados e peneirados prontos para a próxima etapa de prototipagem.
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cerâmico, concreto, gesso e entulho não triado. Após moagem e peneiramento do RCD foi possível clarificar que a grande maioria da granulometria (>25mm) era composta de fragmentos grandes demais para o uso nas peças projetadas – com grossura máxima de 5cm em algumas partes – e, portanto, foram descartados para a experimentação, sendo moídos e peneirados novamente. O processo de construção dos moldes e triagem da matéria prima fez com que o cronograma e a extensão do trabalho fossem revistos. Até então era planejado o desenvolvimento de duas linhas de bancos e uma peça para ser usada como degrau. Entretanto, considerando a quantidade de trabalho para triar o RCD e transportar a peca fundida, o degrau não foi levado adiante na prototipagem. Além disso, a falta de sentido em produzir um degrau apenas para o trabalho sem ter onde instalá-lo posteriormente, desmotivou ainda mais a concepção da peça. Ainda na mesma etapa, uma das variações do banco tipo abóbada (de 40cm de altura) não foi pra frente pois os laminados melamínicos disponíveis na Fábrica não abaulavam o suficiente para criar a parábola desejada, rachando e dificultando o manusear do material. Assim, após a etapa de construção dos moldes, o trabalho contava com quatro tipos de fôrmas – e consequentemente de peças – desenhados e construídos. Os quatro componentes a serem fundidos eram variantes de duas famílias de bancos desenhados, tanto cúbicos quanto em formato de abóbada. Ao final deste trabalho estão em anexo as fichas de construção dos bancos cubo (VI - p.145), quarto de cubo (VII - p.147) e abóbada (VIII - p.149). Na primeira fundição – que ocorreu no dia 04/12/20, sexta feira – utilizou-se cimento comum de CP II6 e os agregados peneirados dos sacos de entulho sem triagem de material, uma vez que era o tipo RCD mais abrangente na amostra para a prototipagem. O traço escolhido foi o mesmo para concreto no processo da pesquisa experimental, uma parte de cimento para duas de areia e três de agregado (1:2:3). Para as partes de areia, decidiu-se por substituir metade pelo RCD reciclado de gramatura <5mm. Já para as partes de agregado, empregou-se em partes iguais o entulho reciclado de gramatura <25mm e >15mm (tipo B7) e o de tamanho <10mm e >5mm (tipo D). As peças curaram dentro das fôrmas até dia 09/12/20, quando foram desenformadas. O laminado melamínico, por ser o material mais frágil a ser manejado nas fôrmas acabou por ser o primeiro a se deteriorar no processo de fundição e desforma, tendo rachado ou desprendido em todas as fôrmas em que foi
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6. O Cimento CP-II (NBR 11.578) é assim conhecido porque tem a adição de outros materiais na sua mistura, que conferem a este cimento um menor calor de hidratação, ou seja, ele libera menos calor quando entra em contato com a água e também apresenta melhor resistência ao ataque dos sulfatos contidos no solo. 7. Na página 58 deste trabalho há o diagrama de explicação da correlação entre nomenclatura de grão e sua granulometria.
empregado. Na fôrma do banco cúbico 40x40x40cm o cilindro vazio central teve de ser destruído para se desprender do corpo de concreto, o que já era esperado uma vez que o cilindro não tinha forma perfeita. Já nas fôrmas dos bancos em formato abobadado fora necessário afixar nas extremidades do laminado melamínico pontaletes de madeira para que o material não embarrigue nas seguintes fundições. Por fim, notou-se que o perfil PVC para acabamento das bordas não tinha sido instalado dentro das fôrmas do banco quarto de cubo, o que gerou uma peça com os vertices bem demarcados, ao invés de curvos.
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72 Imagem 71 e 72: Dificuldades na utilização do laminado melamínico. Desvencilhamento da fôrma durante a desconcretagem (71) e embarrigamento do material após a fundição (72).
Em linhas gerais, a primeira fundição se mostrou um sucesso, visto que nenhuma das peças foi concretada de forma descuidada e nem romperam durante o desenformo. Todavia, é válido comentar a presença de bolhas de ar na superfície das peças, o que seria facilmente resolvido com a utilização de uma mesa vibratória durante a fundição. Por outro lado, a confecção das fôrmas cobertas por laminado plástico autoadesivo deu às peças um acabamento brilhante em suas superfícies, que não era necessário, uma vez que a etapa seguinte é a de lixamento das faces das peças.
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76 Imagem 73 e 76: Primeira leva de peças desformadas. Quarto de cubo com vértices bem demarcados (73); cubo (74) e abóbadas de 20cm (75) e 40cm (76).
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Para lixar as peças foi utilizado um disco de desbaste metálico para concreto, que foi fixado a uma lixadeira de disco, e então utilizado manualmente sobre as peças. O manejo do maquinário é de difícil aprendizado uma vez que a tendência é desbastar mais e mais a peça ser lixada continuamente. Um dos desafios encontrados foi o de lixar o suficiente para mostrar o acabamento dos azulejos coloridos em meio a mistura da peça, porém sem lixá-los demais para que o esmalte colorido saia. O acabamento final da peça foi o de um tipo de granilite, só que este feito com materiais reciclados e baixo recurso.
Imagem 77: Peça quarto de cubo desbastada até a aparição dos grãos de RCD reciclado. Em evidência um antigo azulejo, agora parte da massa.
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Na segunda fundição – que ocorreu no dia 16/12/20, quartafeira – utilizou-se o mesmo cimento CP II, só que desta vez os agregados peneirados eram de fontes variadas. O traço escolhido foi o mesmo para concreto 1:2:3, e igualmente uma das partes de areia foi substituída pelo RCD reciclado misto, de gramatura <5mm (tipo E). Para inovar, nas partes de agregado empregou-se uma parte do RCD cerâmico triado de tamanho <25mm e >15mm (tipo B); uma parte e meia de RCD de concreto triado – também tipo B – e meia parte do mesmo RCD de concreto, porém de tamanho <15mm e >10mm (tipo C). Após a fundição das peças, os moldes foram agitados manualmente para o desprendimento de bolhas de ar em sua superfície, em busca de um acabamento mais uniforme para os componentes. Ainda, antes de serem deixados em repouso, as fôrmas foram cobertas com uma camada de água para auxiliar na cura do concreto, que tem sua resistência aumentada quando curado submerso. Entretanto, esta ação está ligada a rápida degradação que as fôrmas tiveram após esta segunda leva de peças, apresentando diversos pontos de apodrecimento e fungos, além de faces inteiras de compensado se desgrudando do laminado plástico autoadesivo.
Imagem 78: Bolhas de ar na superfície da segunda fundição da peça quarto de cubo.
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Imagem 79: Peça abóbada de 20cm rompida, junto a mistura em partes iguais de cola branca e cimento.
O desenformo da segunda leva de peças ocorreu dois dias após a sua fundição, na sexta feira dia 18/12/2020 com algumas surpresas, para além da degradação das fôrmas. A primeira é de que a peça abóbada de largura de 20cm foi desformada quebrada, não sabendo se o rompimento da peça ocorreu durante o manejo da fôrma ou durante sua desforma. Para recompor o banco foi utilizada uma mistura em partes iguais de cimento CP II e cola branca atóxica (de base PVC), utilizando a massa gerada como rejunte entre as duas metades da peça, o que foi extremamente bem-sucedido. Ainda, ao manejar as peças recém desenformadas teve-se a surpresa de que pouco adiantou a agitação dos moldes no dia da fundição, uma vez que todas as peças ainda apresentavam marcas de bolhas de ar em suas superfícies. Assim, para terceira – e última – leva de peças a ser feita, as fôrmas precisaram passar por reparos para que não fosse perdida a qualidade do acabamento dos componentes criados,
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o que aconteceu no dia 22/12/2020, terça feira, o mesmo dia em que ocorreu a terceira fundição. Para este processo, o mesmo cimento CP II foi utilizado, e mais uma vez as fontes dos agregados utilizados foram variadas. Desta vez, os RCD triados em maior volume já tinham sido utilizados nos processos anteriores, sendo pensada para esta ultima fundição a confecção de três misturas de mesmo traço (1:2:3) porém com conteúdos diferentes. Cada tipo de mistura foi pensada para um tipo de peça, sendo as sobras de concreto despejadas em fôrmas retangulares 20x40cm. Para as duas fôrmas da peça quarto de cubo, o traço 1:2:3 foi repensado da seguinte maneira: as partes de areia foram subsistidas por partes iguais de RCD reciclado misto e de concreto de gramatura <5mm (tipo E), enquanto as partes de agregado foram substituídas por duas partes de RCD reciclado misto, de tamanho <15mm e >10mm (tipo C) e uma parte da mesma gramatura (tipo C) de RCD reciclado porém só de gesso. Contudo, é válido registrar aqui que a fundição dessas peças com esta mistura foi de maior dificuldade, uma vez que a mistura parecia seca demais e com volume de agregado maior que o normal. Para a fôrma da abóbada e largura de 40cm, o mesmo traço (1:2:3) teve suas partes de areia substituída em partes iguais de RCD reciclado misto e de concreto, de gramatura <5mm (tipo E). Já suas partes de agregado foram substituídas por duas partes de RCD reciclado de concreto, de tamanho <10mm e >5mm (tipo D) e uma parte de RCD reciclado misto, de gramatura <15mm e >10mm (tipo C). Para a peça abóboda de 20cm de largura, o traço 1:2:3 teve somente seus agregados substituídos por RCD reciclado: meia porção – uma parte e meia – de entulho triado misto, de gramatura <15mm e >10mm (tipo C) e a outra parte e meia de mesma quantidade de gesso, na gramatura tipo C e tipo D em partes iguais. Ainda no mesmo dia foram lixadas as peças geradas pela segunda fundição, salientando a dificuldade em se manter um nível ou um padrão de superfície simplesmente com a desbastadora de concreto. Para o alcance de superfícies mais niveladas e lisas foram compradas lixas de disco de gramatura no24, que serão utilizadas nas peças geradas pela segunda e terceira fundição. Já as peças desbastadas da primeira fundição foram impermeabilizadas com um verniz incolor acrílico semi-brilho, que fora aplicado com trinchas de 4 e 3 polegadas em quatro demãos uniformes de verniz. O verniz acabou sendo empregado no a acabamento das peças para oferece-las maior resistência às intempéries do clima e do uso, além de oferecer um acabamento de concreto pouco brilhante que ressalta os grânulos de RCD reciclado na mistura.
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1 parte de E misto 1 parte de areia
cimento fundição 1 fundição fundição2 11 1,5 parte de B misto
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1:2:3
1,5 parte de D misto 11,5 parte dede EBdemisto parte Bcerâmico 1,5 parte Bmisto misto 11,5 parte dedeareia parte DDconcreto misto 1,5 parte deB misto 0,5 parte de C concreto cimento 1 1parte dedeE Emisto parte misto 1 1parte misto partededeEareia areia 1 parte de areia cimento cimento
: ::
fundição2 cimento 1:2:3 fundição fundição2 2 1 parte de B cerâmico 1:2:3 1:2:3 3 fundição 1,5 parte de B concreto 1:2:3
1:2:3
0,5 parte de C concreto 1 1parte dedeBBcerâmico parte cerâmico 11,5 parte dede E misto parte parte Bconcreto concreto 2 1,5 parte de DdeBconcreto 10,5 parte dede areia parte parte Cconcreto concreto 1 0,5 parte de CdeCcerâmico cimento 1 1parte dedeE Emisto parte misto 2 partes de E misto 1 1parte de areia parte de areia cimento cimento cimento
1:2:3 1:2:3
1,5 parte de C misto 1,5 parte de C+D gesso
::
1,5 areia 1,5parte partededeC Cmisto misto 1,5 1,5parte partededeC+D C+Dgesso gesso cimento areia areia cimento cimento
2 partes de C misto 1 parte de C gesso
:
1:2:3 1,5 parte de C misto 1:2:3 1,5 parte de C+D gesso 1:2:3
:
:
partes 12 2parte dedede ECmisto partes Cmisto misto gesso 1 1parte partededeEC Cconcreto gesso cimento 1 1parte dedeE Emisto parte misto 1 1parte partededeE Econcreto concreto cimento cimento
: :
:
:
::
::
::
:
:
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:
3 33
massa assa assa
2 partes de C misto 1 parte de C gesso
cimento
:
:
3
assa
2 2partes partesdedeE Emisto misto cimento cimento
1:2:3 : ::
1 parte de E misto 1 parte de E concreto
areia cimento
1:2:3 1 parte de C cerâmico1:2:3
parte 2 2partes de misto partede deDEDconcreto concreto 1 1parte partededeC Ccerâmico cerâmico cimento
::
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fundição3 1:2:3 1:2:3 fundição fundição3 3 2 parte de D concreto
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:: Imagem 80: Diagrama de composição das misturas.
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A terceira e última leva de peças foi desformada na segunda feira, dia 28/12/2020, último dia para a atuação prática deste trabalho. Esta desforma final também guardou algumas surpresas, para além da presença de bolhas de ar na superfície. Mais uma vez, a peça abóbada de largura de 20cm foi desformada despedaçada, porém desta vez mostrou-se claro que o problema foi na fundição (a mistura não tinha ocupado a fôrma por completo). Por outro lado, uma surpresa positiva foi de que a mistura que no dia da fundição parecia desequilibrada – das peças quarto de cubo – não teve problemas na sua cura.
Imagem 81: Peça abóbada de 20cm rompida durante a sua desforma.
Uma outra hipótese para a fragilidade maior da peça foi o emprego de gesso como agregado, material que acaba por enfraquecer a mistura por ter sua resistência inferior ao do concreto (de 5 à 14Mpa). Ainda, se o gesso é empregado como agregado em uma taxa maior que o de 5% do volume da mistura o material acaba por retardar a pega do concreto. No mais, a tonalidade do concreto das misturas em que foi empregado gesso era muito mais escura do que as em que o material não foi utilizado, indicando uma maior retenção de água pelas misturas mais escurecidas.
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Por ainda estarem úmidas e recém desformadas, o lixamento das peças requereu menos esforço físico, como que parecendo ser de um material mais macio que os antes trabalhados. Contudo, a facilidade em lixar as peças dificultou o controle do nível do disco de desbaste, culminando em peças com o acabamento mais profundo e irregular em relação as levas anteriores. Para aplanar as faces já desbastadas foi utilizado o disco de lixa de gramatura nº24, que funcionou muito bem para os fins desejados.
Imagem 82: Peça abóbada de 40cm parcialmente lixada para a comparação entre os acabamentos antes e após o uso do disco de desbaste.
Após o desbaste das peças, ambas as levas – a segunda e a terceira – foram impermeabilizadas com o verniz acrílico. Em teoria, o correto seria esperar as peças curarem por 28 dias para então serem envernizadas, o que não pode ser seguido de acordo com o cronograma apertado no fim do trabalho. Ainda, a terceira leva foi coberta de verniz ainda úmida da fundição, fato que pode acarretar em problemas de impermeabilização da peça que só serão descobertos no futuro. Assim, com todas as peças envernizadas, foi possível fazer uma seção de fotos dos produtos na própria FAEH, que será apresentada após as conclusões deste segundo processo prático de experimentação.
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CONCLUSÕES DO SEGUNDO PROCESSO PRÁTICO Este segundo processo prático mostrou-se imprescindível para a continuidade na experimentação desta técnica ainda pouco explorada: o RCD-R como agregado em novas misturas de concreto. A partir da pesquisa anterior, foi possível compreender como esta tecnologia se comporta ao receber esforços de compressão e tração, sendo então viável – neste trabalho atual – o projeto de peças pré-moldadas que respeitem as limitações e potencialidades deste novo material. Visando suas limitações, a resposta dada no inicio deste processo prático foi a de desenho de peças que funcionam majoritariamente a esforços de compressão, sendo mais pesadas e espessas. Já sobre as potencialidades, a resposta veio por meio do estudo e emprego de diferentes materiais reciclados dentro do traço 1:2:3 experimentado. Tratando-se primeiramente do design, ao se desenhar mobiliários que funcionam principalmente a compressão e sem armação metálica, o projeto de peças delgadas e mais leves se tornou inviável. O projeto gerou peças de no mínimo 15kg, o que inviabiliza em parte a apropriação variada dos elementos pela população de diferentes faixas etárias. Pensava-se que crianças e idosos poderiam também experimentar a função de paisagistas ao reposicionar as peças, coisa que não se é possível com peças tão pesadas. Sobre a tecnologia desenvolvida e a potencialidade das diferentes materialidades absorvidas, conclui-se que este é um oceano vasto de opções. Neste trabalho coletou-se apenas resíduos da classe A de RCD – para além dos restos de gesso – e os acabamentos foram os mais diversos possíveis, claro que de acordo com a granulometria e tipo de material eleito para compor a mistura. Sente-se então uma profunda ansiedade em empregar cada vez materiais mais diversos e em proporções e traços mais diversos ainda, gerando uma multiplicidade de materiais finais e acabamentos que, dependendo de sua composição, devem ser testados novamente em laboratório para assegurar-se que sua resistência não foi comprometida. O apelo estético final da tecnologia é inegável, e limitar-se ao emprego somente de RCD – e não de outros materiais reciclados de outras origens como plásticos, vidros e materiais não provenientes da construção civil – parece algo a ser repensado para futuras experimentações.
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Imagem 83: Acabamento das misturas criadas. Da esquerda para a direita: primeira fundição, segunda e as três misturas da terceira.
Ao se tratar do processo experimental em si, acredita-se que a produção das fôrmas e manejo das mesmas durante a fundição e desforma foram os momentos que despenderam mais trabalho e dinheiro. O maior gasto monetário no processo experimental foi a de materiais para a confecção das fôrmas – barras roscadas, porcas borboletas, perfis de PVC e laminado plástico autoadesivo – sendo viável uma revisão no desenho das peças e das fôrmas, visando um barateamento dos custos de execução. Todavia, por serem moldes feitos em madeira compensada, a fundição e cura do concreto é extremamente nociva aos materiais se não manejadas com cuidado redobrado. No “final de contas”, é válido pesar quais são os princípios mais importantes para confecção das fôrmas: o design da peça, sua reprodução, a simplicidade no manejo dos moldes ou o seu custo final. Ao se propor peças prémoldadas com visão para produções em maior escala, uma fôrma metálica é um ótimo investimento uma vez que é projetada para facilitar estes processos e tem durabilidade muito maior que as feitas de madeira.
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Imagem 84: Fôrma da peça quarto de cubo degradada por microorganismos que cresceram durante a fundição.
Em segundo lugar, empatados, os dois principais custos encarados no processo experimental – depois dos gastos com as fôrmas – foram o de materiais para acabamento das peças. O disco de desbaste e a lata de verniz acrílico juntos igualaram o valor gasto nos materiais comprados para as fôrmas. Obviamente, não se considerado os valores que poderiam ser gastos em mão de obra, um moinho adequado para o entulho, lixadeira e as madeiras para as fôrmas, o preço do disco e do verniz sobressaem. Assim, talvez seja interessante estudar em outro momento possíveis acabamentos para as peças, analisando novas estéticas de material e produtos de acabamento e impermeabilizantes (considerando até, no caso deste último, produtos naturais ou artesanais). No mais, o objetivo deste trabalho – experimentação prática e confecção de peças pré-fabricadas em concreto reciclado – foi
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alcançado. Infelizmente, a potencialidade inicial do trabalho não pode ser alcançada uma vez que não foi possível encontrar um moedor de entulho na escala desejada e a preços acessíveis, sendo este trabalho de moagem feito manualmente pelo autor. Ainda, o emprego de fôrmas metálicas ampliaria infinitamente os frutos da produção, visto que o molde não se degradaria durante os processos de fundição e desforma. Sobre o processo, as peças alcançaram o acabamento esperado, além de aguentarem os esforços demandados pelo uso planejado dos mobiliários (sentar, apoiar, subir etc.). A seguir é apresentado o ensaio fotográfico das peças finalizadas, feito pelo artista plástico Gabriel Ussami na FAEH na data de 28/01/2020. Como os mobiliários não foram implantados e, portanto, não cumpriram com a sua finalidade – que é ativar espaços públicos subutilizados – pode-se concluir que o trabalho se encerra incompleto, porém dentro do esperado.
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ENSAIO FOTOGRÁFICO
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86 Imagem 85 e 86: Peças quarto de cubo resultantes da primeira fundição.
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88 Imagem 87 e 88: Peças quarto de cubo resultantes da primeira fundição.
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90 Imagem 89 e 90: Peças abóbada de 40cm e 20cm de largura resultantes da primeira fundição.
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92 Imagem 91 e 92: Peças abóbada de 40cm e 20cm de largura resultantes da primeira fundição.
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94 Imagem 93: Peça cubo resultante da primeira fundição.
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Imagem 94: Detalhe dos grãos de entulho na peça cubo resultante da primeira fundição.
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96 Imagem 95: Peça cubo resultante da primeira fundição em uso.
Imagem 96: Comparação das peças cubo e quarto de cubo.
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98 Imagem 97: Detalhe dos grãos de entulho cerâmico desbastados na peça quarto de cubo resultante da segunda fundição.
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Imagem 98: Peças quarto de cubo resultantes da segunda fundição.
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100 Imagem 99: Peças abóbada de 40cm e 20cm de largura resultantes da segunda fundição.
Imagem 100: Detalhe do rejunte na peça abóbada de 20cm de largura.
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102 Imagem 101: Peças quarto de cubo resultantes da terceira fundição. Observase a coloração mais escura do concreto ainda úmido.
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Imagem 102: Detalhe dos grãos de gesso na peça quarto de cubo resultantes da terceira fundição.
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104 Imagem 103 e 104: Peça abóbada de 40cm de largura resultantes da terceira fundição.
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109 Imagem 105-109: De cima para baixo: mistura da primeira fundição, segunda e as três variações da terceira (abóbada de 40cm, quarto de cubo e abóbada de 20cm).
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111 Imagem 110: Peças quarto de cubo das três levas de fundição.
Imagem 111: Peças abóbada de 40cm de largura das três levas de fundição.
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Em linhas gerais, a pesquisa se apresentou audaciosa desde a sua gênese. É uma obviedade que uma resposta prática de caráter arquitetônico e paisagístico não é suficiente para sanar as mazelas da desigualdade socioespacial urbana. As “soluções” – aqui em aspas porque nada se resolveu, por enquanto – apresentadas neste trabalho nada mais são do que o resultado de uma pesquisa que se projetava prática e experimental – arquitetonicamente falando – desde o seu princípio. As respostas desenhadas por este trabalho nada mais são do que uma ferramenta necessária junto a um projeto estatal de educação e desenvolvimento urbano democrático e socialmente justo. Fala-se aqui de educação pois a geração e gestão de resíduos está amplamente ligada com a disciplina (em geral, mas em específico neste trabalho a ambiental). Ao se falar de educação, refere-se principalmente a educação infantil, uma vez que é mais fácil – e gera melhores resultados – educar novas gerações de cidadãos que conhecem seus direitos e os direitos da terra, do que reeducar toda uma população já envelhecida em seus costumes e manias. Assim, é impossível não pensar nas pesquisas e práticas neste trabalho percorridas sendo replicadas e difundidas em ambientes escolares. A PGIRS1 da cidade de São Paulo já apontava em 2014 que espaços revitalizados com o auxilio da população local tendem a ser zelados com maior afinco, tornando-se um patrimônio da comunidade. Assim, educação ambiental infantil é imprescindível para que as futuras gerações compreendam o fluxo de resíduos estruturado em nossa sociedade civil. Ainda, é necessário educá-los sobre seus direitos individuais de políticas públicas e espaços de lazer, entendendo que fazem parte de todos os sistemas: territorial, populacional e, principalmente, governamental. A falta de áreas verdes de lazer e a insuficiência de políticas públicas de gestão de resíduos para os mais necessitados não são uma novidade, mas sim um plano das classes poderosas respaldado pela legislação estatal. Somente com uma população educada sobre a amplitude de seus direitos e deveres que o Estado deve prover que teremos uma mudança significativa na cisão espacial e desigualdade socioespacial urbana na cidade de São Paulo. Até lá, pequenas iniciativas e mobilizações tipo guerrilha – como o manual produzido em 2019 – procedem como ferramentas de contensão de danos e suavizam a consciência
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1. Para saber mais sobre este plano do governo veja o Anexo I A PNRS e a PGIRS.
de nós profissionais atuantes na sociedade em todos os campos profissionais. Neste trabalho, ao se falar de entulho se fala de dois temas paralelos: recursos e memória. Lixo é energia, é dinheiro e é herança natural produzido pela terra e/ou ciência humana. Resíduos são recursos até terem seu ciclo produtivo esgotado, o que não ocorre na atualidade. Por isso se mostrou necessário compreender o sistema de gestão de entulho vigente na cidade de São Paulo. Para além de recurso, os resíduos – em específico neste trabalho, o RCD – são testemunhos físicos de uma ética, moral, poética e estética até então vigentes, e só por isso já deveriam ser preservados em relação ao seu ciclo produtivo e de gestão de resíduos. Por conta desta visão pré-determinada sobre a importância do entulho que foi necessária a compreensão do status real que estes resíduos têm em nossa sociedade. E para além da história da gestão do entulho, é impossível dissociá-la da história da cidade e consequentemente de seus espaços públicos, o outro tema tratado neste trabalho. Compreender as raízes da desigualdade socioespacial em São Paulo é compreender que este trabalho só faz sentido junto a um coro de soluções semelhantes e todos respaldados por validação e investimento estatal. Até lá, saídas descentralizadas vindas do povo em direção ao Estado se mostram cada vez mais precisas e ocorrentes, ao mesmo tempo que mostram que a população começa a modificar seu raciocínio vigente até então. Este texto foi produzido sob a visão de que a arquitetura pode capacitar a população e servir como ferramenta para uma sociedade mais sustentável em todos os seus sentidos: economicamente viável, ambientalmente correta e socialmente justa. A gênese prática deste trabalho busca seguir a visão de que a arquitetura não se basta dentro das estruturas institucionalizadas da academia, laboratórios e escritórios, mas sim floresce no campo prático. Projetar é praticar a arquitetura, mas somente no campo da atuação – o canteiro – que o projeto se consagra e a arquitetura realmente acontece. A final de contas, projetar é fazer com que a teoria e a prática não só dialoguem, mas frutifiquem. Neste trabalho – que durou dois anos em sua totalidade, incluindo o primeiro processo experimental – a proposta de uma opção frente ao status-quo de gestão de espaços públicos e de lixo se mostrou necessária em duas escalas. A primeira, de cunho individual e de comunidade, busca respostas imediatas para problemas reais, e por isso a criação de um manual para o
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Imagem 112: Produção total do processo prático de pesquisa. Mais de 300kg de concreto reciclado.
reuso de RCD. A segunda, de alçada coletiva e governamental, busca compreender de que formas essas diferentes problemáticas estudadas – lixo e espaço público em relação as populações carentes – podem se relacionar e sublimar soluções possíveis para suas mazelas. Infelizmente, somente com amplo amparo estatal de políticas públicas uma resposta como a dada neste trabalho pode causar um impacto real e na escala da população e território paulistano. Por isso que ao mesmo tempo que este projeto tem caráter sistemático e de ampla abrangência – quando se trata da tecnologia desenvolvida – mas também individual e poético, quando se oferece o poder de escolha às populações carentes sobre o destino dado aos seus resíduos. Falar “O início, fim e o meio” é compreender que o ciclo produtivo não tem exatamente essas etapas como imaginamos, é entender que existem infinitos tipos de início de vida de um material, de uma política pública, de um espaço livre. É tentar entender que o “fim” é uma ilusão propagandeada pelo sistema econômico vigente e que o verdadeiro fim para um objeto – uma pessoa ou um espaço – reside dentro de nós e na memória que
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geramos deste objeto. Por final, o meio acaba por ser, ao mesmo tempo, o conglomerado de ações e vivências entre estes “inícios” e “fins”, mas também o território e as condições que todas essas ações e vivências têm palco. Este trabalho busca entregar, mesmo que de forma seletiva, o que as políticas públicas em sua pretensa universalidade nunca garantiram: gestão sustentável de resíduos e disponibilidade de espaços públicos de qualidade difundidos em todo o território urbano. Lembrar-se do fim, do início e, principalmente, do meio das coisas é lembrar que o poder de ação e, principalmente, de subversão. Esta última reside em todos nós, e é dever – pra não dizer uma forma de reparação histórica – dos profissionais da arquitetura “instruídos” devolver as populações carentes o poder criativo e o direito de projetar seu futuro sendo fiel aos seus recursos: econômicos, sociais e ambientais.
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LISTA DE IMAGENS 01 Danilo Verpa Folhapress extraída de https://www1.folha.uol.com.br/ cotidiano/2020/07/novo-anhagabaumantera-arvores-mas-urbanistas-apontamoutros-problemas.shtml data de acesso 14/08/2020 02 Página Jardim Elba Zona Leste extraída de https://www.facebook.com/ JardimElbaZLeste data de acesso 19/09/2020 03 Editada pelo autor extraída de http://www.hagopgaragem.com/ data de acesso 10/07/2020
10 Editada pelo autor extraída de http://spempretoebranco.blogspot. com/2015/04/ data de acesso 17/07/2020
04 Página Jardim Elba Zona Leste extraída de https://www.facebook.com/ JardimElbaZLeste data de acesso 19/09/2020
13 Editada pelo autor extraída de https://vejasp.abril.com.br/blog/sao-paulonas-alturas/sp-sonha-minhocao/ data de acesso 04/09/2020
05 Editada pelo autor extraída de http://www.hagopgaragem.com/ data de acesso 10/07/2020 06 Editada pelo autor extraída de http://www.hagopgaragem.com/ data de acesso 10/07/2020 07 Cartão postal ditado pelo autor extraída de RM Gouveia Leilões data de acesso 17/07/2020 08 Editada pelo autor extraída de http://spempretoebranco.blogspot. com/2014/02/ data de acesso 17/07/2020 09 Editada pelo autor extraída de http://www.hagopgaragem.com/ data de acesso 10/07/2020
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11 Editada pelo autor extraída de http://spempretoebranco.blogspot. com/2014/ data de acesso 17/07/2020 12 Benedito Duarte - Editada pelo autor extraída de https://www.itaucultural.org.br/ocupacao/ mario-de-andrade/350-marios/?content_ link=3 data de acesso 04/09/2020
14 Acervo Center Norte - Editada pelo autor extraída de https://www.diariozonanorte.com.br/ center-norte-completa-36-anos-conhecaa-historia-do-shopping-queridinho-dazona-norte/ data de acesso 04/09/2020 15 Revista Veja São Paulo extraída de http://www.saopauloinfoco.com.br/parquevilla-lobos/ data de acesso 16/07/2020 16 e 17 Foto do autor, 2020 18 Danilo Verpa Folhapress extraída de https://www1.folha.uol.com.br/ cotidiano/2020/07/novo-anhagabaumantera-arvores-mas-urbanistas-apontamoutros-problemas.shtml data de acesso 14/08/2020
19 Ricardo Gomes Folhapress extraída de https://agora.folha.uol.com.br/saopaulo/2019/07/prefeitura-paulistana-retirapiso-do-vale-do-anhangabau.shtml data de acesso 13/08/2020 20 Folhapress extraída de https://www1.folha.uol.com.br/ cotidiano/2019/07/prefeitura-encontratrilhos-de-bonde-em-obra-no-centro-desp.shtml data de acesso 13/08/2020 21-27 Fotos do autor, 2019
29-51 Fotos do autor, 2019 52-55 Elaborado pelo autor, 2020 56-79 Fotos do autor, 2020 80 Elaborado pelo autor, 2020 81-84 Fotos do autor, 2020 85-111 Gabriel Ussami, 2020 112 Foto do autor, 2020 113-116 Fotos do autor, 2018
28 Elaborado pelo autor, 2020
LISTA DE MAPAS 1 Elaborado pelo autor, 2020 2 Elaborado pelo autor, 2020
LISTA DE TABELAS 1-3 Elaborado pelo autor, 2020 4 ABNT NBR 7211 1-3 Elaborado pelo autor, 2020
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BIBLIOGRAFIA ABRAMO, Pedro. “A Cidade COM-FUSA – A mão inoxidável do mercado e a produção da estrutura urbana nas grandes metrópoles latino-americanas”. In Revista Brasileira de Estudos urbanos e regionais, ANPUR. Vol. 9, 2007. CALLIARI, Mauro. “Espaço público e urbanidade em São Paulo”. São Paulo, Bei Comunicação, 2016. CONSELHO NACIONAL DO MEIO AMBIENTE (CONAMA) – Resolução CONAMA número 307, de 05 de julho de 2002. JACOBS, Jane. “Morte e vida de grandes cidades”. 3 ed. – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011. – (Coleção cidades) MAIA, Francisco Prestes. “Introdução ao Estudo de um Plano de Avenidas para a Cidade de São Paulo”. São Paulo, Melhoramentos, 1930. NBR 7211: Agregados para concreto. – Especificação. Rio de Janeiro 2005 OSELLO, Marcos Antonio. “Planejamento urbano em São Paulo (1899-1961) introdução ao estudo dos planos e realizações”. Tese de Mestrado FGV, São Paulo, 1983. RIBEIRO, Guilherme Trevizani. “Um manual para o reuso dos resíduos da construção civil”. Pesquisa experimental, Escola da Cidade - São Paulo, 2019. SÃO PAULO. “Plano de gestão integrada de resíduos sólidos da cidade de São Paulo”. Prefeitura de São Paulo. 2014. VILLAÇA, Flávio. “São Paulo: segregação urbana e desigualdade”. Estudos Avançados vol.25 no.71 – São Paulo. 2011. WHYTE, William H. “The Social Life of Small Urban Spaces” 1980.
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ANEXO I A PNRS E A PGIRS Em agosto de 2010 foi sancionada a Lei federal nº12.305 que instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS). Como instrumento de aplicação principal, a política lançou o Plano Nacional de Resíduos Sólidos, que mantém estreita relação com os Planos Nacionais de Recursos Hídricos (PNRH), de Produção e Consumo Sustentável (PPCS), de Mudanças do Clima (PNMC) e de Saneamento Básico (Plansab). Por essas relações, a PNRS explicita conceitos e propostas para diversos setores da economia compatibilizando crescimento econômico e preservação ambiental, com desenvolvimento sustentável. É válido comentar que a PNRS determina por lei eliminar a disposição em aterros sanitários de resíduos de quaisquer materiais passíveis de reciclagem e recuperação1. Outra novidade da política foi a criação e a definição do conceito de responsabilidade compartilhada, em que tanto o gerador – industrial, da construção civil, varejo, pessoa física ou jurídica – será responsável pelo resíduo assim como o comerciante, juntamente com o consumidor, se esses últimos também participarem do ciclo de vida do produto (retornaremos mais a frente ao assunto para explicar melhor os aterros na atualidade na cidade de São Paulo). Ainda, um dos pontos fundamentais da política nacional é a indicação de um prazo de quatro anos para a extinção de todos os lixões do país e para a produção de um Plano Municipal de Gestão Integrada de Resíduos sólidos (PGIRS) para cada cidade do país. É digno de observação ressaltar que, do ponto de vista administrativo, a cidade de São Paulo é dividida em 32 subprefeituras, cada uma delas constituindo, por si só, uma concentração de população que as colocaria entre os 85 maiores municípios do país. Isso mostra como uma PGIRS para a cidade de São Paulo era imprescindível, tanto que foi publicada precocemente e incompleta em 2012, tendo que passar por reformulações e uma nova publicação oficial no ano limite do prazo, em 2014. Vale ressaltar que a cidade de São Paulo foi um dos poucos municípios do Brasil a desenvolver tal documento. De introdução ao documento o governo municipal de São Paulo afirma que o modelo de gestão de resíduos atual da cidade é ineficiente uma vez que se consome espaço, gasta-se com transporte e se desperdiçam materiais recicláveis. Apesar de datados do ano de 2012 até 2014, os dados apresentados
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1. Os resíduos sem qualquer possibilidade de reciclagem ou reaproveitamento são denominados popularmente por rejeitos.
são alarmantes e muito válidos para a compreensão do cenário da gestão de resíduos da cidade, em espacial do RCD. A seguir desenvolvo uma leitura mais atenta a este plano, o mais recente que rege nosso sistema de gerenciamento de resíduos, a PGIRS do Município de São Paulo. A partir do ano de 2004, após a implantação da coleta seletiva na cidade e o início do funcionamento de seus primeiros Ecopontos, a cidade de São Paulo foi dividida em dois agrupamentos geográticos, sob os serviços de duas concessionárias. A LOGA atende o agrupamento noroeste da cidade, enquanto a porção sudeste é de administração da Ecourbis. No mapa produzido a seguir (p.127) é possível compreender melhor a cisão geográfica da cidade de acordo com as duas concessionárias.
2. São serviços que o órgão público presta em favor de um cidadão específico e que o custo pode ser aferido individualmente e imputado a este cidadão, como no caso da coleta domiciliar de lixo, onde se pode quantificar a quantidade de lixo gerado – e consequentemente de serviço prestado – e atribuída uma taxa de cobrança direta para este cidadão em específico. 3. Os serviços indivisíveis, por sua vez, são prestados para o grupo total de cidadãos ou ao próprio espaço urbano, impossível de ser dividido em porções exatas entre cidadãos específicos.
O contrato de concessão conta com a administração total por parte das concessionárias dos chamados serviços divisíveis2 de coleta, transbordo, tratamento e disposição final dos resíduos domiciliares e de coleta e destino final de resíduos hospitalares. Ainda, é previsto em contrato a administração de uma empresa prestadora de serviço terceirizada, responsável pela prestação dos serviços indivisíveis3 de limpeza urbana, incluindo varrição, limpeza do sistema de drenagem, manejo de RCD, entre outros. Das competências e responsabilidades, a PNRS e o PGIRS de São Paulo reiteram as aptidões estabelecidas pela resolução nº307 do CONAMA. Dentre elas está o dever dos pequenos geradores de fazerem a segregação prévia dos resíduos gerados de acordo com as normas estabelecidas, além de apresentar a Comunicação de Pequenas Obras na sua Subprefeitura, e informar-se sobre empresas de transporte de RCD licenciadas, quando necessário (apenas quando sua geração de resíduos excede a marca de 1m³ diário que você pode deixar no Ecoponto). Para quantidades de RCD superiores a 1m³, o gerador é obrigado por lei a contratar um serviço licenciado de empresas de caçambas, para a correta disposição de seus resíduos. Já os grandes geradores (indústria da construção civil) devem elaborar um PGRS e submetê-lo aos órgãos municipais, o que não há indícios até data atual que tenha acontecido. No mais, o município institui o PGIRS e estabelece objetivos, metas e diretrizes, além de responsabilizar os agentes da produção de resíduos. O plano prega o estabelecimento de normas e regulamentação para execução do manejo do RCD, funcionamento dos Ecopontos e limpeza das deposições irregulares de entulho que são comuns na cidade de São Paulo. Deve-se estender a
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rede de Ecopontos e o uso obrigatório de agregados reciclados em obras e serviços realizados no município pelo Estado. Ainda, o governo cita fomentar a reciclagem de resíduos ampliando a rede de áreas de triagem e transbordo (ATT) e novos negócios de reciclagens de materiais. De acordo com dados do plano, das 532 mil toneladas de RCD regidas pelo poder público (em torno de 10% da geração total estimada da cidade) no ano de 2012, ¾ foram removidas de 4.500 pontos viciados, que impactam negativamente na cidade, e ¼ foi removido dos 52 Ecopontos existentes até então. Os pontos viciados (calçadas, praças, entradas de lotes não utilizados, várzeas de córregos) se formam pelo hábito recorrente de descarte irregular do RCD por parte de moradores, empresas e até por pequenos transportadores de entulho, o que demanda um processo contínuo de limpeza corretiva por parte do governo municipal. Uma vez recolhidos os entulhos, estes pontos recebem em pouco tempo outra carga; e diante da fiscalização e ações da prefeitura as descargas irregulares se estabelecem em outros pontos públicos da cidade, que se transformam em ambientes de criação de vetores de doenças e risco de acidentes, além de degradar a paisagem urbana. Na limpeza destes pontos viciados observa-se uma presença muito mais intensa de RCD, estando presente em 90% dos pontos. Todavia, no total de resíduos sob gestão pública – Ecopontos e operações de limpeza urbana – os lixos volumosos4 apresentam uma predominância de 64%, enquanto o RCD chega a 31% e os materiais recicláveis secos depositados nos PEVs correspondendo somente a 5%. Para título de curiosidade, os Ecopontos da zona leste de São Paulo são os que mais recebem RCD (um indicativo de maior número de pequenas obras domiciliares e irregulares), enquanto os das zonas central e oeste é superior a entrega de resíduos volumosos. De maneira geral, ao se aproximar dos RCD os de classe A e B são predominantes na cidade, embora não exista uma caracterização dos resíduos na hora do despejo. Os resíduos classes A e B representavam respectivamente, em 2012, 80% e 18% do volume total manejado pelo Estado, enquanto os resíduos de classe C e D correspondem aos 2% restantes. Outro tipo de área prevista na resolução nº307 do CONAMA e é retomada na PGIRS é a Área de Transbordo e Triagem (ATT) de entulho. Ela deve receber o material recolhido dos pontos viciados para que seja feita a triagem dos diferentes resíduos componentes do entulho e seu armazenamento temporário, até que possa ser destinado de forma adequada. Estas áreas
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4. Móveis e podas de árvores principalmente.
LIMITES MUNICIPAIS MANCHA URBANA
1
AGRUPAMENTO NOROESTE - ADM. LOGA AGRUPAMENTO SUDESTE - ADM. ECOURBIS ESTAÇÃO DE TRANSBORDO DE RESÍDUOS ECOPONTO EXISTENTE ECOPONTO A SER IMPLANTADO
2
ATERRO DESATIVADO ATERRO ATIVO QUE RECEBE RESÍDUOS DE SP 2D - C.T.R PEDREIRA 2F - ATERRO PRIVATIVO RIUMA 6C - U.V.R. GRAJAÚ
3
30km
4
5
10
6
0
5
7
A
B
C
D
E
F
G
MAPA II GESTÃO DO LIXO EM SÃO PAULO
FONTES: PMSP, IBGE, SVMA, AMLURB, DataGeo e levantamento feito pelo autor.
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recebem também resíduos de obras maiores, levados por caçambeiros, que demandam separação dos resíduos por classe para encaminhamento ao destino adequado. São cinco ATTs funcionando em São Paulo, privadas, para recepção de resíduos gerados em obras privadas. Para os RCD provenientes da limpeza corretiva dos pontos viciados deveriam ser utilizadas áreas de triagem nos próprios aterros onde os resíduos são levados, o que não há registros de realmente acontecer. Atualmente, São Paulo deposita os RCD recolhidos dos pontos de despejo irregular e dos Ecopontos em três áreas de destino final (U.V.R. Grajaú, Aterro Riuma e Aterro Revita Itaquareia), todas nas bordas do município em regiões com forte presença da vegetação e ainda pouca intervenção urbana. Além de funcionarem como ATT, são aterros privados que dispõem de unidades de reciclagem dos resíduos classe A, que por obrigação contratual devem reciclar ao mínimo 10% do RCD recebido. Os registros da Amlurb informam que, na média de 2012, o recebimento de RCD nos três aterros com os quais o Estado mantém contrato foi de 4,3 mil toneladas diárias (4,3 milhões de quilos). Como os resíduos gerados em São Paulo são destinados tanto às áreas instaladas em seu território, como às áreas nos municípios vizinhos – São Paulo não cabe em seus limites municipais –, foi considerado para o PGIRS do município a estimativa de geração de 18,5 mil toneladas (18,5 milhões de quilos) diárias de RCD na cidade. Os custos de manejo de RCD de responsabilidade pública incluem a remoção e transporte dos resíduos dispostos irregularmente em espaço público, transporte dos RCD dos Ecopontos aos aterros, operação dos Ecopontos e triagem dos resíduos das deposições irregulares (este ultimo não acontece na verdade). O custo total no manejo das 522 mil toneladas de RCD foi de 50,8 milhões de reais em 2012, levando em consideração que se refere somente ao RCD proveniente de disposições irregulares e Ecopontos. Os três aterros utilizados pela organização pública e privada para o despejo de RCD cobram taxas de recebimento de entulho tabeladas por toneladas. Em ordem de preço, R$22,14 no Revita, R$25,80 no Riuma e 25,84 no U.V.R. Grajaú. O restante da recepção de RCD nos aterros (1.031 mil toneladas em 2012) foi entregue por caçambeiros cadastrados na Amlurb, mediante a aquisição de um selo que valida e protocola a entrega de RCD nos aterros contratados pela PMSP. O valor do selo para os transportadores cadastrados (R$16,50 por caçamba em 2012) vem sendo elevado progressivamente para redução da diferença
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entre o seu valor e o valor unitário pago aos aterros pela prefeitura. No mais, o PGIRS elenca as principais carências e deficiências atuais da gestão de resíduos na cidade de São Paulo, que vão muito além da insuficiência da rede de Ecopontos, que não alcança a capilaridade desejável. Abaixo são listadas as mais importantes: Ecopontos só absorvem 25% do RCD coletado na cidade (outros 75% são das ruas); Desconhecimento dos munícipes em relação a rede existente não permite a utilização eficiente; Dificuldade de eliminação dos pontos viciados na deposição maior que 5m³ (voltam a ocorrer após a limpeza); Descumprimento nas regras de transporte: excesso de carga na caçamba e sobreposição de caçambas no transporte; Insuficiência de reciclagem dos resíduos classe A sob responsabilidade pública, definida nos contratos com nível 10% dos materiais; Necessidade de caracterização do RCD entregue voluntariamente por pequenos geradores nos Ecopontos (gerar um “cardápio” de recebimento); Avançar muito na segregação dos resíduos na origem. É válido observar que a raiz da maioria das questões ainda enfrentadas pelo poder público é a falta de políticas educacionais de conscientização da população civil em relação a importância da reciclagem e a correta disposição de seus resíduos, em especial os RCD. Com ações mais próximas da população e não só no campo dos planos de metas e leis, acredita-se que as políticas públicas poderiam se apresentar mais tangíveis a vida comum do cidadão, como a segregação de resíduos na sua origem e a utilização dos Ecopontos. A adoção fácil dessas iniciativas impactaria em uma maior consciência ambiental do cidadão e de recursos, uma vez que o desperdício seria brutalmente diminuído, e a reciclagem dos resíduos já triados em sua origem se torna muito mais fácil e menos onerosa. Ao final, o plano aponta as iniciativas relevantes já adotadas pela PMSP que são dignas de menção, repercussão e ampliação, que também são listadas abaixo:
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Seguir com os Ecopontos, que são soluções de recebimento para que pequenos volumes de RCD (geralmente gerados em pequenas obras), sejam entregues voluntariamente; Reaproveitar o entulho gerado pelas demolições seletivas (o custo da brita oriunda da reciclagem dos resíduos é em torno de 30% menor que o material natural); Decreto Municipal nº 48.075/2006 determinou a utilização de agregados reciclados em obras e serviços públicos do Município de São Paulo; Criação de canteiros ajardinados nos locais em que foi possível transformar o ponto viciado em área de jardinagem ou com plantio de flores, transformando a atividade em prática recreativa e educativa de forma que a área restaurada e limpa passe a ser adotada; Instalação de placas educativas e informativas nos pontos viciados com o objetivo de coibir e minimizar os problemas com resíduos. As placas trazem o valor da multa e advertem para a apreensão do veículo que descarta lixo irregularmente, além de orientar sobre o Ecoponto mais próximo; Implementar uso obrigatório de agregados reciclados em obras e serviços públicos; Fomentar novos negócios, do transporte à triagem, reciclagem e fabricação de artefatos de RCD; Promover estudos que busquem ajustes tributários e fiscais para toda cadeia de RCD. Sobre estes pontos elencados pela PMSP no PGIRS de 2014, é importante mencionar a importância dada aos Ecopontos, que cada vez mais se apresentam como um equipamento indispensável para a vida urbana. Com as demolições seletivas, o trabalho e os custos da reciclagem são repassados para o ator que faz a demolição, simplificando e barateando consideravelmente a sua futura reciclagem, tanto no reemprego em outras obras quanto no transbordo e triagem de um ponto de reciclagem. Ainda, mesmo que já exista um decreto municipal determinando a utilização de agregados reciclados em obras e serviços públicos, o reemprego do RCD se dá somente como agregado para nivelamento de vias
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e camada de contrapiso para asfaltamento, ignorando a ampla potencialidade do RCD como agregado em novas misturas de concreto e argamassa armada. Ainda, a prefeitura reconhece o valor da criação de canteiros ajardinados nos espaços públicos em que antes funcionavam pontos viciados de despejo. A transformação da ação estatal em prática recreativa e educativa se mostra uma ferramenta muito frutífera de reaproximação da população local com o direito a cidade e a sensação de pertencimento ao território urbano. Uma vez que você mesmo plantou begônias no canteiro onde antes era um ponto de despejo de entulho, você criará um laço com o espaço, zelando pelo seu mantimento e bom funcionamento. Para além de reconexão com as áreas públicas de lazer e o território urbano, a ação funciona como aula prática de educação ambiental, fomentando práticas de jardinagem urbana e controle de produção de resíduos.
Imagem 113: Placa de aviso sobre as penas ao despejar Entulho em via pública, no bairro da Vila Sabrina.
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Por fim, a seção do PGIRS que trata sobre os RCD termina com algumas estratégias de implementação de políticas públicas, ou criação de redes de manejo locais ou regionais, tendo seus principais pontos listados abaixo: Logística como um dos fatores de maior relevância para racionalização dos custos e manejo de RCD; Ecopontos devem estar presentes nos 96 distritos; meta era 140 unidades em 2016 e 300 em 2020; ATTs melhor distribuídas no território nos moldes dos Ecopontos ajudará a diminuir as distâncias entre as unidades processadoras, os pontos de coleta de resíduos e os de destino dos agregados reciclados, reduzindo os custos de deslocamento; Atente-se que o agregado reciclado tem custo menor que o agregado natural, mas o frete e sua tributação os equiparam, constituindo fatores que inibem uma cultura de maior utilização desses materiais; Estabelecer grupo técnico para análise do tema fiscal e tributário na cadeia do RCC e definição de proposições para ajustes das cargas incidentes; Criar Banco de Agregados Recicláveis, com a contribuição de transportadores e recicladores apoiado nos dados de um Plano de Fluxos de materiais; Desenvolver ações de informação e educação ambiental; Criar rede de comunicação digital interativa para troca de informações e roteiros de recicladores, transportadores, transbordos etc.; Elaborar Guia de Manejo Diferenciado de RCC classe A e classe B visando recuperação e valorização máxima dos resíduos, abordando processos; produção de artefatos; procedimentos e normas; Promover, com departamento acadêmicos, instituições de pesquisas tecnológicas, associações empresariais e de classe, organizações da sociedade civil e outras, programas em parceria que promovam
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soluções com agregados reciclado, como por exemplo, para artefatos e mobiliário urbano. Dos pontos elencados pela PMSP é valoroso passar um por um, pois são os últimos resquícios de políticas (ou pelo menos, propostas de políticas públicas) no campo do manejo do RCD. O fato de serem propostas é enfatizado pelas orientações irreais do governo de implantação de Ecopontos: em 2020, com 102 postos ativos, não batemos a meta de 2016 (140), muito menos a de 300 postos de coletas neste ano de 2020. Uma aproximação muito válida da PGIRS que deve ser ressaltada é a da importância dada para a logística do sistema de reciclagem de RCD. No final das contas, é ele, o transporte, que faz com que a balança comercial não seja rentável para o emprego de entulho reciclado, mas sim para a compra de novos agregados extraídos da natureza. Além dos maiores gastos, a logística do transporte do RCD reciclado pela cidade gera mais poluentes soltos em nossa atmosfera, ao emitir dezenas de toneladas de CO2 na combustão que ocorre no motor dos caminhões que o transportam. E se não bastasse, junto ao alto preço do transporte a tarifação do produto reciclado ainda o torna menos atrativo para a compra, sendo um verdadeiro desfavor para a disseminação de agregados reciclados no mercado da construção civil. Por fim, as futuras estratégias de melhorias da gestão dos RCD no município de São Paulo têm um forte apelo educacional. Muito além de desenvolver ações de informação e educação ambiental, o Estado aponta o desejo de promover, com departamento acadêmicos, instituições de pesquisas tecnológicas, associações empresariais e de classe, organizações da sociedade civil e outras, programas em parceria que promovam soluções com agregados reciclado, como por exemplo, para artefatos e mobiliário urbano. Isto é exatamente o que procura-se fazer nesta tese, porém sem o apoio político. Não apenas, mas um outro ponto das estratégias merece ser copiado integralmente neste momento, pois endossase outra prática já efetuada: Elaborar Guia de Manejo Diferenciado de RCC classe A e classe B visando recuperação e valorização máxima dos resíduos, abordando processos; produção de artefatos; procedimentos e normas. Mesmo que não se referindo a proposta autônoma de manual praticada em 2019, é importante ressaltar que essa estratégia foi de fato colocada em prática, e dentro do limite de tempo para
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as práticas serem adotadas. Foi o lançamento do MARE, no final do ano limite de 2018, que provou que algumas dessas medidas foram sim continuadas, e que seus reflexos na população civil ainda estão por aparecer.
5. Na pesquisa feita em 2019 foi visitado o Ecoponto da Vila Sabrina, zona norte de São Paulo. O Ecoponto funcionava sem energia elétrica, sendo impossível que os responsáveis terceirizados pelo ponto esquentassem suas marmitas ou deixassem o posto aberto para além do pôr do sol.
É possível concluir, por hora, que a gestão de resíduos provenientes da construção civil e da demolição é mais um campo das políticas públicas em que se pensa somente nos mais abastados. Em linhas gerais, a triagem e gestão de RCD na escala de uma construção ou reforma só é absorvido pelo sistema de maneira paga e privada. Para os que não tem dinheiro para seguir as leis de contratação de um caçambeiro e transportador de entulho, o cidadão fica preso ao limite de 1m³ de RCD entregue por dia nos Ecopontos. Isso se há Ecoponto nas proximidades da sua casa (fica claro pelo mapa produzido e apresentado anteriormente que faltam postos desse tipo nas franjas da cidade). E isso se o Ecoponto que por coincidência existe perto da sua casa não está com operação reduzida ou já fechado devido a alta demanda ou a falta de luz5. Assim sendo, os cidadãos que mais se utilizariam de uma legislação democrática sobre a gestão e reciclagem do RCD fica desatendida, sendo a saída mais econômica e simplificada a disposição irregular de seus entulhos gerados em áreas públicas, longe do controle da legislação. Por outro lado, as camadas mais ricas da cidade gozam do seu privilégio monetário e abusam do sistema particular de caçambas, tornando-se muito simples e fácil reformar seu apartamento quando bem entenda, uma vez que é mais simples de se livrar do seu lixo gerado.
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ANEXO II O QUE SÃO ECOPONTOS? A Prefeitura de São Paulo, por meio da Secretaria Municipal das Prefeituras Regionais (SMPR ) inaugura desde 2002 áreas para a deposição regular do RDC e resíduos volumosos de pequenos geradores. Esses locais, intitulados Ecopontos, são destinados à entrega voluntária de pequenos volumes de entulho (até 1m³/ munícipe/dia), grandes objetos (móveis ou poda de árvores) e resíduos recicláveis. Os Ecopontos são compostos por duas caçambas de 12m³ para recebimento de RCD, duas de 24m³ para os grandes volumes, além de PEVs (Ponto de Entrega Voluntária de recicláveis), que são caixas verdes semelhantes a contêineres, para o recebimento e reciclagem de papel, vidro, alumínio e plásticos.
Imagem 114: Ecoponto da Vila Sabrina. Último automóvel permitido para descarregamento no dia. Os outros veículos deveriam se dirigir a outro posto que ainda dispunha de espaço para os resíduos.
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Imagem 115: As duas caçambas de 12m3 praticamente cheias enquanto um funcionário público auxilia um cidadão a despejar mais entulho.
Atualmente na cidade de São Paulo existem 102 Ecopontos em funcionamento de segunda à sábado, das 6h às 22h, e aos domingos e feriados, das 6h às 18h. Considerando que o fluxo de material de todos os Ecopontos deve ser semelhante, e examinando a cidade em que estamos inseridos, pode-se estimar que diariamente há o volume de 204 caçambas de RCD circulando pela cidade, no trajeto entre os aterros inertes da prefeitura e os Ecopontos. No anexo anterior (Anexo I) há um mapa produzido pelo autor no qual, entre as informações apresentadas, há a localização dos 102 Ecopontos em funcionamento além da localização projetada de mais 71 novos pontos, segundo informações disponibilizadas pela prefeitura de São Paulo do ano de 2020. É possível observar, pelos pontos de coleta existentes, que sua maioria estão dispostos pelo eixo Leste-Oeste da cidade, ignorando completamente a
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zona extremo-sul de São Paulo. Também é cabível mencionar que a população que utiliza dos serviços dos Ecopontos é aquela carente de recursos para o aluguel de caçambas e carretos para o descarte apropriado de entulho. Coincidentemente, as populações de baixa renda também são responsáveis pela autoconstrução na cidade de São Paulo, e em sua grande maioria estão localizadas às margens da cidade, em suas zonas mais extremas, onde o número de Ecopontos é menor ou inexistente. No mais, é válido ressaltar que os Ecopontos não são a saída mais sustentável para a problemática da geração de resíduos nos meios urbanos, uma vez que os resíduos são de lá destinados para um aterro inerte, ao invés de serem reciclados e reapropriados ao ciclo produtivo do consumo humano. Todavia, segundo a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) a disposição final ambientalmente adequada é a distribuição ordenada de rejeitos em aterros, observando normas operacionais específicas de modo a evitar danos ou risco à saúde pública e à segurança, além de minimizar os impactos ambientais diversos.
Imagem 116: Panorâmica do Ecoponto da Vila Sabrina tirada de cima da plataforma para despejo nas caçambas de RCD. Do lado esquerdo observase a pequena guarita para abrigo dos funcionários públicos de administração e as duas caçambas de 24m3 para resíduos volumosos.
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ANEXO III MANUAL PARA RESÍDUOS DA CONSTRUÇÃO CIVÍL
139
140
MALHA 25x25MM
1
MALHA 15x15MM
MALHA 10x10MM
2
MALHA 5x5MM
3
4
7
8
5
VISTA FRONTAL 1:5
6
ANEXO IV
VISTA LATERAL 1:5
5
0
10
30cm
FONTE: RELATÓRIO FINAL DE PESQUISA EXPERIMENTAL 5 e 6 - Desenho produzido pelo autor, 2020. 1-4, 7 e 8 - Fotos do autor, 2019.
142
1
2
3
4
VISTA FRONTAL
VISTA LATERAL
5
0
10
30cm
ANEXO V FONTE: IMAGENS DO AUTOR 1 e 2 - Fotos do autor, 2020. 5 - Desenho produzido pelo autor, 2020.
144
PEÇA
SUPERIOR / LATERAIS
MATERIAL: COR: ACABAMENTO: POSICIONAMENTO: PESO: DIMENSÕES:
LATERAL MEIO MÓDULO
A’
FRONTAL
FÔRMA
CONCRETO RECICLADO VARIÁVEL DESBASTADO/ENVERNIZADO FOSCO ALEATÓRIO/CONTENSÕES 40/80KG 40x40x20/40X40X40CM
ÁREA PARA DESPEJO DO CONCRETO A
ACABAMENTO DA PEÇA CONCRETADA
SUPERIOR
FUNDO
MADEIRA COMPENSADA LAMINADO MELAMÍNICO 2MM
MEIO MÓDULO
PORCA BORBOLETA E BARRA ROSCADA 6MM PARAFUSO E PORCA 6MM PERFIL PVC 35X35MM
CORTE AA’
LATERAL 1
LATERAL 2
5
0
10
30cm
EXEMPLOS DE COLOCAÇÃO
ANEXO VI PEÇA CUBO VISTA 1
SUPERIOR 1
CORTE 2
SUPERIOR 2
FONTE: IMAGENS DO AUTOR, 2020
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PEÇA
FRONTAL
SUPERIOR / LATERAIS
LATERAL MEIO MÓDULO
FÔRMA MATERIAL: COR: ACABAMENTO: POSICIONAMENTO: PESO: DIMENSÕES:
SUPERIOR
CONCRETO RECICLADO VARIÁVEL DESBASTADO/ENVERNIZADO FOSCO ALEATÓRIO/CONTENSÕES 20KG 40X20X20CM
FUNDO
ÁREA PARA DESPEJO DO CONCRETO ACABAMENTO DA PEÇA CONCRETADA CORTE LONGITUDINAL
MADEIRA COMPENSADA
VISTA LONGITUDINAL
LAMINADO MELAMÍNICO 2MM PORCA BORBOLETA E BARRA ROSCADA 6MM PERFIL PVC 35X35MM CORTE TRANSVERSAL
5
VISTA TRANSVERSAL
0
10
30cm
EXEMPLO DE COLOCAÇÃO
ANEXO VII PEÇA QUARTO DE CUBO VISTA
SUPERIOR
FONTE: IMAGENS DO AUTOR, 2020
148
PEÇA
FÔRMA
FRONTAL
LATERAL
SUPERIOR
LATERAL MEIO MÓDULO
MATERIAL: COR: ACABAMENTO: POSICIONAMENTO: PESO: DIMENSÕES:
ÁREA PARA DESPEJO DO CONCRETO ACABAMENTO DA PEÇA CONCRETADA
MEIO MÓDULO
CONCRETO RECICLADO VARIÁVEL DESBASTADO/ENVERNIZADO FOSCO ALEATÓRIO/CONTENSÕES 30/15KG 50X20X40CM/50X20X20CM
MADEIRA COMPENSADA LAMINADO MELAMÍNICO 2MM 5
0
10
30cm
EXEMPLO DE COLOCAÇÃO SUPERIOR
FUNDO
CORTE LONGITUDINAL
VISTA LONGITUDINAL
VISTA
CORTE TRANSVERSAL
VISTA TRANSVERSAL
SUPERIOR
ANEXO VIII PEÇA ABÓBODA FONTE: IMAGENS DO AUTOR, 2020
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