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VII. Salvador, julho de 1865

VII

salvadoR, Julho de 1865.

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um acoRde animado! O brilho nos olhos de Ana. Todos estavam ali, inclusive o presidente da Província da Bahia, o senhor Manuel Pinto de Sousa Dantas.

Bárbara foi de grande ajuda, porque conseguiu, junto a frei Rubião, os melhores contatos entre os ricos e influentes políticos da capital baiana, então inventaram uma recepção de arrecadação de materiais hospitalares e mantimentos para os militares no conflito no Rio Grande do Sul.

Quem não gostaria de comparecer a tal evento? Algo surpreendente: auxílio aos soldados e marca certa de patriotismo.

Foi quando apareceu também, para ajudar, a jovem e rica Manuela Jordana Telles de Menezes, que se juntou às duas atarantadas amigas, acompanhada de sua criada, a silenciosa Justina.

Ana se agradou de imediato das duas, mas se aproximou de Justina, que se mostrou desconfiada.

Manuela se tornou companheira de Bárbara, as duas ficaram dias e dias em idas e vindas ao convento e pelos palácios e mansões de Salvador, enquanto a tarefa de Ana mais Justina foi arrumar e ornamentar o casarão para a festa promovida em prol dos militares.

Numa tarde, quando menos se esperava, Ana se aproximou de Justina, que varria o terreiro dos fundos da casa. Gritou forte: – Ô! Ô! Justina?

A mulher parou de varrer e foi ao encontro da senhora. – Para de varrer e venha comer comigo aqui dentro! – disse e se voltou para o interior da casa.

Justina permaneceu parada, sem entender.

Ana já estava à mesa, então percebeu que a escrava não apareceu. Levantou-se e, com passos rápidos, foi à porta dos fundos. Viu que Justina ainda estava parada, vassoura à mão, olhando estupefata. – O quê? Vai ficar aí, mulher? Venha comer comigo logo – falou e entrou.

Justina deixou a vassoura cair ao chão. Mexeu-se demoradamente, aí ouviu o grito de Ana, chamando-a: – Jus-ti-na! Entre logo e venha comer, que a comida vai esfriar, mu-lheeeer!

A escrava se apressou e em instantes estava ao lado de Ana Néri. – Minha se-nhnhnhoraa… – gaguejou Justina.

Ana não deixou que terminasse. Bateu forte na mesa. – Vamos logo! Está uma delícia este ensopado.

Justina obedeceu prontamente e se pôs a se servir, ainda que com timidez. – Agora, veja, Manuela e Bárbara não retornaram ainda das andanças pela cidade baixa…! Chegarão mortas de fome e cansadas – falava animada, sem fixar os olhos em Justina, de modo que a mulher não ficasse constrangida. – Sinhá… – Vamos, coma, Justina! Não tem mal algum estar à mesa comigo. – Assim falou Ana e tocou levemente no queixo da outra.

Enfim, olharam-se demoradamente, Ana sorriu e Justina permaneceu séria. – Tá bom… – murmurou, aliviada, Justina. – Você tem filhos? – quis saber Ana. – Sim. – Quantos?

A escrava ergueu o dedo indicador: – Uma filha. – Como se chama? – Sebastiana.

Ana considerou uns instantes e pediu: – Traga a Sebastiana aqui, amanhã. Qual é a idade dela? – Minha fia tem treze anos, Sinhá!

– Pois bem, quero conhecê-la. Poderá me ser útil. Quero conhecer Sebastiana! – falou enfática, enquanto seus pensamentos voaram aos filhos distantes.

E a recepção foi concorrida. As melhores famílias desejaram comparecer para tão nobre causa, mas a única família que não poderia estar ausente era a do Dr. Manuel Pinto de Sousa Dantas.

Quando a carruagem parou à porta de entrada, Manuela atravessou o salão numa agitação tamanha que despertou a atuação dos demais. Esbarrou em Ana, dizendo com voz emocionada: – Minha amiga! Amiga! – O quê, Manuela? O que aconteceu? – Ele chegou!

O leque caiu das mãos de Ana, que olhava a outra, estarrecida. – Ufa! Graças a Deus! Graças!

Bárbara se aproximou também e sussurrou às duas: – O presidente é nosso! – Sim, nosso – retrucaram juntas Ana e Manuela.

Sim, o presidente da província baiana era um homem bonito de cabelos castanhos, elegante e um político de boas e sérias referências. Seu espírito articulador tinha despertado interesse na Corte. Não era um político qualquer, mas homem jovem e promissor em ambições administrativas e econômicas de fortes garantias.

Era nesse homem de olhos pequenos, boca carnuda e fartos cabelos que Ana Néri repousava suas

esperanças de vencer as barreiras de ser da camada privilegiada da sociedade e ser mulher para seguir rumo ao sul. O que fazer? – A mulher dele é ao menos simpática, aparentemente? – quis saber Ana. – Sim, sim, bem alegre – afirmou Manuela. – Que bom! Então, ele será nosso pelos pratos servidos e sobremesas, tudo de sua preferência – disse Ana, enquanto piscava os olhos para as duas cúmplices. – Darei as ordens que sirvam o jantar, pode ser? – indagou Bárbara. – Claro! Sim… Ah, que é melhor primeiro? O porco recheado? – disse Ana sorrindo, marota.

Bárbara se voltou sorridente. – Ele vai morrer de felicidade hoje, querida!

Mais tarde, Ana e Manuela se aproximaram da mesa presidencial. – Senhor presidente… senhora – apresentou-se Ana.

O homem se ergueu num salto, contente. – Minha senhora. Que casa! Que música, mas sobretudo que jantar formidável! – elogiou o político.

Manuela, que estava de braços dados com Ana, apertou-lhe o cotovelo com força.

Que é isso? Como é capaz de fazer isso? Que coisa. Quase gritei! Pois bem, também farei o mesmo…

As duas se apertavam feito crianças. – Fico feliz, senhor presidente, que nesta recepção tenhas encontrado comida e bebida a contento – falou

Ana e se voltou simpaticamente à mulher de Manuel Pinto, sorrindo. – A senhora também está bem servida? Necessita de mais alguma coisa?

A esposa se levantou imediatamente. – Não, não, dona Ana, estou bem, estamos bem. – Ótimo! Ótimo! Oferecer um jantar não é algo tão fácil quanto parece, os gastos e as preferências predominam em individualidades, mas procurei trazer o que há de comum e aceitável – justificou-se a anfitriã, apertando fortemente o braço da companheira, que a olhou perturbada.

Manuel Pinto cofiou o bigode e retesou o corpo. – Mas, minha senhora, curiosamente tudo que me foi oferecido me apeteceu deveras. Tudo me agradou bastante: pratos, quitutes, guloseimas ou sobremesas apetitosas, geralmente aquilo que me serve bem, não é? – falou o presidente, voltando-se à esposa. – Perfeitamente, Manuel – confirmou.

Bárbara as olhava do outro lado da sala, num grupo de mulheres. De lá incentivou Ana que falasse do assunto que tanto a incomodava, então sussurrou: “Fale, Ana!”.

A outra se encorajou. – … e essa guerra em que o Brasil está metido, senhor?

A esposa do presidente se surpreendeu, olhou-a atenta (não era comum mulheres tratarem desse assun-

to com homens); ele, que também não aguardava falar sobre isso, disse: – Guerra forte e que colocará os brasileiros em situações violentas. O Paraguai quer usurpar terras que jamais foram suas e tem um nosso prisioneiro, aliás, toda uma tripulação e pessoas comuns… – Sim, um conflito perigoso, e pais e mães têm que assistir aos seus filhos partirem – falou Ana com voz estremecida. – A senhora tem marido nessa guerra? – intrometeu-se a esposa.

Ana se encaminhou em direção à mulher, desvencilhou-se do braço de Manuela. Aproximou-se por demais da mulher de Manuel Pinto e, de um ângulo que este também pudesse vê-la falar, replicou firme: – Sou viúva há muito, mas meus três filhos embarcaram ao Rio Grande do Sul no último mês.

A esposa fitou-a e logo desviou o olhar. O homem avançou, inquirindo surpreso: – Três filhos?! – Sim, senhor presidente, dois médicos: Justiniano e Isidoro, e um militar, meu mais novo: Pedro Antônio; todos já seguiram para o sul.

Marido e mulher se entreolharam, nervosos. – Bem, senhor, esta recepção tem a finalidade de auxiliar de alguma forma àqueles que lá se encontram. Na caridade e no amor fraterno desejamos cuidar de

nossos filhos que estão por lá defendendo o Império, não é mesmo? – disse Ana, temperando a política. – Sim! Claro que sim, minha senhora – respondeu enfaticamente o presidente. – Então, fiquem à vontade, e que tudo por aqui seja proveitoso. – Assim falando, Ana afastou-se sem olhar para trás.

Se olhasse, veria tanto o homem quanto a mulher, ambos em pé, boquiabertos, pensativos ante a notícia recebida.

Ana se retirou ao seu quarto e logo chegaram Bárbara e Manuela. Estavam sérias. – O que houve? Por que não pediu ao presidente o que tanto quer? – quis saber Manuela. – Uma recepção cara desta e perdeu oportunidade, meu bem – acrescentou Bárbara.

Em pé, diante da grande janela, olhando o mar defronte, Ana respondeu confiante: – Nada foi perdido. Ele agora jamais me esquecerá. – Por quê? Não entendo? – quis saber Bárbara. – Porque a esposa ficou lívida ao saber que, além de viúva, ainda ofereci meus três filhos à pátria – falou com voz firme.

Manuela se voltou para Bárbara. – Sim, eles têm filhos; nós, mulheres, sofremos demais quando envolvemos nossos filhos – confirmou Manuela.

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