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XII.Assunção, Paraguai, maio de 1869
by UDL Educação
XII
assunção, paRaguai, maio de 1869.
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os passos de ana néRi eram lentos. O frio lhe cortava o ânimo ou a notícia desgraçada lhe arrancara as forças? Caminhava ao longo do grande muro de sua residência. Caminhava em busca de fios de sol que abraçassem o coração do frio exterior e da frialdade fatal que lhe atormentava o espírito.
Parou. Quem lhe daria ânimo novamente? Seus passos eram dados no vazio, como se não pisasse. Em sua casa estavam seus dois filhos: Isidoro e Pedro Antônio. Chegaram à noite Rozendo e o irmão, o major Maurício Ferreira. Todos estavam chorosos e aflitos: Justiniano havia sido morto em batalha.
A quarta-feira foi chuvosa durante o dia inteiro. Às 17h o frio e a densa cerração cobriam Assunção. A cidade sitiada há muito atemorizava pelos ensurdecedores disparos de canhões e o ribombar de forte artilharia:
gritos, pedidos de socorro, correria e aflições tomavam parte do cotidiano, mas nada afligiu mais o coração de Ana Néri do que encontrar Isidoro parado frente à porta de casa.
Ela viu o rapaz assomar à entrada, mas não atentou de imediato que era seu filho, então parou e ficou a encará-lo, vendo-o vir em sua direção, sério, passos firmes. A mãe avançou rápido e contente a fim de abraçá-lo.
Que surpresa! Ele aqui, agora veio contente ao meu encontro. Que bom, meu Isidinho! Que saudade do meu queridinho! Estava na hora; a hora de a mãe ver e abraçar o filho sozinho em guerra…
Então viu também aparecer na porta o outro filho: Pedro Antônio. Este não andou, deixou-se ver e ficou parado, cabisbaixo na soleira da porta.
Um raio clareou lá fora? Um barulho estrondoso sacudiu a casa? O que aconteceu? Ana Néri estacou. Seus movimentos musculares se retesaram. Parou. A boca feliz se fechou. Os olhos ávidos pela presença dos filhos toldaram-se. Ela estava como que petrificada. O coração era o único órgão ativo, pulsante. Ela estava se tornando um bloco de sal, feito a mulher de Ló?
Ana não se mexia. Era pedra, era estátua, era como uma esfinge, um ser bruto, não raciocinava, olhava e via os dois filhos. Cadê Justiniano?, mas a pergunta não brotava na boca, não conseguia fazer o som sair: pergunta e palavra perdidas no íntimo, contudo seu interior era o
vulcão irrompendo, o terremoto desastroso, o tsunami arrasador… mas… cadê… força?!
Isidoro a envolveu em um forte abraço, mas filho não consegue abraçar tal qual a força de uma mãe. Ela o puxou de encontro a si. Forte. Seus olhos buscavam Pedro Antônio, e ela ainda encontrou Rozendo e outros, que enchiam o corredor. – Mãe, Justiniano se foi… e também o Arthur! Mãezinha, eles morreram – disse Isidoro em seu ouvido direito.
Bastou. Os olhos se arregalaram e se tornaram como que vítreos, mãos e braços se afrouxaram, e o corpo, em queda livre, foi suspenso por Isidoro e Rozendo.
Eu não… Eu não! Nada disso e disso! Tô aqui parada. Justiniano tá aqui. Deus te abençoe, meu bem! Deus te abençoe, querido! Meu filho querido!
O abalo emocional foi tão forte que durante dois dias Ana Néri não reagia. Deitada e absorta, os olhos passeavam pelo quarto, viam as coisas e as pessoas que a visitavam, mas a reação era mínima. Estava paralisada.
Os filhos não se afastaram.
Pedro Antônio permaneceu com a mãe, deitado em colchas e cobertores no chão. Rozendo e Isidoro tentaram inúmeras vezes que o rapaz se retirasse do
quarto, ao menos umas horas dormidas em cama, mas alegava, convicto: – Ela cuidou da gente e está aqui para cuidar de mim e de outros desconhecidos, como uma mãe! Deixem-me ficar! Não sairei daqui. – E não arredou os pés, somente para os banhos e rápida alimentação. Quando se retirava, suplicava com rigidez ao irmão, a Rozendo e a tantos outros que estavam prontos para acudir Ana Néri: – Não a deixem sozinha! Fiquem de guarda! Prestem atenção!
Os irmãos não se podiam olhar, logo choravam e se abraçavam.
Ao despertar do seu torpor emocional, Ana Néri tinha sobre si os olhos atentos de Pedro Antônio. – Oi, mamãe! Estamos aqui… – falou o filho caçula e se afastou para que a mulher visse o outro, Isidoro. – A sua bênção, mamãe! – Acenou e se ergueu da poltrona o filho do meio.
Ana esboçou um sorriso fraco. – Deus te abençoe, meu filho.
Uma enfermeira puxou a cortina e o sol inundou o quarto com tamanha intensidade que assustou Ana. Ela ergueu as mãos para impedir a inundação de luz. – Oh! Oh! Quanta claridade!
– Receba, senhora! Receba bem esta luz. O sol faz bem, muito bem! – incentivava Rozendo, de pé, no centro do quarto.
Ana olhou para todos. Viu seus filhos magros, chorosos junto da cama. O sofrimento unia a todos.
Vou me levantar. Tenho que ir, tenho que ter forças e caminhar bem… Não chorarei… Não agora, basta! – Quero sair daqui! Saiam do quarto! Vou me arrumar! Vamos!
Os homens ficaram estupefatos. Rozendo conseguiu bater palmas, contente. – Vamos! Dona Ana pediu pra ficar só! Vamos! Vamos!
Os filhos se retiraram prontamente.
Ao permanecer sozinha, apenas com a enfermeira e Rozendo, ela o puxou pela mão. – Meu Justiniano e o Arthur morreram mesmo? – perguntou em voz vacilante.
Rozendo a olhou admirado. A enfermeira desviou o olhar, compreensiva. Ele, então, aproximou-se, curvou-se sobre a mulher e lhe beijou a testa. – Dona Ana, infelizmente teu filho Justiniano e o teu sobrinho Arthur morreram em um combate há quatro dias. Lamento e sinto muito.
As mãos do rapaz procuraram as mãos da mulher, que se deixou tocar.
Suas mãos foram apertadas fortemente.
– Que Deus tenha meu filho Justiniano e meu querido Arthur! – falou a mulher com a voz firme.
Rozendo caminhou em direção à porta, parou de súbito, voltou-se para Ana, fitando-a demoradamente, quando, então, decidiu continuar seu caminho de saída, batendo a porta atrás de si.
A recuperação veio lenta e certa. Ana procurava as forças contrárias ao luto voraz. Sentia-se presa a uma dor, então voltou-se a Deus e aos filhos com mais intimidade.
Não permanecia muito tempo no quarto porque não queria se refugiar no leito, com a tristeza avassaladora e impetuosa nas costas e no peito. Então corria à capela e se prostrava aos prantos. Ali permanecia por horas e horas e, vez ou outra, chamava aflita: – Senhor, nas minhas profundezas, no abismo, clamo a ti!
E chorava, chorava. E corria ao jardim para cultivar, adubar, irrigar as mussaendas, as ixoras, os fícus e tantas outras plantas e flores que lhe alegravam o coração.
Sentava-se com os dois filhos, conversavam e se entendiam: mãe e filhos, todos envolvidos com a guerra. – Caxias voltou ao Rio sem permissão do Imperador! – confiou Isidoro.
– Esta guerra está por acabar, o cerco aos paraguaios está dando certo! – acrescentou Pedro Antônio.
Ana se ergueu, ajeitando a longa e farta saia preta. – Bem, é hora de retornar aos meus feridos e doentes!
Os rapazes se entreolharam satisfeitos. – Sim, mamãe! – concordaram.