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XIII. Assunção, Paraguai, setembro de 1869
by UDL Educação
XIII
assunção, paRaguai, setembRo de 1869.
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Rosto magRo, corpo com menos volume e olhar sério, Ana Néri corria pelo leito dos feridos. Era o seu turno e conversava com um sargento cujo olho fora vazado por estilhaços de bala de canhão. – Fique bem, o esquerdo está bem! Continuará enxergando. O olho esquerdo não foi danificado! – falava calmamente, mas o homem a segurava com forças, aflito.
Ela, paciente, deixava-se reter, enquanto o homem, mergulhado em lágrimas, lamentava a sua condição. – O que me será sem um olho? – Aos menos lhe restou um, querido! – confortava Ana. – Senhora! Senhora…! Como será isso?! – gritava, aflito.
Ana se ergueu, acariciou-lhe o rosto ternamente e, fixando-lhe o olhar, disse: – O senhor tem mulher? – Sim, sim, tenho… senhora! – Então ela aceitará o senhor… ela gosta do senhor?
– Sim, me parece que sim.
Ana sorriu e acenou positivamente com a cabeça. – Hummm… estamos bem, meu senhor!
O doente a encarou seriamente, depois, reconfortado, sorriu também. – Tens filhos? – Sim, dois; um menino pequetito, de três anos, e uma menina de cinco.
Ela se inclinou e falou suave e firmemente: – Quando retornar à tua casa, todos os dias mostre o olho vazado e, em seguida, peça que beijem… que beijem! Fará isso, meu senhor? – concluiu, tocando-o com a mão direita.
O ferido a fitou seriamente, quando uma lágrima escorreu do olho machucado. – Sim… sim, farei isso, minha senhora!
Ana se ergueu rapidamente. – Que bom! Que bom! – E pediu: – Agora me deixe ir aos outros que me gritam. Fique bem! Mais tarde, retorno.
O sargento ficou sério, vendo-a retirar-se. Ela, que correria a outras alas de feridos e doentes.
A residência de Ana Néri em Assunção logo foi transformada em uma espécie de hospital: mutilados,
feridos diversos e convalescentes ali entravam e não saíam mais.
Freiras vicentinas também ali se estabeleceram: as Irmãs de Caridade Luísa Santos e Pacheca Andrade, duas jovens brasileiras, gaúchas, que em muito ajudavam a anfitriã e as outras voluntárias.
A casa grande de vários cômodos era centralizada num vasto terreno, avarandada e cercada por robustas mangueiras e fícus, e possuía o teto alto e a estrutura rígida. O arejamento era confortável por conta das largas e altas janelas: duas por cômodo.
Então Rozendo e a sorridente irmã Luísa apareceram no terreiro dos fundos. O rapaz estava acompanhado de quatro crianças.
Ana estava debruçada, remexendo a terra da mussaenda rosa que acabava de plantar. – Oh! Como isso é bom, não é? – falou Rozendo, animado.
Ana se virou, contente, ergueu-se sacudindo as mãos sujas de terra. – O que faz aqui?! Que bom te ver, Rozendo! – disse quase gritando.
Então viu as crianças, intimidadas, atrás do rapaz. A irmã segurando no colo a menina pequena. – Quem são? O que fazem com você estas crianças? – preocupou-se a enfermeira.
Rozendo, sorrindo e tendo as mãos seguras no menino, respondeu:
– São nossas, mãe!
Ana estacou. Mãos suspensas no ar, a boca se abriu involuntariamente. Indagou sem saber por quê: – Quê?! Quem são? – Mãe, já disse, são nossas!
A mulher, então, atentou bem para a irmã Luísa, que tinha nos braços uma pequena, e viu se aproximar a irmã Pacheca, ladeada por dois meninos pequenos.
Olhava a tudo e voltava ao rosto sorridente de Rozendo. – Minha mãe, agora temos seis órfãos, de que cuidaremos nesta casa, junto aos feridos desta maldita guerra!
Ainda perplexa, Ana limpou as mãos sujas no avental branco. Limpou as mãos e avançou falando: – Bem, eu tomarei conta de seis crianças, não é mesmo, Rozendo? – A senhora e nós também! – retrucou o acadêmico, rindo ainda mais.
Ana aproximou-se da menina que era a maior em tamanho e perguntou: – Está com fome?
Todas as crianças a olharam demoradamente. Uma respondeu prontamente: – Estamos, sim, senhora! – Então, vamos comer!
Rozendo ficou para trás, enquanto Ana passava por ele a passos rápidos.
– Então, aceitou? Ficará com elas, dona Ana? – quis saber, agora sem rir.
A mulher parou e voltou-se calmamente. – Sim, senhor, ficaremos! Aqui tem lugar para estas crianças! Poderão até ajudar nos jardins e canteiros de rosas e heras-roxas.
O acadêmico, com as mãos à cintura, olhava boquiaberto ora para irmã Pacheca, ora para irmã Luísa e sacudia a cabeça, rindo, surpreso. – Dona Ana! Mãe! – gritou.
Ana voltou-se mais uma vez. – O que é, filho? – Estas crianças poderão ficar aqui, mesmo?! – gritou mais uma vez, espantado.
A mulher levou também as mãos à cintura. – Sim, já disse! Por que pergunta mais uma vez?
Rozendo abaixou os braços e suspirou, aliviado. – Esta mulher me surpreende sempre! Que alívio que não verei mais estas crianças perambulando pelas ruas… – murmurou, mas foi ouvido pela irmã Pacheca.
O olhar de ambos se cruzou, mas nenhum deles disse qualquer coisa. Tinham muito o que fazer. – Vamos! Venham comigo! – chamou Luísa. – Vamos tomar banho e depois tomar café!
As freiras entraram na casa e as crianças seguiram silenciosas e ainda intimidadas.
A residência de Ana se efetivou naqueles dias difíceis como lugar de repouso e recuperação e, a partir da chegada dos órfãos, também como casa de recolhimento.
A mulher ocupada, que se desdobrava para atender aos diversos doentes e tantos outros necessitados que lhe batiam à porta, pedindo-lhe ajuda ou socorro, ainda encontrou tempo para cuidar e tratar de seis crianças órfãs.
O que fazer? Em tempos tenebrosos, nada poderia se tornar pior do que a situação em que já se encontrava. A guerra eram as trevas; o caos, propício para as desgraças, como fome, violências, pilhagens, abusos e misérias que brotavam dos corações de pessoas más ou desesperadas.
Os braços se abriram. Os braços de Ana Néri se abriram como acolhimento e proteção.
Reunia as crianças após a ceia junto a si, em seu quarto e, com os menores no colo, contava-lhes histórias da Bíblia, dos contos de fadas ou de Trancoso: “Era uma vez um rei que tinha uma filha linda, linda, chamada…”, “A raposa tão esperta foi vencida pela tartaruga… porque…”, “Ora, Abraão juntou a lenha porque faria o sacrifício, então Isaac perguntou…”.
E uns logo adormeciam, outros permaneciam acordados, atentos, queriam saber como a história terminaria. E, quando acabava o relato, pediam: – Outra! Outra história, mãe…!
Então uma das irmãs acudia.
– Ora, chega! Dona Ana precisa descansar… Ela acorda cedo, tem o que fazer já pela madrugada com tantos doentes pela casa! – Credo, minha irmã! Até parece que irei morrer! Deixa um no meu colo, por favor! – Não! Não! A senhora precisa descansar. Tá cansada! Vamos, senhora, me dê a criança!
E todas as noites essa cena se repetia, e somente bem tarde as freiras conseguiam sossegar a mãe e as crianças.
O luto pelo filho Justiniano foi mitigado pela presença das crianças. Ana distraía-se em tomar conta, saber de tudo, como comiam, bebiam, se brincavam ou brigavam, se estavam bem de saúde ou quem eram os pais. Se realmente eram órfãs ou estavam perdidas, distantes dos pais – que, aflitos, deveriam estar procurando pelas ruas da cidade, pelos campos. Coitados! – Não. Não estão perdidos. São órfãos! – garantiu Rozendo numa tarde calorenta de novembro. – Isso me tranquiliza bastante! – confiou Ana.
Estavam um defronte para o outro, sentados na varanda, frente à casa. – Por quê? – Porque levarei comigo ao Brasil, quando a guerra acabar. – Qual delas levará?
Ana o olhou, séria, e disse convicta: – Todas as seis.
Rozendo ouviu, cruzou os braços e descruzou as pernas. – Fará isso? – Por que duvidas? Já disse! – Não duvido, estou surpreendido. – Surpreendido?! Escute bem: perdi o marido ainda bem jovem e com três meninos pequenos! Criei os três com mão forte e a pátria os tomou de mim… Não contente vim ao sul, à guerra, atrás deles; um se foi pela bala, pela bomba, por um canhão?! E me restaram dois: Isidoro vive em delírios, somente Pedro Antônio parece um pouco bem da cabeça e dos membros…
A brisa sacudia as madeixas que se soltavam do coque no alto da cabeça de Ana. O olhar era firme, fixos em Rozendo, mas as mãos – quando ela pronunciou sobre a morte de Justiniano – se fecharam, firmes, e assim permaneceram. – A senhora está querendo dizer que cuidar das crianças não será um trabalho árduo? – perguntou o estudante, interessado.
Ana ergueu a cabeça, olhando-o bem. – Nem um pouco árduo, senhor Rozendo. Estarei em um jardim após o inferno dos hospitais, das amputações, dos feridos, dos gritos, de todos os doentes gritando pelo meu nome!
Rozendo observava a mulher, atento, com olhar complacente. – A senhora esteve em quais lugares de batalhas?
– Estive em Humaitá, Salto, Corrientes, no Rio Grande do Sul quando cheguei, e agora aqui em Assunção! O senhor sabia que por diversas vezes eu não conseguia adormecer tranquilamente porque ouvia vozes? – Vozes? Como vozes? – Não sei! Ao longo do dia eles me gritavam, chamavam tanto, tanto, e ainda me chamam, que, ao tentar fechar os olhos, adormecer um pouco, tirar um cochilo, eu não conseguia. Ouvia ininterruptamente: “Dona Ana! Dona Ana! Aqui! Senhora? Senhora? Senhora Ana!”.
Rozendo inclinou o corpo. Ouvia o comentário de Ana muito de perto, próximo demais. Não queria perder uma palavra; queria o relato por completo. – E então? O que fazia? – Na certeza de que era chamada, corria à enfermaria com a lanterna à mão. E sempre tinha dois, três ou todos eles passando mal, uns chorando, outros se maldizendo e outros, sim, muitos queriam tocar em minhas mãos, que eu me sentasse ao lado, e aí vi inúmeras vezes muitos e muitos morrerem… – ela falava com voz firme, contudo seu semblante estava pálido, sentida deveras da dor que lhe retornava pela recordação evocada. – A senhora não descansava, não é? – Muito, muito pouco, porque queria trazer o conforto àqueles homens, porque meus filhos também poderiam se ferir e necessitar de uma forte enfermeira. – Então cuidou bem dos soldados inimigos?
– Sim, claro, creio que até melhor que os nossos! – Melhor? – Sim, eram mais jovens e estavam muito assustados. Desconfiavam que seriam envenenados… – Que coisa! É verdade? – Sim, entre eles havia se espalhado um boato de que, junto aos remédios noturnos, gotas e gotas de veneno também seriam distribuídas. Assim, quando eu os alimentava e, principalmente, quando lhes dava água, um mísero suco ou até mesmo cachaça… – Cachaça?! – interrompeu Rozendo. – Sim, cachaça aos demasiadamente feridos, os moribundos. – Que falavam? Gritavam? Recusavam violentamente? – Não, não. Apenas me olhavam calmamente, seguravam-me a mão e perguntavam: “É o veneno para que eu morra?”. – Como a senhora reagia? – Apenas sorria, olhava séria e dizia com firmeza: “Sou mãe e, aqui, enfermeira. Creio também em Deus! Toma, meu filho, e durma bem hoje!”. Assim me obedeciam e logo adormeciam. No dia seguinte, quando transitava entre eles, ouvia vozes animadas, felizes: “Dona! Dona! Olha aqui, tô vivo!”, “Dona Ana, por favor, olha pra mim!”, “Senhora, tô vivo! Aqui?”, “Senhora…”, “Senhora… Amém!”, “Senhora! Dona! Ana! Ana!”.
E a conversa foi interrompida porque chegaram cartas para Ana Néri. – Veja! Já era tempo! As cartas perdidas dos últimos meses… Finalmente. Hummm… hum… aqui estão minhas duas amigas baianas. – Como se chamam? – quis saber o jovem. – As medrosas Bárbara Altero e Manuela Menezes. – respondeu sarcástica.